segunda-feira, agosto 23, 2021

A FILOSOFIA CLÁSSICA (II-a) Eu sei que nada sei?

Sabemos que a filosofia nasceu quando nasceu o ser humano, mas ela só recebeu status e relevância quando alguns personagens gregos colocaram alguns pontos de interrogação ao processo de interpretação da realidade e do mundo.

Esse grupo de pensadores é conhecido como “pré-socráticos”. Mas, como sempre, o dinamismo da história acionou a roda do mundo e surgiram novas temáticas e novas respostas. A natureza perdeu seu espaço para a sociedade e os pensadores passaram a se dedicar à busca de novas explicações agora não mais para a natureza, mas para a vida social, para a realidade humana.

Estamos num novo período: a filosofia clássica, ou período antropológico. Neste período, além da atuação dos sofistas, três nomes se destacam: Sócrates, Platão e Aristóteles.

Vejamos alguns comentários a respeito de Sócrates.



Sócrates: Eu sei que nada sei?


Poucos estudantes podem dizer que nunca ouviram ou leram o nome de Sócrates.

Junto com esse personagem nos chegam algumas informações a seu respeito: não se tem notícia de que tenha produzido algum escrito. A informações que temos a seu respeito chegaram a nós mediante seus discípulos, sendo Platão o que mais nos fornece informações a seu repeito, uma vez que o mestre é o principal personagem em seus diálogos.

Também nos vem de Platão a informação de que Sócrates teve inúmeros atritos com os sofistas. E sua morte, após um julgamento polêmico, ocorreu ao tomar um copo de cicuta.

Quem já ouviu falar em Sócrates, também ouviu: “só sei que nada sei”, “conhece-te a ti mesmo”, ironia socrática e maiêutica.

Também se diz que era um homem muito feio e que um certo viajante, teria dito que ele tinha a fisionomia tão feia que se parecia com um monstro capaz de realizar qualquer crime. Ao ouvir isso, a seu repeito, o filósofo teria respondido: “acertou em cheio, senhor”.

Possivelmente de sua rivalidade com os sofista foi que nasceu a acusação que lhe foi imputada: a de estar corrompendo a juventude de Atenas. Seus acusadores o levaram a julgamento e foi condenado à morte. Seus discípulos o incentivaram a fugir da cidade, mas ele alegou que em toda sua vida cumprira a lei e que não seria na morte que a descumpriria. Dito isso tomou a taça com sicuta, o veneno da condenação.

Qual era, então, sua atividade filosófica? Após se sentir interpelado pelo oráculo de Delfos dedicou-se a ela: livrar os homens de sua ignorância, conduzindo-os à verdade.

Portanto sua filosofia se fez ao redor dessa questão: O homem. Não o homem como algo distante, teórico, conceitual ou distinto do cotidiano, mas o homem que se insere no cotidiano com tantos afazeres que se esquece de olhar para si mesmo.

A professora Marilena Chauí, em sua obra “Convite à filosofia” afirma o seguinte: “Sócrates dedicou-se à filosofia depois de haver ido ao templo de Apolo Delfos e ter ouvido uma voz interior, o seu daímon, que o fez compreender que o oráculo inscrito na porta do templo – “conhece-te a ti mesmo” – era sua missão. Por ela abandonou toda atividade prática e viveu pobremente com sua mulher Xantipa e seu filhos. Foi descrito por todos os que o conheceram como alguém dedicado ao conhecimento de si e que provocava nos outros perguntas sobre si próprios”

Indagando-se a si mesmo e aos outros em busca do autoconhecimento constatou sua própria ignorância. E nos seus interlocutores percebeu que nenhum detinha real conhecimento de nada. Dai sua brilhante conclusão: Ninguém sabe nada, mas alguns acham que sabem muita coisa. Mas essa é uma postura tola, pois o princípio da sabedoria não é dizer ou pensar sabe tudo, mas perceber-se como alguém que nada sabe.

Daí, também, a argumentação a ele atribuída: ele pensa que sabe mas não sabe: é um tolo. Eu, que não sei, e sei que não sei, sou mais sábio que ele. Essa é a base da sabedoria: “Sei que nada sei”

Sócrates desenvolve sua filosofia empregando um método na forma do diálogo. Inicia com uma pergunta e Sócrates comenta as várias respostas, mostrando que são conceitos pré-formados, imagens sensoriais percebidas ou opiniões subjetivas e não a definição buscada. Esta primeira parte chama-se ironia (eiróneia), isto é, refutação, com a finalidade de quebrar a solidez aparente dos preconceitos.

A segunda parte do método socrático desenvolve-se a partir de perguntas direcionadas que vão sugerindo caminhos ao interlocutor até que este avance e chegue à definição procurada. Trata-se da maiêutica, isto é, a arte de realizar um parto, que, neste caso é um parto de ideias e da verdade.

Podemos reiterar, portanto que a ironia é um processo de enredamento pelo qual Sócrates conduz o interlocutor a se expor, expondo seus pontos de vista. E, ao expor esse ponto de vista, que na realidade é apenas uma opinião, Sócrates intensifica os questionamentos até que o interlocutor se perceba em sua ignorância a respeito do tema em questão.

A ironia é uma espécie de simulação, mas, em Sócrates, ela tem a finalidade de por a descoberto a vaidade, desmascarar a impostura e buscar a verdade. Ao produzir esse processo de desinstalação, a ironia socrática muitas vezes é vista como revolucionária, ameaçando as opiniões e valores consagrados; é vista como irreverente. Entretanto ela não tem a finalidade de desprezar os valores, mas de verificar até que ponto são autenticos.

A partir da ironia – demonstração de que o interlocutor não está no cainho da verdade, mas num equivoco – Sócrates redireciona as perguntas a fim de que o interlocutor encontre o caminho que conduz à verdade. Não lhe é apresentada a verdade, como algo pronto, mas um caminho a ser trilhado. É o processo da maiêutica.

Pelo caminho da maiêutica importa que o homem seja capaz não de repetir o que todos dizem, mas da dar a sua resposta; não a partir da opinião, mas limpa das impressões, opiniões, preconceitos. Ou seja, a partir da ironia, desmascara-se a mentira para abrir o caminho para a verdade, por meio de um parto de ideias.

Em síntese podemos dizer que Sócrates ensinava na praça de Atenas, dialogando com seus discípulos e interlocutores. Usava a ironia e a maiêutica como instrumentos metodológicos de busca da verdade.

Um de seus principais discípulos foi Platão.





Neri de Paula Carneiro

Mestre em educação. Filósofo, Teólogo, Historiador



Outros escritos do autor:


sexta-feira, agosto 20, 2021

A quem iremos?

(Reflexões baseadas em: Js 24,1-2a.15-17.18b; Ef 5,21-32; Jo 6,60-69)




Os dias atuais são difíceis de viver.

Não que algum dia a vida humana sobre a terra tenha sido fácil, mas os dias atuais trazem alguns elementos novos. As propostas do reino continuam as mesmas, mas os caminhos de perdição se ampliaram.

Nunca foi tão urgente fazer uma escolha, uma tomada de posição. É urgente que se faça a opção: ser agente da difusão da Boa Nova, promovendo a vida ou deixar-se levar pela onda de distorção da mensagem libertadora do Evangelho. Muitas doutrinas se apresentam com aparência de cristianismo, mas não valorizam a vida nem o ser humano. Nas atuais circunstâncias o lucro e o poder falam mais alto.

E assim se impõe a necessidade e exigência de escolha, embora isso não seja exclusividade dos nossos dias. O grupo que havia sido liderado por Moisés caminhava pelo deserto, agora sob o comando de Josué, precisou fazer uma opção (Js 24,1-2a.15-17.18b).

Nessa caminhada e para esse grupo, era forte a influência dos vários deuses dos povos do deserto; surgiram distorções da proposta de vida e libertação; juntaram-se as dificuldades do dia a dia… Tudo estava dificultando a caminhada, a união, a sintonia com o projeto de libertação. Para superar o impasse Josué propõe uma assembleia. E o desafio: “Se vos parece mal servir ao Senhor, escolhei hoje a quem quereis servir: se aos deuses a quem vossos pais serviram na Mesopotâmia, ou aos deuses dos amorreus, em cuja terra habitais. Quanto a mim e à minha família, nós serviremos ao Senhor” (Js 24,15). A pergunta de Josué pode ser, também, dirigida a cada um de nós: A quem estamos servindo? A quem queremos servir?

Alás, essa é a dinâmica da vida: o tempo todo somos colocados diante de situações que exigem nosso posicionamento. E a principal opção consiste em escolher entre os caminhos de vida e os caminhos de morte. O caminho da verdade ou da distorção da verdade. O antigo conflito entre o bem e o mal materializa-se nos dias atuais… e não tem como fugir da necessidade de escolher!

Fazer escolhas… nisso está uma das grandes as dificuldades de se viver nos dias atuais. Gostaríamos de somente viver… mas temos que escolher um lado…

E isso nos leva a Jesus e ao seu desafio. Talvez mais do que desafio: um desabafo. Relendo todo o capítulo 6 de João, podemos acompanhar tudo que Ele havia feito, relembrar tudo que havia oferecido… e assim podemos entender o motivo de sua indignação frente a “murmuração” daqueles que o estavam seguindo. Havia alimentado a multidão, havia se declarado pão da vida, havia se mostrado caminho de vida… Em troca cobrava apenas fidelidade. Mas os que o seguiam ainda reclamavam: “Esta palavra é dura. Quem consegue escutá-la?” (Jo 6,61). Diante disso é natural e compreensível seu desabafo: “É por isso que vos disse: ninguém pode vir a mim a não ser que lhe seja concedido pelo Pai” (Jo 6,65). também é inevitável o questionamento aos discípulos: “Vós também quereis ir embora?” (Jo 6,67).

A indagação de Jesus coloca o ser humano diante da necessidade de escolha. Pressionados os discípulos se fazem representar por Pedro: “A quem iremos, Senhor? Tu tens palavras de vida eterna” (Jo 6,68). Da mesma forma que os seguidores de Jesus, os companheiros de Josué fizeram a opção: “nós também serviremos ao Senhor, porque ele é o nosso Deus.”

Nessa circunstância podemos indagar: a resposta de Pedro a Jesus e do povo, no deserto, saiu de sua fé ou de algum interesse imediato? E nós, quando em nossas preces imploramos a intervenção divina diante de algum problema ou dificuldade: rezamos porque acreditamos e temos fé ou somos movidos pelo desespero? Nossas preces nascem da confiança no Senhor, que sempre nos orienta para a melhor solução de nossos problemas ou nascem do desespero: A quem iremos? Em quem nos agarramos diante dos problemas, das dificuldades, das doenças, do desemprego, do desamor, da solidão, das diferentes formas de angústia…?

