sábado, 24 de abril de 2021

Páscoa 4 – O Bom Pastor e os filhos de Deus

(Reflexões a partir de: At 4,8-12; 1Jo 3,1-2; Jo 10,11-18)




O sentimento de um Pai em relação aos filhos quase sempre é mais facilmente perceptível do que dos filhos em relação ao Pai. Em diferentes oportunidades os filhos questionam e, por vezes, se rebelam em relação a orientações dos pais. Os pais, quase sempre, amam aos filhos de forma paciente procurando entender os motivos dos comportamentos dos filhos. Cabe aos pais, a missão de, além de gerar, também orientar a vida dos filhos. E, de fato, na maioria das vezes a relação pai-filho ocorre de forma amorosa e harmoniosa.

Essa é uma afirmação verdadeira em nossas relações cotidianas e muito mais verdadeira na relação com o Pai celeste. Na liturgia deste quarto domingo da Páscoa a Igreja nos mostra isso de forma muito transparente e nos convida a refletir sobre as atitudes condizentes à vida do cristão.

Na primeira leitura (At 4,8-12) em resposta aos questionamentos que lhes são feitos por terem feito o bem, Pedro explica o porquê de estarem curando o enfermo. Quase que completando a explicação de Pedro, na segunda leitura (1Jo 3,1-2) João afirma nossa filiação divina e as consequências disso. E, no trecho do Evangelho (Jo 10,11-18), Jesus apresenta-se como o Bom Pastor, levando-nos à conclusão de que ao cristão não resta alternativa: o amor do Pai por nós é tão intenso que nossa única opção é procurar fazer o que o Pai nos orienta, mediante a ação do Filho.

Sendo assim, da mesma forma que Pedro, deveríamos poder dizer, em todas as nossas atitudes e em relação a cada um dos nossos atos: isso que estamos realizando “é pelo nome de Jesus Cristo, de Nazaré” (At 4,10). Esse deveria ser nosso comportamento, mas eu nem me atrevo a indagar aos cristãos: tudo que estamos fazemos tem sido realizado em nome de nosso Senhor?

Sei que se perguntasse, muitos de nós, se fossemos dizer a verdade, não poderíamos afirmar que sim. Mas, já que a indagação nos deixaria embaraçados, vamos permitir que a pergunta permaneça em nossa consciência. Como naquela orientação dos moralistas: aquilo que não posso fazer diante das pessoas, também não me é licito fazer sozinho e tudo que posso fazer sozinho não preciso ter receio de dizer ou realizar diante das pessoas.

Noutras palavras: por adoção divina e pelos méritos do sangue de Jesus, recebemos uma dádiva que dos dá o direito “de sermos chamados filhos de Deus! E nós o somos!” (1 Jo 3,1). Isso significa que, sendo filhos de Deus, cabe a nós trilharmos os caminhos do Pai e realizarmos as obras de Jesus. Por que? Porque somos filhos daqueles que nos indica o melhor caminho: “Caríssimos, desde já somos filhos de Deus, mas nem sequer se manifestou o que seremos! Sabemos que, quando Jesus se manifestar, seremos semelhantes a ele, porque o veremos tal como ele é” (1 Jo 3,2).

Deus nos oferece a graça de o contemplarmos, mas cabe a nós optarmos pelo encontro. E a trilha segura para esse encontro é realizarmos as obras que Ele nos ensinou a fazer. Desenvolver nossas atividades “pelo nome de Jesus Cristo, de Nazaré” é optar por aquele que foi rejeitado. “Jesus é a pedra, que vós, os construtores, desprezastes, e que se tornou a pedra angular” (At 4,11).

Talvez por isso tão poucos, dos que se fazem chamar de cristãos, realmente agem como tal. Ou seja, realizar as obras de Jesus, fazer tudo em seu nome … tem consequências: os adversários do Reino costumam perseguir aqueles que se doam em nome do Senhor. Mas, por outro lado, aqueles que seguem os passos do Mestre podem viver com esta certeza: “Em nenhum outro há salvação, pois não existe debaixo do céu outro nome dado aos homens pelo qual possamos ser salvos” (At 4,12).

Isso é o que nos possibilita entender o porquê de Jesus se apresentar como Bom Pastor. Qualquer um pode pastorear o rebanho. Qualquer um pode repetir o nome do Senhor. Qualquer um pode alardear que está fazendo isso e aquilo em nome do Senhor. Qualquer um pode dizer que faz milagres em nome do Senhor … e dizendo isso podem enganar a muitos. Mas se qualquer um desses não mostrarem, por atos no dia a dia, os comportamentos do Bom Pastor… esses podem ser tudo, menos obreiros do Senhor.

Não importa nossa confissão religiosa. Não importam nossas opções políticas. Não importa a quem dedicamos nossas predileções, em relação aos líderes que nos querem representar. Se eles não passarem no teste do Bom Pastor, podem ser representantes do anticristo, mas não são enviados do Senhor. E o teste é simples: os enviados do Pai podem dizer com seus atos: “Eu sou o bom pastor. O bom pastor dá a vida por suas ovelhas.” (Jo 10,11). Aqueles a quem admiramos, são capazes de dar a vida por nós ou só querem nos explorar? Se este for o caso, esse farsante é um “ mercenário, que não é pastor e não é dono das ovelhas, vê o lobo chegar, abandona as ovelhas e foge, e o lobo as ataca e dispersa. Pois ele é apenas um mercenário e não se importa com as ovelhas.” (Jo 10,12).

Somente o Bom Pastor nos ajuda a seguir o caminho seguro para nos reconfortarmos nos braços daquele nos adotou como filhos. Só o bom Pastor nos transforma em filhos de Deus.




Neri de Paula Carneiro

Mestre em educação, filósofo, teólogo, historiador.

Outros escritos do autor:

Filosofia, História, Religião: https://www.webartigos.com/index.php/autores/npcarneiro

Literatura: https://www.recantodasletras.com.br/autores/neripcarneiro

quarta-feira, 21 de abril de 2021

Um Rock para o dia das mães

Ainda estava muito longe o dia das mães, quando ela me localizou no facebook e enviou-me uma mensagem dizendo: “Sempre gostei desta música” e anexou um vídeo em que um grisalho B. J. Thomas cantava: “Rock and roll Lullaby”: “She was just sixteen and all alone / When I came to be...” (Se quiser ouvir: https://www.letras.mus.br/bj-thomas/40154/traducao.html)

Abri o link e ouvi a música, outra vez nos tempos de escola. Na minha lembrança o tom ainda era como que uma mistura de saudade e romantismo. Na realidade eu me vi e revivi em nossa juventude e nossa convivência juvenil. Tudo fora tão intenso que, ao lembrar, ouvindo a música, quase podia sentir o mesmo perfume.

Respondi que também gostava daquela música. Que ela tem um ritmo gostoso e meio que suave. Bom de ouvir. Viajei no tempo e lembrei que já naquela época sempre defendia os artistas nacionais e a música popular brasileira. Em minha discoteca não faltava Raul Seixas, Rita Lee, Belchior, Sílvio Brito, Ze Ramalho… e outros que embalavam a reflexão nas letras que conseguiam burlar a censura… eram tempos de ditadura!

Mas naquela época, e ela sabia disso, também ouvíamos Beatles, Lobo, Élvis Presley… e B. J. Thomas, entre outros que já estão quase apagados na memória… entretanto se a gente procurar, os encontra vivos na internet, contando com a mesma jovialidade na terra de ninguém...

E antes que eu me desse conta do sentido para além do artístico, que fica escondido e se revelando na letra da canção, ela completa a mensagem: “Nunca me preocupei em saber a tradução, mas sempre gostei da melodia”. E foi aí que me dei conta de que também não me havia atentado pela tradução da música que fizera tanto sucesso no início dos anos 1970 e que minha amiga enviara num gesto de antiga amizade realimentada na segunda década do século XXI.

Além de revê-la na memória, rememorei os outros colegas do nosso grupo, da mesma época. E, enquanto ouvia a música, fiz uma rápida busca. Localizei uma tradução para “Rock and roll Lullaby”. Em português soa meio estranho: Rock and roll para ninar… Só aí percebi que não é um rock romântico, algo como “Love-me tender”, do Élvis. Era uma canção de ninar!

