sexta-feira, outubro 29, 2021

O único Senhor

(Reflexões a partir de: Deuteronômio 6,2-6; Hebreus 7,23-28; Marcos 12,28b-34)




A maioria dos cristãos aprendeu e sabe de cor os “dez mandamentos”. Talvez até você, que agora está lendo, lembra-se da catequese ou da escola bíblica… e ainda sabe recitar: “Amar a Deus acima de tudo; não usar seu Nome em vão; santificar o domingo; honrar pai e mãe; não matar; preservar a castidade; não furtar; não acusar injustamente…” e assim por diante.

Essas, entretanto, são as normas que resultam de uma crença. O pressuposto para guardar e seguir os mandamentos não são os mandamentos por si mesmos, mas a fé Naquele que os instituiu. E, dessa forma, invariavelmente chegaremos ao ponto de origem.

Nesse ponto de origem precisamos nos recordar que todos os povos dos tempos mais antigos acreditavam em várias divindades. E o povo hebreu conviveu com essas crenças politeístas.

Essa situação manifestava um problema: o contato e relação das pessoas com essas divindades. Para estabelecer o contato com essas incontáveis divindades dos tempos antigos e para manter a sintonia com elas, surgiram os sacerdotes. Cada divindade era cultuada, recebia as orações, as ofertas e sacrifícios, por meio desses sacerdotes.

Mas, como qualquer ação humana, a ação dos sacerdotes também podem se corromper e afastar-se dos princípios santificadores. Essa contingência da fragilidade humana nos permite compreender não só a função do sacerdote, como aquilo que orienta a carta aos hebreus, dizendo que os sacerdotes devem “oferecer sacrifícios em cada dia, primeiro por seus próprios pecados e depois pelos do povo”(Hb 7,27).

Anecessidade do sacerdote intercessor se explica porque o ser humano é limitado, é facilmente corruptível, deixa-se levar pelas facilidades e, principalmente, porque diviniza muitas coisas. Os povos antigos viam deuses em quase todas as manifestações da natureza e cultuavam essas divindades; e isso não é diferente hoje, quando as pessoas sociedade cultuam seus objetivos de vida: o carro novo, uma joia sonhada, uma roupa da moda, uma casa luxuosa; alta renda e gorda conta bancária…. Enfim, todas as nossas vaidades acabam se convertendo em nossos deuses.

Nesse ponto é que se aplicam os mandamentos: amar a Deus e não as coisas; descansoou repouso dominical, para que o trabalho em função de conseguir mais coisas não se converta em nosso deus; não enganar os outros em nome das nossas aparentes necessidades, para que essas coisas não se tornem nossas divindades; não matar nem furtar porque as coisas e a vida do outro a ele pertence e ambicionar o que não nos pertence é uma forma de divinização da coisa indevida…. E assim por diante podemos notar que todos os mandamentos podem ser vistos como uma forma de nos fazer olhar para a correta direção: valorizar as coisas como coisas que são e usar delas porque nos são úteis e podem nos ajudar a nos aproximarmos de Deus e dos irmãos.

Mas, ao mesmo tempo saber que essas coisas não nos completam nem são divinas…e que podemos viver sem elas! Com essa perspetiva é que podemos entender tanto a profissão de fé dos Judeus (Dt 6,4) como a orientação de Jesus de Nazaré (Mc 12,29-31).

Esses dois ensinamentos têm sua razão de ser. Diante de tantos apelos e divinização das coisas, faz-se necessário recuperar a fé no único Deus. Mas também é necessário assumir a consequência dessa fé: amar a Deus e aos irmãos, na mesma medida e com a mesmo intensidade.

Olivro do Deuteronômio (6,2-3) nos ensina que amar ao único Deus e não as coisas ou àquilo que divinizamos, tem com consequência a plenitude da vida, a felicidade e a fartura, representados pela “terra que corre leite e mel”. Essa fartura resulta do amor a Deus e não às coisas divinizadas.

A proposta, entretanto vai além. E Jesus quem o demonstra. Ao ser indagado Jesus é taxativo: Repete a profissão de fé dos judeus: “Ouve, ó Israel! O Senhor nosso Deus é o único Senhor” (Mc 12,29). Mas, como enviado daquele que é a origem e motivo da fé, Jesus complementa a lei: “O segundo mandamento é: Amarás o teu próximo como a ti mesmo! Não existe outro mandamento maior do que estes” (Mc 12,31).

Aqui está a afirmação magistral de Jesus. Todos já sabiam que amar a Deus é o maior mandamento. Mas Jesus mostra o passo seguinte: se algo a mais deve ser amado, não são as coisas divinizadas. Se algo a mais deve ser amado, esse algo a mais deve ser visto como tão importante quanto o próprio Deus. Algo que é imagem e semelhança de Deus: ou seja, a pessoa humana.

Assim temos o resumo dos mandamentos: toda ação e dedicação a Deus, passa pelo respeito ao ser humano. E o inverso também é verdadeiro: O desrespeito ao ser humano implica em desamor a Deus. O ato de fé, portanto, começa com o desapego dos pequenos deuses cotidianos, passa pela valorização/amor ao irmão e isso nos leva ao amor a Deus, pois só Ele é o Senhor.

Resta, sabermos qual é nosso Deus. Para isso temos que saber a que destinamos nosso tempo, atenção e esforços; o que amamos acima de tudo? Esse é o centro de nossa vida; esse é nosso Deus!




Neri de Paula Carneiro

Outros escritos do autor:


sexta-feira, outubro 22, 2021

Que eu veja!

(Reflexões a partir de: Jeremias 31,7-9; Hebreus 5,1-6; Marcos 10,46-52)




Quantos e quais são os empecilhos que nos impedem de nos aproximarmos de Jesus?

Esses impedimentos estão em nós ou naquilo que nos circunda?

Quase nunca somos capazes de admitir nossas fraquezas ou nossos erros; quase sempre atribuímos a outros as causas de nossos insucessos. Mas o que temos recebido de Deus e o que temos para Lhe retribuir?

Lendo esta pequena passagem de Jeremias (Jr 31,7-9) vermos o clamor do povo: “Salva, Senhor, teu povo, o resto de Israel”. Mas não é uma multidão que se dirige ao Senhor!

Ou seja, não se trata de uma multidão que chama e pede ajuda. São uns poucos. A multidão é como a ramagem das árvores, pende para o lado que o vento sopra. E os ventos das propostas enganosas sopram constantemente. E sopram com tamanha força que abalam os alicerces da fé.

