segunda-feira, agosto 02, 2021

A FILOSOFIA CLÁSSICA (I)

Antiguidade Clássica, quando estamos estudando história, refere-se ao período áureo das civilizações grega e romana. Mas, na filosofia trata-se do período de atuação de três pensadores que imprimiram uma novidade na busca do conhecimento: criando uma metodologia revolucionária, como a ironia e a maiêutica de Sócrates; criando uma nova cosmovisão para explicar o mundo sensível e sua correlação conceitual, como a teoria do mundo das ideias de Platão e uma nova sistematização dos saberes e de transmitir os conhecimentos, desenvolvidos por Aristóteles. Lembrando que os pressupostos aristotélicos não só para a filosofia, como também para a sistematização das ciências e a inovação de várias áreas do saber, permanecem sendo usados até nossos dias.

Agora, a partir do século V aC o objeto de estudo deixa de ser a phýsis (natureza), como fizeram os pré-socráticos e se concentra no homem e sua vida social. Por isso alguns autores chamam este de período antropológico. Essa mudança de perspectiva começa, com os sofistas e se explica devido a nova conjuntura política.



A supremacia de Atenas

A partir do século V aC registraram-se algumas mudanças no cenário histórico e isso justificou algumas alterações nos objetos da investigação filosófica.

Os principais pensadores não estão mais nas colônias, mas se concentram em Atenas. Suas atenções voltam-se para a formação do cidadão que deve ser virtuoso. Daí que os problemas centrais do conhecimento passam a ser de ordem ética e política.

Qual a causa dessa mudança? Principalmente a ameaça dos Persas, ou seja as chamadas Guerras Médicas (490 a 480 aC).

Esse período de guerras colocou a cidade de Atenas na liderança de um grupo de cidades, tornando-se o centro político do mundo grego. Percebeu-se a necessidade de organizar mecanismos de administração e manutenção do governo. Constatou-se, também, que a vida urbana apresentava algumas exigências de ordem tanto política como ética, as quais precisavam de uma resposta.




Novo Modelo Político

Esse contexto urbano produziu um novo modelo político, que se desenvolveu a partir de Atenas: a democracia. Sua principal característica: a discussão em assembleia. E para participar da democracia o cidadão precisava saber falar, saber argumentar no debate. Precisava da arte da retórica.

A respeito dessa nova organização política assim falou Tucídides (460-400 aC), no primeiro livro de sua obra “História da Guerra do Peloponeso”:

“Nós, cidadãos atenienses, decidimos as questões públicas por nós mesmos, ou pelo menos nos esforçamos por compreendê-las claramente, na crença de que não é o debate que é empecilho à ação, e sim o fato de não se estar esclarecido pelo debate antes de chegar a hora da ação. Consideramo-nos ainda superiores aos outros homens em outro ponto: somos ousados para agir, mas ao mesmo tempo gostamos de refletir sobre os riscos que pretendemos correr.”

O mesmo Tucídides coloca na boca de Péricles o seguinte discurso, dirigido aos atenienses:

“Vivemos sob uma forma de governo que não se baseia nas instituições de nossos vizinhos; ao contrário, servimos de modelo a alguns ao invés de imitar outros. Seu nome, como tudo depende não de poucos mas da maioria, é democracia. Nela, enquanto no tocante às leis todos são iguais para a solução de suas divergências privadas, quando se trata de escolher (se é preciso distinguir em qualquer setor), não é o fato de pertencer a uma classe, mas o mérito, que dá acesso aos postos mais honrosos; inversamente, a pobreza não é razão para que alguém, sendo capaz de prestar serviços à cidade, seja impedido de fazê-lo pela obscuridade de sua condição. Conduzimo-nos liberalmente em nossa vida pública, e não observamos com uma curiosidade suspicaz a vida privada de nossos concidadãos, pois não nos ressentimos com nosso vizinho se ele age como lhe apraz, nem o olhamos com ares de reprovação que, embora inócuos, lhe causariam desgosto. Ao mesmo tempo que evitamos ofender os outros em nosso convívio privado, em nossa vida pública nos afastamos da ilegalidade principalmente por causa de um temor reverente, pois somos submissos às autoridades e às leis, especialmente àquelas promulgadas para socorrer os oprimidos e às que, embora não escritas, trazem aos transgressores uma desonra visível a todos.”

E assim se impõe a questão: se a palavra (capacidade de bem falar) é importante e cada individuo pode participar da vida política (participando do debate), faz-se necessário desenvolver a arte do falar para melhor participar. O cidadão, portanto, precisou desenvolver essa habilidade: Falar e argumentar, para defender um ponto de vista.

E, como se pode notar, a questão deixa de ser a compreensão da natureza, e passa a ser a vida em sociedade ou seja a política. E a palavra será a ferramenta nesse processo. Mas como desenvolvê-la?




Os sofistas

A resposta foi dada por um novo grupo de pensadores. Os Sofistas.

Eles formaram um grupo de pensadores que mudou o foco da filosofia. Mantinham a crítica aos mitos, como o fizeram os pré-socráticos. Mas priorizaram a arte do bem falar, pois esta era a nova característica da sociedade ateniense, para onde eles migraram, vindo das colônias.

Os sofistas, portanto, são o ponto de transição entre os filósofos da Natureza e os ensinamentos de Sócrates. E, em razão da demanda pela oratória, dedicaram-se a isso: desenvolver a capacidade de bem falar e a arte de convencer o interlocutor. Com sua retórica consideravam que não havia uma verdade única.

A bem da verdade diversos comentadores da história da filosofia não viram com bons olhos a atuação dos sofistas.

Essa visão a seu respeito, deve-se ao que falaram deles alguns de seus adversários. Em seus escritos pensadores como Platão, Tucídides, Xenofontes, Aristóteles, Aristófanes não os consideravam filósofos, mas manipuladores do raciocínio sem amor pela verdade.

Na atualidade, entretanto, alguns outros estudiosos entendem que os sofistas apenas estavam respondendo a um apelo de Atenas. Satisfaziam uma necessidade dos cidadãos que precisavam aprender a técnica de persuadir com argumentos. A professora Marilena Chauí, no seu livro “Convite à filosofia” comenta a atuação dos sofistas: “o sofista, oferecendo um ensino útil nas assembleias e nos tribunais, ensinava a arte de ser cidadão”.

Sendo assim, podemos dizer que o problema dos sofistas não foram suas ideias, mas seus adversários. Como trabalhavam a partir das opiniões (dóxai, em grego) e do interesse de quem pagava pelas suas aulas, não se comprometiam com a profundidade da verdade (alétheia, em grego), algo radicalmente defendido pelos filósofos. E isto deve ser dito porque a verdade não muda para satisfazer necessidades ou interesses das opiniões ou de quem paga, ela é o que é.

O fato é que os sofistas, de acordo com o que escreveram os italianos G. REALE e D. ANTISERI, no primeiro volume de sua obra “História da Filosofia”: “Os sofistas operaram uma verdadeira revolução espiritual, deslocando o eixo da reflexão filosófica da phýsis e do cosmos para o homem e aquilo que concerne a vida do homem como membro de uma sociedade.”




Os sofistas: algumas falas

Independentemente da polêmica a respeito de serem ou não filósofos; de terem ou não desenvolvido uma filosofia; de terem ou não agido para satisfazer os interesses de alguns membros da polis… Independentemente de tudo isso, os sofistas, ao seu modo, deram sua contribuição à filosofia. Ou pela temática inaugurada ou porque sua atuação exigiu um posicionamento de seus adversários e, dessa contenda desenvolveu-se o que se denominou de período antropológico da filosofia. O homem em sociedade passou a ser o centro da filosofia clássica.

Entretanto quase nada restou dos escritos desses pensadores a não ser fragmentos provindos de seus adversários. Dois deles se tornaram bastante conhecidos uma vez que são amplamente mencionados nos diálogos de Platão. Trata-se de Protágoras de Abdera e Górgias de Leontini.

Lembrando que existiram vários outros. Só para mencionar alguns: Hípias de Élis, Isócrates de Atenas, entre outros.

Vejamos alguns retalhos do que nos sobrou do que disseram Protágoras e Górgias. Não por outro motivo, mas pelo fato de Platão ter a eles dedicado dois de seus escritos que trazem por título justamente os nomes destes dois personagens.

A Protágoras são atribuídas algumas frases interessantes e que merecem uma reflexão da filosofia. Se não pela verdade que podem apresentar, pelo menos pala beleza literária que possuem. Talvez a mais célebre frase de Protágoras seja: “O homem é a medida de todas as coisas. Das que são pelo que são e das que não são pelo que não são”.

Como podemos entender essa afirmação? Não existe uma resposta, mas podemos dizer que o homem é a MEDIDA porque é dele que procedem os juízos, os julgamentos, os valores… a respeito da realidade; o homem é critério de realidade ao lhe conferir significado, pois sem ele as realidade são apenas o que são. O olhar valorativo do ser humano confere sentido, por isso, mais do que só existir, as realidades ganham o significado que lhe confere o homem. O insignificante e sem sentido passa a ter significado e sentido.

De acordo com Protágoras, o que dizemos sobre algo, nada mais é do que as convenções que estabelecemos; os valores que a isso atribuímos. E quem faz isso é o ser humano, por isso é a medida

Mas as convenções, podem mudar…, como muda o homem… e assim, desse ponto de vista, a percepção humana também se diferencia...

Outra fala de Protágoras que se aproxima da anterior: “Tal como cada coisa se apresenta para mim, assim ela é para mim, tal como ela se apresenta para você, assim ela é para você.".

Também vale a pena refletir o alcance desta outra: “Todo o argumento permite sempre a discussão de duas teses contrárias, inclusive este de que a tese favorável e contrária são igualmente defensáveis.

De Górgias também nos chegaram alguns retalhos de pensamento. Vejamos alguns exemplos:

“Uma mesma atividade pode ser boa ou ruim dependendo de quem a pratica e em que situação se encontra.”

“Mesmo que pudéssemos pensar e conhecer o ser, nós não poderíamos expressar como ele é porque as palavras não conseguem transmitir com veracidade nada que não seja ela mesma. Quando comunicamos, comunicamos palavras e não o ser.”

“A persuasão é soberana, porque não há nenhuma verdade acima da que um homem pode ser persuadido a crer.”

“O artista é um criador de mundos.” E nós podemos confessar que ficamos admirados com todos os mundos que nascem das realizações dos artistas...

Além disso, Górgias de Leontini, afirma que o bom orador deve ser capaz de "persuadir os juízes nos tribunais, os conselheiros no Conselho, os membros da assembleia popular na Assembleia e, da mesma forma, qualquer outra reunião que se realize entre cidadãos". É o mesmo que dizer que o bom orador pode convencer qualquer um sobre qualquer coisa. E essa capacidade de argumentar e convencer era o que os atenienses mais desejavam, na medida em que mais se instalava a vida social, na polis.

A postura dos sofistas, demonstrando pouca preocupação com a verdade e muito mais com o argumento, levou Platão a colocar na boca de Sócrates um comentário sobre Protágoras, dizendo que "ele supõe saber alguma coisa e não sabe, enquanto eu, se não sei, tampouco suponho saber. Parece que sou um pouco mais sábio que ele exatamente por não supor que saiba o que não sei".

Como se pode perceber a preocupação dos sofistas é a argumentação e o convencimento do interlocutor. Por sua vez Sócrates/Platão estão preocupados com a verdade daquilo que se sabe ou do que se pode saber. Assim, a partir de Sócrates e Platão a filosofia se volta para uma de suas principais inquietações: a busca da verdade.




Neri de Paula Carneiro

Mestre em educação. Filósofo, Teólogo, Historiador




Outros escritos do autor:


Cidadania: a defesa do cidadão

Quem de nós ainda não se deparou com a palavra CIDADANIA? Entretanto, quantos de nós atentamos para o alcance e o significado dessa palavra? Que nos diz a constituição de nosso país a respeito de cidadania? E, afinal de contas, o que significa essa palavra?


Cidadão

A palavra nasce de Cidadão. Sua etimologia é latina, vem de “civitas”, que significa cidade. Ou seja, o cidadão é o morador da cidade. E era usada em oposição ao pagão, que era o morador do “pagus” (que nós chamamos de zona rural). Pagão, portanto é o homem do campo. E cidadão o homem da cidade.

Mas também está ligada ao mundo grego. Para esse povo, cidadão era o homem da pólis. O homem rico, nascido e morador em cada uma das cidades estado.

Tanto para os romanos como para os gregos o cidadão era o homem possuidor de direitos a serem defendidos pelo poder público, o Estado; e, ao mesmo tempo, uma pessoa com obrigações em relação à sua cidade.

Deve-se registrar, no entanto, que tanto entre os gregos como entre os romanos, a cidadania não era um privilégio de toda a população. Era um direito de poucos privilegiados pelas riquezas.

