quinta-feira, 23 de fevereiro de 2023

Quaresma - Vós não morrereis

(Reflexões baseadas em: Gênesis 2,7-9; 3,1-7; Romanos 5,12-19; Mateus 4,1-11)




“A serpente era o mais astuto de todos os animais dos campos que o Senhor Deus tinha feito”. Com essas palavras o livro do Gênesis apresenta a semente da maldade sendo plantada entre os seres humanos.

E com esse personagem a narrativa do Gênesis mostra o que é o ser humano e de que ele é capaz: um ser insaciável. Um ser que nunca se satisfaz com o dom já recebido. Um ser que está disposto a abrir mão de tudo que tem em busca de algo que, imagina, poderá ter…

Essa foi, de forma simbólica, a introdução do mal, no mundo humano. Não como uma recompensa pelo desenvolvimento do sentido da busca; nem como punição pela transgressão de uma norma… Mas sim, pela intenção que presente na proposta da serpente e pelo desejo de se apropriar do objeto dessa promessa: “vossos olhos se abrirão e vós sereis como Deus”.

Com certeza o Senhor teria perdoado o ato da transgressão. Como de fato perdoou pela graça oferecida na morte e ressurreição deJesus Cristo (Romanos 5,12-19). Por meio dele “a graça de Deus, ou seja, o dom gratuito concedido através de um só homem, Jesus Cristo, se derramou em abundância sobre todos.”

Sendo assim,é bom frisar que não foi o ato de comer o “fruto da árvore que está no meio do jardim”, nem o fato de que os olhos do primeiro casal se abriram quando dele comeram. O problema e a causa da instalação do mal no mundo foi uma intenção “Sereis como deuses” e uma falsa esperança: “Não morrereis”.

Ocentro da ação pecaminosa, portanto não se localiza no querer algo diferente. No querer algo a mais. Nem no ato de buscar algo a mais e diferente, pois o próprio criador, num outro momento, deu a ordem: crescer e dominar o mundo!

Entretanto, e essa foi a proposta enganosa do ser simbolizado na serpente, o desejo não era por algo mais apetitoso, mas por algo que a criatura jamais terá: transformar-se numa divindade enum ser imortal! É próprio da criatura, e o ser humano é criatura, a condição da finitude… com a ressalva de que esta é a condição para adentrar ao universo da divindade. A mote é o caminho para a vida em Deus!

Por isso foi que o casal do Gênesis, ao se deixar levar pelo engodo e ao se dar conta do erro percebeu-se nu. Uma nudez que não tem nada a ver com a roupa, mas com a limitação da criatura. Essa limitação, entretanto, é corrigidano gesto da entrega total de Jesus Cristo, como ensina Paulo: “Isso não quer dizer que o dom da graça de Deus seja comparável à falta de Adão! A transgressão de um só levou a multidão humana à morte, mas foi de modo bem mais superior que a graça de Deus, ou seja, o dom gratuito concedido através de um só homem, Jesus Cristo, se derramou em abundância sobre todos”.

Não cabe à criatura o querer ser deus, apropriando-se da imortalidade. Cabe ao ser humano deixar-se conduzir por Jesus a fim de, no momento oportuno, ser conduzido ao Criador. Não pelos méritos da criatura, mas pela graça do Criador.

Para poder desfrutar desse privilégio, no entanto, o ser humano tem que se afastar dos gestos e atitudes prepotentes. Foi o que fez Jesus de Nazaré (Mateus 4,1-11).

Mesmo fragilizado pelos quarenta dias de jejum, estava fortalecido pela oração. E, ao se defrontar com o tentador, agiu de forma diferente do casal do Gênesis. Lá eles viviam no paraíso, tinham tudo. Aqui, Jesus está no deserto. Não tem nada além de sua sintonia com Deus. Nada além de sua missão. Nada além de seu amor para com aqueles em favor dos quais se encarnou.

Lá no Gênesis, ao introduzir a maldade, o tentador oferece o que não podia dar: divindade e eternidade. Aqui, Jesus que é Deus, é eterno, tem todo poder… abre mão disso para se igualar aos seus. Assumindo a condição humana, sofre os dramas humanos. Primeiramente sofre a tentação, mas a supera, com base na força da oração. Sofre com a fome, para mostrar como isso desumaniza as pessoas e que a humanização consiste em criar condições para que todos se alimentem com dignidade. Sofre com o fato do poder religioso e político serem usados para a ostentação e não para o serviço.

