sexta-feira, 12 de novembro de 2021

Depois da grande tribulação

(Reflexões baseadas em: Daniel 12,1-3; Hebreus 10,11-14.18; Marcos 13,24-32)




Tribulações são as dificuldades,as dores e sofrimentos que atingem as pessoas, as famílias ou a sociedade. E a gente acredita que depois dela virão dias melhores. Virá, depois do sofrimento, a vitória sobre as dores: a alegria pela vitória; a felicidade pela fertilidade da união e a colheita dos frutos que cresceram da união que deu suporte à superação. Já a “grande tribulação” diz respeito à narrativa apocalíptica, pela qual nos são apresentadas pistas para o encontro definitivo com Deus.

Num ou noutro caso, apesar de haver referência a situações catastróficas, a tribulação ou a grande tribulação são indicativos de esperança. O fato ou o momento pode até ser terrível, mas ele acena para o que vem depois. Essa é a característica da esperança: no exato momento da dor, ter a capacidade de olhar para além. Não que isso alivie ou elimine a situação de sofrimento, mas oferece a força necessária para buscar a superação das dores.

Essa perspectiva pode ser encontrada na narrativa apocalíptica de Daniel (12,1-3). Ele afirma que num “tempo de angústia como nunca houve até então”, aparecerá um grande “defensor dos filhos do povo”. E, pela ação desse defensor, “povo será salvo” (Dn 12,1). Mais ainda, até aqueles que já tiverem experimentado a morte serão chamados à vida. Aqueles que “dormem no pó da terra, despertarão, uns para a vida eterna, outros para o opróbrio eterno.” (Dn 12,2)

Mas, se o profeta fala da possibilidade de perdição eterna, onde está a esperança?

O próprio Danielresponde. Quem ensinar a sabedoria; quem ensinar “os caminhos das virtudes”… estes “brilharão como as estrelas, por toda a eternidade.” Dessa forma indica que, por maior que seja, o sofrimento não é definitivo; ele perpassa as dificuldades, mas não é o ponto final. A sabedoria, consiste em ser capaz de ajudar ao outro a encontrar o caminho da virtude… na esperança de que mestre e aprendiz recebam o benefício de ser luz no firmamento (Dn 12,3).

Não é só Daniel quem propõe a esperança. Ela também está presente nas palavras de Jesus.

Ele não nega a existência das dificuldades. Não exclui os problemas. Não extermina os sofrimentos. Pelo contrário: afirma a tribulação. E mesmo depois dela, ainda não dá a certeza do fim das dores. Por quê?

Porque a fragilidade das convicções e a fraqueza humana podem produzir, além da dúvida, reações irritadas. O fato do sofrimento, leva muitosà incredulidade ou à indagação: “Porque eu?”; “O que fiz para merecer isso?” Essa angústia e incerteza, beirando o desespero, em muitos casos, em vez de aproximar de Deus, gera o afastamento. Esse afastamento manifesta-se como escuridão, estrelas que caem; enfim, pelos astros em decadência, como o descreve Marcos 13,24-25: “depois da grande tribulação, o sol vai se escurecer, e a lua não brilhará mais, as estrelas começarão a cair do céu e as forças do céu serão abaladas”. Ou seja, depois da tribulação, vem a desolação; depois das dores, vem a sensação de abandono… e o olhar desesperançado….

Mas o fato é um só. Não se trata de um abandono por parte de Deus. As contingências, as dores, os sofrimentos, os problemas… são parte da vida. A fraqueza humana leva a pessoa a dizer que se sente abandonada por Deus (o sol escureceu). Mas a fé, movida pela esperança, olha para um pouco mais além. E então verá Jesus, estendendo a mão e enviando seus anjos para reunir os perseverantes da esperança: “Ele enviará os anjos aos quatro cantos da terra e reunirá os eleitos de Deus, de uma extremidade à outra da terra” (Mc 13,27).

Isso nos leva a indagar: onde encontrar os motivos para ter esperança?

Certamente ela não se encontra no plano humano. Mesmo que as pessoas sejam motivos de ânimo e esperança ela não nos vem do que nos proporcionam as pessoas, mas somente da ação de Jesus Cristo. As ações das pessoas, por mais que sejam edificantes, dependem da graça divina para, efetivamente, surtirem efeito.

A ação humana, é como o sacerdote que “se apresenta diariamente para celebrar o culto, oferecendo muitas vezes os mesmos sacrifícios” (Hb 10,11). Masessa ação não é suficiente por si mesma. Por isso, a necessidade de se apoiar na oferenda do próprio Jesus que “com esta única oferenda, levou à perfeição definitiva os que ele santifica. Ora, onde existe o perdão, já não se faz oferenda pelo pecado” (Hb 10,18).

Que nos resta, então?

Fazer tudo que estiver ao nosso alcance, mas, ao mesmo tempo, confiar pois “depois da grande tribulação”, ainda não é o fim. Depois da grande tribulação, temos que continuar alimentando a esperança, pois “o Filho do Homem está próximo”(Mc 13, 26).