Também podemos visualizar a necessidade de opção na relação familiar. Como ensina Paulo aos efésios (Ef 5,21-32). Aparentemente uma situação de conflito e de antagonismo. Em favor do homem ou em defesa da mulher? Nem uma coisa nem outra. Nessa relação não há antagonismo, mas complementariedade e seguimento de Cristo.

Qual o ponto de partida? O apóstolo orienta: os seguidores de Cristo só tem um caminho: “Sede solícitos uns para com os outros” (Ef 5,21), ou seja, respeitem-se para crescerem juntos. E o casal? Ambos desempenham funções distintas, mas que se complementam. Não há marido sem a esposa e nem esposa sem seu marido. São codependentes para serem o que são. E o apóstolo afirma para que não haja dúvidas: “Por isso o homem deixará seu pai e sua mãe e se unirá à sua mulher,
e os dois serão uma só carne” (Ef 5,31).

Se, por um lado pode-se ter a impressão de que o marido se sobrepõe à submissão da mulher; por outro lado o homem deve amá-la e respeitá-la…. Mas não se trata de qualquer amor: “amai as vossas mulheres, como o Cristo amou a Igreja e se entregou por ela” (Ef 5,25). Isso implica dizer que a responsabilidade do homem é enorme, pois seu amor deve ser como o de Cristo. E Cristo não submete ninguém!!! E sabemos de que ele foi capaz!

E nisso está a opção: ambos podem olhar para si e seus interesses e, nesse caso há conflito. Isso não é solicitude nem amor como o de Cristo. A solicitude leva ao amor pleno. E se há plenitude não há superioridade ou inferioridade. Amar como Cristo amou implica em viver para o outro mais do que para si mesmo, como mostrou o Senhor. Para provar isso, deu sua vida!

São as opções. Existe liberdade de escolha…. Mas só Cristo tem palavras de vida eterna. Se não o escolhermos para guiar nossas opções, a quem iremos?




Neri de Paula Carneiro

Mestre em Educação, filósofo, teólogo, historiador

Outros escritos do autor:

Filosofia, História, Religião: https://www.webartigos.com/index.php/autores/npcarneiro;

Literatura: https://www.recantodasletras.com.br/autores/neripcarneiro.


quinta-feira, agosto 12, 2021

Não és deusa, és mãe

Reflexões sobre: Ap 11,19a;12,1.3-6a.10ab; 1Cor 15, 20-27a; Lc 1, 39-56




Hoje vamos voltar nossos olhos para uma personagem de importância fundamental para a História da Salvação, para a história do cristianismo e para a história da Igreja. Uma personagem cuja atuação começou antes de Jesus, uma personagem que está na fundação da nossa crença, na origem de nossa fé. Uma personagem que “não é deusa, não é mais que Deus, mas depois de Jesus, o Senhor, neste mundo ninguém foi maior”

Mais do que isso: trata-se da personagem mais importante para a História da Salvação, nos moldes cristãos. E não se trata do Pai, Filho ou Espírito Santo, por um motivo simples: A Trindade Santa não é um personagem. O Deus Trino é o destino e não caminho; é o fundamento da existência e não um modelo. Mas a personagem da qual estamos falando é o modelo a ser seguido. É a personagem a mais importante, pois quem a escalou foi o próprio Senhor e, como resposta a essa escalação, disse sim: “Eis a serva do Senhor”!

Então quem é essa personagem?

Ela é aquela sobre quem o pe. Zezinho cantou, dizendo que não foi só mais uma jovem entre tantas, mas foi a “menina que Deus amou e escolheu...”.

Ela é aquela cantada pelo cancioneiro popular, afirmando que: “da cepa brotou a rama, da rama brotou a flor, da flor nasceu...”

Ela é lembrada no hinário português: “A treze de maio, na Cova da Iria, no céu aparece...”

Ela foi para quem o pe. Zezinho pediu: “Ensina teu povo a rezar...”

Ela fez os pescadores ficarem maravilhados “vendo surgir das águas a tosca imagem de negra cor...”. Aqueles pescadores tinham um motivo para se alegrar pois ao ver o sofrimento do seu povo “Esta senhora humilde, de cor morena, se fez presente”.

Ela, por ser uma senhora de cor morena, passou a ser vista não só como mãe do Brasil, mas também como “Senhora da América Latina, de olhar e caridade tão divina, de cor igual a cor de tantas raças…”. Talvez por isso, por ser tão igual a nós, os diferentes povos cristãos a representam de diferentes formas, falando da mesma mãe!

Ela é a personagem a quem, muitos de nós, quando pequeninos, nos dirigimos para falar de nossas limitações. Foi quando aprendemos a dizer: “Mãezinha do céu, eu não sei rezar; eu só sei dizer: Quero te amar”

Nestas alturas você já deve ter entendido: não estamos falando apenas de mais uma importante personagem da História da Salvação. Você já entendeu que, realmente, estamos falando da mais importante personagem. Você já entendeu que estava certo o Zé Vicente ao afirmar sua singeleza, quando indagou: “Quem é essa mulher radiante, orgulho do povo de Deus, sintonia…?” E, na sua música, o coro responde: “É Maria, é Maria, companheira noite e dia”

E foi Maria, a “mulher vestida de sol, tendo a lua debaixo dos pés e sobre a cabeça uma coroa de doze estrelas”, como está no livro do apocalipse (Ap 12,1).

E foi Maria, aquela que “deu à luz um filho homem, que veio para governar todas as nações com cetro de ferro” (Ap 12,5). Para que se entenda que seu governo, por ser divino, não se corrompe; não é falho como são os governos humanos.

E foi Maria, aquela que ensinou Jesus a se colocar junto com os preferidos de Deus. E, para ensinar a Jesus, ela também teve que fazer suas opções. De acordo com o evangelista Lucas, foi a própria Maria quem disse que o Senhor olhou “para a humilhação de sua serva”. E apesar de todas as tribulações não deixou de ser bem aventurada.

Entretanto, como não pensava somente em si, Maria mostrou as fronteiras que Deus estabeleceu. E isso não fomos nós, nem a Igreja quem inventou. Maria foi quem afirmou que o Senhor: “mostrou a força de seu braço: dispersou os homens de coração soberbo. Derrubou do trono os poderosos e elevou os humildes. Encheu de bens os famintos, e despediu os ricos de mãos vazias”. Isso não é invenção da Igreja nem de algum teólogo da Libertação; são palavras de salvação, segundo Lucas (Lc 1,51-53).

Para ser fiel à Palavra divina, a Igreja reconhece e exalta a Mãe, a mulher que “fugiu para o deserto, onde Deus lhe tinha preparado um lugar” (Ap 12,6). Em fidelidade à Palavra Divina a Igreja reconhece “em Cristo todos reviverão. Porém, cada qual segundo uma ordem determinada: Em primeiro lugar, Cristo, como primícias; depois, os que pertencem a Cristo”: Maria foi a primeira a ser acolhida no céu (1 Cor15,22-23). Por isso a Igreja celebra a Ascensão de Nossa Senhora.

Por inspiração divina a Igreja definiu, acatando uma aspiração popular. A Igreja aprendeu com o povo a olhar a senhora Mãe com os olhos da fé: “O povo te chama de Nossa Senhora por causa de Nosso Senhor”. E o povo diz mais: “O povo te chama de mãe e rainha porque Jesus Cristo é o rei dos céus”.

Assim, na festa da Ascensão da Senhora Mãe podemos cantar, o que a palavra divina nos ensina: “Que só Jesus Cristo é o intercessor. Porém se podemos orar pelos outros, a Mãe de Jesus pode mais. Por isto te pedimos em prece, oh, Maria, que leves o povo a Jesus, porque de levar a Jesus entendes mais.

Como é bonita uma religião que se lembra da mãe de Jesus!”

Tudo isso foi Maria que nos ensinou. É assim que a Igreja orienta. E é assim que nossa fé nos ajuda a cantar com Maria, na festa de sua Assunção. A festa pela qual a Igreja ensina que por um favor especial da mãe, para a salvação do mundo, o Filho a elevou ao céu, como modelo, a fim de que o mundo aprenda seu caminho. E ela agradece: “A minha alma engrandece o Senhor, e o meu espírito se alegra em Deus, meu Salvador” (Lc 1, 46-47).

E nós, na singeleza de nossa vida e de nossa fé cantamos porque, além de derrubar do trono os poderosos, o Senhor é aquele que sacia os famintos, pois “agora realizou-se a salvação, a força e a realeza de nosso Deus” (Ap 12,10)




Neri de Paula Carneiro

Mestre em educação, filósofo, teólogo, historiador

Outros escritos do autor:

Filosofia, História, Religião: https://www.webartigos.com/index.php/autores/npcarneiro;

Literatura: https://www.recantodasletras.com.br/autores/neripcarneiro.

segunda-feira, agosto 09, 2021

Chutar o balde

Levanto cedo pra ir trabalhar

Volto pra casa sem nada ganhar

O pagamento é só no fim do mês

Mas o feijão acabou outra vez


E agora o que fazer?

E agora o que fazer?

Chutar o balde ou

Por o leite pra ferver?


Se fico em casa a comida não vem

Mas trabalhar não enrica ninguém

Chora Joãozinho, Maria e José

Já não tem leite, farinha e café


E agora o que fazer?

E agora o que fazer?

Chutar o balde ou

Por o leite pra ferver?


O desemprego está acelerado

Essa tal crise vem de todo lado

Tudo que fiz só o patrão engordou

Buscando emprego meu sapato furou


E agora o que fazer?

E agora o que fazer?

Chutar o balde ou

Por o leite pra ferver?


De bolso vazio estou sem um tostão

Não tem arroz, quiabo ou macarrão

Eu sei: não adianta a sorte lamentar

Mas sem emprego onde vou trabalhar?


E agora o que fazer?

E agora o que fazer?

Chutar o balde ou

Por o leite pra ferver?

Neri de Paula Carneiro

sábado, agosto 07, 2021

Para a vida do mundo

Reflexão a partir de: 1Rs 19,4-8; Ef 4,30-5,2; Jo 6,41-51




Será que você também já passou por isso? O quê? Sentir-se impotente, desencorajado… e, tomado pelo desânimo, querendo desistir de tudo? 
 
Por que isso acontece?