Em nossa sociedade cidadão não é somente o morador da cidade, mas sim todos os homens e mulheres da cidade e do campo. Além disso, esses habitantes, são detentores de direitos e deveres. Portanto já temos, aqui um avanço em relação ao conceito dos gregos e latinos. Lá o cidadão era o homem urbano. Para nós todas as pessoas são cidadãs.

Podemos dizer que cidadãos são homens e mulheres possuidores de direitos e deveres em relação a um Estado e aos demais habitantes desse Estado. O cidadão, portanto, só existe em relação a outros cidadãos. É inconcebível o cidadão isolado. E isso por um motivo simples: direitos e deveres somente existem quando as pessoas relacionam-se umas com as outras. Um indivíduo isolado não depende de direitos nem tem deveres, pois sua relação sempre será consigo mesma. O cidadão passa a existir na medida em que se relaciona com outras pessoas e esse grupo forma uma sociedade onde se manifesta a necessidade recíproca de respeito.


Cidadania

Agora podemos fazer uma inferência simples: sabendo que cidadãos são homens e mulheres com direitos e deveres em uma sociedade, a cidadania é condição ou a situação na qual o cidadão exerce seus direitos e deveres.

Ou seja, a cidadania, que tem a ver com o cidadão, também representa as condições e situações em que o cidadão realiza aquilo que lhe compete.

Como se pode notar, a cidadania implica na existência de direitos e deveres. Entretanto temos aí dois elementos a mais a serem notados: a relação com os direitos humanos e a dimensão ética. Ou seja, o exercício da cidadania ultrapassa o conceito meramente jurídico, para alcançar uma dimensão de consciência. Quer dizer, não basta ter direitos e deveres. É necessário ter consciência de sua existência e fazer questão de exercê-los.

A relação com os direitos humanos se estabelece na medida em que os Direitos Humanos, nem sempre foram uma prioridade das sociedades humanas ao longo da história. No mundo antigo a grande massa da população não gozava de proteção por parte dos dirigentes da sociedade. Isso ocorria porque o centro da sociedade eram os ricos, cabendo aos pobres e escravos apenas produzir.

Com o transcorrer dos séculos, vários grupos sociais foram se organizando em busca da defesa de seus direitos. Um exemplo disso foi a promulgação da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, no contexto da Revolução Francesa (a íntegra dessa Declaração pode ser acessada em: https://educacao.uol.com.br/disciplinas/historia/declaracao-dos-direitos-do-homem-e-do-cidadao-integra-do-documento-original.htm).

Na Assembleia Nacional Constituinte, os franceses, em 1789, aprovaram essa declaração que começa com as seguintes palavras:

“Os representantes do povo francês, constituídos em Assembleia Nacional, considerando que a ignorância, o esquecimento ou o desprezo dos direitos do homem são as únicas causas das infelicidades públicas e da corrupção dos governos, resolveram expor, numa Declaração solene, os direitos naturais, inalienáveis e sagrados do homem...”

Logo em seguida, no artigo primeiro, dessa Declaração podemos ler:

“Os homens nascem e vivem livres e iguais em direitos. As diferenças sociais só podem ser fundamentadas no interesse comum.”

Notemos a consciência da importância do ser humano, nessa Declaração, ao afirmar que a “IGNORÂNCIA”, o “ESQUECIMENTO” e o “DESPREZO” aos direitos dos seres humanos são as “ÚNICAS CAUSAS DAS INFELICIDADES”.

Para superar isso e, consequentemente promover a felicidade é que se estabelecem as normas com os direitos dos cidadãos. Entre os quais e em primeiro lugar está a liberdade. Ou seja, os demais direitos – e também os deveres – decorrem da liberdade.

Por isso e para preservar a liberdade, contra a arbitrariedade dos governantes e outras autoridades, os franceses estabeleceram o princípio da superioridade da lei, como está no artigo sétimo dessa mesma Declaração:

“Nenhum homem pode ser acusado, preso ou detido senão quando assim determinado pela lei e de acordo com as formas que ela prescreveu. Os que solicitam, expedem, executam ou fazem executar ordens arbitrárias devem ser punidos. Mas todo homem intimado ou convocado em nome da lei deve obedecer imediatamente: ele se torna culpado pela resistência”.

Em 1948, após a II Guerra Mundial, a Organização das Nações Unidas (ONU) em sua Assembleia Geral aprovou a Declaração Universal dos Direitos Humanos (cuja íntegra pode ser acessada em: https://educacao.uol.com.br/disciplinas/historia/declaracao-universal-dos-direitos-humanos-texto-integral.htm), na qual estabelece os princípios para a defesa do ser humano contra excessos dos poderosos, como o exemplo recente dos horrores do nazismo contra algumas minorias.

Em defesa do ser humano a ONU, no preâmbulo dessa Declaração, já afirma alguns princípios: o reconhecimento da “dignidade” e igualdade entre as pessoas faz crescer a liberdade, a justiça e a paz no mundo.

Eis o que dizem as duas primeiras considerações dessa Declaração:

“Considerando que o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e de seus direitos iguais e inalienáveis é o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo;

Considerando que o desprezo e o desrespeito pelos direitos humanos resultaram em atos bárbaros que ultrajaram a consciência da Humanidade e que o advento de um mundo em que os homens gozem de liberdade de palavra, de crença e da liberdade de viverem a salvo do temor e da necessidade foi proclamado como a mais alta aspiração do homem comum.”

Note-se que os dirigentes das nações reunidos na ONU, afirmam que desprezar e desrespeitar os direitos humanos resultam em “ATOS BÁRBAROS’. Ou seja, tanto a Declaração dos Franceses como da ONU reconhecem a importância do cidadão e exaltam seus direitos. E, portanto, a defesa dos direitos da pessoa, bem como cada pessoa se empenhar na busca de seus direitos é uma forma de exercício de cidadania.

Essas duas Declarações nos colocam diante da nossa Constituição (que pode ser acessada na integra em: https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/518231/CF88_Livro_EC91_2016.pdf).

Nossa lei maior também se fundamenta na defesa do ser humano. Logo no artigo primeiro podemos ler que vivemos num país constituído com base no “Estado Democrático de Direito”. E esse Estado tem como fundamento: “I–a soberania; II–a cidadania; III–a dignidade da pessoa humana; IV–os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; V–o pluralismo político.”

Mas, pode-se perguntar, qual a fonte desses fundamentos? No parágrafo único do primeiro artigo está a explicação: “Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.”

Ou seja, as autoridades não existem para outra coisa que não seja a defesa dos direitos do povo. As autoridades não existem para si, mas para o povo.

Por isso, no artigo terceiro da nossa Constituição estão previstos os “objetivos fundamentais”, ou a razão de existir o Brasil. “I–construir uma sociedade livre, justa e solidária; II–garantir o desenvolvimento nacional; III–erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV–promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”

O exercício da cidadania, em nosso país, consiste nisso. E, também nisto se fundamenta a dimensão ética do exercício da cidadania. Ou seja, reconhecer e tornar público que no caso das autoridades não construírem ou não colaborarem com esses objetivos e esses fundamentos elas passam a ser ilegítimas e um atentado contra a cidadania. E, por outro lado, cabe aos cidadãos, fazerem um esforço para que estes direitos sejam instalados e, ao mesmo tempo, cobrar das autoridades o pleno cumprimento da lei maior do país, visando a plena proteção dos cidadãos.





Neri de Paula Carneiro

Outros escritos do autor:

Filosofia, História, Religião: https://www.webartigos.com/index.php/autores/npcarneiro;

Literatura: https://www.recantodasletras.com.br/autores/neripcarneiro.

sábado, julho 31, 2021

Alimento que se perde ou que permanece?

Reflexão a partir de: Ex 16,2-4.12-15; Ef 4,17.20-24; Jo 6,24-35




O que nos faz aderir ou recusar uma ideia ou um projeto social, religioso, político…? Por que defendemos isto ou aquilo e condenamos outras tantas coisas?

A resposta não poderia ser outra: nossos interesses! Aderimos ou recusamos algo se esse algo satisfaz, ou não, nossos interesses.

Podemos observar isso em nosso cotidiano e na vida das pessoas com as quais convivemos. Buscamos aquilo que nos interessa e recusamos o que não nos agrada, que foge ou que vai contra nossos interesses. Mas isso não ocorre somente entre nós. Também percebemos isso entre os filhos de Israel, no livro do Êxodo (Ex 16,2-4.12-15), da mesma forma que nas palavras de Jesus, narradas por João (Jo 6,24-35).

Em síntese: São os interesses que movem o mundo. E se quisermos emprestar as palavras de Jesus, podemos dizer que “onde está o teu tesouro, aí está o teu coração!” (Mt 6,21)

Mas se os interesses movem o mundo e as ações das pessoas, como entender as atitudes dos filhos de Israel? Compreensível que estivessem insatisfeitos com a servidão egípcia. Seu interesse, portanto, era a libertação. E por isso clamaram ao Senhor que os libertou. Mas agora livres, no deserto, estão insatisfeitos! Reclamam da alimentação e sentem saudades do que deixaram no Egito! E, novamente, clamam ao Senhor, no seu “murmurar contra Moisés e Aarão, no deserto” (Ex 16,2).

Algo semelhante percebemos nas palavras de Jesus, ao interpelar as pessoas que o procuravam. “Em verdade, em verdade, eu vos digo: estais me procurando não porque vistes sinais, mas porque comestes pão e ficastes satisfeitos” (Jo 6,26).

Com isso Jesus afirma que a cena da multiplicação dos pães não foi só um sinal-milagre, mas uma ação social; ao mesmo tempo mostra qual grupo social o procura: os mais pobres; aqueles que nada possuem para comer; aqueles que seguem Jesus porque ele age estimulando as pessoas a se envolvam no processo da partilha. Ou seja, o milagre de Jesus não foi gerar pão, a partir do nada, mas consistiu em criar as condições para a partilha do que já existia entre as pessoas. E hoje a situação é a mesma: Já existe alimento, para todos, e com sobras. Não falta alimento, o que falta é partilha.

Temos, então a seguinte situação: o fenômeno da partilha decorre da boa vontade ou dos interesses das pessoas. Ela pode ocorrer se as pessoas desenvolverem esse interesse: se estiverem interessadas em ser solidárias. Diante disso Jesus interpela quem o procura, chamando a atenção para uma correção de rumos. Primeiro mostra que a partilha é fundamental; que é um sinal do Reino; além disso diferencia aqueles que são seus seguidores (os que sabem partilhar) e aqueles que dificultam a prosperidade de Reino e acumulam de forma excessiva. Por isso a verdade desta afirmação: o que falta para muitos é o que sobra entre alguns.

Só que Jesus dá um passo a mais. Mostra que, na ótica do Reino, o ponto de chegada não é o pão cotidiano, mas o Reino daí a importância de aderir àquilo que conduz à vida eterna. Demonstra que o acesso ao reino e a vida eterna passam pela partilha, mas a partilha é caminho ou um meio para se chagar ao Pai. A partilha é sinal de que houve compreensão dos caminhos do Reino. “Esforçai-vos não pelo alimento que se perde, mas pelo alimento que permanece até a vida eterna, e que o Filho do homem vos dará” (Jo 6,27).

Os interlocutores de Jesus entenderam seu apelo e pediram: “Senhor, dá-nos sempre desse pão” (Jo 6,34). E Jesus esclarece, afirmando que ele é o pão eterno. Mostra também, com o gesto da partilha, que o pão eterno, aquele que alimenta para a vida definitiva, nasce e se desenvolve na mesma proporção em que ocorre partilha. Quanto mais cresce a sociedade sem excluídos, mais próximos estamos do Reino definitivo. Jesus explica o motivo: “Eu sou o pão da vida. Quem vem a mim não terá mais fome e quem crê em mim nunca mais terá sede” (Jo 6,35).

E se isso vale para a multidão que procurava por Jesus, a fim de ser saciada, vale também para os filhos de Israel, reclamando no deserto. E para nós, em nosso cotidiano!

E para nós, talvez aqui esteja a grande lição: é necessário reclamar contra a situação na qual se está sofrendo, pois nosso interesse é a felicidade. Mas, também é necessário o esforço pessoal e social, para superar essa situação. Quando as forças pessoais e do grupo são insuficientes, a ajuda não vem da lamentação; não vem daqueles que se prostram na reclamações; não vem dos que se acomodam na miséria; não vem das promessas politiqueiras em tempo de eleição… a força e as soluções nascem da confiança no Senhor e da organização popular!

Daí a necessidade de nos lembrarmos: Deus não fará por nós aquilo para o quê nos deu forças de realizar. Dessa forma podemos entender a afirmação de Paulo aos Efésios, dizendo ser necessário renunciar à existência passada e concentrarmo-nos num novo centro de interesses. “Despojai-vos do homem velho, que se corrompe sob o efeito das paixões enganadoras, e renovai o vosso espírito e a vossa mentalidade. Revesti o homem novo, criado à imagem de Deus, em verdadeira justiça e santidade” (Ef 4,22-24).