Neri de Paula Carneiro

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quinta-feira, 11 de novembro de 2021

O Cristianismo nascente e a filosofia

As filosofias do helenismo fizeram contato e, de alguma forma influenciaram o cristianismo nascente. Ao ponto de podermos dizer que, do ponto de vista filosófico, o cristianismo também é uma corrente de pensamento helenista. Essa influência pode ser observada na literatura neotestamentária e na patrística. Mas também é verdade que, posteriormente, a filosofia medieval recebeu grande carga de influências do cristianismo. Talvez por esse motivo se cunhou a afirmação de que a “filosofia é serva da teologia”

O fato é que as dessas correntes filosóficas e dentro desse mesmo período nasceu o cristianismo. E várias das correntes helenistas influenciaram no desenvolvimento dessa nova mística. O cristianismo, portanto é uma religião que se fez por ecletismo, tendo por base o judaísmo, os ensinamentos de Jesus e os diferentes elementos culturais dos povos do oriente médio dominados pelos romanos e pela língua grega.

Pode-se dizer mais: sem entrar na discussão do significado e do alcance religioso, mas apenas do ponto de vista filosófico, o cristianismo nasceu não de Jesus, o jovem de Nazaré ou do grupo inicial de discípulos, e sim a partir do sincretismo de elementos helênicos que se misturaram com traços do judaísmo, das culturas orientais e romanas.




O cristianismo e o Helenismo


A partir do quê se pode afirmar isso?

Jesus era um judeu e praticante do judaísmo. As narrativas dos evangelhos o colocam em várias oportunidades nas sinagogas, o que sugere que era um praticante de sua religião. Apesar e além disso, podemos identificar em sua postura e atitudes características de algumas das correntes do pensamento helenista.

Cinismo: Desenvolvia uma prática de solidariedade aos marginalizados, aos pobres, às mulheres e prostitutas. Andava com pescadores e curava os enfermos (lembrando que estes eram considerados como “possuídos” pelo demônio). Valorizava a simplicidade. Não ostentava o luxo de uma morada, mas afirmava que “as aves do céu tem seus ninhos, as raposas suas tocas, mas o filho do homem não tem nem onde reclinar a cabeça”.

Epicurismo: Valorizava a vida e a alegria de viver. Isso se pode perceber, pelas inúmeras curas realizadas e porque seu primeiro milagre foi realizado para dar continuidade a uma festa, transformando água em vinho. O casamento é uma celebração à vida e o vinho pode ser visto como um simbolo da alegria de viver.

Ceticismo: os inúmeros embates com os sacerdotes e doutores da lei, mostram que não só era profundo conhecedor de sua crença judaica, como também colocava em questão os dogmas do judaísmo, os costumes e tudo aquilo que não representasse um valor em favor do ser humano.

Cultura e língua: Posteriormente à sua execução, seus discípulos continuaram sua obra e difundiram seus ideais. Para isso os discípulos contaram e usaram as estruturas do império romano. Moveram-se usando as estradas e caravanas que circulavam pelos caminhos do império. E, com isso, a essência dos ensinamentos do jovem de Nazaré, foi fazendo contato com as culturas dos diferentes povos.

Além do anúncio oral, nas diferentes cidades, os discípulos também difundiram sua fé por meio dos escritos neotestamentários: os evangelhos, as cartas, o apocalipse. Tudo isso produzido escrito e difundido na língua grega, com visíveis sinais de uma estrutura argumentativa e lógica que lembra a filosofia grega.

Estoicismo: após alguns anos, já se estruturando como uma instituição com ritos e normas próprias, o cristianismo assume uma outra característica: o estoicismo o qual pode ser representado pela valorização das posturas e práticas penitenciais e o cumprimento de regras sedimentadas nos procedimentos litúrgicos.

Dessa forma, pode-se dizer que os valores adotados por Jesus (cinismo, ceticismo e epicuristas), foram abandonados em favor de uma postura estoica. Em “O mundo de Sofia”, eis o que diz J. Gaarder, a respeito de Jesus: “Jesus foi um homem único. De um modo genial, ele usa a linguagem do seu tempo e dá simultaneamente às ideias antigas um conteúdo completamente novo e mais vasto. Não admira que ele tenha sido crucificado. A sua radical mensagem de salvação punha a nu tantos interesses e jogos de poder que tinha de ser afastado”. E o pensador norueguês vai além. Afirma a profundidade da exigência ética no ensinamento de Jesus: “No caso de Jesus vemos como pode ser perigoso pedir um amor incondicional pelo próximo e um perdão igualmente incondicional. Ainda hoje vemos como Estados poderosos vacilam se são postos perante pedidos simples de paz, amor e alimento para os pobres e perdão para os inimigos do Estado.”




Paulo e as missões aos gentios

Como sabemos, Jesus não criou o cristianismo. Como Sócrates, foi um mestre que não deixou escritos de próprio punho. O que sabemos nos chegou a partir do que disseram dele seus discípulos… e alguns adversários. Os ensinamentos dos discípulos é a doutrina cristã.

O grande criador-divulgador do cristianismo foi o apóstolo tardio, Paulo de Tarso. Após sua conversão levou os ensinamentos de Jesus para além do mundo judeu. A mensagem cristã demorou a ser aceita por alguns judeus, mas se desenvolveu rapidamente entre os gentios, os povos de outras culturas, fora dos círculos da religião de Moisés.