Podemos dizer mais. Jesus de Nazaré sofre mais do que o ser humano, pois as pessoas pensam que cedendo à tentação terão aquilo que desejam. Jesus já sabe que ceder à tentação além de não alcançar o desejado e prometido pelo tentador, criará um abismo entre o criador e o destino final das pessoas. Ceder ao tentador implica em receber o oposto da promessa do tentador.

Então, para corrigir esse mal, cabe ao ser humano entregar-se, completamente ao plano de Deus. Somente assim poderá ouvir, não do tentador, mas do próprio autor da vida: Não morrereis!

Neri de Paula Carneiro.

Mestre em educação, filósofo, teólogo, historiador

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domingo, 19 de fevereiro de 2023

Cinzas: O Pai vê o que está escondido

(Reflexões baseadas em: Joel 2,12-18; 2 Coríntios 5,20 – 6,2; Mateus 6,1-6.16-18)




Os profetas sempre alertaram e continuam a nos chamar a atenção… mas nem sempre lhes ouvimos o aviso.

Sabendo disso a Igreja, que é sábia e também profética por vocação, retoma as palavras dos profetas, dos apóstolos e do próprio Jesus para nos alertar.

E qual o alerta de hoje?

Trata-se de um convite do Profeta Joel (2,12-18). Um convite da parte do Deus de misericórdia. O profeta chama, convidando o povo a retornar ao convívio com Deus. Mas um retorno de todo o coração. Um convite para voltar ao Senhor com o coração e não com gestos exteriores. Convite para rasgar o coração e não as vestes, pois as vestes rasgadas não representam as verdadeiras intenções que cada pessoa carrega no coração...

Esse processo de conversão, indicado pelo profeta, tem um objetivo: receber o perdão pelos erros praticados, cotidianamente pelos indivíduos e pela nação; os pecados que geraram o afastamento do Senhor, e por isso todos estão ameaçados. É necessário voltar para Deus a fim de receber de volta seu perdão. Afinal “ele é benigno e compassivo, paciente e cheio de misericórdia, inclinado a perdoar” (Jl 2,13).

Assim como o profeta, Paulo (2 Coríntios 5,20 – 6,2) também cobra uma nova postura. Afirma o apóstolo que chegou o tempo de reconciliação. Por que? Porque Jesus de Nazaré inaugurou um novo tempo. Por isso é que “hoje é o dia da salvação”.

A vida de Cristo, sua entrega na cruz e sua ressurreição, não foram somente uma caminhada de Deus com as pessoas. Foi muito mais! Jesus foi e continua sendo aquele que nunca cometeu pecado. Nasceu e permaneceu puro, a nos mostrar o caminho. Entretanto, “Deus o fez pecado por nós, para que nele nós nos tornemos justiça de Deus”. E com isso a redenção foi oferecida e está à disposição de todos. Para isso é preciso apenas seguir a proposta de Paulo: “deixai-vos reconciliar com Deus” (2Cor 5,20-21).

Com isso vamos nos dirigir ao encontro com as palavra de Jesus: vigilância! (Mateus 6,1-6.16-18).

Um convite como aquele feito pelo profeta ao convidar “voltai para o Senhor”; “Voltai parra mim!”... Um convite na forma que Paulo propõe: “nós vos exortamos a não receberdes em vão a graça de Deus,”… Mas Jesus faz o convite com muito mais intensidade: cobra a vigilância constante em relação às atitudes: “Ficai atentos para não praticar a vossa justiça na frente dos homens, só para serdes vistos”; cobra vigilância na hora de dar esmola, o que deve ser feito na simplicidade evitando a ostentação “para serem elogiados pelos homens”; vigilância na atitude orante: no silêncio do quarto para conversar na intimidade com o Senhor; vigilância no ato de jejuar, para que seja um gesto de solidariedade com quem passa fome…

Este é o grito profético de Jesus: Realizar grandes coisas, mas de forma simples, sem fazer alarde, sem buscar a auto promoção, sem buscar os holofotes dos elogios… pois esses que assim procedem “já receberam a sua recompensa”.

