segunda-feira, 30 de agosto de 2021

A FILOSOFIA CLÁSSICA (II-b) - Platão: que ideia é essa?

A escola de Sócrates formou um bom número de discípulos. Com o mestre, frequentavam a praça de Atenas, onde os cidadãos se reuniam em assembleia para debater os problemas da cidade.

Entre os vários discípulos de Sócrates, um dos mais conhecidos foi Platão que, após a morte do mestre fundou uma escola no jardim de Academus. Daí o nome: Academia. Na porta de sua escola estava escrito algo que soava como: “Não entre aqui se não for matemático”. Isso porque a matemática é um dos melhores meios para se desenvolver a capacidade de raciocínio.

Seus textos, na forma de diálogos, têm Sócrates como personagem principal. Em razão disso é lícito que nos perguntemos: em seus escritos prevalecem suas ideias ou as de Sócrates?

O fato é que esse ateniense, depois de um tempo como soldado e político, resolveu dedicar-se à filosofia. Por volta dos 20 anos encontrou-se com Sócrates e decidiu-se por segui-lo. O que o levou a isso? O fato de considerar Sócrates o mais admirável entre os mestres. Talvez por isso tenha colocado na boca de Alcebíades, personagem de seu livro O Banquete, um elogio a Sócrates. Diz o personagem que ele “fala de coisas tão diferentes que, por mais que se procure, entre os modernos ou entre os antigos, não se encontra alguém que se assemelhe a ele”

Podem existir muita proximidade, entre discípulo e mestre. Entretanto é fato que Platão seguiu o próprio caminho. Desenvolveu sua filosofia apresentando um elemento inovador em relação aos pré-socráticos: a afirmação de um mundo físico, em que nos situamos e um mundo suprassensível. Mas manteve, de mestre, o estilo de uma filosofia feita com diálogos, que é a forma como produziu seus escritos.

Na distinção entre nosso mundo físico e o mundo das ideias está colocada a base da realidade vista sob a ótica platônica: todas as realidades, deste mundo físico, sensível, são aparência, são reflexos imperfeitos de um mundo ideal.

A afirmação de Platão é que tudo que vemos e com o que nos relacionamos, neste mundo – no mundo sensível – é apenas reflexo imperfeito do mundo da ideias. Cabe ao filósofo superar as aparências e chegar o mundo ideal, perfeito.

No seu livro Fédon, Platão assim se expressa a respeito do que vemos e do que é a coisa em si: “Parece-me, com efeito, que se existe alguma coisa bela, fora do belo em si, ela é bela porque participa deste belo em si”. E o mesmo ocorre com o ser humano.

O ser humano, antes de nascer habita o mundo das ideias. Aí contempla cada realidade em si mesma, e por isso, possui pleno conhecimento. Entretanto devido às contingências do mundo físico, ao nascer perde o contato com esse saber. Com a prática da filosofia poderá reencontrar o caminho da sabedoria e relembrar o que havia contemplado no mundo das ideias. Só a filosofia, pode conduzir o intelecto a recordar e re-conhecer aquilo com o quê se conviveu, no undo extra-físico.

E assim entramos na outra dimensão da filosofia de Platão. Esta diz respeito ao conhecimento, ou à possibilidade de conhecimento.

Esse aspecto pode ser lido na Alegoria da Caverna.

Em que consiste essa alegoria?

Platão cria essa alegoria para explicar a diferença entre o mundo físico e concreto em que vivemos o qual é uma espécie de cópia imperfeita do mundo das ideias. Nosso mundo seria uma espécie de sombra desse mundo ideal, perfeito onde existe todas as realidades em si mesmas. O exercício da filosofia permite ao ser humano recordar (teoria da reminiscência) o que já viu no mundo das ideias, pois ele veio de lá. E lá convivia com a verdade e o conhecimento pleno

Nessa alegoria, Platão coloca Sócrates conversando e explicando que: as pessoas vivem acorrentadas numa caverna. Todas elas imobilizadas de costas para a entrada e olhando para os fundos. Entre o portal da caverna e as pessoas acorrentadas há uma fogueira que faz com que as sombras das realidades sejam projetadas na parede dos fundos da caverna, de modo que esses prisioneiros, por nunca terem visto nada diferente dessas sombras, imaginem que elas sejam as verdadeiras realidades.

Vivem, dessa forma, num mundo de ilusão, de aparências, de sombras.

Vivem assim até que alguém, o filósofo, consegue libertar-se das correntes. Olha para trás. Vê a fogueira e a luz, do lado de fora da caverna. Faz, então, contato com a realidade, sem aparências. Caminha para fora da caverna e passa a conhecer a verdade.

Tendo conhecido a verdade, volta para a caverna e tenta libertar os demais prisioneiros acorrentados na ignorância. Entretanto, acostumados com as aparências, em vez de deixar-se conduzir pela sabedoria, preferem prender e matar o sábio que os pretendia libertar. E assim permanecem na ignorância e nas sombras, recusando-se a se voltar para a luz da verdade.

O cartunista Maurício de Souza, criador da “Turma da Mônica” recontou essa alegoria num gibi, com o título “As sombras da vida”. Essa versão pode ser encontrada facilmente em diversas páginas da Internet.

Como discípulo de Sócrates, Platão recria a filosofia do mestre, em seus livros, na forma diálogos. Mas, ao mesmo tempo, apresenta suas inovações. Sua explicação do mundo das aparências e do mundo das ideias, séculos depois foi absorvida pelo cristianismo para explicar que o ser humano está mergulhado num mundo de aparências e dominado pelo pecado; mas alimenta o desejo de encontrar o Paraíso, onde poderá se encontrar com o criador e fonte da verdade absoluta.

Um dos principais discípulos de Platão foi Aristóteles.




Neri de Paula Carneiro

Mestre em educação. Filósofo, Teólogo, Historiador




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sábado, 28 de agosto de 2021

Lábios e coração impuros

(Reflexões sobre:Dt 4,1-2.6-8; Tg 1,17-18.21b-22.27; Mc 7,1-8.14-15.21-23




Pode parecer estranha a pergunta, mas em que consiste a justiça de uma lei?

A pergunta pode parecer estranha porque a maioria de nós tem a convicção de que as leis são justas. Entretanto, nem sempre o cumprimento de uma lei é prática de justiça, pois nem toda lei é justa.

Um exemplo? Aqui no Brasil, os legisladores criaram leis que permitem aos integrantes do legislativo, do judiciário e do executivo, acumular salários e gordas gratificações que, se fossem juntadas todas, daria para pagar o salário de vários milhares de trabalhadores. É uma lei, mas não é justa. Cumprir essa lei, não é prática de justiça! Leis que não elevam o ser humano, não são justas.

Então a indagação inicial não é sem fundamento: em que consiste a justiça de uma lei?