E, do outro lado, qual é a força que nos impulsiona a continuarmos e levarmos adiante nossas ações cotidianas?

Parece que era essa a condição em que se encontrava Elias, segundo nos informa o livro dos Reis (1Rs 19,4-8). Havia realizado uma obra em nome de Deus e seus opositores o estavam perseguindo. O profeta estava, além de assustado, arrasado, sem entender o porquê de se sentir abandonado, depois de ter realizado uma obra de Deus.

Em completo desânimo, desistindo de tudo, pediu a morte. “Agora basta, Senhor! Tira a minha vida, pois não sou melhor que meus pais” (1Rs 19,4).

Outro aspecto da situação nos é apresentada no diálogo dos judeus com Jesus (Jo 6,41-51).

Todos o conheciam. Sabiam de sua vida, dos seus parentes. Sabiam onde morava e o que faziam seus pais. E, em virtude disso, diziam, entre si e a quem os queria ouvir: “Ele não pode fazer isso!” “Sabemos onde mora!” “Como pode andar por ai, falando o que diz e fazendo o que faz?” E, com certeza, diziam muito mais, pois ele era um rapaz conhecido entre seus vizinhos, em sua cidade. Era um rapaz conhecido em sua terra. “Não é este Jesus, o filho de José? Não conhecemos seu pai e sua mãe? Como então pode dizer que desceu do céu?” (Jo 6,42).

Contra os maledicentes ouvimos a palavra de Paulo (Ef 4,30-5,2). O apóstolo exorta a comunidade de Éfeso, orientando-os a buscar um bom comportamento. Um comportamento condizente com os dons do Espírito Santo. Convida-os a erradicar a maldade. “Toda a amargura, irritação, cólera, gritaria, injúrias, tudo isso deve desaparecer do meio de vós” (Ef 4,31). A mesma orientação é dirigida a nós. Se não por um ato de fé, pelo menos por imperativo ético: se existe algo de bom a ser feito, isso deve ser realizado, independentemente do que falarão os fofoqueiros de plantão; os que nada fazem pelo outro; aqueles que só querem tirar proveito da comunidade; os que exploram ou querem só as vantagens da sociedade.

Essa situação é semelhante ao que vemos acontecer em muitas localidades. Nem tanto nas grandes cidades em que se vive anônimo em meio à multidão, mas nos pequenos grupos sociais. Em muitas comunidades rurais e urbanas. Se a pessoa tem uma qualidade que se destaca ou presta um bom serviço, passa a ser malvista entre aqueles que a conhecem e com os quais convive. Tanto que se popularizou o dito, que se origina na inveja: “Santo de casa não faz milagre”.

Nessas situações, a pessoa é levada ao desânimo. Ela, por vezes, se cansa de realizar obras em favor do povo, que não reconhece esse gesto. A pessoa até pode ter consciência de que faz o bem porque esse bem deve ser feito, independentemente de ser ou não elogiado. Mas um mínimo de reconhecimento, por parte de quem recebe o bem feito, “conforta a alma” de quem realiza a obra e impulsiona para novas ações.

Para ajudar a superar o desânimo de Elias, Deus enviou seu anjo confortador. Ofereceu-lhe alimento e estímulo: “Levanta-te e come!” E uma segunda vez: “Levanta-te e come! Ainda tens um caminho longo a percorrer”(1Rs 19,7)

Mas por que Deus o encoraja e não lhe tira sua vida? Por que as pessoas de boa vontade não desistem diante de tanta inveja, maldade, malquerer e malfalar…? Por que continuam mesmo com tanta gente que oferece espinhos e cria dificuldades para as boas obras?

Podemos aprender com Jesus, quando nos fala: “Quem crê possui a vida eterna” (Jo 6,47). E o mestre continuaria dizendo para os invejosos: “Não murmureis entre vós!” (Jo 6,43). Hoje, certamente, Jesus diria: “Não fiquem aí pelos cantos inventando intrigas. Não alimentem fofocas entre vocês!” Jesus diria mais: “Em vez de ficar por aí falando mal de quem está fazendo algo pelos outros, vá você também procurar o que fazer!” Em alto e bom som, diria: “Vai procurar o que fazer!” E, certamente, complementaria: “corpo desocupado e mente vazia são oficinas do diabo!”

Mas, voltemos a indagação, sobre o porquê das pessoas altruístas não desanimarem.

Porque são pessoas especiais. Porque são convidadas pele próprio Deus a realizar grandes obras. Além disso, é bom lembrar: sem essas pessoas as comunidades perdem a vida e se esvaem e se matam nas fofocas…

Como os agentes ativos da comunidade são convidados por Deus, recebem uma carga extra de estímulo. Para elas Jesus está falando: “Ninguém pode vir a mim, se o Pai que me enviou não o atrai. E eu o ressuscitarei no último dia” (Jo, 6,44). A partir das palavras de Jesus podemos dizer mais. Podemos dizer que nossas ações do cotidiano, terminam em si mesmas. “Vossos pais comeram o maná no deserto e, no entanto, morreram” (Jo 6,49). Esse é o destino dos maledicentes. Mas quem realiza coisas boas, pensando apenas no bem de quem recebe essas ações, ouvem de Jesus a promessa da esperança: “o pão que eu darei é a minha carne dada para a vida do mundo” (Jo 6,51). E quem recebe por alimento o pão da vida, não morre! Pode passar por sofrimentos, mas os suportará, vencerá para a vida, junto com Deus.

Eis o porquê das pessoas de boa vontade não desistirem, embora, como Elias, por vezes sejam tomadas pelo desânimo: elas ouvem o anjo de Deus estimulando: “ainda tens um longo caminho a percorrer” (1Rs 19,7). Para percorrer o caminho que ainda resta, recebem o alimento divino: “Eu sou o pão da vida” (Jo 6,48). E cada vez que o desânimo ou os contratempos aparecerem, ouvirão do próprio Mestre: “Eu sou o pão vivo descido do céu. Quem comer deste pão viverá eternamente. E o pão que eu darei é a minha carne dada para a vida do mundo” (Jo 6,51).




Neri de Paula Carneiro

Mestre em educação, filósofo, teólogo, historiador

Outros escritos do autor:

Filosofia, História, Religião: https://www.webartigos.com/index.php/autores/npcarneiro;

Literatura: https://www.recantodasletras.com.br/autores/neripcarneiro.

segunda-feira, agosto 02, 2021

A FILOSOFIA CLÁSSICA (I)

Antiguidade Clássica, quando estamos estudando história, refere-se ao período áureo das civilizações grega e romana. Mas, na filosofia trata-se do período de atuação de três pensadores que imprimiram uma novidade na busca do conhecimento: criando uma metodologia revolucionária, como a ironia e a maiêutica de Sócrates; criando uma nova cosmovisão para explicar o mundo sensível e sua correlação conceitual, como a teoria do mundo das ideias de Platão e uma nova sistematização dos saberes e de transmitir os conhecimentos, desenvolvidos por Aristóteles. Lembrando que os pressupostos aristotélicos não só para a filosofia, como também para a sistematização das ciências e a inovação de várias áreas do saber, permanecem sendo usados até nossos dias.

Agora, a partir do século V aC o objeto de estudo deixa de ser a phýsis (natureza), como fizeram os pré-socráticos e se concentra no homem e sua vida social. Por isso alguns autores chamam este de período antropológico. Essa mudança de perspectiva começa, com os sofistas e se explica devido a nova conjuntura política.



A supremacia de Atenas

A partir do século V aC registraram-se algumas mudanças no cenário histórico e isso justificou algumas alterações nos objetos da investigação filosófica.

Os principais pensadores não estão mais nas colônias, mas se concentram em Atenas. Suas atenções voltam-se para a formação do cidadão que deve ser virtuoso. Daí que os problemas centrais do conhecimento passam a ser de ordem ética e política.

Qual a causa dessa mudança? Principalmente a ameaça dos Persas, ou seja as chamadas Guerras Médicas (490 a 480 aC).

Esse período de guerras colocou a cidade de Atenas na liderança de um grupo de cidades, tornando-se o centro político do mundo grego. Percebeu-se a necessidade de organizar mecanismos de administração e manutenção do governo. Constatou-se, também, que a vida urbana apresentava algumas exigências de ordem tanto política como ética, as quais precisavam de uma resposta.




Novo Modelo Político

Esse contexto urbano produziu um novo modelo político, que se desenvolveu a partir de Atenas: a democracia. Sua principal característica: a discussão em assembleia. E para participar da democracia o cidadão precisava saber falar, saber argumentar no debate. Precisava da arte da retórica.

A respeito dessa nova organização política assim falou Tucídides (460-400 aC), no primeiro livro de sua obra “História da Guerra do Peloponeso”:

“Nós, cidadãos atenienses, decidimos as questões públicas por nós mesmos, ou pelo menos nos esforçamos por compreendê-las claramente, na crença de que não é o debate que é empecilho à ação, e sim o fato de não se estar esclarecido pelo debate antes de chegar a hora da ação. Consideramo-nos ainda superiores aos outros homens em outro ponto: somos ousados para agir, mas ao mesmo tempo gostamos de refletir sobre os riscos que pretendemos correr.”

O mesmo Tucídides coloca na boca de Péricles o seguinte discurso, dirigido aos atenienses:

“Vivemos sob uma forma de governo que não se baseia nas instituições de nossos vizinhos; ao contrário, servimos de modelo a alguns ao invés de imitar outros. Seu nome, como tudo depende não de poucos mas da maioria, é democracia. Nela, enquanto no tocante às leis todos são iguais para a solução de suas divergências privadas, quando se trata de escolher (se é preciso distinguir em qualquer setor), não é o fato de pertencer a uma classe, mas o mérito, que dá acesso aos postos mais honrosos; inversamente, a pobreza não é razão para que alguém, sendo capaz de prestar serviços à cidade, seja impedido de fazê-lo pela obscuridade de sua condição. Conduzimo-nos liberalmente em nossa vida pública, e não observamos com uma curiosidade suspicaz a vida privada de nossos concidadãos, pois não nos ressentimos com nosso vizinho se ele age como lhe apraz, nem o olhamos com ares de reprovação que, embora inócuos, lhe causariam desgosto. Ao mesmo tempo que evitamos ofender os outros em nosso convívio privado, em nossa vida pública nos afastamos da ilegalidade principalmente por causa de um temor reverente, pois somos submissos às autoridades e às leis, especialmente àquelas promulgadas para socorrer os oprimidos e às que, embora não escritas, trazem aos transgressores uma desonra visível a todos.”

