segunda-feira, 2 de agosto de 2021

A FILOSOFIA CLÁSSICA (I)

Antiguidade Clássica, quando estamos estudando história, refere-se ao período áureo das civilizações grega e romana. Mas, na filosofia trata-se do período de atuação de três pensadores que imprimiram uma novidade na busca do conhecimento: criando uma metodologia revolucionária, como a ironia e a maiêutica de Sócrates; criando uma nova cosmovisão para explicar o mundo sensível e sua correlação conceitual, como a teoria do mundo das ideias de Platão e uma nova sistematização dos saberes e de transmitir os conhecimentos, desenvolvidos por Aristóteles. Lembrando que os pressupostos aristotélicos não só para a filosofia, como também para a sistematização das ciências e a inovação de várias áreas do saber, permanecem sendo usados até nossos dias.

Agora, a partir do século V aC o objeto de estudo deixa de ser a phýsis (natureza), como fizeram os pré-socráticos e se concentra no homem e sua vida social. Por isso alguns autores chamam este de período antropológico. Essa mudança de perspectiva começa, com os sofistas e se explica devido a nova conjuntura política.



A supremacia de Atenas

A partir do século V aC registraram-se algumas mudanças no cenário histórico e isso justificou algumas alterações nos objetos da investigação filosófica.

Os principais pensadores não estão mais nas colônias, mas se concentram em Atenas. Suas atenções voltam-se para a formação do cidadão que deve ser virtuoso. Daí que os problemas centrais do conhecimento passam a ser de ordem ética e política.

Qual a causa dessa mudança? Principalmente a ameaça dos Persas, ou seja as chamadas Guerras Médicas (490 a 480 aC).

Esse período de guerras colocou a cidade de Atenas na liderança de um grupo de cidades, tornando-se o centro político do mundo grego. Percebeu-se a necessidade de organizar mecanismos de administração e manutenção do governo. Constatou-se, também, que a vida urbana apresentava algumas exigências de ordem tanto política como ética, as quais precisavam de uma resposta.




Novo Modelo Político

Esse contexto urbano produziu um novo modelo político, que se desenvolveu a partir de Atenas: a democracia. Sua principal característica: a discussão em assembleia. E para participar da democracia o cidadão precisava saber falar, saber argumentar no debate. Precisava da arte da retórica.

A respeito dessa nova organização política assim falou Tucídides (460-400 aC), no primeiro livro de sua obra “História da Guerra do Peloponeso”:

“Nós, cidadãos atenienses, decidimos as questões públicas por nós mesmos, ou pelo menos nos esforçamos por compreendê-las claramente, na crença de que não é o debate que é empecilho à ação, e sim o fato de não se estar esclarecido pelo debate antes de chegar a hora da ação. Consideramo-nos ainda superiores aos outros homens em outro ponto: somos ousados para agir, mas ao mesmo tempo gostamos de refletir sobre os riscos que pretendemos correr.”

O mesmo Tucídides coloca na boca de Péricles o seguinte discurso, dirigido aos atenienses:

“Vivemos sob uma forma de governo que não se baseia nas instituições de nossos vizinhos; ao contrário, servimos de modelo a alguns ao invés de imitar outros. Seu nome, como tudo depende não de poucos mas da maioria, é democracia. Nela, enquanto no tocante às leis todos são iguais para a solução de suas divergências privadas, quando se trata de escolher (se é preciso distinguir em qualquer setor), não é o fato de pertencer a uma classe, mas o mérito, que dá acesso aos postos mais honrosos; inversamente, a pobreza não é razão para que alguém, sendo capaz de prestar serviços à cidade, seja impedido de fazê-lo pela obscuridade de sua condição. Conduzimo-nos liberalmente em nossa vida pública, e não observamos com uma curiosidade suspicaz a vida privada de nossos concidadãos, pois não nos ressentimos com nosso vizinho se ele age como lhe apraz, nem o olhamos com ares de reprovação que, embora inócuos, lhe causariam desgosto. Ao mesmo tempo que evitamos ofender os outros em nosso convívio privado, em nossa vida pública nos afastamos da ilegalidade principalmente por causa de um temor reverente, pois somos submissos às autoridades e às leis, especialmente àquelas promulgadas para socorrer os oprimidos e às que, embora não escritas, trazem aos transgressores uma desonra visível a todos.”