Como sopram esses ventos nefastos? Pela boca de líderes religiosos, raposas disfarçadas de pastores, com intenções enganosas e interesseiras, tirando proveito da inocência do povo. Pelas artimanhas dos líderes políticos que usam o nome de deus e enganam a simplicidade presente na fé popular. Pelos veículos de comunicação de massa que massificam e manipulam as multidões domando e entregando-as aos lideres políticos e religiosos. E, de forma crescente, pelas mídias sociais(?) a mais recente ferramenta da alienação estupidificante. Suas redes pescam e afogam a inteligência na aparência da amizade… redes sociais contraditoriamente isolam as pessoas… Tudo de forma velada para a massa não perceber que está sendo levada ao matadouro, como gado gordo.

Mas uns poucos no meio do povo. Há um resto que não é assim. Esse pequeno grupo percebe os engôdos e redes lançadas pelo inimigo. Percebe como são mortais as armadilhas dos discursos inflamados daqueles que tanto usam o nome de deus como do demônio; das propagandas dizendo que tudo é fácil e simples, desde que se siga a trilha do consumo, da anulação da consciência, do endeusamento dos líderes políticos que se apresentam como messias inflamados. Os poucos, o resto do povo, esse é capaz de dizer: Não é esse o caminho para as “torrentes de água” prometidas pelo senhor. E são capazes de dizer isso porque, permanecem com os olhos abertos... enxergando!

Esses poucos são capazes de ver, porque não se colocam acima do povo, mas ao seu lado. Aliás é isso que nos ensina a carta aos Hebreus (5,1-6), afirmando que todo aquele que têm função de liderança é “tirado do meio dos homens e instituído em favor dos homens nas coisas que se referem a Deus”. Esse não se apresenta como santo salvador, mas sabe-se limitado e “cercado de fraqueza”. Seu poder é a compaixão, não a exploração; é a mediação para levar a Deus e não a enganação interesseira; sabe que não age em seu nome, mas apresenta-se a Deus com humildade, carregando os anseios do povo… são os porta-voz do povo e não seu carrasco!!!

E a nós, o que resta fazer?

Com certeza não nos cabe ajudar a manter as atitudes dos grandes deste mundo, que se fazem passar por bons meninos, mas que de fato são a causa da perdição!

Temos que tomar cuidado para não nos deixarmos associar àqueles que estão nos cargos e funções de comando, colocando cabresto no povo; nos grupos e instituições com placa falsa de ação social e que por isso escondem a alienação e a dependência que produzem. Temos que tomar cuidado para não nos tornarmos aqueles que tentam conter o cego Bartimeu (Mc 10,46-52).

Ele, cego, integrava o pequeno grupo que enxergava os fatos e gritava e clamava e pedia a ajuda de Jesus… enquanto os adoradores da discórdia tentavam impedi-lo.

Ele, cego, estava vendo o caminho a seguir, gritava… e o Senhor o ouviu; eles, com olhos perfeitos, não conseguiam ver a proposta/resposta de Jesus… e tentavam barrar o cego que via!

Contra as expectativas dos que se acham donos da verdade, do dinheiro, do poder, da moral, dos bons costumes, da família e de deus… Jesus, referindo-se ao cego que o estava vendo, disse apenas: “Chamai-o!”

Dando “um pulo” o cego que a tudo estava vendo, aproximou-se. “Que queres?” pergunta Jesus. “Quero ver!” diz o cego!

Certamente o diálogo prosseguiu com Jesus dizendo: “Você já me viu melhor do que essa multidão”. Possivelmente ele respondeu: “Mas a multidão segue qualquer um. Segue belas palavras. Quero ver o caminho por onde andas e andar contigo”. Só então Jesus lhe diz: “Tua fé te curou!”

Tua fé! Não o malabarismo do pastor charlatão. Não os shows populistas de agressão e violência. Não as migalhas deste ou daquele programa de esmola publica… foi a fé que fez ver: é na organização popular que se planta a semente da solução!

E o cego ampliou a visão. Recuperou a do corpo, para melhor ver com os olhos da alma; para melhor seguir a Jesus; para nos mostrar que Jesus não atende a inconstância da multidão. Essa multidão que enche estádios e comícios e baladas e motociatas e carreatas e passeatas e outros ajuntamentos do carnaval de mercantilização da miséria e da fé. Nisso que despersonaliza a pessoa ao som estridente que ofende a inteligência, pois só se concentra em manipular as multidões…

O cego que a tudo enxergava nos apresenta o Senhor Jesus que atende, sim, aqueles que querem ver a situação de miséria em que o povo se encontra e se esforçam e lutam contra ela. Aqueles que querem ver como transformar a sociedade para que “todos tenham vida”… Aqueles que se engajam num processo de análise e crítica dos padrões dominantes e dominadores que valorizam não o ser humano mas as aparências...

Então, quantos e quais são os empecilhos que nos impedem de nos aproximarmos de Jesus? Esses impedimentos estão em nós ou naquilo que nos circunda? Na instituições politicas, religiosas, sociais…? E, se queremos nos aproximar de Jesus, também temos que começar a pedir: Senhor, que eu veja os caminhos para ajudar a superar as misérias do meu povo!




Neri de Paula Carneiro

mestre em educação, filósofo, teólogo, historiador

Outros escritos do autor:

Filosofia, História, Religião: https://www.webartigos.com/index.php/autores/npcarneiro;

Literatura: https://www.recantodasletras.com.br/autores/neripcarneiro.

quarta-feira, outubro 20, 2021

A filosofia no Helenismo: as origens

A filosofia havia chegado a um ponto alto, com a atuação de Sócrates, Platão e Aristóteles. É natural, portanto, dizermos que na fase seguinte tenha ocorrido um relativo declínio, pois se não houve declínio a fase anterior não teria sido o cume.

Mas também não podemos negar que após esse trio de ouro seus discípulos prosseguiram suas escolas. Entretanto a conjuntura política era outra, da mesma forma que os desafios filosóficos eram diferentes. Por essa razão, no helenismo – assim se denomina este período – a filosofia procurava responder a novos problemas. Agora não mais ligados à natureza, como nos pré-socráticos; nem à explicação metafísica do homem, como nos clássicos. Os problemas agora eram referentes à vida social e os comportamentos humanos, ou seja, o problema agora era de ordem ética; principalmente para responder aos apelos de uma sociedade decadente.

A partir do século IV aC. ocorreu uma decadência político-militar da Grécia. Com o enfraquecimento de Atenas, cresce o poder macedônico. Primeiro Felipe depois Alexandre conquistam e dominam a Grécia, além de expandirem seus domínios para o oriente. Depois vieram os romanos, dominando a Europa e os reinos que formaram a Grécia e o antigo império de Alexandre. Todo esse conjunto de fatos intensificou o processo de sincretismo cultural que se denominou de Helenismo




O Helenismo

O fato é que a Grécia, tendo Atenas como centro filosófico, deixou de representar uma ponta de lança nas inovações do pensamento. Esse papel inovador coube a Alexandre e seus exércitos que, imprimiu a vitória final sobre os persas e dominou, além da Grécia e da Pérsia, o Egito e a Índia formando, com suas conquistas militares, um vastíssimo império, no qual a cultura grega estava presente. Assim, se é verdade que Alexandre não era um filósofo, suas campanhas militares foram o meio difusor da cultura grega.