Moisés e o povo de Israel defrontaram-se com essa questão, conforme nos ensina o livro do Deuteronômio (Dt 4,1-2.6-8). No deserto o povo foi convidado a optar pelo seguimento do Senhor e a cumprir suas leis. O cumprimento dessa lei traria, não benefícios isolados a alguns privilegiados da sociedade, mas a toda a população: entrar e tomar “posse da terra prometida pelo Senhor” (Dt 4,1). Essa lei, beneficiando a todos, tem justiça, pois não é excludente nem se destina a poucos.

Para evitar distorções na lei, evitar que alguns espertalhões se apropriem daquilo que é de todos, o Senhor determina: “Nada acrescenteis, nada tireis, à palavra que vos digo, mas guardai os mandamentos” (Dt 4,2). Fazer o contrário disso, jé é prática injusta.

Guardar e cumprir a lei que beneficia a todos, é o princípio da justiça. Se for diferente, pode até ser uma determinação legalizada, mas não é justa. Guardar e cumprir essa lei, que atende às necessidade de todos, sem privilegiar os espertalhões, é demonstração de inteligencia e sabedoria. “Vós os guardareis, pois, e os poreis em prática, porque neles está vossa sabedoria e inteligência perante os povos” (Dt 4,6).

A conclusão lógica do que ensina a Palavra Divina é uma só: aceitar leis injustas não é inteligente. Não é sábio um povo que deixa seus governantes ou seus legisladores produzirem e imporem leis injustas. A inteligência mandas buscar a justiça e não a letra morta da lei, ensina Jesus (Mc 7,1-23). Portanto, quando nos mobilizarmos para que sejam criados e cumpridos princípios de justiça as nações dirão de nós: esse é um grande povo pois tem leis e decretos justos (Dt 4,8).

Neste momento de nossa história, assistimos os mais altos escalões do poder político disputarem o primeiro lugar na capacidade de agressão ao povo. Produzem leis, decretos, medidas provisórias e decisões judiciais que ofendem a nação. Aqueles que exercem o poder, o fazem não em benefício do povo, mas em favor dos próprio interesses. Sua postura é exatamente oposta àquilo que ensina o apóstolo Tiago ao dizer que “Todo dom precioso e toda dádiva perfeita vêm do alto; descem do Pai das luzes” (Tg 1,17). E aqui também se impõe uma conclusão lógica: se as coisas boas nascem do Pai, quem produz coisas nefastas ao povo não representa a Deus, mas seu opositor.

“Com efeito, a religião pura e sem mancha diante de Deus Pai, é esta: assistir os órfãos e as viúvas em suas tribulações e não se deixar contaminar pelo mundo” (Tg 1,27). E não só a religião: também as ações sociais, políticas e econômicas…que promovem o ser humano… são ações sob inspiração divina. E, portanto, do outro lado, toda ação que faz o contrário disso não é ação divina, nem vem de Deus. Pelo contrário, é ação demoníaca! O Mal não vem de Deus! Mas do seu oposto!

Notemos que é diretamente para os líderes do povo que Jesus dirige estas palavras iluminadoras. Palavras que delimitam as posturas e expõe as intenções dos líderes do povo: “Jesus respondeu: 'Bem profetizou Isaías a vosso respeito, hipócritas, como está escrito: 'Este povo me honra com os lábios, mas seu coração está longe de mim. De nada adianta o culto que me prestam, pois as doutrinas que ensinam são preceitos humanos'. Vós abandonais o mandamento de Deus para seguir a tradição dos homens” (Mc 7,6-8).

Mas atenção! Não só as lideranças políticas. Também os líderes que se dizem religiosos; que dizem falar em nome de Deus… mas falam em nome de outra divindade. Eles não servem ao Deus da vida, mas aos deuses do dinheiro, do poder, da glória.… E em nome desses deuses é que destilam ódio e convidam ao seguimento do anticristo. “Todas estas coisas más saem de dentro, e são elas que tornam impuro o homem” (Mc 7,23), diz Jesus.

Então, que tal a gente começar a observar melhor? Que tal buscarmos a justiça e não a lei? Que tal fazermos uma revisão em nossos posicionamentos? Que tal revermos nossos valores e os valores daqueles a quem admiramos? Que tal olharmos e seguirmos melhor os passos de Jesus?… Que tal deixarmos de seguir essas leis e líderes que falam o nome de Deus com os lábios, mas que permanecem com ações e coração impuros?




Neri de Paula Carneiro

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segunda-feira, 23 de agosto de 2021

A FILOSOFIA CLÁSSICA (II-a) Eu sei que nada sei?

Sabemos que a filosofia nasceu quando nasceu o ser humano, mas ela só recebeu status e relevância quando alguns personagens gregos colocaram alguns pontos de interrogação ao processo de interpretação da realidade e do mundo.

Esse grupo de pensadores é conhecido como “pré-socráticos”. Mas, como sempre, o dinamismo da história acionou a roda do mundo e surgiram novas temáticas e novas respostas. A natureza perdeu seu espaço para a sociedade e os pensadores passaram a se dedicar à busca de novas explicações agora não mais para a natureza, mas para a vida social, para a realidade humana.

Estamos num novo período: a filosofia clássica, ou período antropológico. Neste período, além da atuação dos sofistas, três nomes se destacam: Sócrates, Platão e Aristóteles.

Vejamos alguns comentários a respeito de Sócrates.



Sócrates: Eu sei que nada sei?


Poucos estudantes podem dizer que nunca ouviram ou leram o nome de Sócrates.

Junto com esse personagem nos chegam algumas informações a seu respeito: não se tem notícia de que tenha produzido algum escrito. A informações que temos a seu respeito chegaram a nós mediante seus discípulos, sendo Platão o que mais nos fornece informações a seu repeito, uma vez que o mestre é o principal personagem em seus diálogos.

Também nos vem de Platão a informação de que Sócrates teve inúmeros atritos com os sofistas. E sua morte, após um julgamento polêmico, ocorreu ao tomar um copo de cicuta.

Quem já ouviu falar em Sócrates, também ouviu: “só sei que nada sei”, “conhece-te a ti mesmo”, ironia socrática e maiêutica.

Também se diz que era um homem muito feio e que um certo viajante, teria dito que ele tinha a fisionomia tão feia que se parecia com um monstro capaz de realizar qualquer crime. Ao ouvir isso, a seu repeito, o filósofo teria respondido: “acertou em cheio, senhor”.

Possivelmente de sua rivalidade com os sofista foi que nasceu a acusação que lhe foi imputada: a de estar corrompendo a juventude de Atenas. Seus acusadores o levaram a julgamento e foi condenado à morte. Seus discípulos o incentivaram a fugir da cidade, mas ele alegou que em toda sua vida cumprira a lei e que não seria na morte que a descumpriria. Dito isso tomou a taça com sicuta, o veneno da condenação.

Qual era, então, sua atividade filosófica? Após se sentir interpelado pelo oráculo de Delfos dedicou-se a ela: livrar os homens de sua ignorância, conduzindo-os à verdade.

Portanto sua filosofia se fez ao redor dessa questão: O homem. Não o homem como algo distante, teórico, conceitual ou distinto do cotidiano, mas o homem que se insere no cotidiano com tantos afazeres que se esquece de olhar para si mesmo.