E isso nos leva à indagação que deriva da proposta de Jesus. Isso nos leva a nos indagarmos sobre qual alimento queremos para nortear nossa vida: o que se perde ou o que permanece?



Neri de Paula Carneiro

Mestre em educação, filósofo, teólogo, historiador

Outros escritos do autor:

Filosofia, História, Religião: https://www.webartigos.com/index.php/autores/npcarneiro;

Literatura: https://www.recantodasletras.com.br/autores/neripcarneiro.



quinta-feira, julho 22, 2021

Para que nada se perca - O povo passa fome





Reflexões baseadas em: 2Rs 4,42-44; Ef 4,1-6; Jo 6,1-15




Aconteceu em 1980, em Teresina. Na época, o papa João Paulo II – hoje santo canonizado – viu uma faixa, em meio à multidão: “Santo Padre, o povo passa fome”. No mesmo instante rezou: “Pai nosso, o povo passa fome”. Mas não era só comida, o povo também desejava acesso a direitos sociais, políticos… o povo queria sair da situação de pobreza. Por isso apelou ao papa: o líder religioso, talvez, pudesse ajudar nas questões sociais, em favor dos necessitados.

Alguns séculos antes de Cristo, as pessoas sofriam com as dificuldades, em meio à pobreza (2Rs 4,42-44). Houve fome na região, diz o livro dos Reis. Foi assim que, ao ver uma pequena multidão à sua frente, “Eliseu, o homem de Deus”, ensinou o caminho da partilha: vinte pães alimentaram as cem pessoas.

Entre estes dois episódios encontramos outro personagem e seu gesto revolucionário. Trata-se de Jesus de Nazaré, (Jo 6,1-15) alimentando a multidão. Aqui, entretanto, é possível que alguém diga: para Jesus foi fácil dar alimento a “aproximadamente cinco mil homens”.

Não foi, e digo o porquê. Também para não cometermos uma injustiça contra Jesus ou Eliseu, nesta lição de partilha. Temos que dizer, com todas as letras da palavra santa: Não foi Jesus quem deu o alimento! O mesmo vale para o livro dos Reis, narrando o gesto de Eliseu. A partilha ocorreu porque alguém ofereceu o que tinha. E isso dezenove séculos antes do ateu Karl Marx propor a partilha socialista/comunista.

Um grupo estava passando necessidade e chegou “um homem de Baal-Salisa, trazendo em seu alforje para Eliseu, o homem de Deus, pães dos primeiros frutos da terra: eram vinte pães de cevada e trigo novo” (2Rs 4,42). Quem acompanhava Eliseu até argumentou: isso é muito pouco para cem pessoas. Mas o “homem de Deus” não deu ouvido para a postura negacionista. Simplesmente mandou que tudo fosse distribuído. Eliseu disse apenas: “Dá ao povo para que coma; pois assim diz o Senhor: ‘Comerão e ainda sobrará’” (2Rs 4,43). Como se vê Eliseu apenas organizou e direcionou a postura socialista do homem de Baal-Salisa. Todos comeram e “ainda sobrou, conforme a Palavra do Senhor” (2Rs 4,44). Qual a lição? Onde há partilha não há fome!

Com o papa João Paulo II não houve partilha de pão, mas de consciência de Igreja. Aquela faixa e as palavras do santo padre, em plena ditadura militar, chamaram a atenção do mundo para a situação do Brasil, para as condições de vida do povo, para a miséria provocada pela concentração de rendas. O santo padre, da mesma forma que Eliseu, foi apenas o mediador de uma nova proposta de partilha. Ao afirmar que o povo passa fome, está afirmando que alguns concentraram muito e o que eles têm a mais é o que falta na mesa dos que passam fome, os amados de Deus.

Mas, entre João Paulo e Eliseu, está Jesus.

E o que o Homem de Nazaré ensina? O mesmo que ensinou a Eliseu e o papa: o caminho da partilha. Da mesma forma que Eliseu, Jesus nada tinha para distribuir. Sabia o que ia fazer (Jo 6,6), mas ele não tinha alimento para a multidão. Tinha sua palavra salvadora, mas não os pães e peixes. Tinha palavras para a vida eterna, mas não alimento para a barriga. O que tinha, Jesus distribuiu: primeiro ele valorizou a oferta de quem partilhou para servir ao outro: “Está aqui um menino com cinco pães de cevada e dois peixes” (Jo 6,9); em seguida ele ensinou a organização para atingir o objetivo: “Fazei sentar as pessoas” (Jo 6,10).

Jesus sabia que as multidões o procuravam para sair das dificuldades e enfermidades. Por isso lhes dava o que queriam e o que precisavam. Jesus os curava. E, em relação à fome, valorizou a fé, que eles já possuíam. E usou dessa fé para evidenciar o caminho da solução para os problemas. Uma solução que depende daquilo que podemos oferecer para o outro. Por isso ensinou a organização para a partilha do pão e do peixe que alguém estava oferecendo.

Jesus multiplicou, e continua multiplicando, aquilo que temos para oferecer. Se ofertamos bastante, a multiplicação é maior, mas se apresentamos apenas nossas mesquinharias, essa será nossa recompensa. Mas, acima de tudo, Jesus ensina que, para os problemas sócio-políticos, as soluções também são sócio-políticas. A oração vem como motivação para a luta, para desenvolver consciência de classe e de organização social; ajuda a ter humildade para agradecer. Mas as soluções devem crescer entre nós.

Os negacionistas agem como Felipe: “onde iremos comprar tanto pão?” (Jo 6,5); ou como André: “Nem duzentos mil bastariam para atender a todos” (Jo 6,7). Mas Jesus, que sabe das coisas diz, simplesmente: “Manda o povo se organizar!” (Jo 6,10). Contra a mesquinharia de alguns, a organização popular é a solução.

Neste ponto somos levados à conclusão, apontada por Paulo (Ef 4,1-6). Ela é simples: se há um só corpo, um só Espírito, um só Senhor, uma só fé e somente um Deus e sabendo que esse que é único ensina o caminho da partilha para um mundo socialista e solidário, então todo aquele que age contra essa proposta divina, não é de Deus! Não vem de Deus!! Não leva a Deus!!! Pois o Deus, Pai do Senhor Jesus, que nos dá seu Espírito de Amor, é um Deus da Partilha; é um Deus da solidariedade; é um Deus da vida.




Neri de Paula Carneiro

Mestre em Educação, Filósofo, Teólogo, Historiador

Outros escritos do autor:

Filosofia, História, Religião: https://www.webartigos.com/index.php/autores/npcarneiro;

Literatura: https://www.recantodasletras.com.br/autores/neripcarneiro.


quinta-feira, julho 15, 2021

Ovelhas sem pastor

Reflexões baseadas em: Jr 23,1-6; Ef 2,13-18; Mc 6,30-34







Lobos ferozes. Vorazes. Insaciáveis.

Assim podemos descrever a grande maioria dos integrantes de um grupo que subverteu a ordem política da política. E não estou falando nem da esquerda nem da direita. Estou falando de um grande grupo dentro de um grupo social que se dedica à política partidária. Desse grupo apensas uns poucos não se transformaram em lobos ferozes. Vorazes. Insaciáveis…. Inescrupulosos.

Alguém pode perguntar, baseado em quê você afirma isso?

Nas palavras de Jesus, respondo (Mc 6,30-34). Mas se forem necessários mais argumentos, posso recorrer também às palavras de Jeremias (Jr 23,1-6). Paulo também me dá razão (Ef 2,13-18).

O desavisado pode dizer: As palavras de Jesus, em Marcos e a profecia de Jeremias estão se referindo aos pastores. O que tem isso a ver com a voracidade dos lobos?

Certo, a condenação é feita aos pastores. Mas, os pastores sendo negligentes, qual a consequência para o rebanho? (E, para que não haja dúvidas, a metáfora refere-se aos dirigentes de qualquer grupo religioso, independente da denominação ou placa devocional!)

O rebanho abandonado pelos pastores fica a mercê da ferocidade voraz dos lobos. Por esse motivo a irritação de Jeremias: “Ai dos pastores que deixam perder-se e dispersar-se o rebanho de minha pastagem” (Jr 23,1). Esses pastores afugentaram e dispersaram o rebanho – o povo de Deus. Da mesma forma que olhando o povo abandonado – o rebanho escolhido – Jesus se compadece; ao ver “uma numerosa multidão e teve compaixão, porque eram como ovelhas sem pastor” Mc (6,34).

Abandonado pelos pastores, o povo – rebanho escolhido – tornou-se vítima dos lobos. E quem são os lobos? Todos aqueles que se aproveitam do povo; produzem as dores do povo; enganam o povo… Todos os lobos sedentos e insaciáveis que, prometem de tudo aos necessitados, esbravejam contra tudo que prejudica ao povo, entretanto, usam disso para se popularizar e, dessa forma, mais enganar ao povo. Um exemplo disso é o corrupto afirmando que vai combater a corrupção!!!

Ao aceitar ou defender essas distorções o pastor acaba sendo parceiro do lobo. Aliás, torna-se pior do que o lobo, pois em troca de vantagens pessoais induz o rebanho/povo a ser devorado/enganado pelos lobos.

Entre os indivíduos do povo/rebanho não cessam as dificuldades. Para ajudá-los o Senhor institui os pastores (lideres religiosos). Como auxiliares para sanar os problemas, também se criam as instituições políticas. Ambos a serviço da população. Uma a partir da dimensão religiosa e a outra a partir de necessidades sociais. A religião não existe num mundo afastado dos problemas sócio-políticos. A religião faz parte da vida e a vida ocorre em sociedade. Sendo assim, quando a dimensão religiosa abandona o pastoreio, permite que as instituições sócio-políticas se transformem em lobos vorazes, cuja ferocidade devora a esperança da população.

Entretanto, se pastores, convertidos em lobos abandonam ao povo, o Senhor permanece fiel. Jeremias afirma que o Senhor se compromete a reunir um resto de ovelhas que não se perdeu. Esse resto se multiplicará, e será conduzido por bons pastores até que chegue aquele que fará valer a justiça. Esse, “Senhor, nossa Justiça” (Jr 23,3-6) não terá seu nome, nem seus filhos envolvidos em falcatruas, podendo, assim restaurar a esperança, libertando das garras dos lobos e maus pastores.

Contra esses falsos pastores é que Jesus se posiciona ao ver a multidão “como ovelha sem pastor”. Em favor desse povo abandonado é que Ele se compadece. E isto tem que ficar bem claro: a compaixão do Senhor nãos se deve a um aspecto religioso, mas às suas necessidade concretas de comida, casa, segurança, trabalho, saúde… Jesus sabe que o povo é devoto e orante; e também sabe que o povo passa fome! E, mais uma vez, sua compaixão tem a ver com essas necessidades básicas.

As pessoas aderiam a Jesus e seguiu os discípulos não porque os ensinavam a rezar, mas porque foram curados e saciados (a devoção todos já tinham – e hoje, continuam tendo). Jesus e os discípulos eram amados porque supriam necessidades básicas: davam saúde e comida; e com isso alimentavam a esperança de que dias melhores estavam por vir. Além disso condenavam os exploradores do povo: pastores maus e lobos vorazes.

O fato é que, na medida em que os pastores fazem mais pelos lobos que pelo povo, seu mau exemplo arrasta ovelhas desprotegidas. E, dessa forma, as ovelhas passam a seguir os lobos que as devoram. Como consequência dos maus pastores unidos aos lobos, o rebanho fica dividido ao ponto de, ovelhas enganadas, defenderem seus algozes. Daí a necessidade de se prestar atenção às palavras de Paulo (Ef 2,13-18): olhar para a postura de Jesus, que nunca esteve do lado dos poderosos. Sempre esteve do lado dos fracos, explorados e vítimas da divisão, em busca da unidade.

É necessário, portanto, que as ovelhas sem pastor, se reunifiquem a fim de construir a paz entre as vítimas, erguendo uma barreira contra os lobos. É, necessário, portanto, reaprender com Jesus que teve compaixão da multidão de ovelhas sem pastor. É necessário seguir Jesus que “começou, pois, a ensinar-lhes muitas coisas” (Mc 6,34), entre elas, como se libertar das garras dos maus pastores!




Neri de Paula Carneiro

Mestre em educação, filósofo, teólogo, historiador

Outros escritos do autor:

Filosofia, História, Religião: https://www.webartigos.com/index.php/autores/npcarneiro;

Literatura: https://www.recantodasletras.com.br/autores/neripcarneiro.

quinta-feira, julho 08, 2021

Vai profetizar!

Reflexões baseadas em: Am 7,12-15; Ef 1,3-14; Mc 6,7-13




Admiro muito da franqueza do profeta Amós. Principalmente neste trecho (Am 7,12-15) no qual afirma estar agindo por mandato divino.

Suas palavras nos ensinam que muitos daqueles que dizem estar falando em nome de Deus, muitas vezes estão defendendo um tirano ou algum usurpador da Palavra de Deus. Aqui ele denuncia os erros do sacerdote Amasias, entretanto, suas palavras valem para os dias atuais. Certamente ele condenaria muitos dos que tentam calar a profecia dizendo que “a Igreja não deve se meter em política”. Não sabem, estes, que uma das características da profecia é, justamente, a atuação política na forma de denúncia contra os monarcas e sacerdotes!