No livro, “O mundo de Sofia”, J. Gaarder faz a seguinte afirmação, a respeito das origens do Helenismo. “Começa então uma época nova na história da humanidade, caracterizada pelo desenvolvimento de uma comunidade internacional em que a cultura e a língua gregas desempenham um papel dominante. Este período, que durou cerca de três séculos, é denominado “Helenismo”, termo que designa tanto um período histórico como a supremacia da cultura grega nos três grandes reinos helenísticos – a Macedônia, a Síria e o Egito”. Na verdade os exércitos de Alexandre foram além, chegaram até a Índia e, evidentemente, desses e nesses contatos ocorreram influências múltiplas e multilaterais.

Do ponto de vista político o desmoronamento da supremacia grega abre um espaço a ser preenchido. O que foi feito pelos macedônios com Alexandre na liderança.

Do ponto de vista da filosofia, a pureza e aprofundamento da filosofia clássica cedem espaço para a tendência de universalizar e expandir os horizontes geográficos e temáticos. Ocorre o que podemos chamar de sincretismo cultural ou, se quisermos, nasce uma nova cultura. O mundo grego interage com culturas, tradições e crenças, principalmente do Oriente, e disso nasce a cultura helenista.

Eis o que diz Batista Mondin, no livro Curso de Filosofia, (vol 1):

“Politicamente subjugada a Hélade conquista o mundo com a sua cultura, que encontra abertos à sua frente novos horizontes e novas vias para estenderem-se mais e, ao mesmo tempo, para enriquecer-se mais pela assimilação de novas ideias. É o fenômeno do helenismo, isto é, da universalização da língua e da cultura gregas, de sua expansão pelos países orientais (Ásia Menor, Egito, Pérsia), que os exércitos de Alexandre tinham aberto à influencia espiritual da Grécia. E Atenas já não é o único centro deste mundo intelectual; formaram-se outros focos de cultura: Pérgamo, Antioquia e, principalmente, Alexandria, no Egito.”

Podemos dizer, portanto, que o Helenismo caracteriza-se pelo sincretismo de elementos culturais provindos dos povos do oriente, conquistados por Alexandre e de sua interação com os valores e cultura gregos. Na cultura grega esse sincretismo produziu um novo mundo e uma nova concepção de mundo.

A filosofia desse período é, ao mesmo tempo, continuação dos ensinamentos de Platão e Aristóteles, mantidos pelos seus discípulos e uma reelaboração desses ensinamentos filosóficos, tendo em vista que os problemas são outros.

Trata-se de uma época em que a sociedade e os valores entraram em decadência. Consequentemente, do ponto de vista político, para ocupar o vácuo do poder grego ascenderam os macedônios que assimilam a cultura grega, com Alexandre, discípulo de Aristóteles. Mais tarde, também entra em cena o Império Romano com seu exército esmagador.

Do ponto de vista filosófico e em resposta à decadência moral em que esteve mergulhada a sociedade desse período, ocorre um sincretismo de ideias. Trata-se, portanto, de uma sociedade em que a crise de valores se havia infiltrado e, por esse motivo, diante dessas novas necessidades a filosofia se propõe a responder a novos problemas, agora de ordem ética.

O que se constata é que as preocupações da filosofia Helenista, mudam de curso. Deixam de ser centradas no homem social e político e na compreensão da natureza e do universo para se concentrar na análise dos comportamentos, ou seja, as atenções se voltam para problemas éticos. A filosofia começa a tratar não do coletivo, mas da vida interior do homem. Essa preocupação ética permaneceu durante todo o período Helenista, passou pelo Império Romano e continuou com a chegada do Cristianismo, quando começou uma nova etapa da história da filosofia.




Alexandria

Nenhuma região ou cidade rivalizou tanto com Atenas, no que se refere à produção de novos conhecimentos como a cidade de Alexandria. Não tanto pela produção filosófica, como por ter se tornado um centro “científico” catalisador dos grandes pensadores e pesquisares da época.

Alexandre fundou várias Alexandrias, nas paragens do oriente, conquistadas por seus exércitos. E a partir de todas elas difundia a cultura helênica, incrementando o mudo helenista. Entretanto a Alexandria que marcou a história ficava na costa africana do Mediterrâneo. Dessa cidade, com sua biblioteca e museu irradiava-se o helenismo, da mesma forma que atraia estudiosos e estudantes, todos, cada um ao seu modo, trazendo novidades para ampliar o sincretismo e incrementando o helenismo.

O norueguês J. Gaarder, no livro “O mundo de Sofia”, faz o seguinte comentário “A cidade de Alexandria, no Egito, tinha um papel chave como ponto de encontro do Oriente e do Ocidente. Enquanto Atenas continuava a ser a capital da filosofia, com as escolas filosóficas deixadas por Platão e Aristóteles, Alexandria tornou-se a metrópole da ciência. Com a sua grande biblioteca, esta cidade passou a ser o centro dos estudos de matemática, astronomia, biologia e medicina”.

Mas, por que essa cidade passou a ser assim tão concorrida?

Talvez porque Ptolomeu, herdando o Egito dos restos do Império de Alexandre, procurou atrair para o Egito os principais pensadores da sua época. Querendo, com isso transformar Alexandria na capital intelectual do mundo helênico. E assim cada cabeça pensante que ali se instalava dava um jeito de convidar e atrair outros parceiros.

Os italianos Giovanni REALE e Dario ANTISERI, no primeiro volume de sua monumental História da Filosofia, dão a seguinte explicação para o crescimento de Alexandria como centro cultural, dizendo que seus administradores pretendiam

“Reunir em uma grande instituição todos os livros e todos os instrumentos científicos necessários às pesquisas, de modo a fornecer, aos estudiosos, material que não pudessem encontrar em nenhum outro lugar, induzindo-os assim a irem para Alexandria. Desse modo, nasceram o ‘Museu’ (que significa: ‘instituição sagrada dedicada às musas’ protetoras das divindades intelectuais) e a ‘Biblioteca’, a ele anexa: o primeiro oferecia todo o instrumental para as pesquisas médicas, biológicas e astronômicas; a segunda oferecia toda a produção literária dos gregos”

Assim, enquanto Atenas perdia espaço e pesquisadores, a cidade de Alexandria ganhava destaque. E, quanto mais crescia, mais atraía as atenções de todos os que de alguma forma se importavam com o saber. Essa é a razão pela qual ela pode ser comparada a um caldeirão fervente, onde se misturavam as diferentes tendências e perspectivas. Dessa forma, lentamente passou a imprimir os rumos não só para a filosofia, como para as novas descobertas matemáticas, astronômicas, além de inovações médicas e geográficas. Podemos dizer que um dos mais expressivos símbolos do helenismo foi a cidade de Alexandria.