O grito da profecia, hoje,tem um destino, apontado pela voz profética da Igreja: uma dor produzida pela sociedade. A direção para onde o chamado profético da Igreja quer os nossos olhos e nosso compromisso é um drama social, construído pela sociedade. O alerta da profecia, que ressoa cobrando nossa conversão, tem um só destino: a fome institucionalizada.

Esse é o pecado pelo qual nossa sociedade tem que pedir perdão. O drama da fome instalada, de forma estrutural e conjuntural, em nossa sociedade, é o pecado que clama aos céus. Esse é o nosso pecado… e não adianta dizer que “eu colaboro com cestas básicas”; não adianta dizer que “eu dou esmola quando o pedinte me interpela”; não adianta dizer… mesmo esses gestos ainda são insuficientes.

Nos dias atuais, dar esmola, fazer jejum, colaborar em campanhas assistenciais, mesmo sendo atitudes necessárias, ainda não são o gesto de “rasgar os corações”; esses ainda são gestos de apenas “rasgar as roupas”. Diante do pecado da nossa sociedade, os gestos assistenciais e solidários não mudam nem colocam um ponto final nas causas do problema.

O grito e o alerta da profecia, para nossos dias, exige conversão das estruturas que geram a fome. Exigem reconciliação com Deus da sarjeta social, econômica… cobrando nossa ação a fim de eliminar as causas das dores. Essa é a atual exigência. Para essas atitudes é que está olhando o Pai, aquele que “vê o que está escondido e dá a recompensa”.

Neri de Paula Carneiro.

Mestre em educação, filósofo, teólogo, historiador

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quinta-feira, 16 de fevereiro de 2023

Sois de Cristo e Cristo é de Deus

(Reflexões baseadas em: Levítico 19,1-2.17-18; 1 Coríntios 3,16-23; Mateus 5,38-48)




Hoje Jesus faz algumas afirmações que podem desconcertar algumas pessoas. São, no mínimo, intrigantes. Principalmente em relação à resposta aos malvados (Mt 5,38-48).

Dá até a impressão que Jesus tem bons olhos para com o malandro! Dá a impressão que Jesus quer que a gente passe por medroso, incapaz de enfrentar as agressões…

Será que realmente é pra deixar as coisas correrem, sem reação?Deixar o malvado levar vantagem? Quer dizer que em vez de reagir, deve-se entrar em sua “onda” da maldade?

Notemos que Paulo não é diferente (1 Cor 3,16-23). Propõe abrir mão da sabedoria, dizendo que essa sabedoria é insensatez… Se os nossos saberes são insensatez, em que consiste a sabedoria? Será que nossos saberes realmente são inúteis?

E, pra complicar ainda mais, o Levítico (19,1-2.17-18) vem dizendo que não devemos nos ocupar com vingança!

Onde vamos parar com isso?

Na verdade não vamos parar! Vamos é entrar no coração da mensagem cristã. Mensagem que consiste não em responder o mal com o mal; não em dar o troco, pela ofensa ou mal recebidos; não em alimentar o ódio, a ira, o sentimento agressivo… pelo contrário.

Por que? Porque se respondermos na mesma proporção, pagando a agressão com outra agressão, estaremos descendo ao nível do agressor.

A proposta, que vem de Deus, é dar um passo adiante,ir além. Se queremos uma sociedade de paz, amor, prosperidade, solidariedade… precisamos dar passos nessa direção.

Nisso consiste a verdadeira sabedoria. Não é sábio quem se limita a repetir os valores cotidianos! Não é sábio quem, ao ser agredido, reage com outra agressão! Não é sábio guardar rancor ou alimentar a sede de vingança! E, também, não se trata de ser conivente com o mal, mas de abrir espaço para o perdão àquele que se arrepende do mal praticado.

Mas por que isso?Por que perdoar, o maldoso, se fez tanto mal? Porque é esse o princípio das coisas de Deus. Veja o que Paulo diz à comunidade de Corinto: “Acaso não sabeis que sois santuário de Deus e que o Espírito de Deus mora em vós?” (1Cor 3,16).