A professora Marilena Chauí, em sua obra “Convite à filosofia” afirma o seguinte: “Sócrates dedicou-se à filosofia depois de haver ido ao templo de Apolo Delfos e ter ouvido uma voz interior, o seu daímon, que o fez compreender que o oráculo inscrito na porta do templo – “conhece-te a ti mesmo” – era sua missão. Por ela abandonou toda atividade prática e viveu pobremente com sua mulher Xantipa e seu filhos. Foi descrito por todos os que o conheceram como alguém dedicado ao conhecimento de si e que provocava nos outros perguntas sobre si próprios”

Indagando-se a si mesmo e aos outros em busca do autoconhecimento constatou sua própria ignorância. E nos seus interlocutores percebeu que nenhum detinha real conhecimento de nada. Dai sua brilhante conclusão: Ninguém sabe nada, mas alguns acham que sabem muita coisa. Mas essa é uma postura tola, pois o princípio da sabedoria não é dizer ou pensar sabe tudo, mas perceber-se como alguém que nada sabe.

Daí, também, a argumentação a ele atribuída: ele pensa que sabe mas não sabe: é um tolo. Eu, que não sei, e sei que não sei, sou mais sábio que ele. Essa é a base da sabedoria: “Sei que nada sei”

Sócrates desenvolve sua filosofia empregando um método na forma do diálogo. Inicia com uma pergunta e Sócrates comenta as várias respostas, mostrando que são conceitos pré-formados, imagens sensoriais percebidas ou opiniões subjetivas e não a definição buscada. Esta primeira parte chama-se ironia (eiróneia), isto é, refutação, com a finalidade de quebrar a solidez aparente dos preconceitos.

A segunda parte do método socrático desenvolve-se a partir de perguntas direcionadas que vão sugerindo caminhos ao interlocutor até que este avance e chegue à definição procurada. Trata-se da maiêutica, isto é, a arte de realizar um parto, que, neste caso é um parto de ideias e da verdade.

Podemos reiterar, portanto que a ironia é um processo de enredamento pelo qual Sócrates conduz o interlocutor a se expor, expondo seus pontos de vista. E, ao expor esse ponto de vista, que na realidade é apenas uma opinião, Sócrates intensifica os questionamentos até que o interlocutor se perceba em sua ignorância a respeito do tema em questão.

A ironia é uma espécie de simulação, mas, em Sócrates, ela tem a finalidade de por a descoberto a vaidade, desmascarar a impostura e buscar a verdade. Ao produzir esse processo de desinstalação, a ironia socrática muitas vezes é vista como revolucionária, ameaçando as opiniões e valores consagrados; é vista como irreverente. Entretanto ela não tem a finalidade de desprezar os valores, mas de verificar até que ponto são autenticos.

A partir da ironia – demonstração de que o interlocutor não está no cainho da verdade, mas num equivoco – Sócrates redireciona as perguntas a fim de que o interlocutor encontre o caminho que conduz à verdade. Não lhe é apresentada a verdade, como algo pronto, mas um caminho a ser trilhado. É o processo da maiêutica.

Pelo caminho da maiêutica importa que o homem seja capaz não de repetir o que todos dizem, mas da dar a sua resposta; não a partir da opinião, mas limpa das impressões, opiniões, preconceitos. Ou seja, a partir da ironia, desmascara-se a mentira para abrir o caminho para a verdade, por meio de um parto de ideias.

Em síntese podemos dizer que Sócrates ensinava na praça de Atenas, dialogando com seus discípulos e interlocutores. Usava a ironia e a maiêutica como instrumentos metodológicos de busca da verdade.

Um de seus principais discípulos foi Platão.





Neri de Paula Carneiro

Mestre em educação. Filósofo, Teólogo, Historiador



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sexta-feira, 20 de agosto de 2021

A quem iremos?

(Reflexões sobre: Js 24,1-2a.15-17.18b; Ef 5,21-32; Jo 6,60-69).




Os dias atuais são difíceis de viver.

Não que algum dia a vida humana sobre a terra tenha sido fácil, mas os dias atuais trazem alguns elementos novos. As propostas do reino continuam as mesmas, mas os caminhos de perdição se ampliaram. Nunca foi tão urgente que se faça uma escolha, uma tomada de posição. É urgente que se faça a opção: ser agente da difusão da Boa Nova, promovendo a vida ou deixar-se levar pela onda de distorção da mensagem libertadora do Evangelho. Muitas doutrinas se apresentam com aparência de cristianismo, mas não valorizam a vida nem o ser humano. Nas atuais circunstâncias o lucro e o poder falam mais alto.

E assim se impõe a necessidade e exigência de escolha, embora isso não seja exclusividade dos nossos dias. O grupo que havia sido liderado por Moisés caminhava pelo deserto, agora sob o comando de Josué. Nessa caminhada e para esse grupo, é forte a influência dos vários deuses dos povos do deserto; surgem distorções da proposta de vida e libertação; juntam-se as dificuldades do dia a dia… Tudo estava dificultando a caminhada, a união, a sintonia com o projeto de libertação. Para superar o impasse Josué propõe uma assembleia. E o desafio: “Se vos parece mal servir ao Senhor, escolhei hoje a quem quereis servir: se aos deuses a quem vossos pais serviram na Mesopotâmia, ou aos deuses dos amorreus, em cuja terra habitais. Quanto a mim e à minha família, nós serviremos ao Senhor” (Js 24,15). A pergunta de Josué pode ser, também, dirigida a cada um de nós… a quem queremos servir? A quem estamos servindo?

Alás, essa é a dinâmica da vida: o tempo todo somos colocados diante de situações que exigem nosso posicionamento. E a principal opção consiste em escolher entre os caminhos de vida e os caminhos de morte. O caminho da verdade ou da distorção da verdade. As escolhas… estão entre as dificuldades de se viver nos dias atuais.

E isso nos leva a Jesus e ao seu desafio. Talvez mais do que desafio: um desabafo. Se nos recordarmos de tudo que Ele havia feito, de tudo que havia oferecido… entenderemos o motivo de sua indignação frente a “murmuração” daqueles que o estavam seguindo. Havia alimentado a multidão, havia se declarado pão da vida… Em troca cobrava apenas fidelidade. Mas os que o seguiam ainda reclamavam: “Esta palavra é dura. Quem consegue escutá-la?” (Jo 6,61). Então é natural e compreensível seu desabafo: “É por isso que vos disse: ninguém pode vir a mim a não ser que lhe seja concedido pelo Pai” (Jo 6,65). E a pergunta aos discípulos é inevitável: “Vós também quereis ir embora?” (Jo 6,67).

A indagação de Jesus coloca o ser humano diante da necessidade de escolha. Pressionados os discípulos se fazem representar por Pedro: “A quem iremos, Senhor? Tu tens palavras de vida eterna” (Jo 6,68). Da mesma forma que os seguidores de Jesus, os companheiros de Josué fizeram a opção: “nós também serviremos ao Senhor, porque ele é o nosso Deus.”