Os romanos

É verdade que os macedônicos ocuparam o vácuo deixado pelos gregos. Entretanto isso não é toda a verdade. Desde o século VIII a.C. vinha se desenvolvendo, o que no final do primeiro século antes de Cristo, passaria a ser o Império Romano. Alexandre havia conquistado um império que abrangia três continentes (Europa, África e Ásia). Mas morrendo cedo, sem descendentes, também deixou um vácuo de poder. Seus sucessores não conseguiram manter a unidade territorial. Sem grandes opositores, cresceu a capacidade de influência dos romanos. E o que não se fez pelas ideias foi feito pela espada. O fato é que o poder romano se instalou.

Roma assumiu a hegemonia militar, não só na península itálica, como no mundo grego e por quase toda a Europa e grandes extensões orientais. Roma dominou as áreas de influência grega, depois os reinos helenistas e por fim, por volta de meados do último século antes de Cristo a língua latina e padrões romanos se estendiam do estremo ocidente, na Espanha, até vastas regiões orientais, na Ásia.

E nisso se manifesta uma daquelas curiosidades da história. Roma conquistou o mundo helenístico mas, antes disso, já havia se tornado uma consumidora e difusora da cultura grega. E assim a cultura grega permaneceu em seus dominadores, em alguns costumes, na mitologia e na filosofia… que os romanos, com seu pragmatismo, latinizaram.

Vale ressaltar, entretanto, que o universo romano não foi tão decisivo para a filosofia como havia sido o mundo grego. Entretanto esse universo herdou o legado grego e dentro dele se desenvolveu o cristianismo. Levando tudo isso em consideração, não podemos deixar de considerar a cultura romana como um dos pressupostos não somente para o cristianismo como também para o mundo medieval que o sucederia.

Da mesma forma que, com Alexandre, no período romano, nas praças e nos mercados multidões se aglomeravam vindas dos mais diferentes pontos da Ásia, da África e mesmo da Europa. Nesse burburinho de comerciantes, aventureiros, soldados e outros tantos sacerdotes e filósofos, os diferentes elementos culturais afloravam e, por vezes, conflitavam. Mas todos se utilizavam cada um a seu modo, das estruturas produzidas pelo Estado Romano. Filósofos para difundir suas ideias. Sacerdotes para fazer fiéis. Mercadores para fazer fortuna. Soldados para fazer com que todos se curvassem ao poder central romano.

O fato é que graças à dominação romana, várias correntes de pensamento se instalaram. Além disso, várias personalidades romanas produziram inúmeros escritos sobre filosofia. Cícero, Sêneca, o imperador Marco Aurélio, entre outros. O Ecletismo e o Estoicismo, embora de origem grega, se instituíram como escolas tipicamente romanas




Neri de Paula Carneiro

Mestre em educação. Filósofo, Teólogo, Historiador

Outros escritos do autor:

Filosofia, História, Religião: https://www.webartigos.com/index.php/autores/npcarneiro;

Literatura: https://www.recantodasletras.com.br/autores/neripcarneiro.

sábado, outubro 16, 2021

Jesus: à direita ou à esquerda

(Reflexões a partir de: Is 53,10-11; Hb 4,14-16; Mc 10,35-45.)



Já pensou se a atitude de Jesus fosse seguida pelos nossos representantes políticos?

Dois interesseiros pedem privilégios. Dois discípulos, que já andavam com Jesus há algum tempo, quiseram tirar proveito da situação; da amizade com o mestre; da condição de discípulo. Queriam proveito próprio. Queriam as mamatas das malandragens políticas…. Queriam, mas não para servir melhor, e sim para serem vistos e admirados e poderem dizer: “veja onde cheguei!” “Sabe com quem está falando?” “Deixa comigo que dou um jeito, sou chegado do chefe!” ou o que é pior, queriam ficar próximos do mestre porque isso lhes possibilitava fazer aqueles joguinhos de troca de favores. Aqueles jogos de “toma-lá-dá-cá” tão na moda entre os políticos.

Foram, realmente, petulantes os dois irmãos: “Deixa-nos sentar um à tua direita e outro à tua esquerda, quando estiveres na tua glória!” (Mc 10,37). Seu raciocínio: “já que estamos ajudando na campanha, temos direito a uma vaguinha no primeiro escalão!” É a eterna busca do privilégio!

Mas Jesus não dá moleza. Faz aquilo que, infelizmente, não fazem nossos representantes políticos.E dispara: “Vós não sabeis o que pedis!” (Mc 10,38). Certamente disse mais: “você não entenderam nada do que lhes ensinei…!!!”

Na verdade eles sabiam. Mas não sabiam que Jesus não estava ali para atender o ego ou a sede de privilégios e interesses pessoais.

Por esse motivo foi que os companheiros reagiram. “Quando os outros dez discípulos ouviram isso, indignaram-se” (Mc 10,41). E não é pra menos. Quem fica satisfeito com colegas de grupo que não agem em favor do grupo, mas dos interesses pessoais?

E então, para mostrar que, definitivamente, não é e não age como nossos líderes políticos, Jesus deixa claro: “Vós sabeis que os chefes das nações as oprimem e os grandes as tiranizam. Mas, entre vós, não deve ser assim: quem quiser ser grande, seja vosso servo” Mc 10,42-43). A grandeza, é o que nos ensina Jesus, não está no cargo ou função que se ocupa, mas na disposição para o serviço. Ter disposição para servir a quem precisa: essa é a grandeza!

Alguém poderia dizer que estabelecer normas e regras e leis… é uma coisa. Cumpri-las, é algo muito diferente. Nós estamos acostumados a ver isso: aqueles que fazem as leis. Aqueles que são nossas lideranças políticas, criam as normas que, a bem da verdade, só penalizam e reprimem ao povo. Pois os “chefes” e os “grandes” colocam-se acima de tudo e de todos.

Mas não é assim, no Reino anunciado pelo Senhor: “O Filho do Homem não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida como resgate para muitos” (Mc 10,45). Aquele que não tiver essa disposição, até pode se dizer cristão, mas na primeira oportunidade abandonará o rebanho. Esse vive de aparências, pois não está disposto a se sacrificar pelo outro; não está disposto a “dar a sua vida”, como sugere Jesus.

E, é bom notar, Jesus anuncia seu plano e seu objetivo não como um gesto tresloucado, como se fosse um jovem aventureiro, mas como passos do que foi traçado e prefigurado pelos profetas.

A proposta de Jesus não é um caminho de flores e perfumes, mas de renúncia, sofrimento e dedicação àqueles que necessitam. Isaías já o anunciara: “Oferecendo sua vida em expiação, ele terá descendência duradoura, e fará cumprir com êxito a vontade do Senhor.” (Is 53,10). E o profeta vai além. Como que prefigura a ação da Igreja naqueles que assumem a proposta do Mestre.