O que teria sido a proposta de Jesus Cristo passa a ser reinterpretada de acordo com categorias greco-romanas. Isso, entretanto, só foi possível porque Paulo era não só um judeu esclarecido, conhecedor de sua religião, como também um conhecedor da língua e filosofia gregas. E tinha facilidade de locomoção dentro do império, pelo fato de ser cidadão romano.

Para percebermos a influência grega sobre o cristianismo primitivo podemos ler as cartas de Paulo, um primor de argumentação e retórica grega; também pode ser tomado como exemplo disso o discurso de Paulo aos Atenienses, narrado no livro dos Atos dos Apóstolos, 17,16-32. Eles o ouvem embevecidos, embora não se convertam por considerarem absurda a pregação sobre a Ressurreição.

O mesmo Paulo, na carta aos colossenses, utiliza elementos platônicos e estoicos contrapostos a elementos dos epicuristas. Paulo exorta seus leitores para que não sejam julgados pela “comida e bebida”, a respeito de “festas anuais ou da lua nova ou de sábado porque são apenas sombra” (Col, 2,16-23). Notemos o tom irônico de Paulo, condenando o que poderia ser uma postura de alguns cínicos na comunidade de Tessalônica: “Quem não quer trabalhar, também não deve comer. Ora ouvimos dizer que alguns entre vós levais a vida à-toa, muito atarefados sem fazer nada” (2Ts 3,7-8).

Tudo isso nos permite dizer que, vasculhando os escritos neotestamentários, podemos encontrar inúmeras referências às escolas helenistas. Por vezes algumas são condenadas, outras vezes são apenas mencionadas e por vezes são assumidas na redação, como é o caso da postura estoica, presente em inúmeros trechos dos escritos paulinos.




Da Patrística à Idade Média

Terminada a primeira geração de seguidores de Jesus, começa uma nova etapa no cristianismo. Período esse chamado de Patrística (do sec. I ao V, aproximadamente). Trata-se da produção filosófico-teológico daqueles que são chamados de “Pais da Igreja” ou os “Santos Padres”. Nesses escritos podem ser encontrados elementos de filosofia para falar e expor a doutrina cristã. Eles podem ser agrupados em dois blocos: os textos dos apologistas e os textos contra as heresias.

As apologias surgiram por que os cristãos precisavam mostrar às autoridades romanas uma defesa de sua fé. Entre os apologistas podemos mencionar dois deles: Clemente de Alexandria e seu discípulo Orígenes.

Apareceram, também, algumas distorções (as heresias ou doutrinas falsas) sobre como entender os ensinamentos de Jesus ou como falar sobre sua divindade. Contra essas distorções forma produzidos inúmeros argumentos com a intenção de as corrigir essas doutrinas erradas. Entre os inúmeros autores que escreveram contra as heresias podemos destacar Santo Irineu de Lion e seu livro Contra Hereges.

Tanto a defesa da fé como o combate às heresias foram trabalhos que precisaram ser desenvolvidos com uma boa argumentação baseados nos ensinamentos de Jesus e na tradição Judaica. Isso tudo apresentado de forma clara, para que a argumentação fosse convincente. Essa clareza veio dos elementos e argumentação lógico, aprendida da filosofia grega.

Além disso, também serviu de suporte elementos que vieram do Neoplatonismo. Assim cada vez mais se cristalizava a visão platônica de que este mundo é onde reside o pecado e a maldade, mas o homem, criatura divina, tende ao céu, onde todas as dores, tristezas e imperfeições são sanadas. Uma típica argumentação platônica. Um bom exemplo da filosofia platônica aplicada à teologia é a obra “Cidade de Deus” de Santo Agostinho.

O neoplatonismo serviu de suporte aos autores cristãos por vários séculos. Em suas produções esteve presente a afirmação platônica de que o ser humano deve se purificar de seus pecados a fim de chegar ao céu, o espaço da perfeição, ao lado de Deus.

O suporte platônico permaneceu sendo utilizado pela Igreja e seus teólogos ao longo dos séculos. Já em plena Idade Média com Santo Tomás de Aquino, também Aristóteles passou a ser uma presença constante nos discurso teológicos. Cabe destaque para sua monumental de Suma Teológica

Em síntese, podemos dizer que o cristianismo desenvolveu-se, inicialmente, ao desvincular-se do judaísmo assumindo uma conotação greco-romana. Com isso conseguiu se expandir dentro do Império Romano, uma vez que era assumido por diferentes grupos sociais dentro do Império. Depois, com uma estrutura romana e com roupagens gregas, durante a Idade Média, o cristianismo, já como instituição forte, assumiu o aristotelismo como instrumento de manutenção do poder e para melhor apresentar seu discurso. Ou seja, o cristianismo sobreviveu por saber trocar de "roupa" em momentos determinantes da história, sabendo fazer a releitura da proposta de Jesus Cristo dentro de cada contexto. Isso pode ser exemplificado na Idade Média quando Tomás de Aquino fez uma adequação do cristianismo com o aristotelismo. Nascia, assim a escolástica.