Nessa circunstância podemos indagar: a resposta de Pedro e do povo, no deserto, saiu de sua fé ou de algum interesse imediato? E nós, quando em nossas preces imploramos a intervenção divina diante de algum problema ou dificuldade: rezamos porque acreditamos e temos fé ou somos movidos pelo desespero? Nossas preces nascem da confiança no Senhor,nosso último refúgio ou do desespero: A quem iremos?

Também podemos visualizar a necessidade de opção na relação familiar. Como ensina Paulo aos efésios (Ef 5,21-32). Aparentemente uma situação de conflito e de antagonismo. Em favor do homem ou em defesa da mulher? Nem uma coisa nem outra. Nessa relação não há antagonismo, mas complementariedade e seguimento de Cristo.

Qual o ponto de partida? O apóstolo orienta: os seguidores de Cristo só tem um caminho: “Sede solícitos uns para com os outros” (Ef 5,21), ou seja, respeitem-se para crescerem juntos. E o casal? Ambos desempenham funções distintas, mas que se complementam. Não há marido sem a esposa e nem esposa sem seu marido. São codependentes para serem o que são.

Se, por um lado pode-se ter a impressão de que o marido se sobrepõe à submissão da mulher; por outro lado o homem deve amá-la e respeitá-la…. Mas não se trata de qualquer amor: “amai as vossas mulheres, como o Cristo amou a Igreja e se entregou por ela” (Ef 5,25). Isso implica dizer que a responsabilidade do homem é enorme, pois seu amor deve ser como o de Cristo. E Cristo não submete ninguém!!!

E nisso está a opção: ambos podem olhar para si e seus interesses e, nesse caso há conflito. Isso não é solicitude nem amor como o de Cristo. A solicitude leva ao amor pleno. E se há plenitude não há superioridade ou inferioridade. Amar como Cristo amou implica em viver para o outro mais do que para si mesmo, como mostrou o Senhor.

São as opções. Existe liberdade de escolha…. Mas só Cristo tem palavras de vida eterna. Se não o escolhermos para guiar nossas opções, a quem iremos?







Neri de Paula Carneiro

Outros escritos do autor:

Filosofia, História, Religião: https://www.webartigos.com/index.php/autores/npcarneiro;

Literatura: https://www.recantodasletras.com.br/autores/neripcarneiro.

quinta-feira, 12 de agosto de 2021

Agora realizou-se a salvação

Reflexões sobre: Ap 11, 19a;12,1.3-6a.10ab; 1Cor 15, 20-27a; Lc 1, 39-56


Hoje vamos voltar nossos olhos para uma personagem de importância fundamental para a História da Salvação; uma personagem que está na fundação, na origem de nossa fé.

Mais do que isso: trata-se da personagem mais importante para a História da Salvação. E não se trata do Pai, Filho ou Espírito Santo, por um motivo simples: A Trindade Santa não é a personagem mais importante. Deus é o destino e não caminho, nem modelo. O modelo a ser seguido é esta personagem, a mais importante. É aquela que disse sim!

Então quem é essa personagem?

É aquela o pe. Zezinho cantou, dizendo que foi a “menina que Deus amou e escolheu...”.

É aquela cantada pelo cancioneiro popular: “Da cepa brotou a rama, da rama brotou a flor, da flor nasceu...”

Ela é lembrada no hino português: “A treze de maio, na Cova da Iria, no céu aparece...”

Ela foi para quem o pe. Zezinho pediu: “Ensina teu povo a rezar...”

Ela fez os pescadores ficarem maravilhados “vendo surgir das águas a tosca imagem de negra cor...”. Aqueles pescadores tinham um motivo para se alegrar pois ao ver o sofrimento do seu povo “Esta senhora humilde, de cor morena, se fez presente”. E, por ser uma senhora de cor morena, passou a ser vista não só como mãe do Brasil, mas também como “Senhora da América Latina, de olhar e caridade tão divina, de cor igual a cor de tantas raças...”, contou o pe. Zezinho.

Ela é a personagem a quem, muitos de nós, quando pequeninos, nos dirigimos para falar de nossas limitações. Foi quando aprendemos a dizer: “Mãezinha do céu, eu não sei rezar; eu só sei dizer: Quero te amar"

Nestas alturas você já deve ter entendido: não estamos falando apenas de mais uma importante personagem da História da Salvação. Você já entendeu que, realmente, estamos falando da mais importante personagem. Você já entendeu que estava certo o Zé Vicente ao afirmar sua singeleza, quando indagou: “Quem é essa mulher radiante, orgulho do povo de Deus, sintonia…?” E, na sua música, o coro responde: “É Maria, é Maria, companheira noite e dia”

E foi Maria, a “mulher vestida de sol, tendo a lua debaixo dos pés e sobre a cabeça uma coroa de doze estrelas”, como se lê no livro do apocalipse (Ap 12,1).

E foi Maria, aquela que “deu à luz um filho homem, que veio para governar todas as nações com cetro de ferro”.

E foi Maria, aquela que ensinou Jesus a se colocar junto com os preferidos de Deus. E, para ensinar a Jesus, ela também teve que fazer suas opções. De acordo com o evangelista Lucas, foi a própria Maria quem disse que o Senhor olhou “para a humilhação de sua serva” e a fez bem aventurada.

Entretanto, como não pensava somente em si, Maria definiu as fronteiras. E isso não fomos nós, nem a Igreja quem inventou. Maria foi quem afirmou que o Senhor: “mostrou a força de seu braço: dispersou os homens de coração soberbo. Derrubou do trono os poderosos e elevou os humildes. Encheu de bens os famintos, e despediu os ricos de mãos vazias” (Lc 1,51-53).

Para ser fiel à Palavra divina, a Igreja reconhece e exalta a Mãe, a mulher que “fugiu para o deserto, onde Deus lhe tinha preparado um lugar” (Ap 12,6). Em fidelidade à Palavra Divina a Igreja reconhece “em Cristo todos reviverão. Porém, cada qual segundo uma ordem determinada: Em primeiro lugar, Cristo, como primícias; depois, os que pertencem a Cristo”: Maria foi a primeira a ser acolhida no céu (1 Cor15,22-23). Por isso a Igreja celebra a Ascensão de Nossa Senhora

Por inspiração divina a Igreja definiu, acatando uma aspiração popular. A Igreja aprendeu com o povo a olhar a senhora Mãe com os olhos da fé. “O povo te chama de Nossa Senhora por causa de Nosso Senhor”. E a poesia da música nos ensina: “Não és deusa, não és mais que Deus, mas depois de Jesus, o Senhor: Neste mundo ninguém foi maior”.

Assim, na festa da Ascensão da Senhora Mãe podemos cantar, o que a palavra divina nos ensina: “Que só Jesus Cristo é o intercessor. Porém se podemos orar pelos outros, a Mãe de Jesus pode mais. Por isto te pedimos em prece, oh, Maria, que leves o povo a Jesus, porque de levar a Jesus entendes mais. Como é bonita uma religião que se lembra da mãe de Jesus”.