Importante notar que essa postura, recheada de hipocrisia, só condenam a postura da Igreja solidária quando ela denuncia suas mazelas, malandragens e malversação das coisas públicas. Porém, quando algum traidor da Palavra de Deus apoia o armamentismo, condena a solidariedade comprometida, alia-se a agentes do mal... não dizem que a Igreja está fora de seu oficio.

Algo semelhante podemos ver nas palavras de Paulo (Ef 1,3-14). Também o apóstolo insiste na escolha divina. E o interessante é que, enquanto Amós afirma que o chamado divino tem a ver com a denúncia das estruturas apodrecidas e geradoras de sofrimento, por seu lado, Paulo insiste no objetivo para os quais somos escolhidos. Em Cristo, Deus nos escolheu “antes da fundação do mundo, para que sejamos santos”; “para sermos seus filhos adotivos”; “para o louvor da sua glória”(Ef. 1,4-6).

Com isso somos levados à seguinte indagação: Se somos adotados para a santidade, como diz Paulo, qual o caminho a ser percorrido para atingir esse objetivo? Tanto o apóstolo como o profeta sugerem a resposta: ser agente do anúncio da mensagem divina e da denúncia das estruturas corrompidas e que impedem a plenitude da vida.

E quem nos diz isso é ninguém menos do que Jesus de Nazaré (Mc 6,7-13). Não diz, exatamente com palavras, mas ao indicar as ações que os discípulos devem executar: expulsar demônios e curar os enfermos. Com essa finalidade convocou os discípulos e “começou a enviá-los dois a dois, dando-lhes poder sobre os espíritos impuros” (Mc 6,7).

Em seu tempo, e Jesus bem o sabia, muitas doenças e sofrimentos e dificuldades pelas quais passavam as pessoas, eram vistas como coisas demoníacas. E essa demonização do sofrimento provocava um mal viver. Portanto, encarregar os discípulos de expulsar os demônios era a mesma coisa que promover a cura. E promover a cura era reintroduzir as pessoas ao convívio social. E não são poucas as vezes em que Jesus cura e manda a pessoa curada se reintegrar ao seu grupo familiar… social… religioso… passando antes pelo templo a fim de que os sacerdotes reconhecessem a cura. E isso era promoção da vida.

Nem Jesus nem seus discípulos se deliciavam com o sofrimento; não desdenhavam as dores; não menosprezavam quem os procurava em busca de alento… pelo contrário, demonstravam empatia. A todos acolhiam e ofereciam o conforto da cura. Para a dor ofereciam acalento, pois a vida de cada um era vista como coisa sagrada: dom de Deus.

Por outro lado, Jesus mostrava sua Ira Santa e indignação contra aqueles que não se dedicavam à promoção da vida. Principalmente aqueles que tinham dever de o fazer, em razão de seu ofício, como os sacerdotes… e as lideranças políticas. Contra esses e todas as autoridades, que eram verdadeiros representantes das forças demoníacas, foi que Jesus enviou seus discípulos. Contra todos os que se haviam apropriado da Palavra de Deus e a usavam contra os pequeninos.

Contra essas injustiças e posturas maldosas é que Deus escolhe algumas pessoas. Como Amós, um vaqueiro e cultivador de figos. A ele Deus incumbiu de profetizar, anunciando uma ruína iminente. Se aqueles que têm o poder da nação, não se converterem em favor dos fracos, toda a nação sofrerá. Não por castigo divino, mas por irresponsabilidade dos dirigentes. E o profeta anuncia não a morte dos que promovem a maldade, mas sua ruína: sua esposa se prostituirá; seu filho será assassinado. Deus, como ninguém mais, sabe que maus políticos causam a dor da população e a ruína da nação. Contra isso Deus chamou o profeta.

Mas, por outro lado, se houver conversão, ensina a sabedoria de Paulo: aqueles que promovem a vida, e que colocaram “sua esperança em Cristo”; aqueles que colocarem em prática a “palavra da verdade”, esses poderão ser “marcados com o selo do Espírito prometido, o Espírito Santo, que é o penhor da nossa herança para a redenção do povo que ele adquiriu, para o louvor da sua glória” (Ef 1,11-14).

E Jesus dá uma orientação final: “Se em algum lugar não vos receberem,
nem quiserem vos escutar, quando sairdes, sacudi a poeira dos pés, como testemunho contra eles!Então os doze partiram e pregaram que todos se convertessem.” (Mc 6,11-12).

E assim a denúncia do profeta e o anúncio do apóstolo se encontram na ordem dada pelo Senhor: Vai profetizar!




Neri de Paula Carneiro 
Mestre em Educação, filósofo, teólogo, historiador

Outros escritos do autor:

Filosofia, História, Religião: https://www.webartigos.com/index.php/autores/npcarneiro;

Literatura: https://www.recantodasletras.com.br/autores/neripcarneiro.


sexta-feira, julho 02, 2021

Pedro e Paulo - “O Senhor enviou o seu anjo”

(Reflexões baseadas em: At 12,1-11; 2Tm 4,6-8.17-18; Mt 16,13-19)




Na solenidade de São Pedro e São Paulo somos convidados a nos espelharmos na postura não de uma mas de duas das pedras sobre as quais Jesus instituiu a Igreja.

Não importa a denominação: católica ou qualquer das demais Igrejas cristãs. Importa que se a Igreja é cristã, não pode menosprezar ou deixar de considerar estes dois personagens:

Pedro porque, em diferentes oportunidades foi o principal personagem a contracenar com Jesus, nas andanças, nas conversas, nas orações, na explosão de entusiasmo ou, de forma equivocada, com a espada na mão, apressando-se na defesa do Senhor.

Paulo porque, como poucos, difundiu as palavras do mestre ao qual nem chegou a conhecer em vida. Mas não tem como negar que foi por sua iniciativa que o cristianismo avançou para além das fronteiras e se tornou universal.

Ambos com a mesma e única paixão: Jesus de Nazaré, o jovem que foi assassinado porque levou às últimas consequências as ideias e os ideais de amor; o jovem que ousou ouvir, olhar e descer ao nível dos marginalizados; o jovem que foi morto mas ressuscitou confirmando, contra qualquer dúvida que ainda pudesse restar, que ele era o Messias, o enviado do Pai.

Nos Atos dos Apóstolos (12,1-11) vemos encontramos Pedro acorrentado. Está preso e em risco de ser executado por ser adepto e defender e difundir a mensagem de um criminoso: Jesus de Nazaré o crucificado. Numa cena em que também podemos ver como Jesus age em defesa dos seus: Simplesmente os liberta e os coloca a caminhar.

Na segunda carta a Timóteo (2Tm 4,6-8.17-18) é Paulo quem dá o testemunho não somente de sua confiança no Cristo libertador, como também dos efeitos de sua pregação. Afinal foi Jesus que, ao lhe conceder o Espírito santificador, ofereceu as condições para que “a mensagem fosse anunciada por mim integralmente, e ouvida por todas as nações” (2Tm 4,17). Podemos dizer, sem sombra de dúvidas, que se hoje somos uma nação cristã, devemos isso a Paulo, o homem que levou a mensagem de Jesus, aos pontos mais distantes. Graças a isso a palavra de Jesus chegou a nós.

O Pedro, na cena dos Atos dos Apóstolos, pode transmitir a impressão que está abatido, como que sentindo a derrota. Ele sabe que será apresentado àqueles que assassinaram Jesus e que, certamente, os mesmos pedirão sua execução. Afinal, Herodes não age diferente dos políticos atuais. Não importa quem é a vítima, o que importa é tirar proveito de sua desgraça. Herodes quer satisfazer os Judeus e, em troca, continuar governando como se tudo estivesse bem. Entretanto, as coisas não estavam bem, pois o povo sofria; passava fome e, como sempre ocorre, somente os ricos tinham enormes vantagens com a situação. Herodes e os mandatários da época uniam-se para sugar o sangue do trabalho do povo, exatamente como ocorre em nossos dias.

Pedro representava as aspirações de libertação, justiça social. Uma sociedade sem excluídos. Uma sociedade de respeito e dignidade para todos. Plena de esperança de dias melhores. Por ter sido escolhido pelo Mestre como suporte da Igreja, Pedro sabia que podia contar com a comunidade e, dessa forma, enquanto “era mantido na prisão, a Igreja rezava continuamente a Deus por ele.” (At 12, 5). Por esse motivo, não estava abatido, pelo contrário, sabia que o Senhor não o havia abandonado. E, ao ser libertado, disse com convicção, fé e certeza: "Agora sei, de fato, que o Senhor enviou o seu anjo para me libertar do poder de Herodes e de tudo o que o povo judeu esperava!" (At 12,11). Ele sabia: o Senhor não abandona os seus…

A mesma certeza e segurança ouvimos de Paulo.

Prisioneiro, sabe que a hora de sua execução está próxima: “Quanto a mim, eu já estou para ser derramado em sacrifício; aproxima-se o momento de minha partida” (2Tm 4,6). Mesmo sabendo o destino que o aguarda, não perde o ânimo, nem a esperança e menos ainda a certeza de seu destino final. E externa isso em três afirmações fortes (2Tm 4,17-18): “O Senhor esteve a meu lado e me deu forças”, para suportar as perseguições e continuar o anúncio. “Fui libertado da boca do leão”, pois em mais de uma oportunidade fora aprisionado e correu risco de vida. “O Senhor me libertará de todo mal e me salvará para o seu Reino celeste. A ele a glória, pelos séculos dos séculos! Amém.” Afirma isso exteriorizando uma certeza norteadora da vida de quem se dedicou ao seguimento de Jesus de Nazaré.

“Eu te darei as chaves do Reino dos Céus: tudo o que tu ligares na terra será ligado nos céus; tudo o que tu desligares na terra será desligado nos céus" (Mt 16,19), fala Jesus, explicando a Pedro sua missão. E isso independe da denominação cristã. É mandato divino. Da mesma forma que a respeito de Paulo, diz o Senhor que “este homem é um instrumento que escolhi para levar o meu nome às nações pagãs e aos reis, e também aos israelitas” (At 9,15). Trata-se de uma missão que não é pequena, mas vem tendo sucesso… pois subsiste! E nossa fé nos ensina que seu sucesso, iniciou-se com Pedro e Paulo, mas hoje, depende de cada um dos que se fazem chamar de cristãos.

Pedro e Paulo, personagens que deram um rosto e um norte às palavras de Jesus: anunciar sempre. Criaram um motivo para ser Igreja: colocar-se a serviço de quem precisa, mesmo contra os interesses dos que se acham donos do mundo. Mostraram a proposta de Jesus, para a inauguração do Reino: dar voz e vez aos marginalizados. E, de fato, “o Senhor enviou o seu anjo” e o anjo nos ensinou a olhar para as duas pedras sobre as quais se assenta a Igreja.

Neri de Paula Carneiro

Mestre em educação,Filósofo, teólogo, historiador.

Outros escritos do autor:

Filosofia, História, Religião: https://www.webartigos.com/index.php/autores/npcarneiro;

Literatura: https://www.recantodasletras.com.br/autores/neripcarneiro.


sábado, junho 26, 2021

Menina, levanta-te!

(Reflexões baseadas em: Sb 1,13-15;2,23-24; 2Cor 8,7.9.13-15; Mc 5,21-43)




Estamos acostumados a fazer afirmações com certezas que nem sempre se podem confirmar. Por exemplo, costumamos dizer que Deus criou tudo. Será, isso, uma verdade?

Porém, no livro da Sabedoria (Sb 1,13-15;2,23-24) deparamo-nos com outras informações: Nem tudo! Por exemplo, a morte não é criação divina; o mal não vem de Deus!

Nem sempre pautamos nossa vida pelo amor. E nos justificamos dizendo que estamos retribuindo o que recebemos

Porém, dirigindo-se à comunidade de Corinto (2Cor 8,7.9.13-15), Paulo nos informa que a generosidade de Jesus é que deve ser o modelo, quando nos ensina a superar as necessidades com generosidade.

Essas passagens (ou perícopes) nos indicam que, efetivamente, Deus está interessado em nos conceder vida e não morte. Alegria e não sofrimento.

Mas, sendo assim, se Deus não criou a morte, de onde ela vem e porque amedronta tando o ser humano? Qual a origem das dores humanas?

O livro da sabedoria nos informa que todas as criaturas são saudáveis. Deus “criou todas as coisas para existirem” (Sb 1,14), e não para perecerem. E o ser humano para a imortalidade. Deus fez o ser humano à imagem de sua própria natureza: um ser para a vida. (Sb 1,23)

Confirmando tudo isso, Jesus, de acordo com Marcos (Mc 5,21-43), enfrenta a morte e a enfermidade: cura a mulher enferma e restitui a vida da criança. Ele quer a saúde e a vida!