E assim se impõe a questão: se a palavra (capacidade de bem falar) é importante e cada individuo pode participar da vida política (participando do debate), faz-se necessário desenvolver a arte do falar para melhor participar. O cidadão, portanto, precisou desenvolver essa habilidade: Falar e argumentar, para defender um ponto de vista.

E, como se pode notar, a questão deixa de ser a compreensão da natureza, e passa a ser a vida em sociedade ou seja a política. E a palavra será a ferramenta nesse processo. Mas como desenvolvê-la?




Os sofistas

A resposta foi dada por um novo grupo de pensadores. Os Sofistas.

Eles formaram um grupo de pensadores que mudou o foco da filosofia. Mantinham a crítica aos mitos, como o fizeram os pré-socráticos. Mas priorizaram a arte do bem falar, pois esta era a nova característica da sociedade ateniense, para onde eles migraram, vindo das colônias.

Os sofistas, portanto, são o ponto de transição entre os filósofos da Natureza e os ensinamentos de Sócrates. E, em razão da demanda pela oratória, dedicaram-se a isso: desenvolver a capacidade de bem falar e a arte de convencer o interlocutor. Com sua retórica consideravam que não havia uma verdade única.

A bem da verdade diversos comentadores da história da filosofia não viram com bons olhos a atuação dos sofistas.

Essa visão a seu respeito, deve-se ao que falaram deles alguns de seus adversários. Em seus escritos pensadores como Platão, Tucídides, Xenofontes, Aristóteles, Aristófanes não os consideravam filósofos, mas manipuladores do raciocínio sem amor pela verdade.

Na atualidade, entretanto, alguns outros estudiosos entendem que os sofistas apenas estavam respondendo a um apelo de Atenas. Satisfaziam uma necessidade dos cidadãos que precisavam aprender a técnica de persuadir com argumentos. A professora Marilena Chauí, no seu livro “Convite à filosofia” comenta a atuação dos sofistas: “o sofista, oferecendo um ensino útil nas assembleias e nos tribunais, ensinava a arte de ser cidadão”.

Sendo assim, podemos dizer que o problema dos sofistas não foram suas ideias, mas seus adversários. Como trabalhavam a partir das opiniões (dóxai, em grego) e do interesse de quem pagava pelas suas aulas, não se comprometiam com a profundidade da verdade (alétheia, em grego), algo radicalmente defendido pelos filósofos. E isto deve ser dito porque a verdade não muda para satisfazer necessidades ou interesses das opiniões ou de quem paga, ela é o que é.

O fato é que os sofistas, de acordo com o que escreveram os italianos G. REALE e D. ANTISERI, no primeiro volume de sua obra “História da Filosofia”: “Os sofistas operaram uma verdadeira revolução espiritual, deslocando o eixo da reflexão filosófica da phýsis e do cosmos para o homem e aquilo que concerne a vida do homem como membro de uma sociedade.”




Os sofistas: algumas falas

Independentemente da polêmica a respeito de serem ou não filósofos; de terem ou não desenvolvido uma filosofia; de terem ou não agido para satisfazer os interesses de alguns membros da polis… Independentemente de tudo isso, os sofistas, ao seu modo, deram sua contribuição à filosofia. Ou pela temática inaugurada ou porque sua atuação exigiu um posicionamento de seus adversários e, dessa contenda desenvolveu-se o que se denominou de período antropológico da filosofia. O homem em sociedade passou a ser o centro da filosofia clássica.

Entretanto quase nada restou dos escritos desses pensadores a não ser fragmentos provindos de seus adversários. Dois deles se tornaram bastante conhecidos uma vez que são amplamente mencionados nos diálogos de Platão. Trata-se de Protágoras de Abdera e Górgias de Leontini.

Lembrando que existiram vários outros. Só para mencionar alguns: Hípias de Élis, Isócrates de Atenas, entre outros.

Vejamos alguns retalhos do que nos sobrou do que disseram Protágoras e Górgias. Não por outro motivo, mas pelo fato de Platão ter a eles dedicado dois de seus escritos que trazem por título justamente os nomes destes dois personagens.

A Protágoras são atribuídas algumas frases interessantes e que merecem uma reflexão da filosofia. Se não pela verdade que podem apresentar, pelo menos pala beleza literária que possuem. Talvez a mais célebre frase de Protágoras seja: “O homem é a medida de todas as coisas. Das que são pelo que são e das que não são pelo que não são”.

Como podemos entender essa afirmação? Não existe uma resposta, mas podemos dizer que o homem é a MEDIDA porque é dele que procedem os juízos, os julgamentos, os valores… a respeito da realidade; o homem é critério de realidade ao lhe conferir significado, pois sem ele as realidade são apenas o que são. O olhar valorativo do ser humano confere sentido, por isso, mais do que só existir, as realidades ganham o significado que lhe confere o homem. O insignificante e sem sentido passa a ter significado e sentido.

De acordo com Protágoras, o que dizemos sobre algo, nada mais é do que as convenções que estabelecemos; os valores que a isso atribuímos. E quem faz isso é o ser humano, por isso é a medida

Mas as convenções, podem mudar…, como muda o homem… e assim, desse ponto de vista, a percepção humana também se diferencia...

Outra fala de Protágoras que se aproxima da anterior: “Tal como cada coisa se apresenta para mim, assim ela é para mim, tal como ela se apresenta para você, assim ela é para você.".

Também vale a pena refletir o alcance desta outra: “Todo o argumento permite sempre a discussão de duas teses contrárias, inclusive este de que a tese favorável e contrária são igualmente defensáveis.

De Górgias também nos chegaram alguns retalhos de pensamento. Vejamos alguns exemplos:

“Uma mesma atividade pode ser boa ou ruim dependendo de quem a pratica e em que situação se encontra.”

“Mesmo que pudéssemos pensar e conhecer o ser, nós não poderíamos expressar como ele é porque as palavras não conseguem transmitir com veracidade nada que não seja ela mesma. Quando comunicamos, comunicamos palavras e não o ser.”

“A persuasão é soberana, porque não há nenhuma verdade acima da que um homem pode ser persuadido a crer.”

“O artista é um criador de mundos.” E nós podemos confessar que ficamos admirados com todos os mundos que nascem das realizações dos artistas...

Além disso, Górgias de Leontini, afirma que o bom orador deve ser capaz de "persuadir os juízes nos tribunais, os conselheiros no Conselho, os membros da assembleia popular na Assembleia e, da mesma forma, qualquer outra reunião que se realize entre cidadãos". É o mesmo que dizer que o bom orador pode convencer qualquer um sobre qualquer coisa. E essa capacidade de argumentar e convencer era o que os atenienses mais desejavam, na medida em que mais se instalava a vida social, na polis.

A postura dos sofistas, demonstrando pouca preocupação com a verdade e muito mais com o argumento, levou Platão a colocar na boca de Sócrates um comentário sobre Protágoras, dizendo que "ele supõe saber alguma coisa e não sabe, enquanto eu, se não sei, tampouco suponho saber. Parece que sou um pouco mais sábio que ele exatamente por não supor que saiba o que não sei".

Como se pode perceber a preocupação dos sofistas é a argumentação e o convencimento do interlocutor. Por sua vez Sócrates/Platão estão preocupados com a verdade daquilo que se sabe ou do que se pode saber. Assim, a partir de Sócrates e Platão a filosofia se volta para uma de suas principais inquietações: a busca da verdade.




Neri de Paula Carneiro

Mestre em educação. Filósofo, Teólogo, Historiador




Outros escritos do autor:


Cidadania: a defesa do cidadão

Quem de nós ainda não se deparou com a palavra CIDADANIA? Entretanto, quantos de nós atentamos para o alcance e o significado dessa palavra? Que nos diz a constituição de nosso país a respeito de cidadania? E, afinal de contas, o que significa essa palavra?


Cidadão

A palavra nasce de Cidadão. Sua etimologia é latina, vem de “civitas”, que significa cidade. Ou seja, o cidadão é o morador da cidade. E era usada em oposição ao pagão, que era o morador do “pagus” (que nós chamamos de zona rural). Pagão, portanto é o homem do campo. E cidadão o homem da cidade.

Mas também está ligada ao mundo grego. Para esse povo, cidadão era o homem da pólis. O homem rico, nascido e morador em cada uma das cidades estado.

Tanto para os romanos como para os gregos o cidadão era o homem possuidor de direitos a serem defendidos pelo poder público, o Estado; e, ao mesmo tempo, uma pessoa com obrigações em relação à sua cidade.

Deve-se registrar, no entanto, que tanto entre os gregos como entre os romanos, a cidadania não era um privilégio de toda a população. Era um direito de poucos privilegiados pelas riquezas.

Em nossa sociedade cidadão não é somente o morador da cidade, mas sim todos os homens e mulheres da cidade e do campo. Além disso, esses habitantes, são detentores de direitos e deveres. Portanto já temos, aqui um avanço em relação ao conceito dos gregos e latinos. Lá o cidadão era o homem urbano. Para nós todas as pessoas são cidadãs.

Podemos dizer que cidadãos são homens e mulheres possuidores de direitos e deveres em relação a um Estado e aos demais habitantes desse Estado. O cidadão, portanto, só existe em relação a outros cidadãos. É inconcebível o cidadão isolado. E isso por um motivo simples: direitos e deveres somente existem quando as pessoas relacionam-se umas com as outras. Um indivíduo isolado não depende de direitos nem tem deveres, pois sua relação sempre será consigo mesma. O cidadão passa a existir na medida em que se relaciona com outras pessoas e esse grupo forma uma sociedade onde se manifesta a necessidade recíproca de respeito.


Cidadania

Agora podemos fazer uma inferência simples: sabendo que cidadãos são homens e mulheres com direitos e deveres em uma sociedade, a cidadania é condição ou a situação na qual o cidadão exerce seus direitos e deveres.

Ou seja, a cidadania, que tem a ver com o cidadão, também representa as condições e situações em que o cidadão realiza aquilo que lhe compete.

Como se pode notar, a cidadania implica na existência de direitos e deveres. Entretanto temos aí dois elementos a mais a serem notados: a relação com os direitos humanos e a dimensão ética. Ou seja, o exercício da cidadania ultrapassa o conceito meramente jurídico, para alcançar uma dimensão de consciência. Quer dizer, não basta ter direitos e deveres. É necessário ter consciência de sua existência e fazer questão de exercê-los.

A relação com os direitos humanos se estabelece na medida em que os Direitos Humanos, nem sempre foram uma prioridade das sociedades humanas ao longo da história. No mundo antigo a grande massa da população não gozava de proteção por parte dos dirigentes da sociedade. Isso ocorria porque o centro da sociedade eram os ricos, cabendo aos pobres e escravos apenas produzir.