O profeta prefigura as dores do Servo, mas afirma que seu gesto será modelo seguido por quem entender, assumir e se doar, como Ele fez. Os que assumirem essa proposta formarão a “descendência duradoura”, anunciada pelo profeta.

Contra as mazelas dos políticos e todos os mal-intencionados, enganadores do povo “esta vida de sofrimento, alcançará luz e uma ciência perfeita” (Is 53,11). Ciência perfeita que consiste em abrir espaço e preparar a implantação do Reino definitivo mediante a busca de uma sociedade justa, entre as pessoas na história.

Como saber se isso, de fato se cumprirá? Trata-se de uma aposta na esperança. Trata-se de uma aposta na promessa do próprio senhor. Trata-se daquilo que o autor da carta aos Hebreus anuncia: contra os que se deixam guar pela maldade, “Temos um Sumo Sacerdote eminente, que entrou no céu, Jesus, o Filho de Deus. Por isso, permaneçamos firmes na fé que professamos. Com efeito, temos um Sumo Sacerdote capaz de se compadecer de nossas fraquezas” (Hb 4,14-15).

Sendo assim, se por um lado sabemos que existem e convivemos com os malandros de planão, também temos a promessa de que, se não nos corrompermos seremos acolhidos por esse Sumo Sacerdote perfeito, Jesus de Nazaré, o Cristo ressuscitado! O enviado do Pai que sabe quem ficará à direita ou à esquerda!




Neri de Paula Carneiro

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sexta-feira, outubro 15, 2021

O mestre mal recompensado

O sol ainda ardia sobre a terra torrada. A chuva ainda não caíra, como quem canta a vida. A tarde se estendia lentamente em direção ao ocaso do dia. Era dia dos professores.

Homenagens, sim, eu havia recebido.

Empolgadas? não sei!

Sinceras, com certeza, pelo menos por parte dos pupilos!

Os colegas? Todos vibrantes…

Dia do professor…. Parabéns!

Trrriiiiiiimmmm….. toca o telefone!!!

- “Professor, não sei se você lembra de mim. Estou precisando….”

Era um antigo aluno solicitando uma ajuda para concluir sua monografia de conclusão de curso. Uma autorização formal para usar minhas palavras e meus escritos. Claro que não neguei. E ele veio até mim. Conversamos. Ele me fez recordar, não só dele que está concluindo a graduação em História e quer fazer mestrado na mesma área.

Com ele recordei de outros …. que infelizmente se perderam pelas curvas da vida. Inclusive aquele que morreu na prisão…. Não é só de sucessos que vive nossa atuação docente. Há, também, indecências!

Com ele recordei de outros …. que alcançaram sucesso. Lembrei de alguns que concluíram doutorado, mestrado… e estão na docência… e que me deram a honra de ter convivido com eles em sala de aula.




De frustrações e sucessos faz-se a vida dos professores!!!!




- “Professor, não sei se você lembra de mim. Mas estou precisando de sua ajuda para….”

Noutras tantas oportunidades já ouvira o mesmo apelo.

Mas, neste caso, era dia dos professores. O sol, feito guia, iluminava as nuvens que trouxeram a chuva. Não eram lágrimas. Eram gotas de vida. E, é claro, autorizei o menino a usar meus escritos em sua monografia.

Ele se foi! Feliz! Faria, com certeza, belo trabalho e nos honraria! Mais um de nossos alunos a se fazer professor!

Mas meu coração ficou, naquele momento, misto, meditante… radiante:

Mais um professor!

Mais um professor?

Meditando, me pus a pensar nas palavras daquele que se confessou discípulo de Dionísio, e, talvez por isso, “preferiria ser um sátiro antes que um santo”.

Em minhas meditações sobre o dia do professor e o professor que sou e o que me sucedeu neste dia do professor e o que me veio foi dar um passo a mais no pensamento de Nietzsche, em “Ecce Homo”:

“O homem que busca o conhecimento não só deve amar os seus inimigos, mas deve também poder odiar os seus amigos. Recompensa mal um mestre quem se contenta de ser discípulo.”

E, de fato, não sei se já cheguei ao meu mestre. Sei, entretanto, que pelo menos alguns dos meus discípulos já me superaram.

E assim, discípulo que sou, fico com as palavras de outra obra de Nietzsche, quando Zaratustra lança um brado ao sol:

“Tu, grande astro! Que seria de tua sorte, se te faltassem aqueles a quem iluminas?”

De fato, hoje é dia dos professores!




Neri de Paula Carneiro

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segunda-feira, outubro 11, 2021

Senhora Aparecida: o que ele vos disser

(Reflexão a partir de: Est 5,1b-2;7,2b-3; Ap 12,1.5.13a.15-16a; Jo 2,1-11)




As palavras de Ester (Est 5,1b-2;7,2b-3) em resposta ao Rei, nunca foram tão atuais como nos dias em que estamos vivendo: “concede-me a vida e a vida de meu povo” (Est 5,13).

O pedido de Ester em favor do povo, foi atendido.

Mas não é só isso.

Também no livro do apocalipse (Ap 12,1.5.13a.15-16a) temos uma cena emocionante: a mulher que “deu à luz um filho homem, que veio para governar todas as nações” (Ap 12,5) está em risco de vida, juntamente com seu filho. Pois uma serpente do mal a quer destruir. Mas a terra vem em socorro de ambos.

Cotidianamente o justo, e todo aquele que pratica o bem, enfrenta dificuldades, opositores, perseguições… Nestes dois casos, Ester e Apocalipse, houve quem defendesse o oprimido: Ester intercedeu pelo povo escravisado e a terra socorreu a mulher e seu filho, contra a serpente do mal.

Assim como Ester, a mulher do Apocalipse representam vida. A vida do povo está em risco e algo ocorre em defesa dessa vida e desse povo.

Ester vestiu-se com um lindo vestido, para encontrar o rei e interceder em favor de seu povo. A mulher do apocalipse vestiu-se de sol para gerar nova vida. Ambas retratam a força e a ação da mulher brilhante que gera vida nova em seu ventre; ambas intercedem por seu povo e, ao mesmo tempo, mostram como Deus executa seus propósitos. Ou seja, Deus usa aqueles que parecem fracos para dar uma demonstração de força libertadora. A aparente fragilidade da mulher é a força libertadora de Deus. Na aparente fragilidade da mãe está germinando, sendo gestada, ganhando forma a graça libertadora da vida, dom de Deus.