Na primeira cena, impedindo que continue se esvaindo a vida de uma senhora. Aquela que, movida pela fé, toca as roupas do mestre recebe um novo fluído de vida: “Tua fé te curou” (Mc 5-34). Isso para nos dizer que não só as crianças são privilegiadas, mas também aqueles que já estão num estágio maduro de sua vida. Para esses também Deus oferece uma vida melhor.

Essa defesa da vida é reforçada na segunda cena, quando Jesus traz de volta à vida uma criança já morta. O que uma criança significa? Vida! Início e plenitude de vida. Notemos alguns detalhes apresentados por Marcos, sobre a recuperação da menina. Começa com a súplica do pai, pedindo pela filha: “Vem e põe as mãos sobre ela, para que ela sare e viva!” (Mc 5,23). Se a menina estava doente, não era suficiente sarar? O pai quer a recuperação da saúde, sim, mas também quer que a filha participe da vida. Então, que ela sare e viva, e isso é dom de Deus.

E o que faz Jesus? Pega as mãos da criança, como a conduzi-la. E de fato Jesus a conduz da morte para a vida. Ela é reintroduzida na vida: “Menina, levanta-te!” Por que levantar-se? Para se colocar na postura de quem está disposto a caminhar. E ela “começou a andar” na vida nova. Mas, para que a vida não se enfraqueça, Jesus manda que ela seja alimentada, para fortalecer a vida (Mc 5,41-43). A falta de alimento prejudica a vida, desumaniza. A fome, num mundo com tanta comida, prejudica a humanidade, prejudica a vida.

Milhares de pessoas, adultos e crianças, passando fome ao redor do mundo, não é vontade de Deus; a fome no mundo é produto humano. A pobreza, no mundo, é produto humano. Contra essa situação é que se coloca o discurso de Paulo: primeiro afirmando a necessidade da generosidade. E com isso colocando as bases de uma sociedade comunista, de partilha. Não se trata de tomar de um para dar ao outro. Trata-se, apenas de ter um coração generoso e aberto à partilha: “Não se trata de vos colocar numa situação aflitiva para aliviar os outros; o que se deseja é que haja igualdade. Nas atuais circunstâncias, a vossa fartura supra a penúria deles” (2Cor 8,13-14), ensina o apóstolo. E isso foi ensinado antes de qualquer ideologia político-partidária ou econômica!

Como se vê o problema do mundo, não é a fome nem a pobreza, mas o fato de que alguns possuem mais do que o necessário par sua existência; esse excedente é o que falta à quele que só possui a penúria.

E isso no leva, de volta, ao livro da Sabedoria, informando-nos que Deus fez todas as coisas com saúde, para a vida e não para a morte. E, mais ainda, “Deus criou o homem para a imortalidade (Sb 2,23). Sendo assim voltamos à indagação inicial: De onde vem a morte e os sofrimentos?

O autor do livro da Sabedoria é taxativo: Isso não é coisa de Deus. “Foi por inveja do diabo que a morte entrou no mundo, e experimentam-na os que a ele pertencem” (Sb 2,24) (E aqui se está falando da morte como ausência de Deus e não como finitude da matéria). Ou seja, o mal entrou no mundo pelas mãos do ser humano, mas sob orientação do “Pai da Discórdia”.

E todos “os que a ele pertencem” disseminam o mal, as dores, os sofrimentos… a morte. Em cada ato ou palavra que nega ou dificulta a plenitude da vida está uma ação demoníaca. Deus fez o ser humano com capacidade para resolver os problemas que enfrenta. Mas impedir que as soluções se disseminem melhorando a vida de todos, é coisa do anticristo.

Os representantes e disseminadores da maldade, que não é coisa de Deus, tanto podem estar na política como no mundo dos negócios; tanto podem estar nas relações familiares como na divulgação de fofocas e mentiras. Tanto podem estar num líder comunitário que alimenta a discórdia como num líder religioso em busca de autopromoção e dinheiro. Tanto podem estar nas igrejas, que supervalorizam as coletas e dízimos, como no sistema médico ou jurídico que não tem o ser humano como referência. Um político que cria dificuldade para que um medicamento chegue ao enfermo, um marido que maltrata ou atormenta a vida da esposa ou dos filhos, um médico que se preocupa mais com seus honorário que com a vida dos pacientes… e todos aqueles que pensam mais em si e se colocam acima dos outros… são representantes do Pai da Maldade. E isso não é de Deus!

A solução e alternativa para tanta maldade está no exemplo de Jesus, que não quis ostentar sua ação na cura da menina. Apenas a tomou pela mão e a convidou: menina, levanta-te!




Neri de Paula Carneiro

Mestre em Educação, filósofo, teólogo, historiador.

Outros escritos do autor:

Filosofia, História, Religião: https://www.webartigos.com/index.php/autores/npcarneiro;

Literatura: https://www.recantodasletras.com.br/autores/neripcarneiro.

domingo, junho 20, 2021

OS PRÉ-SOCRÁTICOS

Nem sempre nos damos conta disso, mas a história e a geografia são importantes luzeiros para nos ajudar a entender fenômenos sociais. E também para nos ajudar a entender o desenvolvimento do saber. Vamos procurar entender o desenvolvimento da filosofia levando isso em consideração.





O Ambiente grego

A realidade humana não é determinada, mas fruto de circunstâncias e atitudes humanas inseridas num ambiente específico. Assim nasceu o que podemos chamar de filosofia grega.

Aquilo que hoje chamamos de Grécia, no início era apenas um conjunto de ilhas e cidades-estado independentes entre si. Por vezes relacionando-se amistosamente outras vezes guerreando entre si. Mas, também mantinham em comum alguns elementos culturais. Um desses traços comuns era a língua e o panteão (conjunto de deuses) mítico

Em função de seu relevo, distingue-se a Grécia continental, a região insular e as colonias gregas. E tanto nas ilhas como no continente desenvolveram-se as cidades-estado; muitas dessas cidades, em virtude da exiguidade territorial formaram colônias no litoral do mar Egeu, e Mediterrâneo o que formava a Magna Grécia.

Essas colônias tiveram importância fundamental no desenvolvimento da filosofia grega. Devido à intensa movimentação comercial desenvolveu-se profunda interação cultural e mútuas influências, formando o mundo grego.

Essa interação cultural possibilitou comparações entre os diferentes grupos envolvidos no processo. E isso gerou a pergunta: Se estamos falando sempre do mesmo mundo e das mesmas realidade, por que tantas respostas diferentes para explicar a mesma realidade? Onde está a verdade?

Aqui, entretanto, cabe uma observação: Embora o período áureo da filosofia tenha se concentrado em Atenas, os primeiros filósofos são originários das colônias. Por exemplo, Tales é da cidade de Mileto, Pitágoras é de Samos, Demócrito é de Abdera, Aristóteles é de Estagira.

Não se pense, entretanto, que as explicações míticas foram abandonadas da noite para ao dia. Pelo contrário. Houve um longo processo de transição pelo qual as explicações míticas foram sendo postas em cheque, enquanto se buscavam novos conhecimentos.





Períodos filosóficos

Atualmente é dada pouca ênfase à periodização da história. Valoriza-se a afirmação de que toda a história é um só encadeamento de fatos. Esse mesmo princípio vale para a filosofia. Mesmo assim, apenas para facilitar a situação temporal, com finalidade puramente ilustrativa, pode-se dizer que a história da filosofia pode ser estudada em seis etapas ou períodos:

Pré-Socráticos: O inicio, nas colônias gregas;

Período Clássico: Atuação de Sócrates, Platão e Aristóteles;

Período Helênico: Depois de Aristóteles até o inicio da Idade Média;

Período Medieval: Toda a Idade Média;

Período Moderno: Do Renascimento até a Revolução Francesa;

Período Contemporâneo: Da Revolução Francesa até nossos dias.

Em seu nascimento, a filosofia grega tinha um objetivo: explicar racional e coerentemente o mundo. Com o transcorrer dos anos esse objetivo foi se aprimorando e novas temáticas foram sendo incorporadas à reflexão filosófica. Hoje podemos estudar a história da filosofia tanto pela sua evolução cronológica como pelas abordagens temáticas.

E mais ainda: a história da filosofia não se faz da mesma forma que a história geral da humanidade. A história da Filosofia é a história de como e porque o pensamento filosófico assumiu determinadas característica, em cada época.

Na realidade a história da filosofia também é um exercício filosófico.





Os filósofos da Natureza

O primeiro grupo de pensadores dos quais temos notícias foram os que realizaram a transição das explicações míticas para a explicação filosófica.

Esses pensadores queriam entender e explicar a mecânica e as origens do mundo. São conhecidos como pré-socráticos ou filósofos da natureza.

Isso significa que se fosse feita uma pergunta sobre o tema central desenvolvido por esses primeiros pensadores veremos que se ocuparam em explicar de que se constitui a natureza, o mundo.

Infelizmente pouco restou de seus estudos, na forma escrita. O que nos restam são fragmentos ou o que dizem deles os que os sucederam. Notemos que aqui já temos uma questão para a história da filosofia: Por que pré-socráticos? Porque filósofos da natureza? Por que os autores se referem a esses pensadores de diferentes formas? Se pouco restou desses escritos, como saber que efetivamente são importantes?

A importância dos pré-socráticos não está no fato de terem dado o pontapé inicial para a filosofia grega, mas porque seus sucessores nos remetem a eles e às suas intuições e descobertas. Aristóteles e Platão frequentemente os mencionam para reforçar suas afirmações.

Nossa experiência cotidiana nos mostra isso: quando precisamos de ajuda buscamos quem tem condições de nos socorrer. Assim também no universo do saber. Daí a referência aos pré-socráticos, uma vez que colocaram questões que ainda hoje são pertinentes.

No livro: “O mundo de Sofia”, J Gaarder, faz o seguinte comentário a respeito da filosofia dos pré-socráticos: “Acima de tudo, procuravam compreender os processos da natureza através da observação da própria natureza. Isso é completamente diferente da explicação do relâmpago e do trovão, do Inverno e da Primavera, por meio da referência aos acontecimentos no mundo dos deuses. Desta forma, a filosofia libertou-se da religião. Podemos afirmar que os filósofos da natureza deram os primeiros passos em direção a um modo de pensar “científico”. Assim, abriram caminho a toda a posterior ciência da natureza .





Por que pré-socráticos?

Essa denominação pode nos conduzir a equivoco, pois não se refere, exclusivamente, a um grupo anterior a Sócrates (470-399aC). Alguns inclusive foram seus contemporâneos, como Leucipo e Demócrito (460-370aC).

Inicialmente pode-se dizer que essa é uma distinção didática. Serve como elemento diferenciador de um grupo de pensadores para outro grupo.

São, também, chamados de pré-socráticos porque dedicam-se a uma temática diferente daquela inaugurada por Sócrates e Platão.

Os pré socráticos queriam entender os mecanismos da natureza, ao passo que Sócrates voltou-se para a compreensão do ser humano, seus comportamentos em sociedade. Daí que os pré-socráticos também são chamados e filósofos da natureza enquanto Sócrates e seus sucessores são vistos como penadores do período antropológico (ocupam-se com o ser humano)

Outra vez podemos nos valer das palavras de J Gaarder, no livro “O mundo de Sofia”, dizendo que:

“Era comum entre os primeiros filósofos acreditarem que havia um elemento primordial responsável por todas as transformações. A forma como teriam chegado a este pensamento não é clara. Sabemos apenas que ele surgiu da concepção, segundo a qual, teria de haver um elemento primordial, que daria origem a todas as transformações da natureza.

[…]

Podemos constatar que se questionavam sobre a forma como aconteciam certas transformações na natureza. Procuravam descobrir algumas leis naturais eternas. Desejavam compreender os fenômenos da natureza, sem recorrer aos mitos tradicionais.”

Em síntese, podemos dizer que a temática dos filósofos deste período era a natureza, procurando entender como e porque ela apresenta esse e não outro processo; como e porque ocorrem os diferentes fenômenos. Temática esta que permanecerá até o período socrático, quando os temas se voltarão para o homem e a vida em sociedade.





As escolas

A não ser com algumas exceções, não temos mais acesso ao que escreveram os pré-socráticos. Por esse motivo somente os conhecemos porque foram mencionados pelos seus sucessores, que comentaram seus ensinamentos; ou mediante algumas fragmentos do que disseram.

Alguns autores agrupam os vários pensadores desse período a partir de sua localidade de atuação. Esses grupos são chamados de Escolas.

Temos assim uma Escola Jônica, referindo-se aos pensadores que viveram nessa região. Quase todos na cidade de Mileto. Assim temos: Tales de Mileto, Anaximandro de Mileto, Anaxímenes de Mileto, Heráclito de Éfeso.

Outra é a escola Pitagórica ou escola Itálica, de onde vieram alguns de seus representantes: Pitágoras de Samos, Alcmeão de Crotona, Filolau de Crotona e Arquitas de Tarento.