Graças a isso é que a partir do século III o cristianismo passou a exercer domínio não só sobre o pensamento, mas também sobre o mundo político dos romanos. A influência do cristianismo se tornou cada vez maior e permaneceu até o fim da Idade Média. Com o Renascimento, com o advento da Reforma Protestante e o desenvolvimento das bases do capitalismo, o cristianismo católico perdeu espaço quando se desenvolveram os tempos modernos produzindo um vasto leque de correntes religiosas, filosóficas, políticas e econômicas. Mas, ao mesmo tempo, a filosofia continua sendo o ponto de partida para o desenvolvimento dos novos saberes...




Neri de Paula Carneiro

Mestre em educação. Filósofo, Teólogo, Historiador

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quinta-feira, 4 de novembro de 2021

Todos os santos: grande recompensa

(Reflexões baseadas em: Ap 7,2-4.9-14; 1Jo 3,1-3; Mt 5,1-12a)




Vivemos tempos apocalípticos!

Vivemos tempos apocalípticos?

Tanto a afirmação como a pergunta tem sua razão de ser.

A afirmação nasce porque, na visão de muita gente, nosso mundo parece que beira o caos. Olha-se para a sucessão de catástrofes naturais, muitas delas provocadas pela ação humana; a maldade humana presente na corrupção política; o sofrimento dos pobres e marginalizados, vítimas da concentração de renda; a percepção de que as pessoas estão cada vez mais longe da proposta divina e muito próximas do dinheiro e de várias outras maravilhas mundanas… tudo isso desenha e apresenta sinais apocalípticos!

Ver o mundo mergulhado nesse oceano de tragédias e afogado no mar de lama, por outro lado, leva algumas pessoas a se perguntar se isso corresponde aos sinais apocalípticos.Estes ainda argumentam: A bíblia não fala disso?

Não nos cabe, aqui, dizer sim ou não, pois celebrar o dia de Todos osSantos implica, ao mesmo tempo, olhar para o cotidiano e para fim dos tempos. Mas isso não significa dizer que vivemos tempos diferentes de outras épocas. Significa, sim olhar, olhar para o comportamento das pessoas à luz do que ensina a Palavra de Santa.

E aqui, sim, nos encontramos com o livro do apocalipse.Mas não para falar que este ou aquele sinal é sinal do fim dos tempos. Aliás, não é essa a finalidade do livro do Apocalipse. Pelo contrário. Ele nos quer falar de esperança!

Acena pode parecer aterradora, mas a palavra é de esperança. O anjo da destruição para ao ouvir: “Não faça mal à terra...” (Ap 7,3). Aí vem o número dos que foram marcados com o selo do cordeiro. Junta-se a eles “uma multidão imensa …. que ninguém podia contar” (Ap 7,9). E todos afirmam: "A salvação pertence ao nosso Deus, que está sentado no trono, e ao Cordeiro" (Ap 7,10).

A intenção, portanto, não é evidenciar as dores, mas mostrar o poder salvador de Deus acolhendo seus santos.

Mas a Palavra Santa não para aí. A primeira carta de João também acena para a esperança e não para a destruição.E aqui a proposta é ainda mais convidativa. Trata-se de um convite para a filiação divina: “Vede que grande presente de amor o Pai nos deu: de sermos chamados filhos de Deus! E nós o somos! Se o mundo não nos conhece, é porque não conheceu o Pai.” (1Jo 3,1).

Aqui, talvez, esteja a razão de se ver o mundo caótico e catastrófico como que se encaminhando para o fim. Mas não se trata de fim, e sim de adoção divina.É claro que para isso ocorrer, haverá um processo de purificação, pois nisso consiste a santidade. Mas é uma purificação que se dá na sintonia com a santidade divina. “Todo o que espera nele, purifica-se a si mesmo, como também ele é puro” (1Jo 3,3). Nisso consiste a celebração de Todos os Santos: mergulhar em Deus para renascermos purificados, santificados, fazendo parte do time divino.

Como Deus não é bobo nem nada, ao mesmo tempo que convida a todos a participar de sua santidade, estabelece os critérios para essa participação. Serão bem aventurados os que valorizarem alguns dons pessoais: a pobreza, que implica em desprendimento; a mansidão, que leva à não violência; mas também é necessário desenvolver alguns dons em favor dos outros: ter fome e sede de justiça, ser misericordioso e ser capaz de promover a paz. Tem mais: os que desejarem encontrar-se com Deus, terão que assumir, as consequências de sua opção: sofrer perseguição e injurias tão somente por causa da opção em auxiliar na construção de um mundo melhor. (Mt 5,1-12)

É claro que as forças do mal e anticristãs tentarão prevalecer. Em vez da paz, promoverão o armamento e a violência. Em lugar de misericórdia estimularão a competição e exploração de uns pelos outros. E serão esses representantes do anticristo que perseguirão, difamarão e matarão os promotores da paz. Mas tudo isso já estava anunciado no pacote: quem faz a opção pelos valores do Reino, invariavelmente sofrerá as consequências dessa opção. Serão bem-aventurados, sem dúvida, mas, no processo de plantio das sementes do Reino, sofrerão as perseguições do adversário.