Não uma canção de ninar de uma mãe acalentando ao filho, mas uma canção de um filho que reconhece, além do carinho, a doação de vida e o sofrimento e as dores e as esperanças e os sonhos de uma mãe: “She was just sixteen and all alone, when I came to be. So we grew up together, my mama child and me”. “Ela tinha apenas 16 anos e completamente só, quando eu apareci. Então nós crescemos juntos, minha mamãe criança e eu”. Não é lindo?

Uma criança gerando e cuidando e amando outra criança que dela nascera… uma criança gerando uma vida criança, uma mãe sozinha: “Now things were bad and she was scared, but whenever I would cry she'd calm my fears and dry my tears”. “Agora as coisas estavam ruins e ela estava assustada, mas sempre que eu chorava ela acalmava meus medos e enxugava minhas lágrimas”. Nem precisava de tantas palavras, poderia afirmar toda essa doação numa palavra: Mãe!

Como essa mãe-criança acalentava seu filho? Ela cantava! Essa criança consolava sua criança “with the rock and roll lullaby”. Ela acalmava o bebê “com um rock and roll de ninar”. Como se vê, ela acalentava não só em seu colo. Não só com seu carinho. Não só com seu amor, não com uma canção qualquer, mas “com um rock and roll de ninar”.

E aí me pus a lembrar e a analisar e comparar… o valor da vida dessa mãe-criança, da canção. Não deu pra não olhar como algumas mães tratam seus filhos em nossos dias, em nossa sociedade. Não são poucas as notícias de bebês encontrados no lixo, abandonados… ou mães que matam seus filhos e apoiam seus maridos assassinos… exploram a prostituição das filhas… percebi como tudo isso está distante daquele rock para ninar.

Na canção o filho agradece e reconhece o que recebeu da mãe. Ele sabe e reconhece o que ela fez por ele: “You made it through the lonely days”. “Você conseguiu atravessar aqueles dias solitários”. Com certeza essa mãe sofreu não tanto pelas suas privações, mas porque naquele momento não podia oferecer ao filho o que precisava, aquilo que sonhava. Ele sabe que o amor da mãe não tem limites. É um reflexo do amor de Deus. E ele agora canta esse reconhecimento: “‘Cause I just knew lots of love came thru in that rock and roll lullaby”. “Pois eu só sabia que muito amor vinha através daquele rock and roll de ninar”

Além de pensar a respeito da música, a música fez-me pensar em nós. Já que não é dia das mães: que tal vivermos cada dia uma sucessão de dia das mães? Talvez assim o comércio não mercantilize o amor. Talvez assim a doação não seja só ocasião de lucro. Talvez assim possamos reacender, redescobrir, reencontrar o valor da vida, tão negligenciada…

Ao ouvir a música enviada por ela, pensei mais. Recordei mais. Revivi momentos… na juventude. Também pensei nas mães, pensei num rock para o dia das mães, que são todos os dias.

Neri de Paula Carneiro

Mestre em educação, filósofo, teólogo, historiador

Rolim de Moura - RO

sábado, 17 de abril de 2021

Páscoa 3 - Sereis minhas testemunhas

(Reflexões baseadas em: At 3,13-15.17-19; 1Jo 2,1-5a; Lc 24,35-48)





O dia da Páscoa já passou. Mas o ambiente pascal permanece neste terceiro domingo do Tempo da Páscoa. Já se passaram vários dias. Já voltou a normalidade para a maioria das coisas. Já começam a cicatrizar as feridas da dor, da perda, da ausência. Já começa a aparecer a cicatriz...

Mesmo tendo ouvido algumas mulheres anunciando que o corpo não estava no túmulo, a incredulidade permanecia. Mesmo tendo ouvido o mestre por sucessivos dias e o acompanhado por diversos locais, a dificuldade em entender permanecia. Mesmo tendo visto as maravilhas que o Senhor havia realizado… a fé ainda não havia se manifestado!

E, junto com tudo isso… o medo ainda permanecia… Eles o mataram… aqueles que assassinaram o Senhor podem nos perseguir… será que nos matarão também?

Inquietos estavam os corações! Mas oravam! Tranquilidade e paz era o que, realmente, não sentiam! Mas estavam unidos! Queriam ter coragem com as mulheres tiveram! Mas o medo era maior!

E, afinal, quem não ficaria com medo? Quem não pensaria em se esconder e trancar as portas? (Lc 24,35-48) Quem não ficaria receoso de acreditar e não colocaria em dúvida, quando dois companheiros narrassem uma história meio estranha de ter visto o Senhor e ter com ele compartilhado o pão?…

Então dá pra imaginar o susto. Dá pra imaginar o medo. Dá pra imaginar, também, a alegria e a inquietação quando, o Senhor se faz presente saudando: “A paz esteja com vocês!” (Lc 24,36).

A paz era o que mais queriam, mas não seria um fantasma? (Lc 24,37)

Entretanto, aquela voz! Aquelas mãos! Aqueles pés! A voz transmitia a mesma paz! Nas mãos e os pés os mesmos sinais da violência na cruz (Lc 24,39). Mas Ele havia morrido. Eles o haviam visto morrer na cruz! Então como estava ali entre eles? Eles queriam acreditar. Queriam entender. Queriam se alegrar… mas a dúvida e o medo permaneciam…

Foi aí que Ele disse: “São estas as coisas que vos falei quando ainda estava convosco: era preciso que se cumprisse tudo o que está escrito sobre mim na lei de Moisés, nos Profetas e nos Salmos” (Lc 24,44). Não somente falou, mas também: “Abriu a inteligência dos discípulos para entenderem as Escrituras” (Lc 24,45).

Agora sim! Agora ficou tudo claro! Agora a coragem se instalou! Agora o medo cedeu e ganhou força a vontade e a necessidade de anunciar!

E foi o que eles fizeram. Abriram as portas e Pedro falou ao povo: “O Deus de Abraão, de Isaac, de Jacó, o Deus de nossos antepassados glorificou o seu servo Jesus” (At 3,13). E João confirma “Ele é a vítima de expiação pelos nossos pecados, e não só pelos nossos, mas também pelos pecados do mundo inteiro” (1Jo 2,2)

Pedro acusa os acusadores de Jesus. Mostra o que fizeram: Entregaram-no, rejeitaram-no, pediram a morte de santo e a libertação do assassino (At 3,13-14). Mesmo demonstrando o tropeço do povo, Pedro acena para a bondade de Deus demonstrando que esse povo foi manipulado para rejeitar o caminho da paz: “eu sei que vós agistes por ignorância” (At 3,17). E se agiram por ignorância, incitados por outros, são convidados ao arrependimento. Entretanto, aqueles, inclusive em nossos dias, que atentam contra a vida da sociedade, têm o mesmo pecado daqueles que o crucificaram.

Aqueles que o crucificaram continuam agindo, hoje, como agiram lá. Os tempos são outros, mas os gritos mentirosos são os mesmos. Os que continuam assassinando o Senhor são aqueles que, investidos de poder, político ou religioso, poderiam se concentrar em salvar vidas, preservar a saúde… mas permanecem numa disputa mesquinha e em mútuas acusações de irresponsabilidade, quando a irresponsabilidade consiste em ter o poder de melhorar a vida das pessoas e não o fazer. Desde o mais alto posto, politico ou religioso, até as bases nas pequenas comunidades, todos aqueles que não ajudam a defender a vida fazem parte do grupo que continua crucificando Jesus.

Pedro apresenta a proposta salvadora: “Arrependei-vos, portanto, e convertei-vos, para que vossos pecados sejam perdoados” (At 3,19).

E João explica as exigências da fé: “Quem diz: ‘Eu conheço a Deus’, mas não guarda os seus mandamentos, é mentiroso, e a verdade não está nele” (1 Jo 2,4). A condenação da difusão de notícias mentirosas valia naquele mundo em que nascia a Igreja e ainda vale nos dias atuais.

Os apóstolos, assumiram o mandato. Entenderam que Jesus Ressuscitado os orientou e os enviou, dizendo: “Assim está escrito: ‘O Cristo sofrerá e ressuscitará dos mortos ao terceiro dia e, no seu nome, serão anunciados a conversão e o perdão dos pecados a todas as nações, começando por Jerusalém’. Vós sereis testemunhas de tudo isso” (Lc. 24,46-48). Efetivamente os apóstolos entenderam a mensagem e se puseram a anunciar. Pedro confirma: “e disso nós somos testemunhas”. (At 3,16).