Podemos mencionar, também a Escola Eleata. Alguns de seus representantes: Xenófanes de Colofão, Parmênides de Eléia, Zenão de Eléia e Melissos de Samos.

Fala-se, também, de uma Escola da Pluralidade, com diferentes posturas e direcionamentos de investigação. Entre seus representantes encontramos nomes com: Leucipo e Demócrito de Abdera, Empédocles de Agrigento e Anaxágoras de Clazómena.





Os pré-socráticos: Alguns representantes

Numa visão introdutória é impossível analisar todos os pensadores deste período. Vejamos apenas alguns deles conforme alguns fragmentos transcritos Gerd A. Bornheim, no livro “Os filósofos pré-socráticos”





Tales de Mileto

O que sabemos de Tales vem de Aristóteles e mais alguns pensadores gregos e latinos posteriores. Aristóteles assim se refere a Tales:

“Outros julgavam que a terra repousa sobre a água. Esta é a mais antiga doutrina por nós conhecida e teria sido defendida por Tales de Mileto. A maior parte dos filósofos antigos concebia somente princípios materiais como origem de todas as coisas. (...). Tales, o criador de semelhante filosofia, diz que a água é o princípio de todas as coisas.”

Na matemática é conhecido o Teorema de Tales, que teria sido desenvolvido quando de uma sua visita ao Egito.





Heráclito de Éfeso

Heráclito de Éfeso é talvez um dos mais importantes pré-socráticos. Uma de suas mais impressionantes conclusões é a afirmação do “devir” para dizer que tudo muda.

Partindo disso podemos dizer que em Heráclito repousam as raízes da dialética. Sua intuição do movimento lhe permite isso. “O frio torna-se quente, o quente frio, o úmido seco e o seco úmido”; ou então, num outro fragmento: “tudo se faz por contraste; da luta dos contrários nasce a mais bela harmonia”. Todas as realidades, portanto, estão em guerra constante com seu oposto, para produzir algo diferente. “A guerra é o pai de todas as coisas e de todas o rei; de uns faz deuses, de outros homens; de uns escravos, de outros homens livres”. E talvez a mais famosa de suas afirmações “Não se pode entrar duas vezes no mesmo rio”. E isso porque “para os que entram nos mesmos rios, correm outras águas”.





Parmênides

Da mesma forma que temos poucas informações a respeito da maioria dos pré-socráticos, sobre Parmênides não é diferente, entretanto é possível situá-lo, em plena atividade, por volta do ano 500 aC.

Enquanto Heráclito afirma a constância do movimento, Parmênides afirma a imutabilidade do Ser. Além disso, enquanto seus predecessores escreveram em prosa, Parmênides escreveu em verso. Em seu poema “Sobre a Natureza” podemos ler: “E agora vou falar; e tu, escuta as minhas palavras e guarda-as bem, pois vou dizer-te dos únicos caminhos de investigação cabíveis: o primeiro (diz) que (o ser) é e que o não ser não é; este é o caminho da convicção, pois conduz à verdade. O segundo, que não é, é que o não-ser é necessário; esta via, digo-te é imperscrutável; pois não podes conhecer aquilo que não é – isto é impossível – nem expressá-lo em palavra.”.

Dessa argumentação, brotam dois princípios lógicos: o da identidade e o da não contradição. Afirma a identidade do ser: "Necessário é dizer e pensar que só o ser é; pois o ser é, e o nada, ao contrário, nada é". Os seus princípios lógicos foram, mais tarde, sistematizados por Aristóteles, no seu Órganon.





Pitágoras

Também a respeito de Pitágoras pouco sabemos. Sabe-se que por volta de 540 aC estava no auge de sua produção intelectual e teria nascido na ilha de Samos.

Para a escola pitagórica o princípio das coisas são os Números. Daí as importantes contribuições na matemática e geometria. Exemplo disso é o conhecido teorema, afirmando que a “soma do quadrado dos catetos é igual ao quadrado da hipotenusa”.

O grande problema em se estudar Pitágoras é que dos seus escritos nada sobraram. Portanto possuímos apenas referências indiretas feitas por comentadores posteriores. É o caso, por exemplo, de Aristóteles que usa a expressão “os pitagóricos”, referindo-se à escola ligada ao nome de Pitágoras. E para os pitagóricos o principio de todas as coisas são os números. Diz Aristóteles:

“Os assim chamados pitagóricos, tendo-se dedicado às matemáticas, foram os primeiros a fazê-la progredir. Dominando-as chegaram à convicção de que o princípio das matemáticas é o princípio de todas as coisas.”





Demócrito

Este pensador viveu no período de 460-370 aC, foi contemporâneo de Sócrates. Como vários dos demais pré-socráticos, seus escritos se perderam, tendo sobrado apenas alguns fragmentos. É o mais representativo da escola Atomista e, de acordo com muitos historiadores, foi o criador dessa teoria.

Para os atomistas o mundo é composto de partículas indivisíveis, os átomos, que se misturam ao acaso, dando origem a cada uma das realidades. Na teoria dos atomistas todas as realidades são constituídas a partir dos diferentes átomos que se juntam ou se separam. E assim tudo se constitui de átomos.

Neste ponto podemos indagar: Nos dias atuais, com base nas conclusões da física moderna e nos super microscópios, essa teoria se confirma ou não? Por quê? De que se constituem os átomos, segundo a física moderna? Se é verdade que as elementos internos dos átomos se movimentam ao redor do núcleo, isso significa que no interior dos átomos há espaço vazio?





Em síntese

Partindo de tudo isso podemos dizer que cada um dos pré-socráticos deu sua contribuição para o desenvolvimento humano. Colocou algumas pedras no degrau do saber. Hoje seu pensamento pode nos parecer ultrapassado ou coisa corriqueira. Entretanto, não importa como os vejamos, ultrapassado ou simplórios, o fato é que muito do que temos e sabemos começou a ser ensinado por esses pensadores. Seu mérito é, em tempos remotíssimos, ter dado o pontapé inicial.

sábado, junho 19, 2021

Quem é este?

(Reflexões baseadas em: Jó 38,1.8-11; 2Cor 5,14-17; Mc 4,35-41)




Não se ofenda, quando te pergunto: como você reage diante de um perigo iminente? de uma tempestade com muitos raios e trovões? De algo que te ameace ou represente perigo para aqueles de quem você gosta? Ou vai dizer que nada te assusta?

Não quero expor tuas fragilidades.

Não estou pensando em ridicularizar os teus medos.

Não pretendo dizer que para teus receios não existem fundamentos?

Entretanto, antes de dar minhas explicações, permita-me mais uma indagação: Você acredita que Jesus é o Cristo, aquele que pode te salvar? Te dar a vida plena? Acredita que ele é o Senhor e que nos ensina a viver em harmonia e defender a vida dos que mais sofrem?

Não estou duvidando da tua fé

Não estou, nem um pouco, pensando que tua fé pode ser fraca…

Por isso, agora explico o motivo de minhas indagações. E te devo explicações porque estas são indagações que faço a mim, também! São indagações que também a mim causam inquietação! São indagações para as quais eu também tenho que encontrar uma resposta...

E digo mais. Estou perguntando porque são indagações que Jesus fez aos seus discípulos (Mc 4,35-41). São indagações que o Senhor Deus apresentou a Jó (Jó 38,1.8-11). São perguntas nascidas do meio da tempestade. São angústias que nascem em todos os momentos de provações...

Eu e você sabemos a resposta das indagações: diante da tempestade, do perigo, das ameaças… todos sentimos medo. Alguns um pouco mais, outros um pouco menos. Alguns deixam transparecer, outros disfarçam. Alguns enfrentam as dificuldades com a cabeça erguida, outros deixam-se abater. Alguns enfrentam confiando na graça divina, outros se imaginam abandonados por Deus... em resumo, todos sentimos medo. Todos nos sentimos inseguros. Todos nos sentimos ameaçados quando algo foge ao nosso controle e a incerteza se instala.

A realidade do nossos medos expressa outra realidade: nossa falta de confiança. A todos dizemos que somos cristãos, que temos fé, que confiamos no poder absoluto de Deus; dizemos que sabemos do poder de Deus e que sua mão poderosa e salvadora nos envolve e nos protege… tudo isso nós dizemos. Mas, ao mesmo tempo, e apesar de nossa afirmação de confiança, sentimos medo! E o medo é reflexo da insegurança. E a insegurança é uma forma de falta de fé, de confiança.

Não porque não confiamos, mas porque nossa confiança é fraca, nossa fé é frágil. Nossa confiança tem por base nossa compreensão das coisas… mas desconhecemos as razões das dores ou não compreendemos as coisas com a profundidade da ciência divina. Daí sermos limitados e isso se manifesta em nossos medos.

Em resposta aos nossos medos é que o Senhor falou a Jó, do meio da tempestade. E, em sua pergunta, está uma afirmação: Mesmo sem verbalizar, Deus está dizendo ao seu servo Jó: “se eu limitei os mares, significa que eu estou no controle de tudo. Portanto confie em mim!” E se Deus pede que confiemos Nele, deveríamos não temer mais nada…. Mas o medo permanece. Permanece porque a promessa divina parece que não se enquadra em nosso cotidiano, como superação dos nossos problemas, como remédio para nossas dores.

Esquecemos que Deus não disse que não teríamos problemas. Disse que Ele está no controle. Que Ele sabe de nossas limitações. Que Ele conhece nossos medos e fraquezas…. Mas também sabe de nosso potencial! E é por esse motivo que não permite algo maior do que nossas forças… a nós cabe confiar… ou tropeçar no medo da derrota, mesmo antes da luta terminar.

Por isso Jesus recrimina os discípulos, questionando sua fé. Neste ponto encontram-se as indagações de Deus Pai e de Jesus: Deus dizendo que está no controle de tudo. E Jesus demonstrando quem, efetivamente tem o poder de a tudo controlar. E demonstra isso controlando o mar e os ventos.

Mas, se a tempestade assustava os discípulos, o domínio sobre ela, demonstrado por Jesus, também os amedronta, pois ficam se perguntando: quem é este que controla os elementos da natureza? “Quem é este, a quem até o vento e o mar obedecem?” (Mc 4,41). Constatando a incredulidade, o medo, a incerteza… é que Jesus indaga: “Por que sois tão medrosos? Ainda não tendes fé?” (Mc 4,40). Na indagação de Jesus, está uma afirmação não verbalizada: “Não temam! Eu estou no controle”

Então retomemos a indagação inicial: como você reage diante do perigo? Nossa condição humana, nos aconselha a ter medo. E isso nos leva a agir com prudência. Nossa ação prudente é uma excelente forma de manifestarmos, não só nosso medo, mas também a afirmação da nossa confiança no controle divino. (Só lembrando que controlar o medo é uma forma de demonstrar maturidade; é o ponto de partida para a coragem).

Em síntese, podemos dizer que nossos medos nos acompanham. Mas eles não devem se sobrepor às nossas ações, pois se temos problemas e dificuldades e dores e sofrimentos… também temos a mão de Deus sobre nós, ajudando-nos a superar as adversidades; mais ainda: temos em nós a centelha divina para ir em frente. Dessa forma podemos bem entender a afirmação de Paulo, na segunda carta aos coríntios (2Cor 5,14-17): “Portanto, se alguém está em Cristo, é uma criatura nova. O mundo velho desapareceu. Tudo agora é novo.”

Não precisamos mais indagar: quem é este? Mesmo com uma fé em crescimento, podemos alimentar uma certeza: temos que fazer tudo para superar as adversidades: por nós mesmos, mas sabendo que é Deus quem está no controle.




Neri de Paula Carneiro

Mestre em educação,filósofo, teólogo, historiador

Outros escritos do autor:

Filosofia, História, Religião: https://www.webartigos.com/index.php/autores/npcarneiro;

Literatura: https://www.recantodasletras.com.br/autores/neripcarneiro.

domingo, junho 13, 2021

As sementes do Reino

(Reflexões baseadas em: Ez 17, 22-24; 2Cor 5,6-10; Mc 4,26-34)




Ao falar a respeito de um galho de cedro a ser plantado no alto do monte, o profeta Ezequiel (Ez 17, 22-24) está falando sobre o povo de Israel.

Ao falar à comunidade de Corinto (2Cor 5,6-10), Paulo insiste na importância da confiança proporcionada pela fé.

Ao falar sobre o Reino de Deus, Jesus (Mc 4,26-34) o apresenta comparando-o com uma semente e com o grão de mostarda. Em ambas as comparações o reino é apresentado como algo que cresce e produz frutos.

Isso nos leva a pensar.

Quê eram os hebreus, antes da opção pelo Senhor? Um pequeno povo. Um grupo quase insignificante. Uns pobre coitados que viviam amedrontados pela ameaça dos vizinhos. Pela insegurança em relação às grandes potências da sua época. Um povo acuado numa estreita faixa de terra quase improdutiva. E, antes disso, um grupo e migrantes sem terra…. E assim por diante, poderíamos enumerar mais algumas características desse grupo de pessoas. Um grupo de pessoas que optou pela fé num Deus capaz de ouvir o clamor dos sofredores.