Com o transcorrer dos séculos, vários grupos sociais foram se organizando em busca da defesa de seus direitos. Um exemplo disso foi a promulgação da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, no contexto da Revolução Francesa (a íntegra dessa Declaração pode ser acessada em: https://educacao.uol.com.br/disciplinas/historia/declaracao-dos-direitos-do-homem-e-do-cidadao-integra-do-documento-original.htm).

Na Assembleia Nacional Constituinte, os franceses, em 1789, aprovaram essa declaração que começa com as seguintes palavras:

“Os representantes do povo francês, constituídos em Assembleia Nacional, considerando que a ignorância, o esquecimento ou o desprezo dos direitos do homem são as únicas causas das infelicidades públicas e da corrupção dos governos, resolveram expor, numa Declaração solene, os direitos naturais, inalienáveis e sagrados do homem...”

Logo em seguida, no artigo primeiro, dessa Declaração podemos ler:

“Os homens nascem e vivem livres e iguais em direitos. As diferenças sociais só podem ser fundamentadas no interesse comum.”

Notemos a consciência da importância do ser humano, nessa Declaração, ao afirmar que a “IGNORÂNCIA”, o “ESQUECIMENTO” e o “DESPREZO” aos direitos dos seres humanos são as “ÚNICAS CAUSAS DAS INFELICIDADES”.

Para superar isso e, consequentemente promover a felicidade é que se estabelecem as normas com os direitos dos cidadãos. Entre os quais e em primeiro lugar está a liberdade. Ou seja, os demais direitos – e também os deveres – decorrem da liberdade.

Por isso e para preservar a liberdade, contra a arbitrariedade dos governantes e outras autoridades, os franceses estabeleceram o princípio da superioridade da lei, como está no artigo sétimo dessa mesma Declaração:

“Nenhum homem pode ser acusado, preso ou detido senão quando assim determinado pela lei e de acordo com as formas que ela prescreveu. Os que solicitam, expedem, executam ou fazem executar ordens arbitrárias devem ser punidos. Mas todo homem intimado ou convocado em nome da lei deve obedecer imediatamente: ele se torna culpado pela resistência”.

Em 1948, após a II Guerra Mundial, a Organização das Nações Unidas (ONU) em sua Assembleia Geral aprovou a Declaração Universal dos Direitos Humanos (cuja íntegra pode ser acessada em: https://educacao.uol.com.br/disciplinas/historia/declaracao-universal-dos-direitos-humanos-texto-integral.htm), na qual estabelece os princípios para a defesa do ser humano contra excessos dos poderosos, como o exemplo recente dos horrores do nazismo contra algumas minorias.

Em defesa do ser humano a ONU, no preâmbulo dessa Declaração, já afirma alguns princípios: o reconhecimento da “dignidade” e igualdade entre as pessoas faz crescer a liberdade, a justiça e a paz no mundo.

Eis o que dizem as duas primeiras considerações dessa Declaração:

“Considerando que o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e de seus direitos iguais e inalienáveis é o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo;

Considerando que o desprezo e o desrespeito pelos direitos humanos resultaram em atos bárbaros que ultrajaram a consciência da Humanidade e que o advento de um mundo em que os homens gozem de liberdade de palavra, de crença e da liberdade de viverem a salvo do temor e da necessidade foi proclamado como a mais alta aspiração do homem comum.”

Note-se que os dirigentes das nações reunidos na ONU, afirmam que desprezar e desrespeitar os direitos humanos resultam em “ATOS BÁRBAROS’. Ou seja, tanto a Declaração dos Franceses como da ONU reconhecem a importância do cidadão e exaltam seus direitos. E, portanto, a defesa dos direitos da pessoa, bem como cada pessoa se empenhar na busca de seus direitos é uma forma de exercício de cidadania.

Essas duas Declarações nos colocam diante da nossa Constituição (que pode ser acessada na integra em: https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/518231/CF88_Livro_EC91_2016.pdf).

Nossa lei maior também se fundamenta na defesa do ser humano. Logo no artigo primeiro podemos ler que vivemos num país constituído com base no “Estado Democrático de Direito”. E esse Estado tem como fundamento: “I–a soberania; II–a cidadania; III–a dignidade da pessoa humana; IV–os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; V–o pluralismo político.”

Mas, pode-se perguntar, qual a fonte desses fundamentos? No parágrafo único do primeiro artigo está a explicação: “Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.”

Ou seja, as autoridades não existem para outra coisa que não seja a defesa dos direitos do povo. As autoridades não existem para si, mas para o povo.

Por isso, no artigo terceiro da nossa Constituição estão previstos os “objetivos fundamentais”, ou a razão de existir o Brasil. “I–construir uma sociedade livre, justa e solidária; II–garantir o desenvolvimento nacional; III–erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV–promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”

O exercício da cidadania, em nosso país, consiste nisso. E, também nisto se fundamenta a dimensão ética do exercício da cidadania. Ou seja, reconhecer e tornar público que no caso das autoridades não construírem ou não colaborarem com esses objetivos e esses fundamentos elas passam a ser ilegítimas e um atentado contra a cidadania. E, por outro lado, cabe aos cidadãos, fazerem um esforço para que estes direitos sejam instalados e, ao mesmo tempo, cobrar das autoridades o pleno cumprimento da lei maior do país, visando a plena proteção dos cidadãos.





Neri de Paula Carneiro

Outros escritos do autor:

Filosofia, História, Religião: https://www.webartigos.com/index.php/autores/npcarneiro;

Literatura: https://www.recantodasletras.com.br/autores/neripcarneiro.

sábado, julho 31, 2021

Alimento que se perde ou que permanece?

Reflexão a partir de: Ex 16,2-4.12-15; Ef 4,17.20-24; Jo 6,24-35




O que nos faz aderir ou recusar uma ideia ou um projeto social, religioso, político…? Por que defendemos isto ou aquilo e condenamos outras tantas coisas?

A resposta não poderia ser outra: nossos interesses! Aderimos ou recusamos algo se esse algo satisfaz, ou não, nossos interesses.

Podemos observar isso em nosso cotidiano e na vida das pessoas com as quais convivemos. Buscamos aquilo que nos interessa e recusamos o que não nos agrada, que foge ou que vai contra nossos interesses. Mas isso não ocorre somente entre nós. Também percebemos isso entre os filhos de Israel, no livro do Êxodo (Ex 16,2-4.12-15), da mesma forma que nas palavras de Jesus, narradas por João (Jo 6,24-35).

Em síntese: São os interesses que movem o mundo. E se quisermos emprestar as palavras de Jesus, podemos dizer que “onde está o teu tesouro, aí está o teu coração!” (Mt 6,21)

Mas se os interesses movem o mundo e as ações das pessoas, como entender as atitudes dos filhos de Israel? Compreensível que estivessem insatisfeitos com a servidão egípcia. Seu interesse, portanto, era a libertação. E por isso clamaram ao Senhor que os libertou. Mas agora livres, no deserto, estão insatisfeitos! Reclamam da alimentação e sentem saudades do que deixaram no Egito! E, novamente, clamam ao Senhor, no seu “murmurar contra Moisés e Aarão, no deserto” (Ex 16,2).

Algo semelhante percebemos nas palavras de Jesus, ao interpelar as pessoas que o procuravam. “Em verdade, em verdade, eu vos digo: estais me procurando não porque vistes sinais, mas porque comestes pão e ficastes satisfeitos” (Jo 6,26).

Com isso Jesus afirma que a cena da multiplicação dos pães não foi só um sinal-milagre, mas uma ação social; ao mesmo tempo mostra qual grupo social o procura: os mais pobres; aqueles que nada possuem para comer; aqueles que seguem Jesus porque ele age estimulando as pessoas a se envolvam no processo da partilha. Ou seja, o milagre de Jesus não foi gerar pão, a partir do nada, mas consistiu em criar as condições para a partilha do que já existia entre as pessoas. E hoje a situação é a mesma: Já existe alimento, para todos, e com sobras. Não falta alimento, o que falta é partilha.

Temos, então a seguinte situação: o fenômeno da partilha decorre da boa vontade ou dos interesses das pessoas. Ela pode ocorrer se as pessoas desenvolverem esse interesse: se estiverem interessadas em ser solidárias. Diante disso Jesus interpela quem o procura, chamando a atenção para uma correção de rumos. Primeiro mostra que a partilha é fundamental; que é um sinal do Reino; além disso diferencia aqueles que são seus seguidores (os que sabem partilhar) e aqueles que dificultam a prosperidade de Reino e acumulam de forma excessiva. Por isso a verdade desta afirmação: o que falta para muitos é o que sobra entre alguns.

Só que Jesus dá um passo a mais. Mostra que, na ótica do Reino, o ponto de chegada não é o pão cotidiano, mas o Reino daí a importância de aderir àquilo que conduz à vida eterna. Demonstra que o acesso ao reino e a vida eterna passam pela partilha, mas a partilha é caminho ou um meio para se chagar ao Pai. A partilha é sinal de que houve compreensão dos caminhos do Reino. “Esforçai-vos não pelo alimento que se perde, mas pelo alimento que permanece até a vida eterna, e que o Filho do homem vos dará” (Jo 6,27).

Os interlocutores de Jesus entenderam seu apelo e pediram: “Senhor, dá-nos sempre desse pão” (Jo 6,34). E Jesus esclarece, afirmando que ele é o pão eterno. Mostra também, com o gesto da partilha, que o pão eterno, aquele que alimenta para a vida definitiva, nasce e se desenvolve na mesma proporção em que ocorre partilha. Quanto mais cresce a sociedade sem excluídos, mais próximos estamos do Reino definitivo. Jesus explica o motivo: “Eu sou o pão da vida. Quem vem a mim não terá mais fome e quem crê em mim nunca mais terá sede” (Jo 6,35).

E se isso vale para a multidão que procurava por Jesus, a fim de ser saciada, vale também para os filhos de Israel, reclamando no deserto. E para nós, em nosso cotidiano!

E para nós, talvez aqui esteja a grande lição: é necessário reclamar contra a situação na qual se está sofrendo, pois nosso interesse é a felicidade. Mas, também é necessário o esforço pessoal e social, para superar essa situação. Quando as forças pessoais e do grupo são insuficientes, a ajuda não vem da lamentação; não vem daqueles que se prostram na reclamações; não vem dos que se acomodam na miséria; não vem das promessas politiqueiras em tempo de eleição… a força e as soluções nascem da confiança no Senhor e da organização popular!