Como a missão ainda está em aberto, cabe a nós a continuação. A nós também é feita a proposta: “Vós sereis testemunhas de tudo isso”. Testemunho com base na fé. O tamanho da fé é o tamanho do testemunho.




Neri de Paula Carneiro

Mestre em educação, filósofo, teólogo, historiador.

Outros escritos do autor:

Filosofia, História, Religião: https://www.webartigos.com/index.php/autores/npcarneiro

Literatura: https://www.recantodasletras.com.br/autores/neripcarneiro

quinta-feira, 15 de abril de 2021

Filosofia e a possibilidade do conhecimento

A filosofia caracteriza-se pela atitude de busca. Mas o que busca a atitude filosófica? O saber, o Conhecimento! Indaguemo-nos, portanto sobre a possibilidade do conhecimento: É possível, efetivamente, “conhecer” algo?

Caso pedíssemos a duas pessoas para descreverem a mesma cena, será que ambas fariam a mesma descrição?

A experiência diz que não! As percepções não são únicas. Cada pessoa vê e descreve o que viu de forma única e diferente das outras pessoas. E sujeitas a erros ou equívocos, como sugere Descartes, no livro “Discurso do Método”: “pode ocorrer que me engane, e talvez não seja mais do que um pouco de cobre e vidro o que eu tomo por ouro e diamantes. Sei como estamos sujeitos a nos enganar no que nos diz respeito, e como também nos devem ser suspeitos os juízos de nossos amigos, quando são a nosso favor.”

O que isso nos indica? Que o processo do conhecimento é complexo. Demanda mais do que apenas ver algo. Exige o processo da reflexão, o exercício do pensamento.

Podemos dizer que uma das preocupações centrais do ser humano é a compreensão da realidade. Ou seja, conhecer o mundo (ou as diferentes manifestações da realidade), é um mecanismo que permite não só interferir naquilo que o mundo pode oferecer, como também exercer domínio sobre ele: conhecer é dominar.

Neste ponto surge uma questão: por que se deseja conhecer? Porque o desconhecido é assustador. O ser humano, entre outras coisas, é medroso. Dessa forma o desejo de dominar o medo impulsiona o homem na busca do conhecimento pois aquilo que é conhecido passa a produzir segurança, certeza. Nossos medos são mecanismos para superação do desconhecido; o medo é um dos propulsores da humanidade. E esta constatação leva à seguinte conclusão: ao longo da historia da humanidade o medo produziu deuses, religiões, filosofia e ciência!

O imperador romano, Marco Aurélio, em suas Meditações, afirmou que somos nós a causa do medo; não tememos, exatamente o que nos assusta, mas nossa opinião a respeito daquilo que nos assusta. Portanto temos medo não da coisa que assusta, mas de algo que está em nós: nossa compreensão a respeito do coisa em questão. Mas também depende de nós a superação da situação desconfortável. Como o desconforto – o medo – advém do desconhecido, a solução é o conhecimento.

Feitas estas considerações, alguém poderia perguntar: Onde entra a filosofia nesse processo? Ela é a ferramenta no processo da busca! O homem é um ser que busca e criou a filosofia com essa finalidade: ampliar seu universo de instrumentos de busca. E o que move a busca? Além do desconhecimento, o espanto, como diziam os antigos, ou a curiosidade, como dizemos hoje.

Voltemos, então, à indagação inicial: O conhecimento é possível? Sim, é possível. Não como algo pronto e acabado, mas como processo. O processo da aprendizagem não tem fim.

A capacidade de conhecer e saber utilizar os conhecimentos acumulados é um dos elementos definidores do ser humano. O conhecimento torna-se ferramenta de trabalho. A ação do homem no mundo, ou seja, seu trabalho, depende daquilo que sabe realizar. A busca e geração de mais conhecimento, portanto, pressupõe, além da busca formal (em escolas e cursos) o mundo do trabalho. O conhecimento é possível, não como algo espontâneo mas na proporção exata dos interesses daquele que deseja conhecer.

Sendo esse não um processo espontâneo nem estanque, mas intencional e dinâmico, ele depende da conjugação de alguns elementos: o espanto que gera as indagações e o interesse em responder às dúvidas; associação de ideias e informações novas às ideias já incorporadas e, principalmente, a reflexão que se caracteriza como processo pelo qual se transforma a informação em conhecimento.
No mundo em que estamos inseridos e no qual nos coube viver, as informações (verdadeiras e falsas) estão à disposição de quem as procura, no universo virtual. Mas a informação ainda não é conhecimento. Ela depende da vontade, do intelecto e das intenções para ser transformada em conhecimento…

Neri de Paula Carneiro.

Mestre em educação, filósofo, teólogo, historiador

Rolim de Moura – RO

Filosofia: o senso comum e o mito

Conhecer e produzir conhecimento é possível. E isso está intimamente relacionada com a filosofia que se caracteriza como uma atitude pela qual o ser humano busca novos conhecimentos.

Da mesma forma que a ciência, a filosofia tem como finalidade ampliar os conhecimentos existentes e essa ampliação é uma forma de produção. Na produção dos conhecimentos ocorre o processo da inovação e essas são atribuições da Filosofia e das Ciências. Entretanto, embora ande junto, a filosofia vai além da ciência. Enquanto a ciência demonstra o saber apontado pela filosofia, esta desenvolve um processo de crítica do conhecimento estabelecido pela ciência procurando determinar a legitimidade e a veracidade desse saber.

Com base nisso podemos dizer que uma das questões centrais da filosofia é o problema do conhecimento que caminha ao lado da possibilidade de acesso à verdade. Isso posto, precisamos ter em mente que a preocupação com o conhecimento não é exclusividade da Filosofia nem da Ciência. As pessoas se apropriam do saber pelo senso comum, pelos mitos, pela religião e, obviamente, por meio da filosofia e da ciência. A filosofia é a base do conhecimento científico, mas antes da filosofia e da ciência as pessoas interpretam o mundo e todas as realidades a partir do senso comum.

O senso comum, o ponto de partida para qualquer tentativa para explicar o que ainda é inexplicável, cria argumentos e se transforma em conhecimento e, nesse processo, deixa de ser senso comum para converter-se em mito, em religião, em filosofia ou ciência. Como, então, se caracteriza cada uma dessas modalidades de conhecimento no qual o senso comum transforma-se em mitos, religiões, filosofias e ciências?

Qual é o ponto de partida para o conhecimento? O medo do desconhecido. Se levarmos em conta que o desconhecido é assustador somos levados a afirmar que o medo impulsiona a busca pelo conhecimento e este confere poderes sobre o desconhecido. No processo do saber, o desconhecido assustador exige uma resposta. A primeira alternativa é encontrar meios de superar o medo. Essa alternativa vem do senso comum e dos mitos.

O senso comum que antecede a filosofia e a ciência, também está na base do conhecimento mítico e religioso. Qualquer realidade que se apresente ao intelecto passa, antes, pelo senso comum, pelo conhecimento comum.

Trata-se daquele conhecimento que todas as pessoas possuem, a respeito de um determinado fato ou fenômeno. Arcângelo Buzzi, no livro “Introdução ao pensar” explica o senso comum, dizendo que é “A interpretação ou a racionalidade que surge da necessidade de enfrentar fatos imediatos, da necessidade de resolver problemas propostos por interesses os mais diversos, quando feita sem qualquer prévia discussão, a chamamos de conhecimento ordinário, senso comum ou bom senso.

E de onde vem o conhecimento do senso comum, ou esse conhecimento ordinário, de que fala o autor? Vem do acúmulo tradicional dos saberes populares. Ou seja, a tradição se encarrega de produzir a sabedoria do povo. Não é necessário estudo, pesquisa, ou qualquer outra ferramenta teórica ou experimental: basta um povo que se constitua historicamente com sua cultura e teremos um saber fundamentado no bom senso.

No seu livro “Discurso do Método” Descartes afirma que o bom senso é o que existe de melhor distribuído entre as pessoas, pois ninguém diz que tem a menos ou a mais. Todos se dizem sensatos. Diz o pensador francês: “Inexiste no mundo coisa mais bem distribuída que o bom senso, visto que cada indivíduo acredita ser tão bem provido dele que mesmo os mais difíceis de satisfazer em qualquer outro aspecto não costumam desejar possuí-lo mais do que já possuem.”