A partir de sua opção pelo Deus libertador, que os ajudou a sair da servidão egípcia… ocorreu um avanço. O povo ganhou personalidade. Enfrentou os problemas, tropeçou e caiu, mas teve motivações para se reerguer. E assim, porquê o povo aceitou o apelo divino, deixando de lado outras divindades, o Senhor se propôs a colocá-lo como exemplo: “Vou plantá-lo sobre o alto monte de Israel. Ele produzirá folhagem, dará frutos e se tornará um cedro majestoso. Debaixo dele pousarão todos os pássaros, à sombra de sua ramagem as aves farão ninhos” (Ez 17,23)

Assim, o povo de Deus passou a ser o povo pelo qual chegou a todas as nações – e também a nós – a proposta salvadora de Jesus Cristo… Uma salvação que passa pelo compromisso com o Senhor, da mesma forma que foi necessário um compromisso do antigo povo: compromisso de fidelidade para com Deus e solidariedade para com as outras pessoas!

E assim, vamos ao encontro de Paulo.

Como um psicólogo, o apóstolo, não só analisa nossas motivações e nossos desesperos; nossos interesses e nossos medos…. E por esse motivo, falando a partir de seu exemplo de vida e de sua confiança no Senhor Ressuscitado, nos convida a também permanecermos na confiança. Isso porque em nosso corpo de peregrinos, por vezes fazemos opções que não são as mais convenientes nem condizentes para nos aproximar do Senhor. Ou seja, vivemos como que divididos. Sabemos o que é melhor para nos levar a Deus, mas nem sempre escolhemos esse caminho. Por isso, mesmo não tendo uma “visão clara” a respeito dos caminhos de Deus, podemos e devemos nos manter no caminho da fé empenhados em “ser agradáveis a ele”.

O caminho para o Senhor, portanto, é uma opção. Entretanto devemos nos lembrar sempre de que “todos nós temos de comparecer às claras perante o tribunal de Cristo, para cada um receber a devida recompensa – prêmio ou castigo – do que tiver feito ao longo de sua vida corporal” (2Cor 5,10). E nem podia ser diferente. É a vida que levamos que vai nos levar à presença ou vai nos afastar do Senhor. Não é Deus quem nos acolhe ou nos pune; são nossas atitudes, ao longo da vida, que nos aproximam ou nos distanciam do Senhor. O Senhor está sempre nos esperando, de braços abertos, mas somos nós que devemos correr para o abraço!

Pensando nisso, em nos ajudar em nossas escolhas foi que Jesus nos apresentou a proposta do Reino: é pequeno em sua apresentação, mas grandioso em seus frutos. É como a semente que cresce sozinha, mas para crescer depende de alguém semeá-la. A nós, peregrinos da fé, cabe a missão de semear as sementes do Reino.

Mesmo que seja uma sementinha pequenina, quase insignificante, como a semente da mostarda. Semeada com fé, regada com boas obras, adubada pelo compromisso de continuar a semeadura… essa sementinha germinará e dará grandes resultados.

A semente do Reino não precisa ser grande. Precisa apenas de nossas mãos, nossas atitudes, nosso empenho… para o processo do plantio. A força da semente, quando plantada por nossas atitudes fundamentadas na fé e na confiança, germinará e produzirá.

Mas ela depende de nós.

É o Senhor que faz crescer, como o pequeno galho de cedro, mas depende de nossa atitude para plantá-lo. É o Senhor que faz germinar e frutificar a semente, mas depende de nossa atitude para jogá-la na terra.

O reino vai crescer, com certeza, mas sempre no sistema de parceria: o Senhor fertilizando a terra e nossas atitudes fazendo o plantio…




Neri de Paula Carneiro

Mestre em Educação, filósofo, teólogo, historiador

Outros escritos do autor:

Filosofia, História, Religião: https://www.webartigos.com/index.php/autores/npcarneiro;

Literatura: https://www.recantodasletras.com.br/autores/neripcarneiro.

sábado, junho 05, 2021

Pecar contra o Espírito Santo

(Reflexões baseadas em: Gn 3,9-15; 2Cor 4,13-18.5,1; Mc 3,20-35)





A Igreja é sábia ao organizar os tempos litúrgicos com os quais nos ensina a seguir os passos de Jesus. Ao redor dos eixos principais, Natal e Páscoa, circulam os períodos do Tempo Comum: períodos litúrgicos nos mostram o que podemos chamar de cotidiano da vida de Jesus.

Ao acompanharmos o cotidiano da vida de Jesus, hoje somos convidados a refletir a partir de algumas situações bem peculiares. Na leitura do Gênesis (Gn 3,9-15), assistimos à cena em que o homem, a mulher e a serpente são confrontados com seus atos. Depois encontramos Paulo, pregando à comunidade de Corinto (2Cor 4,13-18-5,1), falando da importância da fé como recurso para manter o ânimo e superar as dificuldades. Por fim encontramos Jesus (Mc 3,20-25) definindo os critérios que podem nos aproximar ou nos afastar de Deus.

Como podemos notar, o leque de lições que a Palavra de Deus nos oferece é extenso.

Poderíamos começar com as lições paulinas, afirmando que se as dificuldades sufocam é necessário manter o ânimo. Insiste em afirmar que, mesmo em meio aos dissabores, pode-se colher bons resultados. Para isso, é necessário que nos deixemos amparar pela fé e confiança no Senhor. É clara a constatação de que na medida em que o corpo perde forças o espírito se fortalece, se estiver unido ao Senhor. Essa força do espírito ajuda a vencer as dificuldades.

Superar as tribulações, em nome de Jesus, é caminho para glória eterna. “Por isso, não desanimamos. Mesmo se o nosso homem exterior se vai arruinando, o nosso homem interior, pelo contrário, vai-se renovando, dia a dia. Com efeito, o volume insignificante de uma tribulação momentânea acarreta para nós uma glória eterna e incomensurável.” (2Cor 4,16-17). Em nossos dias poderíamos dizer que a fé alimenta o otimismo e quem mantém o otimismo tem melhores condições de se aproximar de Deus.

Também podemos dizer que uma das faces do otimismo, do entusiasmo, e da capacidade de se manter animado está na autenticidade. Essa pode ser uma das lições que podemos aprender da conversa entre Deus, o homem, a mulher e a serpente, numa tarde no paraíso.

O casal do paraíso tinha tudo para o bem viver. Tinha orientações sobre o que fazer e o que evitar. Na realidade a única restrição era evitar comer aquele fruto. Fruto que a maldade das pessoas, juntamente com a palavra “nu”, identificou com sexo. E assim o comer “da árvore te proibi de comer”, virou um tabu ligado ao sexo. Principalmente porque, ao ser interrogado por Deus o homem foge de sua responsabilidade afirma que “a mulher que puseste junto de mim, me deu da árvore, e eu comi” (Gn 3,11-12) e isso virou tabu ligado ao sexo.

Esse visão maldosa, além de criminalizar a mulher, que também foi vítima, não percebeu uma mensagem mais importante que uma eventual transgressão sexual.

De fato, e isso tem que ficar claro, a transgressão não teve conotação sexual. Teve algo a ver, e nisso está a gravidade do ato, com honestidade, com caráter, com autenticidade. Adão virou transgressor não porque comeu da árvore, mas porque não assumiu o que fez e tentou se eximir culpando a mulher: “a mulher me deu eu comi”. A mulher virou transgressora não por ter provado e oferecido o fruto da árvore do discernimento (Gn 3,6), mas porque não assumiu o que fez e tentou fugir de sua culpa culpando a serpente. E Deus puniu a serpente, não por ter seduzido a mulher (Gn 3,5), mas por ter mentido e prometido o que não podia oferecer.

A sexualidade é um dom divino e não fonte do mal. Mas a dissimulação, o ato de não assumir o que se faz e culpabilizar a outros é uma transgressão mortal. Deus perdoa as fraquezas humanas, mas não pode perdoar a dissimulação, a falta de autenticidade, a enganação. E não perdoa porque quem afirma ter cometido o erro “porque o outro me induziu a isso”, não está arrependido, não se assume como alguém que erra e tenta transferir sua culpa para outro. Como Deus pode perdoar quem não se arrepende? Como pode perdoar quem não assume estar enganando aos outros e ainda tenta se fazer de vítima para dissimular sua responsabilidade, sem assumir seu erro?

E assim chegamos ao discurso de Jesus que se defronta com seus parentes que o consideram louco; com os doutores da lei que o consideram possuído por Belzebu (Mc 3,21-22). Hoje diríamos que Jesus estava sendo vítima de “fake news”! Os mentirosos tentaram enredá-lo mas ele responde com a verdade.

Com isso podemos entender não só o desabafo de Jesus, por se ver perseguido, mas também sua indignação ao perceber que os líderes do povo em lugar de levar o remédio aos sofredores afirmam que o Médico é o causador da doença. Por isso a afirmação: todos os pecados podem ser perdoados, menos o pecado contra o Espírito Santo. Isso por um motivo cristalino: o Divino Espírito Santo é um espírito da verdade, da autenticidade, da honestidade, da ciência, do amor… e quem não adere, com a própria vida, a esses dons, age contra o Espírito. E isso é imperdoável. Quem pode fazer algo de bom e voluntariamente não o faz, age contra o Espírito. E isso é imperdoável. Quem gera divisão, espalha mentiras, age contra o Espírito. E isso é imperdoável…. Esses não fazem a vontade de Deus e, portanto, não fazem parte da “família” de Jesus.

Aqueles que agem de acordo com o Espírito de amor, de vida, de ciência, de sabedoria, de diálogo, de união, de caridade, … agem em sintonia com o Espírito…. Esses são os pais, as mães, os irmãos de Jesus….




Neri de Paula Carneiro

Mestre em educação, filósofo, teólogo, historiador

Outros escritos do autor:

Filosofia, História, Religião: https://www.webartigos.com/index.php/autores/npcarneiro;

Literatura: https://www.recantodasletras.com.br/autores/neripcarneiro.

quinta-feira, junho 03, 2021

Por que a filosofia nasceu na Grécia?

Todos os homens, em todos os tempos, desenvolveram algum tipo de reflexão, explicando seu mundo. Essa reflexão pode ser entendida como um filosofar. O ser humano sempre foi pensante e perguntante e isso fez dele um ser filosofante. Entretanto, a filosofia, como é entendida hoje, um sistema lógico e sistematizado, nasceu na Grécia. Mas isso não foi um fato aleatório ou espontâneo.

Houve um contexto para isso acontecer: os problemas derivados da interpretação racional dos mitos. Ou seja, para ser racionalizada e teorizada precisou ser vivenciada. A filosofia, portanto nasce não de mentes iluminadas de pessoas com capacidades espetaculares, mas de necessidades específicas de teorização e explicação racional das realidades.

Diversos outros povos desenvolveram explicações para o mundo, o homem e as relações sociais, mas fizeram isso de forma mítica; nenhum com as características daquelas desenvolvida pelos Gregos a partir do século VII aC.




Outras cosmovisões

Sem entrar nas particularidades de cada cultura, vamos assinalar alguns exemplos de atitudes filosóficas em outras sociedades.

Podemos dizer que para os orientais o universo é mantido pelo equilíbrio de forças opostas simbolizado na filosofia do Yin e Yang. E se compararmos essa ideia de equilíbrio entre os opostos, veremos que ela possui um correlato no ensinamento de Heráclito, quando diz que: "O frio torna-se quente, o quente frio, o úmido seco e o seco úmido".

Por sua vez os hebreus explicam a origem do mundo mediante a ação criadora de Deus, que entrega sua criação aos seres humanos, como podemos perceber ao lermos no mito bíblico da criação no livro do Gênesis. Entretanto, a mesma ideia de um ser criador está presente em outras mitologias, como aquela presente nos relatos Mesopotâmicos.

Em várias culturas, de várias nações de indígenas brasileiros, encontramos narrativas míticas explicando as origens tanto daquele povo como do mundo como é conhecido por aquela civilização.

E assim por diante, cada povo tem sua explicação, sua cosmovisão a respeito do mundo e das demais realidades. Observando cada mitologia, em cada cultura diferente, podemos nos colocar a questão: Nessas mitologias pode ser encontrado algum filosofar? A resposta é sim, com a ressalva de que o filosofar – ou a filosofia – dos gregos se estruturou com critérios diferentes dos mitos, por isso essa forma de buscar e oferecer explicações deixou de ser chamada de mito para se tornar filosofia.




A diferença dos gregos

A pergunta que você deve estar se fazendo nesse momento é: Se cada civilização deu uma explicação para suas origens e as origens do mundo, por que a forma desenvolvida pelos gregos fez tanta diferença?