O sonho esperançoso é poder construir o Reino já em nosso cotidiano histórico. Mas sabemos que aqui apenas lançamos as sementes. E, para quem faz e cumpre esta jornada, Jesus anuncia: “Alegrai-vos e exultai, porque será grande a vossa recompensa nos céus” (Mt 5,12)



Neri de Paula Carneiro

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terça-feira, 2 de novembro de 2021

A filosofia no Helenismo: Algumas escolas

Além das escolas platônica e aristotélica, durante o helenismo desenvolveram-se algumas correntes de pensamento que caracterizam um mundo em transição. Ou seja, a temática da filosofia voltou-se para o comportamento das pessoas. Por isso, em geral, são chamadas de escolas éticas. Estamos falando do Cinismo, do Estoicismo, do Epicurismo/Hedonismo, do Ceticismo e do Ecletismo. Todas elas, de alguma forma originadas no mundo grego, embora, também presente no contexto romano.

Embora não seja uma escola de filosofia, neste período também se pode analisar o cristianismo. Uma tipica manifestação helenista, uma vez que origina-se num território oriental, a Palestina. Desenvolveu-se com base num discurso grego e utilizando-se das estruturas políticas do império romano.



Algumas Escolas Helenistas



CINISMO

É a escola que melhor caracteriza a decadência moral da sociedade grega e macedônica. O pensador que melhor a representa é Diógenes. Sobre ele conta-se que em pleno meio dia andava pelas ruas de Atenas, com uma lanterna acesa, dizendo: “procuro um homem!”.

Cinismo vem de Cão. Essa denominação também vem de Diógenes, uma vez que teria dito: “faço festa aos que me dão alguma coisa, lato contra os que não me dão nada e ataco os agressores”. Num banquete, ao lhe atirarem um osso ele teria urinado em cima, como fazem os cães.

Ainda sobre Diógenes é celebre a passagem em que ele, descansando dentro de um tonel recebe a visita de Alexandre que lhe pergunta: “Posso fazer algo por você?” Ao que ele teria respondido: “Sim! Pode sair da minha frente que está tomando meu sol”

Partindo disso já podemos ter uma ideia do que essa escola representava: completo desprezo em relação àquilo que a sociedade dominante considera valor e valorização da simplicidade do viver. Foi uma escola que atravessou os séculos e podemos dizer que a postura socrática, temós antes, estava próxima do ideário cínico.

Conta-se que Sócrates teria parado em frente às bancas do mercado e depois de algum tempo contemplando o que ali acontecia, teria exclamado: “Quanta coisa os atenienses precisam para viver. O que disso realmente é necessário?

Sabe-se que a filosofia dos cínicos foi iniciada por um discípulo de Sócrates, Antístenes, por volta do ano 400 aC.



ESTOICISMO

Esta escola caracteriza-se pelo espírito de completa austeridade física e moral. Ou seja, o Homem deve suportar os sofrimentos, fugir dos prazeres fáceis e afastar-se das permissividades e licenciosidades. A sabedoria consiste em manter uma vida austera. O sábio é aquele que consegue a completa anulação das paixões (Apatia). Essa corrente filosófica influenciou profundamente a cultura romana e, por extensão, o cristianismo, marcando-o até nossos dias. Um exemplo disso é a prática da penitência.

O estoicismo teve grande influência do Cinismo. Seu fundador, Zenão, havia se juntado aos cínicos de Atenas. Reunia seus ouvintes num portal (stoa, em grego) da cidade. Daí a denominação do grupo: o grupo do portal.

No livro “O mundo de Sofia” J Gaarder afirma que: “Como verdadeiros filhos do seu tempo, os estoicos eram cosmopolitas. Estavam, portanto, mais abertos à cultura contemporânea do que os "filósofos do tonel" (os cínicos). Segundo eles, a comunidade dos homens devia interessar-se por política, e muitos estoicos foram estadistas ativos, como, por exemplo, o imperador romano “Marco Aurélio” (121-180 d.C.). Contribuíram para que a cultura e a filosofia gregas fossem difundidas em Roma principalmente graças ao orador, filósofo e político “Cícero” (106-43 a.C.), que criou o conceito de “humanismo”, ou seja, uma concepção do mundo que tem o indivíduo como centro. O estoico “Sêneca” (4 a.C.-65 d.C.) disse alguns anos mais tarde que o homem era sagrado para o homem, afirmação que se tornaria o mote de todo o humanismo. Além disso, os estoicos sublinharam que todos os processos naturais - por exemplo, a vida e a morte - seguiam as leis constantes da natureza. Por isso, o homem tem de se reconciliar com o seu destino. Segundo eles, nada acontece por acaso”



EPICURISMO/HEDONISMO

Esta escola que pode ser colocada no extremo oposto ao estoicismo. A ela estão ligados dois personagens,entre outros: Aristipo, contemporâneo de Aristóteles, o qual a teria iniciado e Epicuro. Este, por volta do ano 300 aC, fundou uma escola, num jardim de Atenas. Em seu pórtico estava escrito: "Estranho, aqui serás feliz. Aqui, o prazer é o bem supremo". Nesse ambiente desenvolveu sua ética do prazer.

Séculos depois, alguns artistas do Renascimento representam o Jardim de Epicuro como um ambiente no qual várias musas e ninfas seminuas divertem-se ao lado de sátiros e outros personagens, comendo, bebendo e dançando. Com isso querendo dizer que o sentido da vida é desfrutar das alegrias que a vida oferece.