Tudo isso foi Maria que nos ensinou. É assim que a Igreja orienta. E é assim que nossa fé nos ajuda a cantar com Maria, na festa de sua assunção: “A minha alma engrandece o Senhor, e o meu espírito se alegra em Deus, meu Salvador” (Lc 1, 46-47). E cantamos porque, além de derrubar do trono os poderosos, o Senhor é aquele que sacia os famintos, pois “agora realizou-se a salvação”




Neri de Paula Carneiro

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segunda-feira, 9 de agosto de 2021

Chutar o balde

Levanto cedo pra ir trabalhar

Volto pra casa sem nada ganhar

O pagamento é só no fim do mês

Mas o feijão acabou outra vez


E agora o que fazer?

E agora o que fazer?

Chutar o balde ou

Por o leite pra ferver?


Se fico em casa a comida não vem

Mas trabalhar não enrica ninguém

Chora Joãozinho, Maria e José

Já não tem leite, farinha e café


E agora o que fazer?

E agora o que fazer?

Chutar o balde ou

Por o leite pra ferver?


O desemprego está acelerado

Essa tal crise vem de todo lado

Tudo que fiz só o patrão engordou

Buscando emprego meu sapato furou


E agora o que fazer?

E agora o que fazer?

Chutar o balde ou

Por o leite pra ferver?


De bolso vazio estou sem um tostão

Não tem arroz, quiabo ou macarrão

Eu sei: não adianta a sorte lamentar

Mas sem emprego onde vou trabalhar?


E agora o que fazer?

E agora o que fazer?

Chutar o balde ou

Por o leite pra ferver?

Neri de Paula Carneiro

sexta-feira, 6 de agosto de 2021

Para a vida do mundo

Reflexão a partir de: 1Rs 19,4-8; Ef 4,30-5,2; Jo 6,41-51


Por que, muitas vezes, nos sentimos impotentes, desencorajados… e, tomados pelo desânimo, querendo desistir de tudo? Qual é a força que nos impulsiona a continuarmos em nossas ações cotidianas?

Parece que era essa a condição em que se encontrava Elias, segundo nos informa o livro dos Reis (1Rs 19,4-8). Havia realizado uma obra em nome de Deus e seus opositores o estavam perseguindo. O profeta estava, além de assustado, arrasado, sem entender o porquê de se sentir abandonado. Em completo desânimo, desistindo de tudo, pediu a morte. “Agora basta, Senhor! Tira a minha vida, pois não sou melhor que meus pais” (1Rs 19,4).

A outra face da situação nos é apresentada no diálogo dos judeus com Jesus (Jo 6,41-51).

Todos o conheciam. Sabiam de sua vida, dos seus parentes. Sabiam onde morava e o que faziam seus pais. E, em virtude disso, diziam, entre si e a quem os queria ouvir: “Ele não pode fazer isso!” “Sabemos onde mora!” “Como pode andar por ai, falando e fazendo o que faz?” E, com certeza, diziam muito mais, pois ele era um rapaz conhecido entre seus vizinhos, em sua cidade. Era um rapaz conhecido em sua terra. “Não é este Jesus, o filho de José? Não conhecemos seu pai e sua mãe? Como então pode dizer que desceu do céu?” (Jo 6,42).

Contra os maledicentes ouvimos a palavra de Paulo (Ef 4,30-5,2). O apóstolo exorta a comunidade de Éfeso, orientando-os a buscar um bom comportamento, condizente com os dons do Espírito Santo. Convida-os a erradicar a maldade. “Toda a amargura, irritação, cólera, gritaria, injúrias, tudo isso deve desaparecer do meio de vós” (Ef 4,31). A mesma orientação é dirigida a nós. Principalmente porque que se existe algo de bom a ser feito, isso deve ser realizado, independentemente do que falarão os que nada fazem pelo outro, pela comunidade, pela sociedade.

Essa situação é semelhante ao que vemos acontecer em muitas localidades. Nem tanto nas grandes cidades em que se vive anônimo em meio à multidão, mas nos pequenos grupos sociais. Em muitas comunidades rurais e urbanas. Se a pessoa tem uma qualidade que se destaca ou presta um bom serviço, passa a ser malvista entre aqueles que a conhecem e com os quais convive. Tanto que se popularizou o dito: “Santo de casa não faz milagre”.

Nessas situações, a pessoa é levada ao desânimo. Ela, por vezes, se cansa de realizar obras em favor do povo, que não reconhece esse gesto. A pessoa até pode ter consciência de que faz o bem porque esse bem deve ser feito, independentemente de ser ou não elogiado. Mas um mínimo de reconhecimento, por parte de quem recebe o bem feito, “conforta a alma” de quem realiza a obra e impulsiona para novas ações.

Para ajudar a superar o desânimo de Elias, Deus enviou seu anjo confortador. Ofereceu-lhe alimento e estímulo: “Levanta-te e come!” E uma segunda vez: “Levanta-te e come! Ainda tens um caminho longo a percorrer”.

Mas por que Deus o encoraja e não lhe tira sua vida? Por que as pessoas de boa vontade não desistem diante de tanta inveja, maldade, malquerer e malfalar…? Por que continuam mesmo com tanta gente que oferece espinhos e cria dificuldades para as boas obras?

Podemos aprender com Jesus, quando nos fala: “Não murmureis entre vós!” Hoje, certamente, Jesus diria: “Não fiquem aí pelos cantos inventando intrigas. Não alimentem fofocas entre vocês!” Jesus diria mais: “Em vez de ficar por aí falando mal de quem está fazendo algo pelos outros, vá você também procurar o que fazer!”

E, novamente, por que as pessoas altruístas não desanimam?

Porque são pessoas especiais. Porque são convidadas pele próprio Deus a realizar grandes obras. Além disso, é bom lembrar que sem elas a comunidade perde a vida e se esvai nas fofocas…

Como os agentes ativos da comunidade são convidados por Deus, recebem uma carga extra de estímulo. Para elas Jesus está falando: “Ninguém pode vir a mim, se o Pai que me enviou não o atrai. E eu o ressuscitarei no último dia” (Jo, 6,44). A partir das palavras de Jesus podemos dizer mais. Podemos dizer que as ações do cotidianos, terminam em si mesmas. “Vossos pais comeram o maná no deserto e, no entanto, morreram” (Jo 6,49). Mas quem realiza coisas boas, pensando apenas no bem de quem recebe essas ações, ouvem de Jesus: “o pão que eu darei é a minha carne dada para a vida do mundo” (Jo 6,51).