Tão importante quanto o senso comum, o conhecimento Mítico também antecede ao filosófico e científico. Além disso, os mitos também não se prestam à comprovação experimental nem racional, como a ciência e a filosofia.

Como surgiu a necessidade de explicar a realidade? No fato de que o desconhecido nos assusta. A explicação, que é uma manifestação de um conhecimento, substitui o medo pela sensação de poder, de segurança, de domínio. O conhecimento permite dominar o desconhecido e, com isso, matar o medo uma vez que o conhecimento implica poder.

Nos primórdios da humanidade as realidades inquietantes, desafiadoras, assustadoras e complexas para os primeiros homens: tudo era completamente desconhecido, particularmente os fenômenos da natureza eram assustadores. Se em nossos dias a força da natureza nos assusta, podemos imaginar para os primeiro seres humanos que não dominavam as informações que hoje possuímos. Partindo disso, podemos admitir que nos primórdios o sentimento do ser humano em relação ao mundo era de medo. Essa situação de medo e insegurança produziu o mito. Diferentes deuses e credos foram criados com essa finalidade: possibilitar a sensação de segurança.O processo de criação de mitos perdurou até o advento da filosofia e da ciência. Ainda hoje somos levados a explicar miticamente aquilo para o quê não temos explicações lógico-filosófico-científica. As mais diferentes situações em que o homem atual se depara com o desconhecido é ocasião para o surgimento de um mito: uma explicação que transmita alguma sensação de segurança. “Reduzir uma coisa desconhecida a outra conhecida alivia, tranquiliza e satisfaz o espírito, proporcionando, além disso, um sentimento de PODER. O desconhecido comporta o perigo, a inquietude, o cuidado” afirmou Nietzsche, na obra “O crepúsculo dos ídolos”.


Neri de Paula Carneiro.

Mestre em educação, filósofo, teólogo, historiador

Rolim de Moura – RO

Filosofia: Idealismo e Empirismo

O conhecimento é possível, sem a menor dúvida.

Entretanto e para ocorrer depende e é resultante da mediações do intelecto que estabelece as relações entre o sujeito cognoscente que observa e o objeto observado, cognoscível. Portanto o conhecimento ocorre na relação do sujeito com o objeto. Essa relação, ou a necessidade de se compreender esse processo, é que se denominou de Teoria do Conhecimento.

Desde os tempos dos antigos gregos se desenvolve uma discussão a respeito de como se dá o processo do conhecimento. Formaram-se duas linhas de explicação. Uma é denominada de idealismo e a outra de empirismo.

A primeira, ou o Idealismo, se desenvolveu a partir de Platão, o qual afirmava que nosso mundo sensível, ou seja, este mudo em que estamos vivendo, é repleto de equívocos e as realidades com as quais convivemos podem nos conduzir a erros. Segundo ele, vivemos num mundo de aparências. Por esse motivo a verdade só é acessível em nível de ideias. Devemos nos voltar para o “mundo das ideias” porque elas não nos enganam. O idealismo foi desenvolvido por vários pensadores ao longo da história da filosofia.

A segunda, ou seja, o Empirismo, desenvolveu-se a partir dos ensinamentos de Aristóteles, afirmando que o conhecimento só é possível a partir da experiência. Nossos conhecimentos, dizia esse pensador, dependem do nosso contato com a realidade ou os fenômenos com os quais convivemos. Dos ensinamentos de Aristóteles vem a afirmação de que “nada entra no intelecto sem ter passado pela experiência”. Ou seja, não tem como ensinar a alguém o que é a dor de uma queimadora. Só sabe disso aquele que passou pela experiência de se queimar. O empirismo também teve inúmeros defensores até chegar aos nossos dias.

Em pleno movimento renascentista Renê Descartes em seu livro “Discuso do método”, propõe um avanço na explicação idealista. Juntamente com outros contemporâneos desenvolve-se a proposição de que a base do conhecimento é a demonstração matemática. Nesse contexto Galileu Galilei afirma que o universo organiza-se com base na linguagem da matemática, conforme a frase a ele atribuída: “O universo não pode ser lido até termos aprendido a linguagem e ficarmos familiarizardos com os caracteres em que está escrita. Está escrita em linguagem matemática, e as letras são triângulos, círculos e outras figuras geométricas, sem a qual significa que é humanamente impossível compreender uma única palavra.”

De outro lado, contra o idealismo cartesiano, insurge-se o empirismo, afirmando a essencialidade das impressões sensíveis. O conhecimento provém, portanto, da experiência. Por esse motivo enquanto o idealismo ou o racionalismo alimentam a especulação filosófica, o empirismo mobiliza o desenvolvimento da ciência.

E aqui apresenta-se como que um paradoxo. Vivemos num mundo movido pela ciência e tecnologia constatamos que a teoria (filosofia), por não ser passível de comprovação experimental perde espaço para aquilo que é comprovado ou demonstrado. Dessa forma, o fato ou a experiência, acaba se sobrepondo e assistimos à desvalorização da filosofia que põe em dúvida o fato.

Percebemos, assim que não há apenas uma forma de conhecimento e nem de se chegar ao conhecimento. Além e simultaneamente ao conhecimento filosófico e cientifico existem os conhecimentos do senso comum, da religião, e o conhecimento mítico.




Neri de Paula Carneiro.

Mestre em educação, filósofo, teólogo, historiador

Rolim de Moura - RO

quarta-feira, 14 de abril de 2021

O Filósofo é um amante

Entre as diferentes formas pelas quais se pode conceber a filosofia, uma delas é a afirmação de que ela pode ser apresentada como amor pelo conhecimento. Sendo assim o Filósofo é um amante! E, como atitude, ela não se limita a uma área do conhecimento. Ela, em sua atitude de busca, se envolve com todas as realidades a fim de lhes descobrir o significado.

Agora precisamos saber em que consiste a atitude filosófica?

Iniciamos entendendo o próprio processo do conhecimento. Trata-se de um movimento do intelecto. A realidade a ser conhecida é a mesma, mas os olhares sobre ela se diferenciam e se ampliam. Esses olhares produzem novos saberes. Portanto o conhecimento não se manifesta como algo estanque, parado, pronto e acabado. Ele é dinâmico e acontece no processo, justamente na medida em que o pensante se relaciona com o pensado.

Esse mesmo movimento podemos observar no amor, na amizade, na postura do amante. Uma relação amorosa, para ser saudável e duradoura, precisa renovar-se. Se um amigo não questiona os erros ou equívocos do outro, pode ser tudo menos amigo.

A dinamicidade do amor e o movimento caracterizam a filosofia como busca. Esse processo em busca do conhecimento assemelha-se à atitude dos amantes que se procuram e ao se encontrarem se renovam, fazendo com que o amor seja sempre juvenil e o saber sempre inovador. Daí que o processo é infindo (está em movimento, é dinâmico) pois todo fim acaba sendo um novo começo. Cada novo saber, cada nova descoberta, cada nova invenção, cada novidade (que é um ponto de chegada) lança o desafio sobre o que fazer em seguida, com aquele resultado... e isso é um novo começo.

E assim, se fossemos falar sobre o que é filosofia, poderíamos dizer que ela não é, como algo que já chegou ao ponto final, mas ela é o processo. Acontece no devir, no movimento do intelecto que se mantém em atitude de busca pela respostas às perguntas filosóficas. Isso é o que nos sugere J. Gaarder no livro “O Mundo de Sofia”, do qual tomamos emprestado o seguinte trecho:

"A melhor maneira de nos iniciarmos na Filosofia é colocar perguntas filosóficas:

Como se formou o mundo? Haverá uma vontade ou um sentido por detrás daquilo que acontece? Haverá vida depois da morte? Como podemos encontrar resposta para estas perguntas? E, acima de tudo, como deveríamos viver? Estas perguntas foram colocadas desde sempre pelos homens. Não conhecemos nenhuma cultura que não tenha perguntado quem são os homens e de onde vem o mundo. As perguntas filosóficas que podemos colocar não são muitas mais. Já colocamos algumas das mais importantes.

A história oferece-nos muitas respostas diferentes para cada uma destas perguntas. Por isso, é mais fácil formular perguntas filosóficas do que encontrar a sua resposta.