Daí a necessidade de nos lembrarmos: Deus não fará por nós aquilo para o quê nos deu forças de realizar. Dessa forma podemos entender a afirmação de Paulo aos Efésios, dizendo ser necessário renunciar à existência passada e concentrarmo-nos num novo centro de interesses. “Despojai-vos do homem velho, que se corrompe sob o efeito das paixões enganadoras, e renovai o vosso espírito e a vossa mentalidade. Revesti o homem novo, criado à imagem de Deus, em verdadeira justiça e santidade” (Ef 4,22-24).

E isso nos leva à indagação que deriva da proposta de Jesus. Isso nos leva a nos indagarmos sobre qual alimento queremos para nortear nossa vida: o que se perde ou o que permanece?



Neri de Paula Carneiro

Mestre em educação, filósofo, teólogo, historiador

Outros escritos do autor:

Filosofia, História, Religião: https://www.webartigos.com/index.php/autores/npcarneiro;

Literatura: https://www.recantodasletras.com.br/autores/neripcarneiro.



quinta-feira, julho 22, 2021

Para que nada se perca - O povo passa fome





Reflexões baseadas em: 2Rs 4,42-44; Ef 4,1-6; Jo 6,1-15




Aconteceu em 1980, em Teresina. Na época, o papa João Paulo II – hoje santo canonizado – viu uma faixa, em meio à multidão: “Santo Padre, o povo passa fome”. No mesmo instante rezou: “Pai nosso, o povo passa fome”. Mas não era só comida, o povo também desejava acesso a direitos sociais, políticos… o povo queria sair da situação de pobreza. Por isso apelou ao papa: o líder religioso, talvez, pudesse ajudar nas questões sociais, em favor dos necessitados.

Alguns séculos antes de Cristo, as pessoas sofriam com as dificuldades, em meio à pobreza (2Rs 4,42-44). Houve fome na região, diz o livro dos Reis. Foi assim que, ao ver uma pequena multidão à sua frente, “Eliseu, o homem de Deus”, ensinou o caminho da partilha: vinte pães alimentaram as cem pessoas.

Entre estes dois episódios encontramos outro personagem e seu gesto revolucionário. Trata-se de Jesus de Nazaré, (Jo 6,1-15) alimentando a multidão. Aqui, entretanto, é possível que alguém diga: para Jesus foi fácil dar alimento a “aproximadamente cinco mil homens”.

Não foi, e digo o porquê. Também para não cometermos uma injustiça contra Jesus ou Eliseu, nesta lição de partilha. Temos que dizer, com todas as letras da palavra santa: Não foi Jesus quem deu o alimento! O mesmo vale para o livro dos Reis, narrando o gesto de Eliseu. A partilha ocorreu porque alguém ofereceu o que tinha. E isso dezenove séculos antes do ateu Karl Marx propor a partilha socialista/comunista.

Um grupo estava passando necessidade e chegou “um homem de Baal-Salisa, trazendo em seu alforje para Eliseu, o homem de Deus, pães dos primeiros frutos da terra: eram vinte pães de cevada e trigo novo” (2Rs 4,42). Quem acompanhava Eliseu até argumentou: isso é muito pouco para cem pessoas. Mas o “homem de Deus” não deu ouvido para a postura negacionista. Simplesmente mandou que tudo fosse distribuído. Eliseu disse apenas: “Dá ao povo para que coma; pois assim diz o Senhor: ‘Comerão e ainda sobrará’” (2Rs 4,43). Como se vê Eliseu apenas organizou e direcionou a postura socialista do homem de Baal-Salisa. Todos comeram e “ainda sobrou, conforme a Palavra do Senhor” (2Rs 4,44). Qual a lição? Onde há partilha não há fome!

Com o papa João Paulo II não houve partilha de pão, mas de consciência de Igreja. Aquela faixa e as palavras do santo padre, em plena ditadura militar, chamaram a atenção do mundo para a situação do Brasil, para as condições de vida do povo, para a miséria provocada pela concentração de rendas. O santo padre, da mesma forma que Eliseu, foi apenas o mediador de uma nova proposta de partilha. Ao afirmar que o povo passa fome, está afirmando que alguns concentraram muito e o que eles têm a mais é o que falta na mesa dos que passam fome, os amados de Deus.

Mas, entre João Paulo e Eliseu, está Jesus.

E o que o Homem de Nazaré ensina? O mesmo que ensinou a Eliseu e o papa: o caminho da partilha. Da mesma forma que Eliseu, Jesus nada tinha para distribuir. Sabia o que ia fazer (Jo 6,6), mas ele não tinha alimento para a multidão. Tinha sua palavra salvadora, mas não os pães e peixes. Tinha palavras para a vida eterna, mas não alimento para a barriga. O que tinha, Jesus distribuiu: primeiro ele valorizou a oferta de quem partilhou para servir ao outro: “Está aqui um menino com cinco pães de cevada e dois peixes” (Jo 6,9); em seguida ele ensinou a organização para atingir o objetivo: “Fazei sentar as pessoas” (Jo 6,10).

Jesus sabia que as multidões o procuravam para sair das dificuldades e enfermidades. Por isso lhes dava o que queriam e o que precisavam. Jesus os curava. E, em relação à fome, valorizou a fé, que eles já possuíam. E usou dessa fé para evidenciar o caminho da solução para os problemas. Uma solução que depende daquilo que podemos oferecer para o outro. Por isso ensinou a organização para a partilha do pão e do peixe que alguém estava oferecendo.

Jesus multiplicou, e continua multiplicando, aquilo que temos para oferecer. Se ofertamos bastante, a multiplicação é maior, mas se apresentamos apenas nossas mesquinharias, essa será nossa recompensa. Mas, acima de tudo, Jesus ensina que, para os problemas sócio-políticos, as soluções também são sócio-políticas. A oração vem como motivação para a luta, para desenvolver consciência de classe e de organização social; ajuda a ter humildade para agradecer. Mas as soluções devem crescer entre nós.

Os negacionistas agem como Felipe: “onde iremos comprar tanto pão?” (Jo 6,5); ou como André: “Nem duzentos mil bastariam para atender a todos” (Jo 6,7). Mas Jesus, que sabe das coisas diz, simplesmente: “Manda o povo se organizar!” (Jo 6,10). Contra a mesquinharia de alguns, a organização popular é a solução.

Neste ponto somos levados à conclusão, apontada por Paulo (Ef 4,1-6). Ela é simples: se há um só corpo, um só Espírito, um só Senhor, uma só fé e somente um Deus e sabendo que esse que é único ensina o caminho da partilha para um mundo socialista e solidário, então todo aquele que age contra essa proposta divina, não é de Deus! Não vem de Deus!! Não leva a Deus!!! Pois o Deus, Pai do Senhor Jesus, que nos dá seu Espírito de Amor, é um Deus da Partilha; é um Deus da solidariedade; é um Deus da vida.




Neri de Paula Carneiro

Mestre em Educação, Filósofo, Teólogo, Historiador

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quinta-feira, julho 15, 2021

Ovelhas sem pastor

Reflexões baseadas em: Jr 23,1-6; Ef 2,13-18; Mc 6,30-34







Lobos ferozes. Vorazes. Insaciáveis.

Assim podemos descrever a grande maioria dos integrantes de um grupo que subverteu a ordem política da política. E não estou falando nem da esquerda nem da direita. Estou falando de um grande grupo dentro de um grupo social que se dedica à política partidária. Desse grupo apensas uns poucos não se transformaram em lobos ferozes. Vorazes. Insaciáveis…. Inescrupulosos.

Alguém pode perguntar, baseado em quê você afirma isso?

Nas palavras de Jesus, respondo (Mc 6,30-34). Mas se forem necessários mais argumentos, posso recorrer também às palavras de Jeremias (Jr 23,1-6). Paulo também me dá razão (Ef 2,13-18).

O desavisado pode dizer: As palavras de Jesus, em Marcos e a profecia de Jeremias estão se referindo aos pastores. O que tem isso a ver com a voracidade dos lobos?

Certo, a condenação é feita aos pastores. Mas, os pastores sendo negligentes, qual a consequência para o rebanho? (E, para que não haja dúvidas, a metáfora refere-se aos dirigentes de qualquer grupo religioso, independente da denominação ou placa devocional!)

O rebanho abandonado pelos pastores fica a mercê da ferocidade voraz dos lobos. Por esse motivo a irritação de Jeremias: “Ai dos pastores que deixam perder-se e dispersar-se o rebanho de minha pastagem” (Jr 23,1). Esses pastores afugentaram e dispersaram o rebanho – o povo de Deus. Da mesma forma que olhando o povo abandonado – o rebanho escolhido – Jesus se compadece; ao ver “uma numerosa multidão e teve compaixão, porque eram como ovelhas sem pastor” Mc (6,34).

Abandonado pelos pastores, o povo – rebanho escolhido – tornou-se vítima dos lobos. E quem são os lobos? Todos aqueles que se aproveitam do povo; produzem as dores do povo; enganam o povo… Todos os lobos sedentos e insaciáveis que, prometem de tudo aos necessitados, esbravejam contra tudo que prejudica ao povo, entretanto, usam disso para se popularizar e, dessa forma, mais enganar ao povo. Um exemplo disso é o corrupto afirmando que vai combater a corrupção!!!

Ao aceitar ou defender essas distorções o pastor acaba sendo parceiro do lobo. Aliás, torna-se pior do que o lobo, pois em troca de vantagens pessoais induz o rebanho/povo a ser devorado/enganado pelos lobos.

Entre os indivíduos do povo/rebanho não cessam as dificuldades. Para ajudá-los o Senhor institui os pastores (lideres religiosos). Como auxiliares para sanar os problemas, também se criam as instituições políticas. Ambos a serviço da população. Uma a partir da dimensão religiosa e a outra a partir de necessidades sociais. A religião não existe num mundo afastado dos problemas sócio-políticos. A religião faz parte da vida e a vida ocorre em sociedade. Sendo assim, quando a dimensão religiosa abandona o pastoreio, permite que as instituições sócio-políticas se transformem em lobos vorazes, cuja ferocidade devora a esperança da população.

Entretanto, se pastores, convertidos em lobos abandonam ao povo, o Senhor permanece fiel. Jeremias afirma que o Senhor se compromete a reunir um resto de ovelhas que não se perdeu. Esse resto se multiplicará, e será conduzido por bons pastores até que chegue aquele que fará valer a justiça. Esse, “Senhor, nossa Justiça” (Jr 23,3-6) não terá seu nome, nem seus filhos envolvidos em falcatruas, podendo, assim restaurar a esperança, libertando das garras dos lobos e maus pastores.