Além disso, essas duas mulheres de aparência frágil, mas de grandes e poderosas realizações, podem ser associadas a Maria, mãe de Jesus. Ela também intercede em defesa dos necessitados. É a figura da Mãe Intercessora, advogada nossa, como reza o católico na “Salve Rainha”

A narrativa de João (Jo 2,1-11), fala da alegria de uma festa de casamento. Essa narrativa nos mostra a atuação de Maria, a mãe intercessora, desempenhando um papel fundamental. Evita um vexame para os noivos e salva a festa, para manter a alegria. Os convidados estavam sem bebida. Com a visão de conjunto, típica da mulher, da mãe, da pessoa solidária, ela aciona o filho: “Eles não têm mais vinho” (Jo 2,3); e também aciona os trabalhadores que servem às mesas: “Façam tudo que ele vos disser!” (Jo 2,5). Age na simplicidade, e na simplicidade de quem sabe o que faz, deixa os atores desempenharem seus papéis.

E assim, mais uma vez temos a figura de uma mulher intercedendo em favor de quem enfrenta dificuldades. E, neste caso, para dizer algo a mais: o casamento é algo tão importante que foi aí que Jesus realizou seu primeiro sinal. A alegria da festa, sintetiza a entrega mútua. A comunidade bebendo, comemorando, exerce o papel da testemunha que celebra junto o ato do compromisso.

Tudo isso ajuda a entender a festa dedicada a Nossa Senhora que apareceu entre as redes dos pescadores, numa comunidade pobre do interior paulista. Evidentemente o centro da celebração é Jesus Ressuscitado, mas também exalta a mãe intercessora. Nascia naquela pescaria a certeza de que Deus estava se manifestando em favor dos pobres. Naquela imagem escura e quebrada manifestava-se o simbolo do dom de Deus assumindo a causa dos escravizados.

A imagem de cor escura passa a ser, ao mesmo tempo, um grito contra as dores do povo, contra o sofrimento provocado pelos donos do poder. É, também uma confissão de Deus e da mãe de Deus afirmando que não apoiam aqueles que provocam as dores e sofrimentos do povo, mas, pelo contrário, apoiam o pequeno em busca de seus direitos de uma vida plena. É Deus e a mãe de Deus dizendo que a terra veio em defesa do sofredor, como no apocalipse; e que, pela intercessão da mulher-mãe, o pobre não mais está abandonado à própria sorte.

Talvez, por tudo isso, foi que o dom de Deus inspirou o poeta (pe Zezinho) a cantar:

“Quero lembrar os fatos que aconteceram naquele dia; quando por entre as redes, aquela imagem aparecia; vendo surgir das águas a tosca imagem de negra cor; agradeceram todos à Mãe de Cristo por tanto amor;

Quero entender o culto que começou, desde aquele dia; muitos não compreendem, dizendo ser uma idolatria; mas neste simbolismo daquela imagem, de negra cor; chega-se com Maria ao santuário do Salvador;

Torno a lembrar os fatos que agora tocam a tanta gente; esta Senhora humilde, de cor morena, se fez presente; numa nação, aonde imperava a mancha da escravidão; Nossa Senhora escura nos diz que o Cristo nos quer irmãos;

Hoje, que eu vejo gente voltar contente de Aparecida; penso na minha Igreja com os pequenos comprometida; penso nas diferenças que ainda ferem o meu país; peço que a Mãe do Cristo conduza o povo ao final feliz”

E chegaremos ao final feliz? Não como nos contos de fada, em que um gesto heroico e quase mágico elimina o mal. Não será assim, pois o mal está entre nós, muito bem plantado e cresce pela boca dos que blasfemam dizendo defender a deus mas seu deus é a riqueza acumulada de forma suspeita; dizem defender o povo, mas corroem os direitos sociais e o condenam à miséria crescente; dizem defender a nação, mas cultuam valores de outros povos; falam sobre família, mas são adúlteros, estupradores, feminicidas…

Chegaremos ao final feliz! Para isso basta apenas que os caminhantes do Reino percebam-se como vítimas do sistema e assumam sua posição. Para isso, uma coisa só é necessária: ouvir a mãe falando: “Façam tudo que ele vos disser!” (Jo 2,5).

Neri de Paula Carneiro

Mestre em educação, filósofo, teólogo, historiador.

Outros escritos do autor:

Filosofia, História, Religião: https://www.webartigos.com/index.php/autores/npcarneiro;

Literatura: https://www.recantodasletras.com.br/autores/neripcarneiro.

sábado, outubro 09, 2021

O camelo ou o rico?

(Reflexão a partir de: Sabedoria 7,7-11; Hebreus 4,12-13; Marcos 10,17-30)





O que buscam as pessoas? Qual o sentido e o motivo que impulsiona a vida das pessoas?

Nem precisamos de muito esforço para sabermos que, embora algumas pessoas busquem a felicidade, a maioria dos indivíduos pretende o acúmulo de riquezas. Ou buscam a felicidade no acumulo de bens...

Mas, seria esse o objetivo da vida? A riqueza é o projeto para nortearmos nossas vidas? É evidente que não se vai dizer que os bens materiais não são importantes. Mas, daí a dizer que deve-se viver para acumular riquezas…

Quando perscrutamos a Palavra de Deus, entendemos que esse não é o melhor caminho, nem a melhor resposta para o sentido da vida.

O livro da Sabedoria demonstra isso (Sabedoria 7,7-11).

Ali fica claro que o objetivo a ser alcançado e o sentido da busca é a Sabedoria! Ela é o motor da vida. E isso de forma muito radical: “Preferi a Sabedoria aos cetros e tronos e, em comparação com ela, julguei sem valor a riqueza” (Sb 7,8). E qual a recompensa, por ter esclhido não a riqueza, mas a sabedoria? “Todos os bens me vieram com ela, pois uma riqueza incalculável está em suas mãos” (Sb 7,11). Em síntese: A sabedoria conduz às riquezas, mas a riqueza não leva, necessaraimanete, à sabedoria! E nem à felicidade! Ou, o que é pior, por vezes a riqueza tira a felicidade!

Na carta aos hebreus (Hebreus 4,12-13) temos um aprofundamento da questão: o centro da busca é a própria Palavra de Deus. Trata-se de uma Palavra que “julga os pensamentos e intenções do coração” (Hb 4,12). Trata-se de uma Palavra que separa o que conduz a Deus e aquilo que não leva à realização; o que aproxima e o que afasta do caminho do Senhor. Ela é capaz de “dividir alma e espírito, articulações e medulas” (Hb4,12). Trata-se de uma palavra que expõe o que está oculto, pois “tudo está nu e descoberto aos seus olhos” (Hb 4,13). E, por fim, trata-se de uma palavra com a qual cada uma das pessoas terá que se confrontar e “prestar contas” daquilo que tiver feito, mas que não deveria… ou deixou de fazer e que devería ter realizado. E, tudo isso, se pode compreender com a Sabedoria que o Senhor oferece.

Mas é Jesus quem ensina o verdadeiro sentido da existência e o valor dos bens materiais (Mc 10,17-30).