Mesmo hoje, cada um deve encontrar as suas respostas para estas perguntas. Não podemos saber se Deus existe ou se há vida depois da morte, consultando a enciclopédia. A enciclopédia não nos diz como devemos viver. Mas ler o que outros homens pensaram pode, no entanto, ser uma ajuda, se quisermos formar a nossa própria concepção da vida e do mundo.

Segundo um filósofo grego que viveu há mais de dois mil anos, a Filosofia surgiu da capacidade que os homens têm de se surpreender. O homem acha tão estranho viver, que as perguntas filosóficas surgem por si mesmas.

Pensa no que sucede quando observamos um truque de magia: não conseguimos perceber como é possível aquilo que estamos a ver. E perguntamo-nos: como é que o ilusionista conseguiu transformar dois lenços brancos de seda num coelho vivo?

Para muitos homens, o mundo parece tão inexplicável como o coelho que um ilusionista retira subitamente de uma cartola até então vazia. No que diz respeito ao coelho, percebemos claramente que o ilusionista nos enganou. O que pretendemos descobrir é como nos enganou.

Quando falamos sobre o mundo, a situação é diferente. Sabemos que o mundo não é pura mentira, uma vez que nós estamos na Terra e somos uma parte do universo. Na verdade, somos o coelho branco que é retirado da cartola. A diferença entre nós e o coelho branco é apenas o fato de o coelho não saber que participa num truque de magia. Conosco passa-se de modo diferente. Sentimos que tomamos parte em algo misterioso, e gostaríamos de esclarecer de que modo tudo está relacionado ( J.GAARDER).

Com isso voltamos à afirmação inicial: o filósofo é um amante. Arrisca-se em busca do saber porque o objeto de sua paixão é o desconhecido e o desconhecido não oferece segurança. E a filosofia encara o desconhecido ou o cotidiano com a mesma perspectiva: um olhar crítico. Sobre o desconhecido para dominá-lo; sobre o cotidiano para inová-lo. E faz isso a partir da observação e da reflexão: observando e refletindo o real.

Neri de Paula Carnero 
Mestre em educação; Filósofo; Teólogo; Historiador
Rolim de Moura - RO

A história dos cordeiros

Os cordeiros viviam felizes numa fazenda. Pastavam e andavam de um lado para outro.

Acreditavam que eram livres e felizes, pois assim se comportavam, correndo dentro do cercado que acreditavam ser sua casa.

Diariamente o pastor lhes alimentava, cuidava deles e todos seguiam o pastor. Ele os conhecia pelo nome e os chamava, conduzindo-os para onde achava conveniente.

Todos os dias os cordeiros entravam na fila, dirigindo-se ao cercado, onde o pastor os alimentava e medicava, se necessário. Acariciava seus pelos e os tosquiava, pois a lã era muito quente.

Quando estavam livres, no pasto, dentro do cercado, o pastor e os chamava:

- Venham meus cordeirinhos. Sigam-me. Entrem na fila meus cordeirinhos

E o pastor os condizia para onde ele queria:

E todos o seguiam. Era seu líder e todos o admiravam.

Entretanto houve um dia em que o ritual foi modificado com uma longa permanência no cercado.

Alguns até acharam estranho, mas o pastor, seu líder, assim o fizera e eles se acalmaram quando disse:

- Calma, meus cordeirinhos, fiquem calmos no cercado.

E os cordeirinhos ficaram calmos, pacificamente. O pastor os tosquiou e lhes disse:

- Esperem mais um pouco meus cordeirinhos. Hoje não vou lhes soltar para o pasto. Vamos dar um passeio.

Os cordeiros viram uma movimentação diferente. Mas acreditavam no pastor que veio novamente:

- Vamos passear, meus cordeirinhos! Entrem no caminhão!

Os cordeiros ficaram alegres e disseram, lá na língua deles:

- Oba, hoje vamos passear! O pastor nos deu um prêmio de produtividade.

Como eram cordeiros pacíficos, nunca se haviam revoltado nem ido à escola e, portanto, não sabiam ler.

E foram passear, sem entender que no caminhão estava escrito:

FRIGORIFICO.

Confira outros textos e Livros:

O PEQUENO PRINCIPE: 

ALICE NO PAÍS DAS MARAVILHAS:
        https://www.baixelivros.com.br/literatura-estrangeira/alice-no-pais-das-maravilhas




Neri de Paula Carneiro

Mestre em Eduação, Filósofo, Teólogo, Historiador

Rolim de Moura - RO

sábado, 10 de abril de 2021

Páscoa 2 - Um só coração



(Reflexões baseadas em: 4,32-35; 1Jo 5,1-6; Jo 20,19-31)




Acabamos de celebrar a Páscoa. Por esse motivo a liturgia nos convida a continuar nesse mesmo clima de alegria e compromisso.

Mas esse convite da liturgia, também nos lança um desafio para nossa fé. E trata-se de um desafio porque não se baseia no que dizemos, mas no que fazemos. Não se expressa em palavras, mas em atitudes...afinal, viver em “um só coração e uma só alma”, não é fácil!

Os Atos dos Apóstolos (4,32-35) nos colocam diante de um desafio para a fé numa experiência comunitária. Aqui nos é apresentado um modelo de comunidade ideal na qual “ninguém passava necessidade” (At 4,34). A base dessa comunidade comunista eram os apóstolos que “davam testemunho da ressurreição do Senhor Jesus” (At 4,33). Um testemunho que tem a solidariedade como pressuposto.

Na primeira carta de são João (5,1-6) o desafio consiste em nos identificarmos com Jesus, o vencedor do mundo, vencedor da morte, promotor da vida e aquele que concede todas as vitórias, uma vez que todas as vitórias tem a fé, como ponto de partida. Nas palavras do apóstolo: “Esta é a vitória que venceu o mundo: a nossa fé” (1Jo 5,4). Vencer na vida não é impossível, desde que a vida e a vitória tenham a fé como fundamento. “Quem é o vencedor do mundo, senão aquele que crê que Jesus é o Filho de Deus?” (1 Jo 5,5).

O evangelho, João (20,19-31) nos apresenta a radicalidade do desafio da fé. A fé de quem viu o ressuscitado é uma proposta para acreditar sem ver. É o próprio Senhor que exige essa radicalidade: “Jesus lhe disse: 'Acreditaste, porque me viste? Bem-aventurados os que creram sem terem visto!'” (Jo 20,29).

E aqui está o desafio: nada mais do que o próprio ato de fé.

A maioria de nós está acostumada e aceitamos aquilo que pode ser facilmente comprovado. Vivemos numa sociedade em que a demonstração, a prova, a evidência...são exigidos como critério de relacionamento. Raramente alguém acredita no que o outro afirma, só porque essa pessoa afirmou. Mesmo que ela seja merecedora de credibilidade permanece o “será?”. Uma das expressões que já esteve na boca da maioria de nós: “sou igual São Tomé: só acredito vendo...”. Essa é uma das frases mais impróprias para quem se confessa cristão.

É verdade que estamos inseridos numa sociedade de aparências, num mundo de falsidades e envolvidos em relações parciais, tendenciosas… por tudo isso é quase natural que não acreditemos. E, aqui está a questão: se não damos crédito ao que nos dizem aqueles com os quais convivemos, como podemos dar crédito a personagens como Jesus e seus apóstolos? E o que é pior, corremos o risco de estarmos frequentando alguma comunidade não porque acreditamos, mas porque assim aprendemos com nossos pais, com os mais velhos; essa participação pode tratar-se de uma ação cultural e não de um ato de fé!

Neste ponto, alguém pode estar se perguntando e perguntando também a mim: mas então, em que consiste a fé, como podemos caracterizar a crença?

Não sou eu que respondo, mas a própria Palavra Santa: a fé é expressão de uma vida e se manifesta como gesto doador de vida. Não é possível alguém dizer que tem fé se ela não se traduz nem se manifesta em gestos concretos. A fé que dizemos ter, precisa ser confrontada com a postura da sociedade ideal, dos Atos. Tem que estar adequada à vida plena manifestada pela Palavra Santa, que foi escrita para gerar fé e vida. “Estes foram escritos para que acrediteis que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus, e para que, crendo, tenhais a vida em seu nome.” (Jo 20,31).