Na realidade, a afirmação de Epicuro é que ela deve ser celebrada todos os dias, pois é constante e perfaz cada existência de cada pessoa; por outro lado a morte é uma só e é certa.

Esta escola, portanto, defende que o ser humano deve buscar o prazer. Daí a denominação de escola hedonista. A ideia de prazer está ligada à deusa Hedone, filha de Eros e Psique. As três divindades podem ser associadas à ideia de que a vida deve ser vivida com intensidade, mas não com banalidade. Por isso é necessário destacar que esse prazer deve ser entendido como ausência da dor e não como mergulho nas paixões. Desfrutar do prazer é virtude, portanto, é um bem; enquanto a dor é um mal e, por isso, deve ser evitado. O supremo prazer é o saber que pode ser obtido quando se superam as paixões que são a causa da degradação social.

O prazer decorrente das paixões desenfreadas levam à dependência ou à distorção de seu sentido humanizante que se caracteriza como encontro edificante entre pessoas, como ampliação da sabedoria, como processo interativo...

A atuação de Epicuro desenvolveu-se, justamente, num contexto de degradação moral, social e política. Um período em que os valores estavam em declínio e tudo parecia perder o sentido. Nesse ambiente se fez necessária uma redefinição dos valores.

Diz Epicuro: “Quando dizemos que o prazer é o bem supremo não queremos nos referir aos prazeres do homem corrompido, que pensa só em comer, em beber e nas mulheres”. Ou seja, deve-se buscar o prazer de conduzir a vida em harmonia com os próprios sentimentos e com os demais concidadãos e os seus sentimentos.



CETICISMO

O contexto em que se desenvolveu esta escola é o mesmo das anteriores: um vazio politico, intelectual e moral. Um ambiente propício para se colocar em dúvida todas as verdades estabelecidas.

O ceticismo caracteriza-se pela postura de constante busca do conhecimento e, simultaneamente, pela constatação da impossibilidade de acesso a ele. Para os céticos a sabedoria não é a posse da verdade, mas a atitude de buscá-la.

Pirro, teria sido o fundador dessa corrente de pensamento, no final do século IV aC. Embora não tenha deixado nenhum escrito. Ele acompanhou Alexandre em suas aventuras militares e constatou que os diferentes povos tinham distintas versões e posicionamentos a respeito de situações e fatos. Isso o levou a se indagar sobre os fundamentos da certeza e a afirmação da sua inacessibilidade.

Uma vez que a verdade é inacessível, somos condicionados a permanecermos com nossas impressões e opiniões. Mas isso não resolve o problema, uma vez que essas, também, são imprecisas, pois carecem de fundamento. Sendo impossível o acesso à verdade e infundadas as opiniões resta ao intelecto a suspensão de todo pensamento ou a ataraxia.

Entretanto o cético não se opõe ao conhecimento e sim à certeza dogmática. Desse ponto de vista somos levados a dizer que a postura cética é o centro da filosofia, uma vez que esta se caracteriza justamente pela atitude de busca do conhecimento. E, diante das certezas, a filosofia exerce seu direito de as colocar em dúvida. O que os céticos acrescentam é a afirmação da inacessibilidade da verdade e, por isso, ó sábio não se inquieta na busca, mas procura entrar em si mesmo para, no silêncio de sua ignorância, esvaziar-se das certezas.

A postura cética permanece em nossos dias. Um exemplo dessa postura nos é apresentada por A. Saint-Exupery, no livro “O Pequeno Príncipe”. Nessa obra podemos ler um diálogo entre o Pequeno Príncipe e a Raposa. Num dado momento ela confidencia seu segredo ao principezinho, dizendo ser importante “ver com o coração”. Afinal de contas, “a linguagem é uma fonte de mal-entendidos”.

- Adeus, disse a raposa. Eis o meu segredo. É muito simples: só se vê bem com o coração. O essencial é invisível para os olhos.

- O essencial é invisível para os olhos, repetiu o principezinho, a fim de se lembrar.

- Foi o tempo que perdeste com tua rosa que fez tua rosa tão importante.

- Foi o tempo que eu perdi com a minha rosa... repetiu o principezinho, a fim de se lembrar.

- Os homens esqueceram essa verdade, disse a raposa. Mas tu não a deves esquecer. Tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas.



ECLETISMO

Pode-se dizer que esta foi uma escola que se desenvolveu em oposição e como resposta aos céticos. Afirmavam que a verdade não se limita a um sistema filosófico e, portanto, deve ser complementada por elementos das diversas escolas. O ecletismo teve larga aceitação e desenvolvimento entre os romanos, sendo Cícero um dos maiores representantes do ecletismo Romano.

Em seu livro Curso de Filosofia (v. 1 e 2) Batista Mondin afirma que os céticos constatam inúmeras divergências entre os diferentes pensadores, mas isso se deve à limitação da mente humana que não consegue abarcar todas as realidade num só olhar. Ou seja, “estudando aspectos diferentes da realidade é natural que cheguem a conclusões diferentes. Por isso, para se chegar a uma compreensão adequada das coisas, não se deve confiar em um só filósofo, mas é necessário reunir as conclusões das pesquisas dos melhores entre eles”. E, dessa forma é possível uma visão mais precisa.