Qual o significado disso? Cada pessoa é um ser onde Deus faz sua morada. E isso implica dizer que toda agressão é uma agressão ao próprio Deus que ali reside. Se reagimos a uma agressão com outra, além de descermos ao nível do agressor, estaremos agredindo o Espírito de Deus que vive naquela pessoa… mesmo esse agressor não se dando conta disso. Trata-se de combater o mal, sim, com todas as forças… mas oferecer misericórdia para com aquele que se arrepende do mal praticado… e não se trata apenas de dizer que está arrependido. Trata-se de corrigir o mal feito! Falar que está arrependido sem nada fazer para reparar o mal feito, não é arrependimento!

E o apóstolo diz mais. Não vale a pena buscar a glória mundana, que é vã, pois é passageira. Não vale a pena buscar nada que ostente e seja só aparência, pois o que realmente importa já nos pertence. “Tudo vos pertence”, ele afirma. E diz isso de forma magistral, afirmando que tudo nos pertence, mas nós pertencemos a Deus “o mundo, a vida, a morte, o presente, o futuro; tudo é vosso, mas vós sois de Cristo, e Cristo é de Deus” (1Cor 3,22-23).

Sendo assim não tem sentido entrar em atrito, buscar vingança, causar dor e violência. Ao fazer isso, nos equiparamos ao agressor, agredimos a nós mesmos e agredimos aquilo que a Deus pertence… sem levar em conta o fato de que o importante já é nosso!

Então qual é o sentido de oferecer a outra face e entregar o manto, como ensina Jesus?

Trata-se de uma denúncia! Trata-se de mostrar que as pessoas não estão valorizando o que possuem. A agressão é a afirmação da desvalorização do outro: quem ama não agride. Pode até se irritarcom atos da pessoa amada, mas busca o diálogo para resolver a contenda. Quem deseja tomar o que ao outro pertence não valoriza o que possui. Valoriza e apega-se ao que é do outro sem valorizar o que é seu! Vive insatisfeito e por isso não é feliz: não é feliz com o que já tem e constrói infelicidade porque quer tirar o que ao outro pertence!

O passo além, que Jesus cobra de nós, é ultrapassar o gesto que todos fazem. É fazer aquilo que ultrapassa as convenções. É fazer algo que provoca a indagação sobre o porquê daquilo estar sendo feito. Cumprir as convenções, agir como todos agem, dizer o que todos querem que seja dito … não tem mérito nenhum. É só formalidade ou falta de personalidade!

Ao cristão, Jesus de Nazaré lança o desafio: ir além!E por qual motivo? Porque não nos pertencemos. Somos de Cristo. E, como Cristo é de Deus, somos a obra prima do Criador!




Neri de Paula Carneiro.

Mestre em educação, filósofo, teólogo, historiador

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quarta-feira, 8 de fevereiro de 2023

O que for além disso vem do Maligno

(Reflexões baseadas em: Eclesiástico 15,16-21; 1 Coríntios 2, 6-10; Mateus 5,17-37)




O Plano de Deus, a nosso respeito é dinâmico. Não porque haja alguma mudança nos Planos do Senhor, mas porque nossas atitudes podem mudar a qualquer momento. Podemos estar trilhando os caminhos do Senhor e nos desviarmos; ou podemos estar andando nas trevas e nos voltarmos para a luz de Deus. Ou seja a proposta divina é a mesma, mas a nossa postura em relação a ela, pode ser diferente.

Nossa inconstância em relação ao que Deus nos propõe é o fato de que,além de nos amar, e como prova de amor, Deus nos deu liberdade! Liberdade até para virarmos as costas para Ele. A liberdade de aderirmos ou não ao seu projeto de Salvação.

Isso é o que a Igreja nos propõe,hoje, ao nos propor a leitura desta síntese de sabedoria divina no Livro do Eclesiástico (15,16-21). Ao constatar que a liberdade concedida nasce do amor e da sabedoria divina, como o afirma Paulo, na carta aos Coríntios (1 Cor 2, 6-10).

Em nome da liberdade, do amor e em vista do pleno cumprimento da Lei, Jesus aperfeiçoa os mandamentos (Mateus 5,17-37). Não os abolindo, mas radicalizando-os. Tirando-os da formalidade e da exterioridade para manifestá-los na consciência.

O Eclesiástico chama nossa atenção para as diferentes oportunidades, diante das quais somos levados a fazer escolhas. As situações da vida nos colocam diante de escolhas entre: “fogo e água”, diante da “vida e da morte” e do “bem e do mal”. Frisando a possibilidade da escolha, diz o Eclesiastes: “Para o que quiseres, tu podes estender a mão” (Eclo 15,17).