Ele mostra que não basta cumprir os mandamentos. Existe um passo a mais a ser dado. E mostra isso com a história do jovem que o procura querendo saber qual o caminho para a vida eterna. Um jovem, rico, que já cumpria todos os mandamentos. Mas lhe faltava o passo definitivo: abraçar o desapego.

A proposta de Jesus é, ao mesmo tempo, radical e definitiva, mas feita com o mais puro amor de Deus: amor para com o jovem rico e amor para com os necessitados. Ao ser interpelado pelo jovem, “Jesus olhou para ele com amor, e disse: ‘Só uma coisa te falta: vai, vende tudo o que tens e dá aos pobres, e terás um tesouro no céu. Depois vem e segue-me!’” (Mc 10,21).

Será que conseguimos imaginar a cena? Um jovem que, como muitos empresários e fazendeiros e outros profissionais, é rico e vive de sua riqueza. Uma dessas tantas pessoas que passam horas ajoelhados em oração. Que ostentam um terço no pescoço ou feito uma ridícula pulseira, enrolada nas mãos e no pulso… pessoas de orações fervorosas… certamente era assim o jovem que havia rocurado por Jesus… e o Mestre olha para essa pessoa… Só uma coisa te falta!!!

E olha com amor! Valoriza sua devoção e dedicação à oração! Mas, uma só coisa te falta!!!

Por valorizar essa vida de oração, faz a proposta radical: uma só coisa te falta! Desapegue-se!

Jesus é claro naquilo que propõe. É claro em oferecer uma opção definitiva. A paz almejada pelo rapaz não está escondida em sua riqueza nem nos mandamentos. Ela está no desapego (“vai e vende tudo”) que se expressa no gesto de se solidarizar, suprindo a necessidade do outro (“dá aos pobres”). Pensar no outro de forma solidária e desapegada: esse é o caminho para a felicidade e para o Reino!

Alguém se habilita!

Desvincular-se do que não preenche a vida; juntar-se ao projeto de uma sociedade sem necessitados. Aquilo que algém possui além de suas necessidades é o que falta àquele que nada tem!

Claro que dirão que é comunismo! Mas e daí, se esse é o ensinamento do Senhor? Então sejamos comunistas, pois foi Jesus quem mandou!

Neste ponto da conversa com o jovem, ao vê-lo afastar-se, Jesus faz uma das mais duras afirmações de sua pregação. Começa com uma constatação “Como é difícil para os ricos entrar no Reino de Deus!” Em seguida vem a afirmação definidora: “É mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha do que um rico entrar no Reino de Deus!” (Mc 10,23-25). E não adianta espiritualizar a afirmação de Jesus. Não adiante buscar explicações metafóricas… a afirmação é clara: é mais fácil o camelo que o rico!

Mas o problema não é a riqueza em si, mas o apego à riqueza.

Um apego que leva o rico a querer ter sempre mais e se achar com mais direito que os outros. Que o faz pensar que pode acumular idefinidamente; que os outros não possuem e nem acmularam porque não o quiseram, ou que não foram espertos o suficiente, ou que não trabalharam… Não percebe, o rico, que seus bens são resultado do trabalho de outros. O rico não é rico porque trabalho muito, mas porque outros trabalharam para ele!

E por não ser capaz disso e de só ver a si mesmo no centro, terá dificuldade em se salvar; por apegar-se à riqueza como se isso fosse o céu, terá dificuldade para salvar-se. Seu problema é o apego às coisas e não as coisas: Essa é a situação que lhe dificulta a salvação!

A pergunta que o jovem fez ao Meste, possuidores ou não de riquezas, devemos nos fazer também: que devo fazer? O que me falta? Jesus já deu a resposta. O que nos falta não é fazer a pergunta… mas é assumir a resposta!




Neri de Paula Carneiro 

Mestre em Educação, Filósofo, Teólogo, Historiador



Outros escritos do autor:

Filosofia, História, Religião: https://www.webartigos.com/index.php/autores/npcarneiro;

Literatura: https://www.recantodasletras.com.br/autores/neripcarneiro.

quarta-feira, outubro 06, 2021

A paz que vem da guerra

O Mundo mudou.

Mas o que mudou no mundo pós guerra?

Tudo! As relações de poder e o poder do dinheiro.

Os aliados venceram a guerra, é verdade. Impuseram sanções à Alemanha, também é verdade.

Mas o que veio depois não foi melhor. Uma guerra fria: período em que o mundo esteve à mercê de duas potências, loucas de vontade de apertar o gatilho (no caso, botões das bombas nucleares).

Mas os blocos acharam por bem, em vez de fazer a guerra, provocar pequenas conflitos regionais: dava mais lucro com a venda de armas…. A venda de recursos para a reconstrução dos países que as potências pusessem para brigar. Tudo em nome da hegemonia, que não era humanitária, mas para impor um poder e econômico.

Por exemplo, russos e americanos puseram-se a interferir no oriente médio. E lá estavam as potencias apoiando facções oposta. Americanos financiando os judeus e os russos dando corda aos palestinos. O mesmo ocorrendo na África e na América Latina. Nesse jogo, o exemplo mais característico foi o apoio norte-americano aos insurgentes que deram origem ao talibã contra as ofensivas soviéticas no Afeganistão, ainda nos anos 1970 e 80.

O fim da história todos conhecemos: o talibã, com apoio militar e financeiro dos capitalistas, conseguiu conter os comunistas. O pagamento veio a longo prazo: o grupo se fortaleceu e virou inimigo de seus criadores, ao ponto de porem abaixo as Torres Gêmeas, em 2001.

Na América Latina não foi diferente. De sul a norte desenvolviam-se ideais populares, inspirados no exemplo da Revolução Socialista da URSS (1917) e da China (1949). Os norte americanos reagiram. Ao longo das décadas de 1960 e 1970, financiaram a implantação de governos ditatoriais militares nos países que estavam se aproximando do bloco socialista.

O resultado? Milhares de pessoas foram presas, torturadas e mortas em cada país em que se deu um golpe militar.

Foi o que aconteceu no Brasil, em 1964. Implantou-se um governo militar que jurava estar defendendo o Brasil, mas, na realidade, o estava entregando aos interesses capitalistas.

E o povo?

Pensava que estava “deitado em berço esplêndido”.

Naquela época, como nos dias atuais, tudo isso aconteceu, como contou Chico Buarque: “Num tempo, página infeliz da nossa história; passagem desbotada na memória das nossas novas gerações. Dormia a nossa pátria mãe tão distraída, sem perceber que era subtraída em tenebrosas transações”

E todas essas dores e mortes são resultado de uma paz que nasceu da guerra.

Neri de Paula Carneiro – Mestre em Educação
Filósofo, Teólogo, Historiador

Outros escritos do autor:
Filosofia, História, Religião: https://www.webartigos.com/index.php/autores/npcarneiro;
Literatura: https://www.recantodasletras.com.br/autores/neripcarneiro.

sábado, outubro 02, 2021

Não é bom estar só?