E assim se impõe a questão: se a palavra (capacidade de bem falar) é importante e cada individuo pode participar da vida política (participando do debate), faz-se necessário desenvolver a arte do falar para melhor participar. O cidadão, portanto, precisou desenvolver essa habilidade: Falar e argumentar, para defender um ponto de vista.

E, como se pode notar, a questão deixa de ser a compreensão da natureza, e passa a ser a vida em sociedade ou seja a política. E a palavra será a ferramenta nesse processo. Mas como desenvolvê-la?




Os sofistas

A resposta foi dada por um novo grupo de pensadores. Os Sofistas.

Eles formaram um grupo de pensadores que mudou o foco da filosofia. Mantinham a crítica aos mitos, como o fizeram os pré-socráticos. Mas priorizaram a arte do bem falar, pois esta era a nova característica da sociedade ateniense, para onde eles migraram, vindo das colônias.

Os sofistas, portanto, são o ponto de transição entre os filósofos da Natureza e os ensinamentos de Sócrates. E, em razão da demanda pela oratória, dedicaram-se a isso: desenvolver a capacidade de bem falar e a arte de convencer o interlocutor. Com sua retórica consideravam que não havia uma verdade única.

A bem da verdade diversos comentadores da história da filosofia não viram com bons olhos a atuação dos sofistas.

Essa visão a seu respeito, deve-se ao que falaram deles alguns de seus adversários. Em seus escritos pensadores como Platão, Tucídides, Xenofontes, Aristóteles, Aristófanes não os consideravam filósofos, mas manipuladores do raciocínio sem amor pela verdade.

Na atualidade, entretanto, alguns outros estudiosos entendem que os sofistas apenas estavam respondendo a um apelo de Atenas. Satisfaziam uma necessidade dos cidadãos que precisavam aprender a técnica de persuadir com argumentos. A professora Marilena Chauí, no seu livro “Convite à filosofia” comenta a atuação dos sofistas: “o sofista, oferecendo um ensino útil nas assembleias e nos tribunais, ensinava a arte de ser cidadão”.

Sendo assim, podemos dizer que o problema dos sofistas não foram suas ideias, mas seus adversários. Como trabalhavam a partir das opiniões (dóxai, em grego) e do interesse de quem pagava pelas suas aulas, não se comprometiam com a profundidade da verdade (alétheia, em grego), algo radicalmente defendido pelos filósofos. E isto deve ser dito porque a verdade não muda para satisfazer necessidades ou interesses das opiniões ou de quem paga, ela é o que é.

O fato é que os sofistas, de acordo com o que escreveram os italianos G. REALE e D. ANTISERI, no primeiro volume de sua obra “História da Filosofia”: “Os sofistas operaram uma verdadeira revolução espiritual, deslocando o eixo da reflexão filosófica da phýsis e do cosmos para o homem e aquilo que concerne a vida do homem como membro de uma sociedade.”




Os sofistas: algumas falas

Independentemente da polêmica a respeito de serem ou não filósofos; de terem ou não desenvolvido uma filosofia; de terem ou não agido para satisfazer os interesses de alguns membros da polis… Independentemente de tudo isso, os sofistas, ao seu modo, deram sua contribuição à filosofia. Ou pela temática inaugurada ou porque sua atuação exigiu um posicionamento de seus adversários e, dessa contenda desenvolveu-se o que se denominou de período antropológico da filosofia. O homem em sociedade passou a ser o centro da filosofia clássica.

Entretanto quase nada restou dos escritos desses pensadores a não ser fragmentos provindos de seus adversários. Dois deles se tornaram bastante conhecidos uma vez que são amplamente mencionados nos diálogos de Platão. Trata-se de Protágoras de Abdera e Górgias de Leontini.