Mas toda escolha tem consequências. E o Senhor acompanha nossas escolhas, pois seus olhos “estão voltados para os que o respeitam.Ele conhece todas as obras do homem. Não mandou a ninguém agir como injusto e a ninguém deu licença de pecar.” (Eclo 15,20-21).

Sabendo que o mandamento de Deus é o amor, de onde vem, então, o mal que se expande entre as pessoas, em nosso mundo?

Evidentemente não vem de Deus nem é essa sua proposta!

Paulo nos ensina que a sabedoria divina não é a mesma que as pessoas tanto admiram e procuram. Esta,é mundana e o apóstolo afirma estar condenada à destruição. Essa sabedoria do mundo, ou seja, a “sabedoria dos poderosos deste mundo, que, afinal, estão votados à destruição”, é o oposto ao dom de Deus. A sabedoria de Deus não está acessível aos poderosos pois eles, baseados em seu poder, imaginam-se sábios. Eles não compartilham do dom “que, desde a eternidade, Deus destinou para nossa glória. Nenhum dos poderosos deste mundo conheceu essa sabedoria” (1Cor 2,7-8).

E por não tê-la conhecido, aqueles que se consideram senhores do mundo, que ditam as regras no mundo, que se sentem melhores que os demais… estes vivem de e na aparência. Até frequentam as igrejas. Podem até produzir algum ato de caridade… mas tudo que fazem está baseado no aparência. Fazem para serem notados. Essa bondade, essa caridade interesseira não é dom de Deus. É o oposto ao que Deus propõe. Ela vem do Maligno!

Por isso Jesus nos ensina: toda maldade que se alastra a partir dos comportamentos das pessoas é só uma face do mal. O ato de fazer coisas negativas, maldosas; o ato de espalhar discórdia e ódio; o ato de fazer crescer a injustiça, o egoísmo, a ganância, a sede pelo poder, as falsas aparências… tudo isso é consequência do mal que está no ser humano. O mal, portanto está na intenção de praticar o ato.

Ter planejado o mal, mas não tê-lo executado, pode livrar da penalidade da lei, que pune os atos praticados. Mas a fé cristã, o ensinamento do Senhor Jesus vai muito além. Para a fé cristã, o pecado está no planejamento do mal, no querer fazer, no desejo de fazer… mesmo que o ato não se realize.

Por isso o Senhor ensina que o mandamento de “Não matarás” é muito mais radical, pois “todo aquele que se encoleriza com seu irmão será réu em juízo” (Mt 5,22). Mais ainda, a verdade cristã dispensa o juramento, a testemunha… Nisso reside a verdade no universo da fé cristã; nisso consiste a liberdade na fé cristã… em poder afirmar ou negar algo sem necessidade de juramento ou do testemunho de outra pessoa.

Então, num mundo carcomido pela mentida, pela sede do poder, pelo poder da riqueza, pelas aparências… a simplicidade da proposta da fé cristã se resume em dois valores: Liberdade e Verdade. Contra o mundo das aparências o Senhor ensina: “Seja o vosso 'sim': 'Sim', e o vosso 'não': 'Não'. Tudo o que for além disso vem do Maligno” (Mt 5.37). Nada mais é preciso, além dessa verdade, que cresce livre na vida de quem crê...




Neri de Paula Carneiro.

Mestre em educação, filósofo, teólogo, historiador

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quarta-feira, 1 de fevereiro de 2023

Sal da terra e luz do mundo

(Reflexões baseadas em: Isaías 58,7-10; 1Coríntios 2,1-5; Mateus 5,13-16)




O tema da luz percorre a Palavra Sagrada.

A simbologia da luz e a sua presença na obra divina acompanha o ser humano desde o primeiro ato criador de Deus até as promessas e esperanças do Apocalipse.

E, em todas as suas aparições, a luz é um indicador de caminhos.

A luz aparece, ora como resultado da ação de Deus, dizendo: “faça-se a luz” ora é resultado das ações humanas. E hoje o profeta Isaías (58,7-10) nos faz entender que a luz a brilhar é resultado das boas realizações humanas, que edificam as pessoas…

Essas ações, diz o profeta, não só trazem benefícios para quem as recebe, mas retornam para quem as pratica.