Contra esses falsos pastores é que Jesus se posiciona ao ver a multidão “como ovelha sem pastor”. Em favor desse povo abandonado é que Ele se compadece. E isto tem que ficar bem claro: a compaixão do Senhor nãos se deve a um aspecto religioso, mas às suas necessidade concretas de comida, casa, segurança, trabalho, saúde… Jesus sabe que o povo é devoto e orante; e também sabe que o povo passa fome! E, mais uma vez, sua compaixão tem a ver com essas necessidades básicas.

As pessoas aderiam a Jesus e seguiu os discípulos não porque os ensinavam a rezar, mas porque foram curados e saciados (a devoção todos já tinham – e hoje, continuam tendo). Jesus e os discípulos eram amados porque supriam necessidades básicas: davam saúde e comida; e com isso alimentavam a esperança de que dias melhores estavam por vir. Além disso condenavam os exploradores do povo: pastores maus e lobos vorazes.

O fato é que, na medida em que os pastores fazem mais pelos lobos que pelo povo, seu mau exemplo arrasta ovelhas desprotegidas. E, dessa forma, as ovelhas passam a seguir os lobos que as devoram. Como consequência dos maus pastores unidos aos lobos, o rebanho fica dividido ao ponto de, ovelhas enganadas, defenderem seus algozes. Daí a necessidade de se prestar atenção às palavras de Paulo (Ef 2,13-18): olhar para a postura de Jesus, que nunca esteve do lado dos poderosos. Sempre esteve do lado dos fracos, explorados e vítimas da divisão, em busca da unidade.

É necessário, portanto, que as ovelhas sem pastor, se reunifiquem a fim de construir a paz entre as vítimas, erguendo uma barreira contra os lobos. É, necessário, portanto, reaprender com Jesus que teve compaixão da multidão de ovelhas sem pastor. É necessário seguir Jesus que “começou, pois, a ensinar-lhes muitas coisas” (Mc 6,34), entre elas, como se libertar das garras dos maus pastores!




Neri de Paula Carneiro

Mestre em educação, filósofo, teólogo, historiador

Outros escritos do autor:

Filosofia, História, Religião: https://www.webartigos.com/index.php/autores/npcarneiro;

Literatura: https://www.recantodasletras.com.br/autores/neripcarneiro.

quinta-feira, julho 08, 2021

Vai profetizar!

Reflexões baseadas em: Am 7,12-15; Ef 1,3-14; Mc 6,7-13




Admiro muito da franqueza do profeta Amós. Principalmente neste trecho (Am 7,12-15) no qual afirma estar agindo por mandato divino.

Suas palavras nos ensinam que muitos daqueles que dizem estar falando em nome de Deus, muitas vezes estão defendendo um tirano ou algum usurpador da Palavra de Deus. Aqui ele denuncia os erros do sacerdote Amasias, entretanto, suas palavras valem para os dias atuais. Certamente ele condenaria muitos dos que tentam calar a profecia dizendo que “a Igreja não deve se meter em política”. Não sabem, estes, que uma das características da profecia é, justamente, a atuação política na forma de denúncia contra os monarcas e sacerdotes!

Importante notar que essa postura, recheada de hipocrisia, só condenam a postura da Igreja solidária quando ela denuncia suas mazelas, malandragens e malversação das coisas públicas. Porém, quando algum traidor da Palavra de Deus apoia o armamentismo, condena a solidariedade comprometida, alia-se a agentes do mal... não dizem que a Igreja está fora de seu oficio.

Algo semelhante podemos ver nas palavras de Paulo (Ef 1,3-14). Também o apóstolo insiste na escolha divina. E o interessante é que, enquanto Amós afirma que o chamado divino tem a ver com a denúncia das estruturas apodrecidas e geradoras de sofrimento, por seu lado, Paulo insiste no objetivo para os quais somos escolhidos. Em Cristo, Deus nos escolheu “antes da fundação do mundo, para que sejamos santos”; “para sermos seus filhos adotivos”; “para o louvor da sua glória”(Ef. 1,4-6).

Com isso somos levados à seguinte indagação: Se somos adotados para a santidade, como diz Paulo, qual o caminho a ser percorrido para atingir esse objetivo? Tanto o apóstolo como o profeta sugerem a resposta: ser agente do anúncio da mensagem divina e da denúncia das estruturas corrompidas e que impedem a plenitude da vida.

E quem nos diz isso é ninguém menos do que Jesus de Nazaré (Mc 6,7-13). Não diz, exatamente com palavras, mas ao indicar as ações que os discípulos devem executar: expulsar demônios e curar os enfermos. Com essa finalidade convocou os discípulos e “começou a enviá-los dois a dois, dando-lhes poder sobre os espíritos impuros” (Mc 6,7).

Em seu tempo, e Jesus bem o sabia, muitas doenças e sofrimentos e dificuldades pelas quais passavam as pessoas, eram vistas como coisas demoníacas. E essa demonização do sofrimento provocava um mal viver. Portanto, encarregar os discípulos de expulsar os demônios era a mesma coisa que promover a cura. E promover a cura era reintroduzir as pessoas ao convívio social. E não são poucas as vezes em que Jesus cura e manda a pessoa curada se reintegrar ao seu grupo familiar… social… religioso… passando antes pelo templo a fim de que os sacerdotes reconhecessem a cura. E isso era promoção da vida.

Nem Jesus nem seus discípulos se deliciavam com o sofrimento; não desdenhavam as dores; não menosprezavam quem os procurava em busca de alento… pelo contrário, demonstravam empatia. A todos acolhiam e ofereciam o conforto da cura. Para a dor ofereciam acalento, pois a vida de cada um era vista como coisa sagrada: dom de Deus.

Por outro lado, Jesus mostrava sua Ira Santa e indignação contra aqueles que não se dedicavam à promoção da vida. Principalmente aqueles que tinham dever de o fazer, em razão de seu ofício, como os sacerdotes… e as lideranças políticas. Contra esses e todas as autoridades, que eram verdadeiros representantes das forças demoníacas, foi que Jesus enviou seus discípulos. Contra todos os que se haviam apropriado da Palavra de Deus e a usavam contra os pequeninos.

Contra essas injustiças e posturas maldosas é que Deus escolhe algumas pessoas. Como Amós, um vaqueiro e cultivador de figos. A ele Deus incumbiu de profetizar, anunciando uma ruína iminente. Se aqueles que têm o poder da nação, não se converterem em favor dos fracos, toda a nação sofrerá. Não por castigo divino, mas por irresponsabilidade dos dirigentes. E o profeta anuncia não a morte dos que promovem a maldade, mas sua ruína: sua esposa se prostituirá; seu filho será assassinado. Deus, como ninguém mais, sabe que maus políticos causam a dor da população e a ruína da nação. Contra isso Deus chamou o profeta.

Mas, por outro lado, se houver conversão, ensina a sabedoria de Paulo: aqueles que promovem a vida, e que colocaram “sua esperança em Cristo”; aqueles que colocarem em prática a “palavra da verdade”, esses poderão ser “marcados com o selo do Espírito prometido, o Espírito Santo, que é o penhor da nossa herança para a redenção do povo que ele adquiriu, para o louvor da sua glória” (Ef 1,11-14).

E Jesus dá uma orientação final: “Se em algum lugar não vos receberem,
nem quiserem vos escutar, quando sairdes, sacudi a poeira dos pés, como testemunho contra eles!Então os doze partiram e pregaram que todos se convertessem.” (Mc 6,11-12).

E assim a denúncia do profeta e o anúncio do apóstolo se encontram na ordem dada pelo Senhor: Vai profetizar!




Neri de Paula Carneiro 
Mestre em Educação, filósofo, teólogo, historiador

Outros escritos do autor:

Filosofia, História, Religião: https://www.webartigos.com/index.php/autores/npcarneiro;

Literatura: https://www.recantodasletras.com.br/autores/neripcarneiro.


sexta-feira, julho 02, 2021

Pedro e Paulo - “O Senhor enviou o seu anjo”

(Reflexões baseadas em: At 12,1-11; 2Tm 4,6-8.17-18; Mt 16,13-19)




Na solenidade de São Pedro e São Paulo somos convidados a nos espelharmos na postura não de uma mas de duas das pedras sobre as quais Jesus instituiu a Igreja.

Não importa a denominação: católica ou qualquer das demais Igrejas cristãs. Importa que se a Igreja é cristã, não pode menosprezar ou deixar de considerar estes dois personagens:

Pedro porque, em diferentes oportunidades foi o principal personagem a contracenar com Jesus, nas andanças, nas conversas, nas orações, na explosão de entusiasmo ou, de forma equivocada, com a espada na mão, apressando-se na defesa do Senhor.

Paulo porque, como poucos, difundiu as palavras do mestre ao qual nem chegou a conhecer em vida. Mas não tem como negar que foi por sua iniciativa que o cristianismo avançou para além das fronteiras e se tornou universal.

Ambos com a mesma e única paixão: Jesus de Nazaré, o jovem que foi assassinado porque levou às últimas consequências as ideias e os ideais de amor; o jovem que ousou ouvir, olhar e descer ao nível dos marginalizados; o jovem que foi morto mas ressuscitou confirmando, contra qualquer dúvida que ainda pudesse restar, que ele era o Messias, o enviado do Pai.

Nos Atos dos Apóstolos (12,1-11) vemos encontramos Pedro acorrentado. Está preso e em risco de ser executado por ser adepto e defender e difundir a mensagem de um criminoso: Jesus de Nazaré o crucificado. Numa cena em que também podemos ver como Jesus age em defesa dos seus: Simplesmente os liberta e os coloca a caminhar.

Na segunda carta a Timóteo (2Tm 4,6-8.17-18) é Paulo quem dá o testemunho não somente de sua confiança no Cristo libertador, como também dos efeitos de sua pregação. Afinal foi Jesus que, ao lhe conceder o Espírito santificador, ofereceu as condições para que “a mensagem fosse anunciada por mim integralmente, e ouvida por todas as nações” (2Tm 4,17). Podemos dizer, sem sombra de dúvidas, que se hoje somos uma nação cristã, devemos isso a Paulo, o homem que levou a mensagem de Jesus, aos pontos mais distantes. Graças a isso a palavra de Jesus chegou a nós.