Lembrando que existiram vários outros. Só para mencionar alguns: Hípias de Élis, Isócrates de Atenas, entre outros.

Vejamos alguns retalhos do que nos sobrou do que disseram Protágoras e Górgias. Não por outro motivo, mas pelo fato de Platão ter a eles dedicado dois de seus escritos que trazem por título justamente os nomes destes dois personagens.

A Protágoras são atribuídas algumas frases interessantes e que merecem uma reflexão da filosofia. Se não pela verdade que podem apresentar, pelo menos pala beleza literária que possuem. Talvez a mais célebre frase de Protágoras seja: “O homem é a medida de todas as coisas. Das que são pelo que são e das que não são pelo que não são”.

Como podemos entender essa afirmação? Não existe uma resposta, mas podemos dizer que o homem é a MEDIDA porque é dele que procedem os juízos, os julgamentos, os valores… a respeito da realidade; o homem é critério de realidade ao lhe conferir significado, pois sem ele as realidade são apenas o que são. O olhar valorativo do ser humano confere sentido, por isso, mais do que só existir, as realidades ganham o significado que lhe confere o homem. O insignificante e sem sentido passa a ter significado e sentido.

De acordo com Protágoras, o que dizemos sobre algo, nada mais é do que as convenções que estabelecemos; os valores que a isso atribuímos. E quem faz isso é o ser humano, por isso é a medida

Mas as convenções, podem mudar…, como muda o homem… e assim, desse ponto de vista, a percepção humana também se diferencia...

Outra fala de Protágoras que se aproxima da anterior: “Tal como cada coisa se apresenta para mim, assim ela é para mim, tal como ela se apresenta para você, assim ela é para você.".

Também vale a pena refletir o alcance desta outra: “Todo o argumento permite sempre a discussão de duas teses contrárias, inclusive este de que a tese favorável e contrária são igualmente defensáveis.

De Górgias também nos chegaram alguns retalhos de pensamento. Vejamos alguns exemplos:

“Uma mesma atividade pode ser boa ou ruim dependendo de quem a pratica e em que situação se encontra.”

“Mesmo que pudéssemos pensar e conhecer o ser, nós não poderíamos expressar como ele é porque as palavras não conseguem transmitir com veracidade nada que não seja ela mesma. Quando comunicamos, comunicamos palavras e não o ser.”

“A persuasão é soberana, porque não há nenhuma verdade acima da que um homem pode ser persuadido a crer.”

“O artista é um criador de mundos.” E nós podemos confessar que ficamos admirados com todos os mundos que nascem das realizações dos artistas...

Além disso, Górgias de Leontini, afirma que o bom orador deve ser capaz de "persuadir os juízes nos tribunais, os conselheiros no Conselho, os membros da assembleia popular na Assembleia e, da mesma forma, qualquer outra reunião que se realize entre cidadãos". É o mesmo que dizer que o bom orador pode convencer qualquer um sobre qualquer coisa. E essa capacidade de argumentar e convencer era o que os atenienses mais desejavam, na medida em que mais se instalava a vida social, na polis.

A postura dos sofistas, demonstrando pouca preocupação com a verdade e muito mais com o argumento, levou Platão a colocar na boca de Sócrates um comentário sobre Protágoras, dizendo que "ele supõe saber alguma coisa e não sabe, enquanto eu, se não sei, tampouco suponho saber. Parece que sou um pouco mais sábio que ele exatamente por não supor que saiba o que não sei".

Como se pode perceber a preocupação dos sofistas é a argumentação e o convencimento do interlocutor. Por sua vez Sócrates/Platão estão preocupados com a verdade daquilo que se sabe ou do que se pode saber. Assim, a partir de Sócrates e Platão a filosofia se volta para uma de suas principais inquietações: a busca da verdade.




Neri de Paula Carneiro

Mestre em educação. Filósofo, Teólogo, Historiador




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