A resposta poderia ser simplificada ao dizermos que a estrutura lógico-sistemática dos gregos fez-se mais eficiente para o contexto sócio-político-econômico em que estava inserido o mundo ocidental. Foi essa estruturação ideológica e filosófica que ofereceu a base de organização, sustentação e manutenção para o poder político e religioso da civilização, chamada ocidental, que se desenvolveu na Europa. A Europa se fez, principalmente, a partir da filosofia grega, do pragmatismo romano e da fé cristã.

O fato é que a cultura (especificamente a filosofia) grega após Alexandre Magno (que na realidade era macedônico) permaneceu presente: inicialmente nos domínios macedônicos, mas principalmente a partir do momento em que se instalou o império romano o qual incorporou valores gregos e os disseminou em seus domínios.

Podemos dizer, portanto, que foi a civilização romana que difundiu a cultura – e a filosofia – grega, na Europa. De uma forma eclética os romanos assimilaram a cultura dos vencidos e a disseminaram pelo seu império. Séculos depois, quando a Europa já era cristã e greco-romana, esses os valores foram transplantados para a América.

A filosofia grega possibilitou, assim, a estruturação racional das realidades e das relações sociais e políticas que se desenvolveram na Europa; por sua vez a fé cristã possibilitou a organização da moralidade das relações sociais (mais tarde, já na Idade média, também as relações políticas) nesse continente, possibilitando que a cultura romana se impusesse a quase todo o mundo ocidental.

Além disso, o pragmatismo e o domínio territorial efetivado pelos romanos deram o suporte logístico para a estruturação e manutenção de uma nova sociedade que se fez a partir da junção desses três valores culturais: grego, romano e cristão. Desse modo, foi a partir desta conjuntura que nós, nas Américas, nos tornamos o que somos, pois o continente americano se fez a partir da colonização europeia.

Podemos dizer que a primeira grande característica da filosofia grega foi a superação da mentalidade mítico-religiosa. Mas houve, também, algumas condições históricas para isso ocorrer. Podem ser enumeradas várias causas ou circunstâncias a partir das quais a filosofia se desenvolveu, na Grécia.




A política

A política, entendida como o exercício da democracia, nasceu na Grécia. E esse elemento foi importante para o desenvolvimento da filosofia. Principalmente por que se deu a partir de um processo de reorganização das relações de poder. As tribos e clãs se reestruturaram dando origem às cidades-estado.

O poder que era exercido pelo “patriarca” ou pelo irmão mais velho, passou a ser exercido na cidade (polis) a partir da organização das assembleias dos cidadãos (homens livres, ricos e que tinham nascido naquela cidade).

As decisões eram tomadas com base nas decisões e na vontade dos cidadãos. Entretanto, deste exercício de cidadania estavam excluídos: mulheres, crianças, estrangeiros e escravos. A política, portanto, passa a ser não mais a vontade de um monarca, mas dos cidadãos que tomam as decisões a partir dos debates e da argumentação.

Portanto a capacidade de argumentação, nas assembleias, visando a defesa de pontos de vista ou as expectativas de um determinado grupo, exigia a clareza do raciocínio filosófico e não a subjetividade mítica.




A sociedade

Na sociedade grega, principalmente em Atenas, a mulher estava excluída do espaço público, reservado ao cidadão. Os escravos também estavam excluídos da cidadania.

Nessa sociedade a função dos escravos era exercer as atividades laborais, permitindo ao cidadão, homem rico, dispor de tempo ocioso para se dedicar à polis, à política que se desenvolve pelo debate e confronto de ideias

As relações entre os cidadãos, com tempo disponível para a troca de opiniões e informações, permitia comparar informações trazidas pelos mercadores em seus contatos com outros povos e costumes. Essas comparações eram possíveis porque a vida urbana, baseada no comércio permitia coletar informações de outras localidades e, com isso, os mitos foram sendo desmitificados.

Diferentes explicações míticas para a mesma realidade ou fato, gerou a indagação: onde está a verdade? E a resposta não mais podia ser mítica, mas racional.

A Cultura

A cultura é uma expressão da sociedade. Mas no caso grego isso tem um significado especial. As cidades-estados estavam voltadas para o exterior, para o comércio. Havia poucas relações intracontinente. Mas por mar e com povos diferentes havia intenso intercâmbio não só comercial, como também cultural. Assim os gregos recebiam muitas informações de outros povos que lhes traziam valores culturais diferentes.

Esse intercâmbio possibilitou assimilar novas informações que, cruzadas com seus conhecimentos, possibilitaram novas conclusões. Os gregos aprenderam muito com os povos com os quais mantinham relações comerciais. E isso foi sendo incorporado ao seu substrato cultural.

Entre outros elementos, a partir de influências fenícias, aperfeiçoaram a escrita alfabética, diferentemente dos ideogramas de outras culturas. Com isso ampliou-se a facilidade de se construir textos, combinando alguns caracteres para formar palavras. Essa forma de escrita facilitou também a comunicação pormenorizada dos conceitos elaborados. Dessa forma vários saberes foram anotados e reelaborados pela sociedade grega.




A economia

Este talvez seja o ponto central para a explicação do desenvolvimento da filosofia, no mundo grego. Sua economia não se baseava somente na agropecuária, como a maioria dos povos antigos. Além disso a produção não pertencia ao Estado ou ao Soberano (como no modo de produção asiático), mas ao cidadão, dono do escravo que a comercializava. A base produtiva, portanto, eram os escravos.

Os cidadãos (ou os homens livres) desenvolveram intensa atividade comercial – e industrial. Essa atividade exigia contato constante com outras culturas e valores. A utilização da moeda, além de facilitar as transações comerciais, ajudava na troca e exigia cálculos feitos por um valor abstrato. Note-se que vários conceitos matemáticos e geométricos, ainda hoje utilizados, foram desenvolvidos ou aperfeiçoados nesse contexto.

Além disso, existiam os escravos. E, talvez, tenha sido esse o elemento determinante e grande diferenciador da economia grega em relação aos demais povos. Diferentemente de outras sociedades os escravos não estavam a serviço do Estado, mas dos cidadãos; o escravo era encarregado de desenvolver todas as atividades, permitindo ao cidadão, além de desenvolver as relações comerciais, dedicar-se ao ócio.




A comparação

A filosofia, portanto, nasce desse contexto sócio-político-econômico e cultural e da ociosidade. O cidadão ocioso (pois quem trabalhavam eram os escravos) juntamente com seus concidadãos, dedica-se ao debate e à reflexão, analisando sua sociedade, seus valores, sua cultura… apresentado novas explicações, com base na observação racional.

A comparação entre as diferentes cosmovisões os levou a questionar a verdade de cada uma delas. Estava, com isso, colocado um dos problemas centrais da filosofia: a verdade ou a possibilidade de se conhecer a verdade. Constataram que era impossível a mesma realidade ser explicada de diferentes modos e ser, simultaneamente, verdadeira em cada uma dessas explicações. Desenvolveu-se, portanto, uma nova forma de reflexão.

A validade de uma verdade se deve não ao que “eu acho”, mas àquilo que se pode comprovar, pelo raciocínio e pela argumentação.




Neri de Paula Carneiro


Mestre em Educação, filósofo, teólogo, historiador


Rolim de Moura - RO

Corpus Christi – Isto é meu corpo; isto é meu sangue

A celebração de Corpus Christi, além de ser um momento muito especial para nos integrarmos com o Sagrado Corpo e o Precioso Sangue de Cristo, também é um momento que nos ajuda a entender a dinâmica da vida celebrativa.

(Sabemos que as outras denominações cristãs fazem interpretação diferente, em relação à última ceia de Jesus, na qual celebramos a instituição da Eucaristia. Os irmãos das outras igrejas cristãos, de algum modo e à sua maneira, também celebram a Santa Ceia, ou a Ceia do Senhor, recordando sua entrega definitiva).

Uma das características do cristianismo, mais especificamente na Igreja Católica, é representar as circunstâncias da vida de Jesus nas celebrações. Grandes exemplos disso são as comemorações do Natal e da Páscoa, o nascimento e a glorificação de Jesus. Além disso, quando a comunidade acolhe um novo membro, mediante o batismo, está recordando o batismo de Jesus. A proposta de jejum e penitência lembra os quarenta dias que Jesus passou no deserto. E assim por diante, em relação a várias celebrações e circunstâncias da vida do Mestre.

Isso se aplica, também, de modo muito específico, à celebração da Eucaristia – a missa. É quando a Igreja atualiza o supremo ato de doação de Jesus. Trata-se de trazer para nosso dia a dia o mesmo gesto de total entrega pelo qual Jesus se deixa prender, morre na cruz e ressuscita.

Esse gesto nos indica que a vida humana não se limita a uma grande interrogação a respeito do seu sentido. A ressurreição, para a fé cristã, é a mais importante evidência de que a vida tem sentido pois, além de ser um caminho para a morte, é uma preparação para a vida que vem depois. A celebração da Eucaristia, portanto, nos ajuda a lembrar que a vida tem um objetivo que é a vitória sobre a morte (1Cr 15,26). E isso nos permite concluir que a morte não é o fim, para aqueles que colocam sua esperança nas mãos do Senhor (2 Tm, 1,12).

Neste ponto alguém poderia perguntar: em que a Igreja se baseia para celebrar a Eucaristia, entendendo isso como o gesto de plena doação de Jesus e como proposta de um sentido para a vida?

Poder-se-ia dizer, simplesmente, que toda a vida cristã está baseada, no fato de Jesus ter se entregado por nós. Mas tem mais. Essa entrega está prefigurada em diferentes passagens do Antigo Testamento, como no livro do Êxodo (Ex 24,3-8). Ou, antes, quando o sangue do cordeiro é aspergido nos portais, evitando a fúria do anjo exterminador (Ex 12,23), passando entre os egípcios.

No deserto, para selar a fidelidade do povo com o Senhor, Moisés sacrifica alguns animais e com seu sangue asperge o altar e o povo, afirmando que “Este é o sangue da aliança, que o Senhor fez convosco” (Ex 24,8). Mas o sangue dos animais foi superado e, em seu lugar, temos o Sangue Sagrado do Cordeiro Santo que se oferece no altar da cruz.

A carta aos Hebreus mostra que o sacrifício de Jesus supera o sangue dos animais (Hb 9,11-15). Inicialmente o sacrifício de “bodes e bezerros” (Hb 9,12) faziam a ponte entre os seres humanos e o Senhor, purificando os corpos das pessoas. Agora o sacrifício de Cristo supera o antigo ritual uma vez que “o sangue de Cristo purificará a nossa consciência das obras mortas, para servirmos ao Deus vivo” (Hb 9,14).

Mas essa trajetória só tem sentido porque o próprio Jesus se oferece em sacrifício: ele se doa, não como um presente, mas como memória (Lc 22,19; 1Cor 11,24). E nisso reside o principal significado da celebração do Corpo e Sangue de Cristo: a presença real e definitiva do Senhor.

Em sua última refeição, sua última páscoa com os discípulos, Jesus faz a oferenda de si mesmo: "Tomai, isto é meu corpo”, fazendo do pão o seu corpo. “Isto é o meu sangue, o sangue da aliança, que é derramado em favor de muitos” (Mc 14,12-16.22-26). O vinho e o pão, deixam de ser alimento humano, para se converterem em alimento divino, uma vez que o próprio Deus, alimenta a existência; e esse alimento divino nos é oferecido pelo próprio Senhor, a fim de nos alimentarmos e nos fortalecermos para colaborarmos na construção do Reino. Por isso a afirmação de Jesus é categórica: “Isto É” meu corpo e meu sangue.

O pão e o vinho, na celebração Eucarística, deixam de ser apenas um alimento cotidiano, tornando-se corpo e sangue de um Deus que caminha, no dia a dia, ao lado do seu povo num cotidiano renovado, agora guiado pela Esperança.

Como, então, alimentar a esperança? Fazendo do alimento cotidiano, pão e vinho, a memória viva da presença real: “Isto é o meu corpo que é dado por vós. Fazei isto em minha memória” (Lc 22,19; 1Cor 11,24). É Deus quem promete, é Deus quem realiza e é Deus quem se transforma em alimento de vida e para a vida plena.

“Tomai e comei, isto é meu corpo” diz Jesus a respeito do pão; “Bebei dele todos; porque isto é o meu sangue, o sangue da nova aliança” afirma o Senhor a respeito do vinho. E Jesus explica o porquê de entregar seu sangue: “para remissão de pecados”. E assim o pão e o vinho, agora Corpo e o Sangue de Cristo, alimentam nossa vida e alimentam a esperança pois, aqueles que provam desse alimento sagrado estão sendo esperados para a festa definitiva no Reino. Isso prometeu Jesus, dizendo que “não mais beberei deste fruto da videira até aquele dia em que o hei de beber, novo, convosco no reino de meu Pai" (Mt 26,26-29).




Neri de Paula Carneiro

Mestre em educação, filósofo, teólogo, historiador

Outros escritos do autor:

Filosofia, História, Religião: https://www.webartigos.com/index.php/autores/npcarneiro;

Literatura: https://www.recantodasletras.com.br/autores/neripcarneiro.


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