Eis o porquê das pessoas de boa vontade não desistirem, embora, como Elias, por vezes sejam tomadas pelo desânimo: elas ouvem o anjo de Deus estimulando: “ainda tens um longo caminho a percorrer” (1Rs 19,7). Para percorrer o caminho que ainda resta, recebem o alimento divino: “Eu sou o pão da vida.” E cada vez que o desânimo ou os contratempos aparecerem, ouvirão do próprio Mestre: “Eu sou o pão vivo descido do céu. Quem comer deste pão viverá eternamente. E o pão que eu darei é a minha carne dada para a vida do mundo” (Jo 6,48.51)




Neri de Paula Carneiro

Outros escritos do autor:

Filosofia, História, Religião: https://www.webartigos.com/index.php/autores/npcarneiro;

Literatura: https://www.recantodasletras.com.br/autores/neripcarneiro.

segunda-feira, 2 de agosto de 2021

A FILOSOFIA CLÁSSICA (I)

Antiguidade Clássica, quando estamos estudando história, refere-se ao período áureo das civilizações grega e romana. Mas, na filosofia trata-se do período de atuação de três pensadores que imprimiram uma novidade na busca do conhecimento: criando uma metodologia revolucionária, como a ironia e a maiêutica de Sócrates; criando uma nova cosmovisão para explicar o mundo sensível e sua correlação conceitual, como a teoria do mundo das ideias de Platão e uma nova sistematização dos saberes e de transmitir os conhecimentos, desenvolvidos por Aristóteles. Lembrando que os pressupostos aristotélicos não só para a filosofia, como também para a sistematização das ciências e a inovação de várias áreas do saber, permanecem sendo usados até nossos dias.

Agora, a partir do século V aC o objeto de estudo deixa de ser a phýsis (natureza), como fizeram os pré-socráticos e se concentra no homem e sua vida social. Por isso alguns autores chamam este de período antropológico. Essa mudança de perspectiva começa, com os sofistas e se explica devido a nova conjuntura política.



A supremacia de Atenas

A partir do século V aC registraram-se algumas mudanças no cenário histórico e isso justificou algumas alterações nos objetos da investigação filosófica.

Os principais pensadores não estão mais nas colônias, mas se concentram em Atenas. Suas atenções voltam-se para a formação do cidadão que deve ser virtuoso. Daí que os problemas centrais do conhecimento passam a ser de ordem ética e política.

Qual a causa dessa mudança? Principalmente a ameaça dos Persas, ou seja as chamadas Guerras Médicas (490 a 480 aC).

Esse período de guerras colocou a cidade de Atenas na liderança de um grupo de cidades, tornando-se o centro político do mundo grego. Percebeu-se a necessidade de organizar mecanismos de administração e manutenção do governo. Constatou-se, também, que a vida urbana apresentava algumas exigências de ordem tanto política como ética, as quais precisavam de uma resposta.




Novo Modelo Político

Esse contexto urbano produziu um novo modelo político, que se desenvolveu a partir de Atenas: a democracia. Sua principal característica: a discussão em assembleia. E para participar da democracia o cidadão precisava saber falar, saber argumentar no debate. Precisava da arte da retórica.

A respeito dessa nova organização política assim falou Tucídides (460-400 aC), no primeiro livro de sua obra “História da Guerra do Peloponeso”:

“Nós, cidadãos atenienses, decidimos as questões públicas por nós mesmos, ou pelo menos nos esforçamos por compreendê-las claramente, na crença de que não é o debate que é empecilho à ação, e sim o fato de não se estar esclarecido pelo debate antes de chegar a hora da ação. Consideramo-nos ainda superiores aos outros homens em outro ponto: somos ousados para agir, mas ao mesmo tempo gostamos de refletir sobre os riscos que pretendemos correr.”

O mesmo Tucídides coloca na boca de Péricles o seguinte discurso, dirigido aos atenienses:

“Vivemos sob uma forma de governo que não se baseia nas instituições de nossos vizinhos; ao contrário, servimos de modelo a alguns ao invés de imitar outros. Seu nome, como tudo depende não de poucos mas da maioria, é democracia. Nela, enquanto no tocante às leis todos são iguais para a solução de suas divergências privadas, quando se trata de escolher (se é preciso distinguir em qualquer setor), não é o fato de pertencer a uma classe, mas o mérito, que dá acesso aos postos mais honrosos; inversamente, a pobreza não é razão para que alguém, sendo capaz de prestar serviços à cidade, seja impedido de fazê-lo pela obscuridade de sua condição. Conduzimo-nos liberalmente em nossa vida pública, e não observamos com uma curiosidade suspicaz a vida privada de nossos concidadãos, pois não nos ressentimos com nosso vizinho se ele age como lhe apraz, nem o olhamos com ares de reprovação que, embora inócuos, lhe causariam desgosto. Ao mesmo tempo que evitamos ofender os outros em nosso convívio privado, em nossa vida pública nos afastamos da ilegalidade principalmente por causa de um temor reverente, pois somos submissos às autoridades e às leis, especialmente àquelas promulgadas para socorrer os oprimidos e às que, embora não escritas, trazem aos transgressores uma desonra visível a todos.”

E assim se impõe a questão: se a palavra (capacidade de bem falar) é importante e cada individuo pode participar da vida política (participando do debate), faz-se necessário desenvolver a arte do falar para melhor participar. O cidadão, portanto, precisou desenvolver essa habilidade: Falar e argumentar, para defender um ponto de vista.

E, como se pode notar, a questão deixa de ser a compreensão da natureza, e passa a ser a vida em sociedade ou seja a política. E a palavra será a ferramenta nesse processo. Mas como desenvolvê-la?




Os sofistas

A resposta foi dada por um novo grupo de pensadores. Os Sofistas.

Eles formaram um grupo de pensadores que mudou o foco da filosofia. Mantinham a crítica aos mitos, como o fizeram os pré-socráticos. Mas priorizaram a arte do bem falar, pois esta era a nova característica da sociedade ateniense, para onde eles migraram, vindo das colônias.

Os sofistas, portanto, são o ponto de transição entre os filósofos da Natureza e os ensinamentos de Sócrates. E, em razão da demanda pela oratória, dedicaram-se a isso: desenvolver a capacidade de bem falar e a arte de convencer o interlocutor. Com sua retórica consideravam que não havia uma verdade única.

A bem da verdade diversos comentadores da história da filosofia não viram com bons olhos a atuação dos sofistas.

Essa visão a seu respeito, deve-se ao que falaram deles alguns de seus adversários. Em seus escritos pensadores como Platão, Tucídides, Xenofontes, Aristóteles, Aristófanes não os consideravam filósofos, mas manipuladores do raciocínio sem amor pela verdade.

Na atualidade, entretanto, alguns outros estudiosos entendem que os sofistas apenas estavam respondendo a um apelo de Atenas. Satisfaziam uma necessidade dos cidadãos que precisavam aprender a técnica de persuadir com argumentos. A professora Marilena Chauí, no seu livro “Convite à filosofia” comenta a atuação dos sofistas: “o sofista, oferecendo um ensino útil nas assembleias e nos tribunais, ensinava a arte de ser cidadão”.

Sendo assim, podemos dizer que o problema dos sofistas não foram suas ideias, mas seus adversários. Como trabalhavam a partir das opiniões (dóxai, em grego) e do interesse de quem pagava pelas suas aulas, não se comprometiam com a profundidade da verdade (alétheia, em grego), algo radicalmente defendido pelos filósofos. E isto deve ser dito porque a verdade não muda para satisfazer necessidades ou interesses das opiniões ou de quem paga, ela é o que é.