A proposta da comunidade apresentada aos primeiros cristãos e uma exigência feita também a nós: construir uma sociedade na qual tudo seja “distribuído conforme a necessidade de cada um” (At 4,35). Uma afirmação que tem por fundamento ou que se manifesta numa outra: tudo que sobra das minhas necessidades é o que está faltando àqueles que sentem necessidades…; tudo que está em meu poder e que ultrapassa minhas necessidades, não me pertence, mas pertence àqueles que necessitam…

É aqui o ponto em que se comprova a fé: na capacidade de partilhar! Dizia um sábio bispo: “A fé entra pelos ouvidos, chega ao coração. Se atravessar o bolso, é uma fé garantida e manifesta-se numa pessoa desapegada”. E não se trata de nenhum rótulo sócio-político. Trata-se de palavra de Deus. Trata-se de um modelo de sociedade em que a base das relações é ser capaz de ajudar a eliminar a necessidade do outro.

Como se pode ver, a radicalidade da fé é exigente e tem consequências. Ela é revolucionária. Quem, efetivamente, foi tocado por ela, será mais um dos poucos a ajudar na construção da sociedade da paz, pois a estes, constantemente Jesus oferece: “A paz esteja convosco” (Jo 20,19). Entretanto, no mundo da paz não pode haver necessitados. A ausência da paz é evidenciada pela presença de pessoas necessitadas. Enquanto existirem pessoas necessitadas não haverá paz.

Aqui está, portanto, o grande desafio: construir uma sociedade, uma comunidade em que a norma de vida seja “um só coração e uma só alma!”

Neri de Paula Carneiro

Mestre em educação, filósofo, teólogo, historiador.

Outros escritos do autor:

Filosofia, História, Religião: https://www.webartigos.com/index.php/autores/npcarneiro

Literatura: https://www.recantodasletras.com.br/autores/neripcarneiro

segunda-feira, 5 de abril de 2021

FILOSOFIA: Observação e Reflexão

Admitindo que filosofia, muito mais do que um conceito, é uma atitude, somos levados a dizer que atividade filosófica não se limita a ler livros de filosofia ou estudar sobre os grandes filósofos.

Podemos dizer que, antes disso, é necessário ser capaz de observar a realidade e emitir uma opinião sobre ela. É verdade que se pode, e é aconselhável, emitir essa opinião fundamentando-a no que disseram outros pensadores, ou as ciências, a respeito daquela realidade. Mas isso não significa que não se possa inovar.

Então a pergunta que se impõe é: como se caracteriza a atitude filosófica?

Inicialmente, pela observação e pela reflexão.

Como sabemos qualquer realidade pode ser investigada pela filosofia. E a realidade, observada pelo sujeito é analisada por ele. E o que é observado? Aquilo que chama a atenção. Algo que impressiona. Algo que provoca admiração ou, como diziam os pensadores gregos, que causa espanto.

Trata-se, portanto, de refletir sobre as realidades observadas.

Isso ocorre porque aquilo que chama a atenção do observador leva à indagação: “como se dá isso?”. E a indagação aparece porque o homem é um ser “perguntante”. É um ser que está constantemente olhando-observando as realidades circundantes em busca de mais ou novas informações, complementando aquilo que já sabe; novos saberes para acrescentar ao que já sabe; novas descobertas para expandir o que já sabe; dominar novos horizontes ampliado o ângulo de visão, renovando e reformulando os saberes já adquiridos.

E isso não é uma novidade nossa ou dos pensadores atuais. No século IV aC, Aristóteles afirmou isso em um de seus escrito. Nas primeiras linhas do Livro I de “Metafisica”, diz: “Todos os homens têm, por natureza, desejo de conhecer. Uma prova disso é o prazer das sensações”. Ou seja, temos prazer em aprender. Em seguida, admite que os animais possuem a “faculdade de aprender”, Mas, diz o pensador grego, “a espécie humana vive da arte e dos raciocínios”. E conclui dizendo que “a filosofia é por todos concebida como tendo por objeto as causas primeiras e os princípios.”

O fato é que nós humanos percebemos o mundo que nos cerca não como algo definitivo, mas como um arsenal de novidades; novidades essas que se nos apresentam como problema. E o processo de resolução dos problemas ou explicação do real se dá mediante um processo de reflexão pelo qual queremos saber o que faz com que algo seja o que é.

O que é e como se dá esse processo reflexivo?

Entende-se por reflexão o processo pelo qual o intelecto volta-se novamente sobre algo já conhecido em busca de novas informações. É como se o pensamento estivesse dobrando-se para pensar novamente e já pensado. “FLEXÃO” é uma espécie de dobradura: o atleta faz flexão de braço!

Quando acrescentamos o “RE” a uma palavra estamos indicando que aquilo deve se repetir: RE-começar significa começar novamente. O professor Demerval Saviani, no livro “Educação, do senso comum à consciência filosófica”, diz o seguinte sobre a reflexão:





“A palavra nos vem do verbo latino “reflectere" que significa "voltar atrás". É, pois, um re-pensar, ou seja, um pensamento em segundo grau. Poderíamos, pois, dizer: se toda reflexão é pensamento, nem todo pensamento é reflexão. Esta é um pensamento consciente de si mesmo, capaz de se avaliar, de verificar o grau de adequação que mantém com os dados objetivos, de medir-se com o real. Pode aplicar-se às impressões e opiniões, aos conhecimentos científicos e técnicos, interrogando-se sobre o seu significado. Refletir é o ato de retomar, reconsiderar os dados disponíveis, revisar, vasculhar numa busca constante de significado. É examinar detidamente, prestar atenção, analisar com cuidado. E é isto o filosofar.”





Levando em consideração essas palavras e observando o comportamento humano, notaremos que constantemente estamos nos voltando sobre as realidade que nos cercam. Inicialmente para fazer filosofia; depois, o saber filosófico permite ampliar o saber científico. Por isso é que dizemos que a filosofia é responsável pelo avanço da ciência. E assim, pelo processo da reflexão, a humanidade, ao longo de milhares de anos, vem ampliando os conhecimentos, inovando-os, transmitindo-os às novas gerações

E o interessante, nisso é que no processo da transmissão dos saberes ocorre o encontro de dois universos: de um lado o que transmite e o do outro aquele que recebe a transmissão. É o diálogo. É a dialética do saber.

O contato entre esses dois universos produz o espaço para a indagação, para a dúvida, para o problema. Nesse espaço é que se insere a reflexão pois os dois diferentes precisam se identificar e interagir. E dessa forma se ampliam os saberes com novas informações e conhecimentos. E assim se vão desenvolvendo a filosofia, as ciências e as inovações da tecnologia.

Esse processo é o que nos permite dizer que a filosofia é responsável pelo avanço do saber produzindo ciência.

sábado, 3 de abril de 2021

Páscoa - Viu e acreditou



(Reflexões baseadas em: At 10,34a. 37-43; Cl 3,1-4; Jo 20,1-9)





Será que nós já nos demos conta do que aconteceu nestes dias? Será que, realmente, compreendemos o que ocorreu não só nas celebrações da Semana Santa, mas com aqueles que viveram os eventos que deram origem às nossas celebrações?

A indagação tem sentido, porque uma coisa é celebrarmos a Paixão de Cristo, sua ressurreição, sua Páscoa. Outra coisa é entendermos e assumirmos em nossa vida aqueles acontecimentos, para que eles alimentem nossa fé.

Ocorre que nem sempre celebramos com base na fé. Aliás, creio que podemos dizer que na maioria dos casos, as pessoas “vão na onda”… fazem por que esse é o costume…

Você sabe que isto é verdade: As celebrações da Semana Santa passam pela vida de muitos, mas nem todos celebram a Semana Santa. Você sabe, assim como eu, que as celebrações podem ocorrer porque aprendemos com nossos pais; porque é tradição; porque “todo mundo faz”... Elas podem representar uma conveniência e convenção social… afinal de contas não fica bem um comportamento diferente do que todo mundo faz… Já pensou uma Páscoa sem comprar e dar presentes? Sem aquelas mensagens de felicitações que compartilhamos, às vezes sem entender direito? Já pensou numa Páscoa sem os coelhinhos e os chocolates?… Já se deu conta de que isso, por vezes ou na maioria das vezes, tem mais a ver com os apelos comerciais do que com celebração da vida que brota da terra na forma de Jesus, o Cristo de Deus mostrando o caminho da ressurreição pascal?

Entretanto, apesar de tudo isso, a celebração da Semana Santa e da Pascoa tem sentido de ser porque nos apresenta um convite para a eternidade.