(Reflexão a partir de: Gênesis 2,18-24; Hebreus 2,9-11; Marcos 10,2-12)




Que seria de Jesus se não fossem os fariseus?

Pode parecer piada, mas os ensinamentos de Jesus, sempre se aprofundaram na medida em que os fariseus o questionavam.

Quanto mais esse grupo de religiosos fanáticos, extremamente apegados ao tradicionalismo, queria incomodar Jesus, provocando-o, tentando fazê-lo se contradizer para apanhá-lo nalguma afirmação errônea… mais o Mestre demonstrava a radicalidade de sua mensagem: não abolir a antiga lei, mas aperfeiçoá-la. Não criar um legalismo morto, mas uma doutrina libertadora, centrada no ser humano voltado para o Deus da vida.

Desta vez o motivo da armadilha, da distorção da mensagem divina e da incompreensão dos fariseus é sua própria postura preconceituosa (Marcos 10,2-12).

Podemos até pensar que seja a mulher ou o casamento. Mas o que está em evidência, tornando-se explicitamente agressivo é o preconceito.

E os preconceitos eram muitos e sobre diferentes situações (embora a linguagem sobre preconceitos seja algo dos nossos dias, o fato é antigo!). E, neste caso, a vítima do preconceito é a mulher. Eles abordam Jesus, provocando-o: “Alguns fariseus se aproximaram de Jesus. Para pô-lo à prova, perguntaram se era permitido ao homem divorciar-se de sua mulher” (Mc 10,2).

A questão colocada é: o que leva o homem a querer divorciar-se de sua mulher? E por que “o homem”? Nos dias atuais a lista de motivos de separação é quase infinita. Mas pensemos: se há um pedido de divórcio é porque antes ouve um casamento. E se houve um casamento, antes ocorreu um noivado e um namoro e antes disso o encantamento que gerou todo o resto. Os dois se encantaram, acreditaram que se amavam e, com base nisso, uniram-se em casamento.

Por qual motivo levaram adiante a relação e entraram no casamento? Havia amor? Ou o casal parou no encantamento?

A base para o casamento é o amor. Todas as frases bonitas, sobre amor, dizem que ele é tolerante, comprometido, solidário, promove a alegria do outro, fica feliz com a felicidade do outro… e, principalmente, o amor é capaz de perdoar. Sofre com os problemas e desavenças, mas sabe perdoar…

Duvida?

Pergunte a esses casais que estão juntos há vinte, trinta, quarenta… anos. Todos dirão que enfrentaram muitos “tsunamis”, terremotos, tempestades… mas enfrentaram juntos e saíram mais fortes…. Por quê? Porque se amavam, enfrentaram e superaram juntos. Saíram machucados, mas curaram as feridas juntos… E saíram mais fortes porque sua relação baseia-se no amor!

O amor cresce com a convivência. Por isso Deus diz “Não é bom que o homem esteja só” (Gn2,18). É preciso uma companhia para que haja amor. Se o casamento acabou é porque, desde o início, não existia amor. O casal se une, mas já está divorciado. Estão juntos, mas cada um quer satisfazer primeiro seus interesses pessoais. Estão juntos, mas não crescem juntos. Se no casamento não há amor, passa a ser uma sociedade; e pode ser encerrada a qualquer momento. Se existe amor, ocorre projeto comum, cada um se realiza na medida em que o outro também se realiza. A realização de um depende da realização do outro...

Entretanto, a visão preconceituosa, sem amor, quer achar um culpado pelos problemas do casamento, ou da sociedade. Daí a postura dos fariseus e de todos aqueles que são incapazes de amar. E aí entra o divórcio. Aliás a etimologia dessa palavra explica seu significado: andar caminhos diferentes.

Uma vez que amar é caminhar junto, olhando para a mesma direção, a ausência de amor, produz a atitude preconceituosa, que busca num outro o “culpado” pelos problemas; e, pelo divórcio afasta esse outro, pensando que isso elimina o problema. E isso ocorre porque o preconceituoso, incapaz de amar, é incapaz de olhar na mesma direção, por isso procura o caminho oposto. O outro, que não é amado, e é diferente, é visto com inimigo, adversário, concorrente do qual se deve des-viar… e o qual deve ser vencido!

Isso nos remete a Jesus, e sua resposta à fala dos fariseus quando disseram: “'Moisés permitiu escrever uma certidão de divórcio e despedir a mulher'. Jesus então disse: 'Foi por causa da dureza do vosso coração que Moisés vos escreveu este mandamento’” (Mc 10,3-5). Um coração endurecido é um coração sem amor. E porque está endurecido é cheio de preconceito! Não olha na mesma direção! Está divorciado!

No começo não foi assim, diz Jesus, referindo-se ao gesto criador de Deus. Todos os viventes desfilaram diante do homem, mas nenhum o completou (Gn 2,18-20). Daí a simbologia da costela: quem ama se dá ao outro. Daí o significado do amor e do casamento: andar lado a lado “osso dos meus ossos; carne da minha carne” (Gn 2,23). Daí que o amor leva homem e mulher a formar “uma só carne” (Gn 2,24).

O preconceito, por ser o oposto ao amor, gera divisão. O amor, por olhar na mesma direção, quer a inclusão, o companheirismo. Isto nos ensina o autor da carta aos hebreus: o amor irmana. “Tanto Jesus, o Santificador, quanto os santificados, são descendentes do mesmo ancestral; por esta razão, ele não se envergonha de os chamar irmãos” (Hb 2,11). Não se envergonha porque não é preconceituoso. Justamente por ser santificador, Jesus vem ao encontro do ser humano, pecador. E o amor salvador dá a mão ao amado para libertá-lo da perdição; age sem preconceito resgatando o pecador.

Como o amor só existe porque existe o amado, Deus deu ao homem uma companheira. Mais do que isso, deu-nos uma companhia constante: Jesus que, como homem, andou entre nós e, ressuscitado, continua em nosso meio. Mesmo rejeitado, não se divorciou da humanidade, pois sua ação tem por base o amor. E, desde a criação, nos mostrou que, por não ser bom que o ser humano esteja só, veio ao nosso encontro.

Então, não é bom que o homem esteja só? Não, pois o amor depende do outro se expressa na companhia de alguém.




Neri de Paula Carneiro

Mestre em educação, filósofo, teólogo, historiador

Outros escritos do autor:

Filosofia, História, Religião: https://www.webartigos.com/index.php/autores/npcarneiro;

Literatura: https://www.recantodasletras.com.br/autores/neripcarneiro.

Sagrada Família: para se cumprir!

Reflexões baseadas em: Eclo 3,3-7.14-17a; Cl 3,12-21; Mt 2,13-15.19-23 Todos os que, de alguma forma, tiveram contato com os ensinamentos d...