Jesus de Nazaré (Mateus 5,13-16) faz a mesma afirmação: a luz de cada um é resultado de suas ações. Ela brilha, anunciando caminhos. Ela ilumina, mostrando direções. Ela está no alto, para que os demais consigam subir.

O profeta faz uma lista de ações luminosas: alimentar o faminto, acolher o desabrigado,proteger o desamparado. Esses gestos farão com que brilhe “tua luz como a aurora e tua saúde há de recuperar-se mais depressa” (Is 58,8).

O que ensina Jesus?

Diz para manter a luz acesa, em lugar alto, a fim de que as pessoas que dela necessitem possam encontrar o caminho. As boas obras, portanto, são a luz condutora, como o afirma o Mestre: “Assim também brilhe a vossa luz diante dos homens, para que vejam as vossas boas obras e louvem o vosso Pai que está nos céus” (Mt 5,16).

Mas, atente para um detalhe: Não se trata de obras assistenciais. Trata-se de revolver, remover, redirecionar, remodelar a sociedade. Trata-se de fazer uma revolução na sociedade. Trata-se de promover transformações nas estruturais sociais. Diz o profeta: “Se destruíres teus instrumentos de opressão, e deixares os hábitos autoritários e a linguagem maldosa” (Is 58,9). A condição para as melhorias pessoais passa pela ação transformadora na sociedade: “Se acolheres de coração aberto o indigente e prestares todo o socorro ao necessitado, nascerá nas trevas a tua luz e tua vida obscura será como o meio-dia” (Is 58,10). Ou seja, a “tua vida” será transformada, das trevas à luz, quando houver transformação em favor dos que necessitam.

Mais um detalhe. A postura em favor da destruição dos “instrumentos de opressão” exige uma condição ensinada por Paulo (1Cor 2,1-5). A ação transformadora não passa pela ostentação, tão ao gosto de quem se ocupa em “elevar-se” à vista dos outros, mas não se eleva aos olhos de Deus.

Essa condição leva o apóstolo a se apresentar a comunidade de Corinto como aquele que se afastou do “prestígio da sabedoria humana”, assumiu a postura de “fraqueza” de quem confia no Senhor e, principalmente, abriu mão dos “discursos persuasivos da sabedoria”. Tudo isso para que todos entendam que se existe poder deve ser o “poder de Deus”, se existe conhecimento deve ser o de “Jesus Cristo, e Jesus Cristo crucificado”, se existe sabedoria, esta deve ser manifestada pelo “poder do Espírito”. O critério, portanto, é a Trindade Santa.

Ao cristão, portanto, cabe o papel da luz. E em que consiste o ser luz?

Em levar adiante as propostas de Jesus Cristo, luz do mundo; em ser ponto de convergência; em ser sinal de difusão da Boa Nova; em ser agente de transformação social.

Consequentemente, não cabe ao cristão ofuscar os andantes. Não cabe alimentar uma espiritualidade divorciada da vida. Não cabe mostrar-se como se fosse a própria luz, pois a Luz é o próprio Deus.

E isso leva ao Sal da Terra. Essa é a função do cristão. Deve ser luz, para conduzir a Deus, mas na sociedade exercer a função do sal. Notando que o sal existe para realçar o sabor. O que conta não é o sal, mas o alimento que ele salga. E esse sabor só é percebido se existir sal na medida certa. Se for pouco, o alimento fica sem sal, sem sabor; se tiver muito, o alimento perde o sabor, fica imprestável…

Qual é, então a medida? Aquela capaz de construir uma sociedade sem uns que sofrem e outros que produzem sofrimento; uns com fome e outros produzindo fome pela concentração; uns sem casa, sem abrigo, sem saúde, sem perspectivas poque outros de tudo se apropriaram...

O cristão, sal da terra, age na sociedade para que esta seja temperada com amor, com justiça, com distribuição dos bens; com o esforço para a equidade e para a transformação das estruturas injustas, para a reconstrução do mundo com o modelo desenhado pela da Trindade.




Neri de Paula Carneiro.

Mestre em educação, filósofo, teólogo, historiador

Outros escritos do autor:



CICLO DA PÁSCOA: A vitória da vida.

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