Sabemos desse convite e o recebemos, porque alimentamos uma fé que nasce das escrituras. No livro dos Atos dos Apóstolos, temos uma prova disso (At 10,34a. 37-43). Pedro comenta o fato e sua origem: “aconteceu em toda a Judeia, a começar pela Galileia” (At 10,37). E o que foi que lá aconteceu? A manifestação da graça divina, na pessoa de Jesus de Nazaré. Ele que foi “ungido por Deus com o Espírito Santo e com poder. Ele andou por toda a parte, fazendo o bem e curando a todos” (At 10,38). E, por ter feito o bem, foi assassinado, pregado na cruz (At 10,39).

Entretanto, essa foi só a face humana e histórica daquilo que fundamenta nossa fé. Isso representa um fato que, por si mesmo, dispensa a fé, pois pode ser comprovado. A sequência dos fatos, isso sim é elemento de fé. Isso realmente representa algo grandioso. Isso merece ser celebrado, pois indica a grandiosidade da proposta que Deus mantém. O que vem depois da cruz é o verdadeiro sentido da fé, pois depois da morte na cruz, Jesus não permaneceu na morte. Depois da cruz “Deus o ressuscitou no terceiro dia, concedendo-lhe manifestar-se” (At 10,40). A ressurreição e suas manifestações, isso sim é objeto de fé. Em quem? No Senhor que realizou essas coisas, nos indicando o que nos espera; e fé no testemunho daqueles que vivenciaram os fatos.

Nossa fé tem por base a certeza do que nos afirmaram aqueles que receberam a missão de divulgar o que Deus fez. E a missão foi confiada pelo próprio Jesus, o Cristo ressuscitado, como nos informa Pedro: “E Jesus nos mandou pregar ao povo e testemunhar que Deus o constituiu juiz dos vivos e dos mortos.” (At 10,42).

A ressurreição de Jesus tem muito mais a nos dizer. E a nos mostrar: o caminho para a eternidade. O caminho foi aberto pela ressurreição de Cristo, mas trilhá-lo depende de nós, dos nossos comportamentos e atitudes. E Paulo, na carta aos colossenses (Cl 3,1-4), insiste nesse ponto. A vida eterna nos é oferecida e está à nossa disposição. Entretanto, precisamos desejá-la e lutar por ela. “Esforçai-vos por alcançar as coisas do alto”, diz Paulo. E insiste: “aspirai às coisas celestes e não às coisas terrestres.” (Cl 3,1-2). É como se o apóstolo dissesse: “de que adianta existir água fresquinha na geladeira, se eu não me dirijo a ela para matar minha sede?”

Para isso acontecer temos que nos espelhar na Páscoa de Jesus. Sua Páscoa não foi somente a passagem, da morte para a vida, mas foi, também sua passagem pela história dos homens. Ele passou pela vida, como qualquer um de nós e, por isso e pelo que realizou nessa passagem – sua Páscoa entre nós – pode viver a Páscoa definitiva, passando da morte para a vida. Quando chegar nossa vez, caso tenhamos trilhados os passos do mestre, passaremos a viver com Ele “revestidos de glória” (Cl 3,4) para sempre.

Nisso reside o sentido da celebração e o motivo de celebrarmos a Páscoa com Jesus: em nossa vida refazermos os passos do Senhor, com a fé de que também trilharemos seus passos na direção da morada definitiva.

É claro que podemos continuar dando e recebendo presentes; comprando e dando chocolate; distribuindo coelhinhos e mensagens otimistas e belas… mas temos que entender: tudo isso tem a ver com o comércio, com convenções sociais… mas só isso não é celebração de Páscoa. É só comércio. A Páscoa tem a ver com reconstrução da vida nos moldes do que fez e ensinou Jesus!

A Páscoa, de Jesus e a nossa com o Cristo ressuscitado, exige o compromisso da fé, conforme a proposta que podemos ler em João 20,1-9. Não basta apenas sermos anunciadores com a angústia da incerteza da Madalena (Jo 20, 1-2): “Tiraram o Senhor do túmulo, e não sabemos onde o puseram”. É necessária, também a postura do discípulo amado que, ao ver a cena, compreende e acredita: “Ele viu, e acreditou. De fato, eles ainda não tinham compreendido a Escritura, segundo a qual ele devia ressuscitar dos mortos” (Jo 20, 8-9) abrindo caminhos para a vida…




Neri de Paula Carneiro

Outros escritos do autor:

Filosofia, História, Religião: https://www.webartigos.com/index.php/autores/npcarneiro

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sexta-feira, 2 de abril de 2021

Vigília Pascal - Ide depressa



(Reflexões baseadas em: Gn 1,1-2,2; Êx 14,15-15,1; Rm 6,3-11; Mc 16,1-7)






A celebração da Páscoa pode ser feita a partir de diferentes olhares e significados.

Primeiro porque nesta noite de luz, a Igreja nos convida à mais longa lista de leituras. Ao todo são nove leituras: desde o Gênesis até o trecho do Evangelho. É a celebração mais solene e vibrante. Apesar de, do ponto de vista popular, a celebração do Natal envolver mais popularidade, a celebração da Vigília Pascal é aquela que dá sentido ao ano litúrgico; dá sentido à quaresma; dá sentido ao advento e ao Natal. Tudo porque é nesta noite que celebramos a Ressurreição.

Para os hebreus, a Páscoa foi a saída da escravidão para a liberdade. Foi, ao mesmo tempo, um projeto social, político e religioso. Talvez por esse motivo textos do livro do Êxodo, narrando os preparativos para comer o cordeiro e a saída para o deserto; narrando a travessia do Mar Vermelho, continuem motivando as comunidades cristãs a clamarem por libertação. A liturgia da vigília nos apresenta: Êxodo 14,15-15,1

Para Jesus, a Páscoa foi o coroamento de suas pregações e a superação do martírio, das dores e da morte ressignificando a Páscoa hebraica evidenciando não só o amor divino para com seu Filho mas também para mostrar aos cristãos o verdadeiro sentido da vida (Mc 16,1-7). A vida que se encaminha para a morte, tem na Páscoa de Jesus, um significado pleno de ressurreição. Jesus foi o primeiro, para nos indicar o caminho, dizendo-nos com sua vida, paixão e morte, que seu seguidor não terá apenas alegrias, mas que as dores serão superadas pois a cruz é a chave para a ressurreição.

Para a Igreja, a Páscoa é um momento litúrgico que tem na celebração da Paixão do Senhor o ponto de partida para a celebração da vida que teima em ressurgir. Por isso, a Igreja, no Brasil, utiliza a campanha da Fraternidade para dizer aos fiéis que não basta ajoelhar, rezar e voltar para casa como se nada estivesse acontecendo na sociedade. A Igreja nos afirma e cobra de nós que nos convertamos durante a quaresma, nos purifiquemos na Semana Santa e reassumamos novos projetos de sociedade, com justiça, paz e novas relações amorosas entre as pessoas. A Igreja ressurge na Páscoa com o objetivo de ser auxilio para os fiéis interferirem na sociedade a fim de que “todos tenham vida”. Por isso é que ouvimos, de Paulo (Rm 6,4-11), está admoestação: “Pelo batismo na sua morte, fomos sepultados com ele, para que, como Cristo ressuscitou dos mortos pela glória do Pai, assim também nós levemos uma vida nova. 5 Pois, se fomos de certo modo identificados a Jesus Cristo por uma morte semelhante à sua, seremos semelhantes a ele também pela ressurreição” (Rm 6,4-5)

Para os cristãos a Páscoa é a celebração da vida nova em Cristo Ressuscitado e, ao mesmo tempo, a esperança de superação das dores do dia a dia, enquanto se caminha para a morada definitiva. A celebração da Páscoa cristã, não se limita a ouvir e meditar as leituras proferidas durante a celebração. Não se esgota na confraternização familiar… Como membro da Igreja, corpo de Cristo, o cristão é aquele que faz acontecer, em seu dia a dia, em seu ambiente de trabalho, em suas relações familiares e sociais o projeto de vida nova ressuscitada dos túmulos das injustiças produzidas por todos os que continuam matando o Cristo-presente-em-nós. A Páscoa, para o cristãos, é a atualização da ressurreição de Cristo e da missão da Igreja na sociedade, pois o cristão é a face da Igreja na sociedade.