O fato é que os sofistas, de acordo com o que escreveram os italianos G. REALE e D. ANTISERI, no primeiro volume de sua obra “História da Filosofia”: “Os sofistas operaram uma verdadeira revolução espiritual, deslocando o eixo da reflexão filosófica da phýsis e do cosmos para o homem e aquilo que concerne a vida do homem como membro de uma sociedade.”




Os sofistas: algumas falas

Independentemente da polêmica a respeito de serem ou não filósofos; de terem ou não desenvolvido uma filosofia; de terem ou não agido para satisfazer os interesses de alguns membros da polis… Independentemente de tudo isso, os sofistas, ao seu modo, deram sua contribuição à filosofia. Ou pela temática inaugurada ou porque sua atuação exigiu um posicionamento de seus adversários e, dessa contenda desenvolveu-se o que se denominou de período antropológico da filosofia. O homem em sociedade passou a ser o centro da filosofia clássica.

Entretanto quase nada restou dos escritos desses pensadores a não ser fragmentos provindos de seus adversários. Dois deles se tornaram bastante conhecidos uma vez que são amplamente mencionados nos diálogos de Platão. Trata-se de Protágoras de Abdera e Górgias de Leontini.

Lembrando que existiram vários outros. Só para mencionar alguns: Hípias de Élis, Isócrates de Atenas, entre outros.

Vejamos alguns retalhos do que nos sobrou do que disseram Protágoras e Górgias. Não por outro motivo, mas pelo fato de Platão ter a eles dedicado dois de seus escritos que trazem por título justamente os nomes destes dois personagens.

A Protágoras são atribuídas algumas frases interessantes e que merecem uma reflexão da filosofia. Se não pela verdade que podem apresentar, pelo menos pala beleza literária que possuem. Talvez a mais célebre frase de Protágoras seja: “O homem é a medida de todas as coisas. Das que são pelo que são e das que não são pelo que não são”.

Como podemos entender essa afirmação? Não existe uma resposta, mas podemos dizer que o homem é a MEDIDA porque é dele que procedem os juízos, os julgamentos, os valores… a respeito da realidade; o homem é critério de realidade ao lhe conferir significado, pois sem ele as realidade são apenas o que são. O olhar valorativo do ser humano confere sentido, por isso, mais do que só existir, as realidades ganham o significado que lhe confere o homem. O insignificante e sem sentido passa a ter significado e sentido.

De acordo com Protágoras, o que dizemos sobre algo, nada mais é do que as convenções que estabelecemos; os valores que a isso atribuímos. E quem faz isso é o ser humano, por isso é a medida

Mas as convenções, podem mudar…, como muda o homem… e assim, desse ponto de vista, a percepção humana também se diferencia...

Outra fala de Protágoras que se aproxima da anterior: “Tal como cada coisa se apresenta para mim, assim ela é para mim, tal como ela se apresenta para você, assim ela é para você.".

Também vale a pena refletir o alcance desta outra: “Todo o argumento permite sempre a discussão de duas teses contrárias, inclusive este de que a tese favorável e contrária são igualmente defensáveis.

De Górgias também nos chegaram alguns retalhos de pensamento. Vejamos alguns exemplos:

“Uma mesma atividade pode ser boa ou ruim dependendo de quem a pratica e em que situação se encontra.”

“Mesmo que pudéssemos pensar e conhecer o ser, nós não poderíamos expressar como ele é porque as palavras não conseguem transmitir com veracidade nada que não seja ela mesma. Quando comunicamos, comunicamos palavras e não o ser.”

“A persuasão é soberana, porque não há nenhuma verdade acima da que um homem pode ser persuadido a crer.”

“O artista é um criador de mundos.” E nós podemos confessar que ficamos admirados com todos os mundos que nascem das realizações dos artistas...

Além disso, Górgias de Leontini, afirma que o bom orador deve ser capaz de "persuadir os juízes nos tribunais, os conselheiros no Conselho, os membros da assembleia popular na Assembleia e, da mesma forma, qualquer outra reunião que se realize entre cidadãos". É o mesmo que dizer que o bom orador pode convencer qualquer um sobre qualquer coisa. E essa capacidade de argumentar e convencer era o que os atenienses mais desejavam, na medida em que mais se instalava a vida social, na polis.

A postura dos sofistas, demonstrando pouca preocupação com a verdade e muito mais com o argumento, levou Platão a colocar na boca de Sócrates um comentário sobre Protágoras, dizendo que "ele supõe saber alguma coisa e não sabe, enquanto eu, se não sei, tampouco suponho saber. Parece que sou um pouco mais sábio que ele exatamente por não supor que saiba o que não sei".

Como se pode perceber a preocupação dos sofistas é a argumentação e o convencimento do interlocutor. Por sua vez Sócrates/Platão estão preocupados com a verdade daquilo que se sabe ou do que se pode saber. Assim, a partir de Sócrates e Platão a filosofia se volta para uma de suas principais inquietações: a busca da verdade.




Neri de Paula Carneiro

Mestre em educação. Filósofo, Teólogo, Historiador




Outros escritos do autor:


domingo, 1 de agosto de 2021

Cidadania: a defesa do cidadão

Quem de nós ainda não se deparou com a palavra CIDADANIA? Entretanto, quantos de nós atentamos para o alcance e o significado dessa palavra? Que nos diz a constituição de nosso país a respeito de cidadania? E, afinal de contas, o que significa essa palavra?


Cidadão

A palavra nasce de Cidadão. Sua etimologia é latina, vem de “civitas”, que significa cidade. Ou seja, o cidadão é o morador da cidade. E era usada em oposição ao pagão, que era o morador do “pagus” (que nós chamamos de zona rural). Pagão, portanto é o homem do campo. E cidadão o homem da cidade.

Mas também está ligada ao mundo grego. Para esse povo, cidadão era o homem da pólis. O homem rico, nascido e morador em cada uma das cidades estado.

Tanto para os romanos como para os gregos o cidadão era o homem possuidor de direitos a serem defendidos pelo poder público, o Estado; e, ao mesmo tempo, uma pessoa com obrigações em relação à sua cidade.

Deve-se registrar, no entanto, que tanto entre os gregos como entre os romanos, a cidadania não era um privilégio de toda a população. Era um direito de poucos privilegiados pelas riquezas.

Em nossa sociedade cidadão não é somente o morador da cidade, mas sim todos os homens e mulheres da cidade e do campo. Além disso, esses habitantes, são detentores de direitos e deveres. Portanto já temos, aqui um avanço em relação ao conceito dos gregos e latinos. Lá o cidadão era o homem urbano. Para nós todas as pessoas são cidadãs.