A postura eclética pode ser apresentada como um dos elementos centrais da cultura romana. Seu exército se fez poderoso porque foi capaz de, entre outras coisas, assimilar valores dos povos e exércitos vencidos. Assimilavam os valores e conhecimentos dos vencidos e com isso ampliavam seu próprio volume de informações a respeito da realidade

Os ecléticos, como todos os outros pensadores do período helenista não foram criadores de sistemas, mas assimiladores, releitores e divulgadores do pensamento grego, com variantes e acréscimos adaptados à sua realidade e seu tempo.

Vários séculos depois, no Brasil do século XIX e inicio do século XX, o ecletismo foi uma corrente de pensamento que melhor caracterizou a filosofia em nosso país. Alguns autores chegam a afirmar que o ecletismo foi a primeira experiência filosófica original, do Brasil. Isso, na medida em que uma corrente eclética pode ser considerada original….




Neri de Paula Carneiro

Mestre em educação. Filósofo, Teólogo, Historiador

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segunda-feira, 1 de novembro de 2021

Finados: quando menos o esperardes

(Reflexões baseadas em: Jó 19,21-27; 1Cor 15,20-28; Lucas 12,35-40)

Você sabe o que a morte faz com os vivos?

Sem traumas! Não precisa se assustar! Mas em nossa vida, ela é uma realidade! Não estou dizendo que a morte mata quem está vivo. Isso os vivos já sabem! E sabem que têm, com ela, um encontro marcado. Muitos não gostam de lembrar, mas a vida é um caminho para a morte.

Aliás isso é o que o apóstolo Paulo disse à comunidade de Corinto: “Como em Adão todos morrem, assim também em Cristo todos reviverão” (1Cor 15,22). Mas tem algo a mais!

Você já se deu conta da totalidade de uma cena de morte? Já se deu conta de que a morte é a situação da vida que mais ajunta pessoas: amigos e curiosos, todos fazem questão de conferir: “é, de fato, morreu!”

Entretanto, além de ajuntar pessoas e colocar um ponto final na vida de quem está vivo, a morte tem um dom especial!

A morte, além de tirar a vida do vivente… o coloca em contato: com sua essência, com aquilo que fez ao longo da vida, com seu espelho… e o coloca frente a frente com o Senhor da Vida.

No outro extremo, temos a vida,que não é um parque de diversão, ao qual visitamos para nos afastarmos dos problemas e tribulações do cotidiano. Pelo contrário, a vida é uma trilha, complexa, que percorremos diariamente, do nascimento até nosso ponto de transição. E isso nos leva a dizer que a morte, não é um ser sombrio e assustador. Pelo contrário, é uma amiga. A ela São Francisco de Assis chamava “irmã morte”. Por suas mãos somos colocados diante de nosso destino definitivo.

Ela que nos conduz para além das dores, como nos ensina Jó, ao dizer que seu “redentor está vivo”. Esse redentor está vivo e pode redimi-lo de tudo, inclusive da morte: “E depois que tiverem destruído esta minha pele, na minha carne, verei a Deus.”

Então, já percebeu o que a morte faz com os vivos?

A vida é um caminhar para a morte. Mas o que é a morte se não um percurso para a vida?

Alguém pode argumentar, dizendo que Paulo chama a morte de inimiga. “O último inimigo a ser destruído é a morte” (15,26). De fato, mas são duas situações.

Uma é a morte, afastamento definitivo, da presença de Deus. É disso que o apóstolo fala: “por um homem veio a morte”; “em Adão todos morrem”.Mas não é o Senhor que rejeita o ser humano, e sim as pessoas que não aceitam ou rejeitam a proposta divina. Vivem para si, sem olhar as necessidades dos outros e sem se voltar para Deus. Para os que fazem essa opção, o fim desta jornada é a morte. O ponto final, longe das propostas e promessas de Deus. Neste caso, a morte é a inimiga e representa “todo principado e todo poder e força” do mal. Representa todos os inimigos vencidos e colocados “debaixo de seus pés” (1Cor 15,24-25), quando o “último inimigo”, a morte, será destruída, restando apenas a vida, da qual está excluído quem optou por afastar-se de Deus.

Há, entretanto,uma outra situação para a qual a morte é o encontro definitivo, com Deus Pai. Neste caso a morte é a transição, a “ressurreição dos mortos” que se dá pela ressurreição de Cristo. Na Ressurreição “todos reviverão” (1Cor 15,21-22) saindo da morte-transição, para a vida-perfeição. E quando tudo isso tiver se concretizado “então o próprio Filho se submeterá àquele que lhe submeteu todas as coisas, para que Deus seja tudo em todos” (1Cor 15,28). Nesse ponto as indagações vida-morte se converterão em vida plena, pois não haverá mais dúvidas

Sobra apenas uma questão: quando será? Quando acontecerá esse encontro, com a irmã morte que leva para a vida? Novamente é Jesus quem responde: Não tem data nem horário….

Mas é necessário que estejamos preparados…. Esperando! E com “as lâmpadas acesas” (Lc 12,35), para participar da festa que o próprio Jesus preparou para aqueles que aceitaram sua proposta usando sua vida não em benefício próprio, mas para difundir a mensagem do Mestre.