Por tudo isso, quando celebramos a Páscoa estamos mostrando ao mundo que, muito mais do que dizer que cremos na vida superando a morte, nós queremos valorizar a vida a ser edificada ao longo dos dias que antecedem a morte. Estamos querendo dizer que os sistemas de morte que se instalaram na vida das pessoas e na sociedade em que vivemos podem e devem ser superados, com planos de equidade e participação. Sem que isso ocorra, mesmo que façamos belas celebrações continuaremos crucificando Jesus. Por isso é necessária a transformação dos comportamentos, pois Cristo ressuscitou para nos oferecer vida nova!

E, talvez, pelo fato de os cristãos ainda não acreditarem no potencial transformador da mensagem cristã. Talvez, por não vivenciarem a mensagem que dizem acreditar. Talvez, por se aliarem mais aos difusores da morte, a partidos e sistemas que não valorizam a vida… talvez por tudo isso é que acaba prevalecendo a páscoa do mercado. Mas é necessário insistir: aquela do mercado, NÃO É PÁSCOA! É só comércio!

Por esse motivo é que, para o mercado, a páscoa é somente um dia a mais a ser explorado, ao mesmo tempo que se exploram as pessoas.

Então a Páscoa, em seu sentido mais cristão, eclesial, bíblico e em sintonia com Jesus Ressuscitado, ainda está para acontecer em sua plenitude.

A ressurreição de Cristo já aconteceu, mas ainda falta produzirmos sua ressurreição na sociedade. Essa é a nossa missão no mudo: anunciar a vida nova que está por vir. Hoje é a nós que Jesus ressuscitado está enviando, mediante as palavras do anjo às mulheres: “Ide depressa contar aos discípulos que ele ressuscitou dos mortos, e que vai à vossa frente” (Mt 28,7).

Por esse motivo, para dar testemunho da vida ressurgindo da morte, é que as mulheres ouvem estas palavras: "Não vos assusteis! Vós procurais Jesus de Nazaré, que foi crucificado? Ele ressuscitou. Não está aqui. Vede o lugar onde o puseram. Ide, dizei a seus discípulos e a Pedro que ele irá à vossa frente, na Galileia. Lá vós o vereis, como ele mesmo tinha dito." (Mc 16,6-7).

Neri de Paula Carneiro

Outros escritos do autor:

Filosofia, História, Religião: https://www.webartigos.com/index.php/autores/npcarneiro

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quinta-feira, 1 de abril de 2021

Sexta Feira Santa - Será bem sucedido



(Reflexões baseadas em: Is 52,13 – 53,12; Hb 4,14-16; 5,7-9; Jo 18,1 – 19,42)



A Sexta Feira Santa é um daqueles dias sobre o qual há pouco que falar. O significado desta celebração fala por si mesmo. É um dia propício ao silêncio interior, a fim de nos colocarmos diante do espelho da nossa vida. É um bom momento para reconfigurar nossa vida e nossas ações.

A Sexta Feira Santa é o dia em que se celebra a completa entrega de vida, a completa doação, a maior prova de amor e que traz, como consequência, o maior milagre: o ressurgimento da vida enterrando os domínios da morte; é a vida se dando para a plenitude da existência. E isso tudo para dar sentido à existência humana.

A Sexta Feira Santa nos leva a ler Isaías (Is 52,13 – 53,12) e a descrição do Servo Sofredor, como uma prefiguração das dores de Jesus. As dores do Servo acontecem para resgate de muitos, uma vez que seu sofrimento possibilita a salvação de todos. Ele foi ferido, esmagado, punido...para curar o mundo, diz o profeta (Is 53,5): “Mas ele foi ferido por causa de nossos pecados, esmagado por causa de nossos crimes; a punição a ele imposta era o preço da nossa paz, e suas feridas, o preço da nossa cura.” As dores do servo são o preço do nosso resgate!

A Sexta Feira Santa é, sem a menor dúvida, a celebração da morte. Mas uma morte que produz vida. É a celebração da semente prenhe de vida depositada no útero da terra (Jo 19,42), ventre fértil formado por Deus, renascendo em vida plena. A semente, por si mesma é só semente, mas semeada, enterrada… é promessa de vida. Assim é a Sexta Feira Santa: celebração que fundamenta a fé num porvir de felicidades.

A Sexta Feira Santa é o dia do resgate, conforme as palavras de Isaías (53,12): “Por isso, compartilharei com ele multidões e ele repartirá suas riquezas com os valentes seguidores, pois entregou o corpo à morte, sendo contado como um malfeitor; ele, na verdade, resgatava o pecado de todos e intercedia em favor dos pecadores.” Essa descrição do Servo, se concretiza em Jesus Cristo, na celebração desta Sexta Feira, igual a todas as outras, mas essencialmente diferente, pois aqui, numa cena de morte, se celebra a vida!

A Sexta Feira Santa, de acordo com a carta aos Hebreus (4,14-16; 5,7-9) é um momento decisivo: para Jesus é “ consumação de sua vida”; e para nós é “causa de salvação eterna” (Hb 5,9). É uma celebração sem pompas, sem brilho de adereços. Mas isso porque na simplicidade e singeleza da celebração está o dom da grandeza do gesto salvador.

A Sexta Feira Santa é a memória que fazemos da agonia de Jesus que “dirigiu preces e súplicas, com forte clamor e lágrimas, àquele que era capaz de salvá-lo da morte” (Hb 5,7). E, apesar dessa agonia não deixou de se entregar ao seu propósito, com o objetivo de nos ensinar o caminho: a glória não é dom gratuito, mas uma conquista das lágrimas: chorou a mãe, choraram os amigos, choramos nós… mas essas lágrimas regam a semente da vida ressurgida da morte!

A Sexta Feira Santa é a outra face do Natal. Como qualquer ser humano, Jesus nasceu para morrer, mas como Cristo de Deus, morreu para dar via. Para nos mostrar o caminho da vida. Por participar de nossa humanidade é o único “capaz de se compadecer de nossas fraquezas” (Hb 4,15)

A Sexta Feira Santa, acima de tudo, é o dia em que celebramos a fidelidade de Deus, na forma humana, ao acompanharmos a narrativa de seus últimos passos (Jo 18,1 – 19,42). Uma fidelidade acima de todos os nossos medos e mesquinhez, pois mesmo diante da negação de Pedro (Jo 18, 17.25.27), foi capaz de interceder pela liberdade dos seus: “Se é a mim que procurais, então deixai que estes se retirem” (Jo 18,8).

A Sexta Feira Santa, por ser o dia da entrega definitiva, despojando-se da vida, Jesus nos dá até mesmo sua mãe, que passa a ser nossa mãe. “Depois disse ao discípulo: 'Esta é a tua mãe'. Daquela hora em diante, o discípulo a acolheu consigo.” (Jo 19,27). E, dessa forma, passamos a fazer parte da família de Deus, pois fomos adotados pela mãe de Deus no altar da cruz!

A Sexta Feira Santa, é uma celebração de poucos cantos, de compenetração, de reflexão, de revisão de conduta, de exame de consciência, de entrega… mas é, também, celebração de agradecimento: Jesus de Nazaré, é o Servo Sofredor que se oferece como o Cristo de Deus; celebração de penitência: nas dores de Jesus podemos lavar nossa maldade para alvejar nossa vida convertida a Deus e aos irmãos; celebração do silêncio: depois de passar a noite em oração, Jesus é aprisionado nas cadeias de nossa omissão ao seu Projeto; celebração da tomada de consciência: nossos erros pessoais e sociais continuam sendo grilhões e cravos no corpo de Jesus Cristo pobre e marginalizado em nossa sociedade...

Por fim e por tudo isso, a Sexta Feira Santa nos coloca diante de necessidade de uma tomada de decisão: agirmos como Pedro, negando ao Senhor; ou agirmos como o discípulo amado, acolhendo a mãe, e com ela seu Filho que se dá por nós. É a decisão que nos cobra a celebração da Sexta Feira Santa.

Neri de Paula Carneiro

Outros escritos do autor:

Filosofia, História, Religião: https://www.webartigos.com/index.php/autores/npcarneiro

CICLO DA PÁSCOA: A vitória da vida.

Disponível em: https://pensoerepasso.blogspot.com/2024/03/ciclo-da-pascoa-celebrar-vida.html; https://www.recantodasletras.com.br/artigos-de...