O Pedro, na cena dos Atos dos Apóstolos, pode transmitir a impressão que está abatido, como que sentindo a derrota. Ele sabe que será apresentado àqueles que assassinaram Jesus e que, certamente, os mesmos pedirão sua execução. Afinal, Herodes não age diferente dos políticos atuais. Não importa quem é a vítima, o que importa é tirar proveito de sua desgraça. Herodes quer satisfazer os Judeus e, em troca, continuar governando como se tudo estivesse bem. Entretanto, as coisas não estavam bem, pois o povo sofria; passava fome e, como sempre ocorre, somente os ricos tinham enormes vantagens com a situação. Herodes e os mandatários da época uniam-se para sugar o sangue do trabalho do povo, exatamente como ocorre em nossos dias.

Pedro representava as aspirações de libertação, justiça social. Uma sociedade sem excluídos. Uma sociedade de respeito e dignidade para todos. Plena de esperança de dias melhores. Por ter sido escolhido pelo Mestre como suporte da Igreja, Pedro sabia que podia contar com a comunidade e, dessa forma, enquanto “era mantido na prisão, a Igreja rezava continuamente a Deus por ele.” (At 12, 5). Por esse motivo, não estava abatido, pelo contrário, sabia que o Senhor não o havia abandonado. E, ao ser libertado, disse com convicção, fé e certeza: "Agora sei, de fato, que o Senhor enviou o seu anjo para me libertar do poder de Herodes e de tudo o que o povo judeu esperava!" (At 12,11). Ele sabia: o Senhor não abandona os seus…

A mesma certeza e segurança ouvimos de Paulo.

Prisioneiro, sabe que a hora de sua execução está próxima: “Quanto a mim, eu já estou para ser derramado em sacrifício; aproxima-se o momento de minha partida” (2Tm 4,6). Mesmo sabendo o destino que o aguarda, não perde o ânimo, nem a esperança e menos ainda a certeza de seu destino final. E externa isso em três afirmações fortes (2Tm 4,17-18): “O Senhor esteve a meu lado e me deu forças”, para suportar as perseguições e continuar o anúncio. “Fui libertado da boca do leão”, pois em mais de uma oportunidade fora aprisionado e correu risco de vida. “O Senhor me libertará de todo mal e me salvará para o seu Reino celeste. A ele a glória, pelos séculos dos séculos! Amém.” Afirma isso exteriorizando uma certeza norteadora da vida de quem se dedicou ao seguimento de Jesus de Nazaré.

“Eu te darei as chaves do Reino dos Céus: tudo o que tu ligares na terra será ligado nos céus; tudo o que tu desligares na terra será desligado nos céus" (Mt 16,19), fala Jesus, explicando a Pedro sua missão. E isso independe da denominação cristã. É mandato divino. Da mesma forma que a respeito de Paulo, diz o Senhor que “este homem é um instrumento que escolhi para levar o meu nome às nações pagãs e aos reis, e também aos israelitas” (At 9,15). Trata-se de uma missão que não é pequena, mas vem tendo sucesso… pois subsiste! E nossa fé nos ensina que seu sucesso, iniciou-se com Pedro e Paulo, mas hoje, depende de cada um dos que se fazem chamar de cristãos.

Pedro e Paulo, personagens que deram um rosto e um norte às palavras de Jesus: anunciar sempre. Criaram um motivo para ser Igreja: colocar-se a serviço de quem precisa, mesmo contra os interesses dos que se acham donos do mundo. Mostraram a proposta de Jesus, para a inauguração do Reino: dar voz e vez aos marginalizados. E, de fato, “o Senhor enviou o seu anjo” e o anjo nos ensinou a olhar para as duas pedras sobre as quais se assenta a Igreja.

Neri de Paula Carneiro

Mestre em educação,Filósofo, teólogo, historiador.

Outros escritos do autor:

Filosofia, História, Religião: https://www.webartigos.com/index.php/autores/npcarneiro;

Literatura: https://www.recantodasletras.com.br/autores/neripcarneiro.


sábado, junho 26, 2021

Menina, levanta-te!

(Reflexões baseadas em: Sb 1,13-15;2,23-24; 2Cor 8,7.9.13-15; Mc 5,21-43)




Estamos acostumados a fazer afirmações com certezas que nem sempre se podem confirmar. Por exemplo, costumamos dizer que Deus criou tudo. Será, isso, uma verdade?

Porém, no livro da Sabedoria (Sb 1,13-15;2,23-24) deparamo-nos com outras informações: Nem tudo! Por exemplo, a morte não é criação divina; o mal não vem de Deus!

Nem sempre pautamos nossa vida pelo amor. E nos justificamos dizendo que estamos retribuindo o que recebemos

Porém, dirigindo-se à comunidade de Corinto (2Cor 8,7.9.13-15), Paulo nos informa que a generosidade de Jesus é que deve ser o modelo, quando nos ensina a superar as necessidades com generosidade.

Essas passagens (ou perícopes) nos indicam que, efetivamente, Deus está interessado em nos conceder vida e não morte. Alegria e não sofrimento.

Mas, sendo assim, se Deus não criou a morte, de onde ela vem e porque amedronta tando o ser humano? Qual a origem das dores humanas?

O livro da sabedoria nos informa que todas as criaturas são saudáveis. Deus “criou todas as coisas para existirem” (Sb 1,14), e não para perecerem. E o ser humano para a imortalidade. Deus fez o ser humano à imagem de sua própria natureza: um ser para a vida. (Sb 1,23)

Confirmando tudo isso, Jesus, de acordo com Marcos (Mc 5,21-43), enfrenta a morte e a enfermidade: cura a mulher enferma e restitui a vida da criança. Ele quer a saúde e a vida!

Na primeira cena, impedindo que continue se esvaindo a vida de uma senhora. Aquela que, movida pela fé, toca as roupas do mestre recebe um novo fluído de vida: “Tua fé te curou” (Mc 5-34). Isso para nos dizer que não só as crianças são privilegiadas, mas também aqueles que já estão num estágio maduro de sua vida. Para esses também Deus oferece uma vida melhor.

Essa defesa da vida é reforçada na segunda cena, quando Jesus traz de volta à vida uma criança já morta. O que uma criança significa? Vida! Início e plenitude de vida. Notemos alguns detalhes apresentados por Marcos, sobre a recuperação da menina. Começa com a súplica do pai, pedindo pela filha: “Vem e põe as mãos sobre ela, para que ela sare e viva!” (Mc 5,23). Se a menina estava doente, não era suficiente sarar? O pai quer a recuperação da saúde, sim, mas também quer que a filha participe da vida. Então, que ela sare e viva, e isso é dom de Deus.

E o que faz Jesus? Pega as mãos da criança, como a conduzi-la. E de fato Jesus a conduz da morte para a vida. Ela é reintroduzida na vida: “Menina, levanta-te!” Por que levantar-se? Para se colocar na postura de quem está disposto a caminhar. E ela “começou a andar” na vida nova. Mas, para que a vida não se enfraqueça, Jesus manda que ela seja alimentada, para fortalecer a vida (Mc 5,41-43). A falta de alimento prejudica a vida, desumaniza. A fome, num mundo com tanta comida, prejudica a humanidade, prejudica a vida.

Milhares de pessoas, adultos e crianças, passando fome ao redor do mundo, não é vontade de Deus; a fome no mundo é produto humano. A pobreza, no mundo, é produto humano. Contra essa situação é que se coloca o discurso de Paulo: primeiro afirmando a necessidade da generosidade. E com isso colocando as bases de uma sociedade comunista, de partilha. Não se trata de tomar de um para dar ao outro. Trata-se, apenas de ter um coração generoso e aberto à partilha: “Não se trata de vos colocar numa situação aflitiva para aliviar os outros; o que se deseja é que haja igualdade. Nas atuais circunstâncias, a vossa fartura supra a penúria deles” (2Cor 8,13-14), ensina o apóstolo. E isso foi ensinado antes de qualquer ideologia político-partidária ou econômica!

Como se vê o problema do mundo, não é a fome nem a pobreza, mas o fato de que alguns possuem mais do que o necessário par sua existência; esse excedente é o que falta à quele que só possui a penúria.

E isso no leva, de volta, ao livro da Sabedoria, informando-nos que Deus fez todas as coisas com saúde, para a vida e não para a morte. E, mais ainda, “Deus criou o homem para a imortalidade (Sb 2,23). Sendo assim voltamos à indagação inicial: De onde vem a morte e os sofrimentos?

O autor do livro da Sabedoria é taxativo: Isso não é coisa de Deus. “Foi por inveja do diabo que a morte entrou no mundo, e experimentam-na os que a ele pertencem” (Sb 2,24) (E aqui se está falando da morte como ausência de Deus e não como finitude da matéria). Ou seja, o mal entrou no mundo pelas mãos do ser humano, mas sob orientação do “Pai da Discórdia”.

E todos “os que a ele pertencem” disseminam o mal, as dores, os sofrimentos… a morte. Em cada ato ou palavra que nega ou dificulta a plenitude da vida está uma ação demoníaca. Deus fez o ser humano com capacidade para resolver os problemas que enfrenta. Mas impedir que as soluções se disseminem melhorando a vida de todos, é coisa do anticristo.

Os representantes e disseminadores da maldade, que não é coisa de Deus, tanto podem estar na política como no mundo dos negócios; tanto podem estar nas relações familiares como na divulgação de fofocas e mentiras. Tanto podem estar num líder comunitário que alimenta a discórdia como num líder religioso em busca de autopromoção e dinheiro. Tanto podem estar nas igrejas, que supervalorizam as coletas e dízimos, como no sistema médico ou jurídico que não tem o ser humano como referência. Um político que cria dificuldade para que um medicamento chegue ao enfermo, um marido que maltrata ou atormenta a vida da esposa ou dos filhos, um médico que se preocupa mais com seus honorário que com a vida dos pacientes… e todos aqueles que pensam mais em si e se colocam acima dos outros… são representantes do Pai da Maldade. E isso não é de Deus!

A solução e alternativa para tanta maldade está no exemplo de Jesus, que não quis ostentar sua ação na cura da menina. Apenas a tomou pela mão e a convidou: menina, levanta-te!




Neri de Paula Carneiro

Mestre em Educação, filósofo, teólogo, historiador.

Outros escritos do autor:

Filosofia, História, Religião: https://www.webartigos.com/index.php/autores/npcarneiro;

Literatura: https://www.recantodasletras.com.br/autores/neripcarneiro.

Sagrada Família: para se cumprir!

Reflexões baseadas em: Eclo 3,3-7.14-17a; Cl 3,12-21; Mt 2,13-15.19-23 Todos os que, de alguma forma, tiveram contato com os ensinamentos d...