Podemos dizer que cidadãos são homens e mulheres possuidores de direitos e deveres em relação a um Estado e aos demais habitantes desse Estado. O cidadão, portanto, só existe em relação a outros cidadãos. É inconcebível o cidadão isolado. E isso por um motivo simples: direitos e deveres somente existem quando as pessoas relacionam-se umas com as outras. Um indivíduo isolado não depende de direitos nem tem deveres, pois sua relação sempre será consigo mesma. O cidadão passa a existir na medida em que se relaciona com outras pessoas e esse grupo forma uma sociedade onde se manifesta a necessidade recíproca de respeito.


Cidadania

Agora podemos fazer uma inferência simples: sabendo que cidadãos são homens e mulheres com direitos e deveres em uma sociedade, a cidadania é condição ou a situação na qual o cidadão exerce seus direitos e deveres.

Ou seja, a cidadania, que tem a ver com o cidadão, também representa as condições e situações em que o cidadão realiza aquilo que lhe compete.

Como se pode notar, a cidadania implica na existência de direitos e deveres. Entretanto temos aí dois elementos a mais a serem notados: a relação com os direitos humanos e a dimensão ética. Ou seja, o exercício da cidadania ultrapassa o conceito meramente jurídico, para alcançar uma dimensão de consciência. Quer dizer, não basta ter direitos e deveres. É necessário ter consciência de sua existência e fazer questão de exercê-los.

A relação com os direitos humanos se estabelece na medida em que os Direitos Humanos, nem sempre foram uma prioridade das sociedades humanas ao longo da história. No mundo antigo a grande massa da população não gozava de proteção por parte dos dirigentes da sociedade. Isso ocorria porque o centro da sociedade eram os ricos, cabendo aos pobres e escravos apenas produzir.

Com o transcorrer dos séculos, vários grupos sociais foram se organizando em busca da defesa de seus direitos. Um exemplo disso foi a promulgação da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, no contexto da Revolução Francesa (a íntegra dessa Declaração pode ser acessada em: https://educacao.uol.com.br/disciplinas/historia/declaracao-dos-direitos-do-homem-e-do-cidadao-integra-do-documento-original.htm).

Na Assembleia Nacional Constituinte, os franceses, em 1789, aprovaram essa declaração que começa com as seguintes palavras:

“Os representantes do povo francês, constituídos em Assembleia Nacional, considerando que a ignorância, o esquecimento ou o desprezo dos direitos do homem são as únicas causas das infelicidades públicas e da corrupção dos governos, resolveram expor, numa Declaração solene, os direitos naturais, inalienáveis e sagrados do homem...”

Logo em seguida, no artigo primeiro, dessa Declaração podemos ler:

“Os homens nascem e vivem livres e iguais em direitos. As diferenças sociais só podem ser fundamentadas no interesse comum.”

Notemos a consciência da importância do ser humano, nessa Declaração, ao afirmar que a “IGNORÂNCIA”, o “ESQUECIMENTO” e o “DESPREZO” aos direitos dos seres humanos são as “ÚNICAS CAUSAS DAS INFELICIDADES”.

Para superar isso e, consequentemente promover a felicidade é que se estabelecem as normas com os direitos dos cidadãos. Entre os quais e em primeiro lugar está a liberdade. Ou seja, os demais direitos – e também os deveres – decorrem da liberdade.

Por isso e para preservar a liberdade, contra a arbitrariedade dos governantes e outras autoridades, os franceses estabeleceram o princípio da superioridade da lei, como está no artigo sétimo dessa mesma Declaração:

“Nenhum homem pode ser acusado, preso ou detido senão quando assim determinado pela lei e de acordo com as formas que ela prescreveu. Os que solicitam, expedem, executam ou fazem executar ordens arbitrárias devem ser punidos. Mas todo homem intimado ou convocado em nome da lei deve obedecer imediatamente: ele se torna culpado pela resistência”.

Em 1948, após a II Guerra Mundial, a Organização das Nações Unidas (ONU) em sua Assembleia Geral aprovou a Declaração Universal dos Direitos Humanos (cuja íntegra pode ser acessada em: https://educacao.uol.com.br/disciplinas/historia/declaracao-universal-dos-direitos-humanos-texto-integral.htm), na qual estabelece os princípios para a defesa do ser humano contra excessos dos poderosos, como o exemplo recente dos horrores do nazismo contra algumas minorias.

Em defesa do ser humano a ONU, no preâmbulo dessa Declaração, já afirma alguns princípios: o reconhecimento da “dignidade” e igualdade entre as pessoas faz crescer a liberdade, a justiça e a paz no mundo.

Eis o que dizem as duas primeiras considerações dessa Declaração:

“Considerando que o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e de seus direitos iguais e inalienáveis é o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo;

Considerando que o desprezo e o desrespeito pelos direitos humanos resultaram em atos bárbaros que ultrajaram a consciência da Humanidade e que o advento de um mundo em que os homens gozem de liberdade de palavra, de crença e da liberdade de viverem a salvo do temor e da necessidade foi proclamado como a mais alta aspiração do homem comum.”

Note-se que os dirigentes das nações reunidos na ONU, afirmam que desprezar e desrespeitar os direitos humanos resultam em “ATOS BÁRBAROS’. Ou seja, tanto a Declaração dos Franceses como da ONU reconhecem a importância do cidadão e exaltam seus direitos. E, portanto, a defesa dos direitos da pessoa, bem como cada pessoa se empenhar na busca de seus direitos é uma forma de exercício de cidadania.

Essas duas Declarações nos colocam diante da nossa Constituição (que pode ser acessada na integra em: https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/518231/CF88_Livro_EC91_2016.pdf).

Nossa lei maior também se fundamenta na defesa do ser humano. Logo no artigo primeiro podemos ler que vivemos num país constituído com base no “Estado Democrático de Direito”. E esse Estado tem como fundamento: “I–a soberania; II–a cidadania; III–a dignidade da pessoa humana; IV–os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; V–o pluralismo político.”

Mas, pode-se perguntar, qual a fonte desses fundamentos? No parágrafo único do primeiro artigo está a explicação: “Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.”

Ou seja, as autoridades não existem para outra coisa que não seja a defesa dos direitos do povo. As autoridades não existem para si, mas para o povo.

Por isso, no artigo terceiro da nossa Constituição estão previstos os “objetivos fundamentais”, ou a razão de existir o Brasil. “I–construir uma sociedade livre, justa e solidária; II–garantir o desenvolvimento nacional; III–erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV–promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”

O exercício da cidadania, em nosso país, consiste nisso. E, também nisto se fundamenta a dimensão ética do exercício da cidadania. Ou seja, reconhecer e tornar público que no caso das autoridades não construírem ou não colaborarem com esses objetivos e esses fundamentos elas passam a ser ilegítimas e um atentado contra a cidadania. E, por outro lado, cabe aos cidadãos, fazerem um esforço para que estes direitos sejam instalados e, ao mesmo tempo, cobrar das autoridades o pleno cumprimento da lei maior do país, visando a plena proteção dos cidadãos.





Neri de Paula Carneiro

Outros escritos do autor:

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CICLO DA PÁSCOA: A vitória da vida.

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