Para estes,o próprio Jesus “vai cingir-se, fazê-los sentar-se à mesa e, passando, os servirá” (Lc 12,37). Para estes, a morte, é apenas uma passagem da vida para a festa definitiva. Para estes, que usaram sua vida em favor dos que mais precisavam, não se trata nem de esperança nem de promessa, mas de certeza: seu lugar estará preparado, nesse banquete.

E agora, já descobriu o que a morte faz com os vivos?

Faz um convite na forma de um alerta de Jesus: “Ficai preparados! Porque o Filho do Homem vai chegar na hora em que menos o esperardes" (Lc 12,40). O convite é para uma festa cujo ingresso é a morte. Um ingresso que dá acesso à vida.




Neri de Paula Carneiro

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sexta-feira, 29 de outubro de 2021

O único Senhor

(Reflexões a partir de: Deuteronômio 6,2-6; Hebreus 7,23-28; Marcos 12,28b-34)




A maioria dos cristãos aprendeu e sabe de cor os “dez mandamentos”. Talvez até você, que agora está lendo, lembra-se da catequese ou da escola bíblica… e ainda sabe recitar: “Amar a Deus acima de tudo; não usar seu Nome em vão; santificar o domingo; honrar pai e mãe; não matar; preservar a castidade; não furtar; não acusar injustamente…” e assim por diante.

Essas, entretanto, são as normas que resultam de uma crença. O pressuposto para guardar e seguir os mandamentos não são os mandamentos por si mesmos, mas a fé Naquele que os instituiu. E, dessa forma, invariavelmente chegaremos ao ponto de origem.

Nesse ponto de origem precisamos nos recordar que todos os povos dos tempos mais antigos acreditavam em várias divindades. E o povo hebreu conviveu com essas crenças politeístas.

Essa situação manifestava um problema: o contato e relação das pessoas com essas divindades. Para estabelecer o contato com essas incontáveis divindades dos tempos antigos e para manter a sintonia com elas, surgiram os sacerdotes. Cada divindade era cultuada, recebia as orações, as ofertas e sacrifícios, por meio desses sacerdotes.

Mas, como qualquer ação humana, a ação dos sacerdotes também podem se corromper e afastar-se dos princípios santificadores. Essa contingência da fragilidade humana nos permite compreender não só a função do sacerdote, como aquilo que orienta a carta aos hebreus, dizendo que os sacerdotes devem “oferecer sacrifícios em cada dia, primeiro por seus próprios pecados e depois pelos do povo”(Hb 7,27).

Anecessidade do sacerdote intercessor se explica porque o ser humano é limitado, é facilmente corruptível, deixa-se levar pelas facilidades e, principalmente, porque diviniza muitas coisas. Os povos antigos viam deuses em quase todas as manifestações da natureza e cultuavam essas divindades; e isso não é diferente hoje, quando as pessoas sociedade cultuam seus objetivos de vida: o carro novo, uma joia sonhada, uma roupa da moda, uma casa luxuosa; alta renda e gorda conta bancária…. Enfim, todas as nossas vaidades acabam se convertendo em nossos deuses.

Nesse ponto é que se aplicam os mandamentos: amar a Deus e não as coisas; descansoou repouso dominical, para que o trabalho em função de conseguir mais coisas não se converta em nosso deus; não enganar os outros em nome das nossas aparentes necessidades, para que essas coisas não se tornem nossas divindades; não matar nem furtar porque as coisas e a vida do outro a ele pertence e ambicionar o que não nos pertence é uma forma de divinização da coisa indevida…. E assim por diante podemos notar que todos os mandamentos podem ser vistos como uma forma de nos fazer olhar para a correta direção: valorizar as coisas como coisas que são e usar delas porque nos são úteis e podem nos ajudar a nos aproximarmos de Deus e dos irmãos.

Mas, ao mesmo tempo saber que essas coisas não nos completam nem são divinas…e que podemos viver sem elas! Com essa perspetiva é que podemos entender tanto a profissão de fé dos Judeus (Dt 6,4) como a orientação de Jesus de Nazaré (Mc 12,29-31).

Esses dois ensinamentos têm sua razão de ser. Diante de tantos apelos e divinização das coisas, faz-se necessário recuperar a fé no único Deus. Mas também é necessário assumir a consequência dessa fé: amar a Deus e aos irmãos, na mesma medida e com a mesmo intensidade.

Olivro do Deuteronômio (6,2-3) nos ensina que amar ao único Deus e não as coisas ou àquilo que divinizamos, tem com consequência a plenitude da vida, a felicidade e a fartura, representados pela “terra que corre leite e mel”. Essa fartura resulta do amor a Deus e não às coisas divinizadas.

A proposta, entretanto vai além. E Jesus quem o demonstra. Ao ser indagado Jesus é taxativo: Repete a profissão de fé dos judeus: “Ouve, ó Israel! O Senhor nosso Deus é o único Senhor” (Mc 12,29). Mas, como enviado daquele que é a origem e motivo da fé, Jesus complementa a lei: “O segundo mandamento é: Amarás o teu próximo como a ti mesmo! Não existe outro mandamento maior do que estes” (Mc 12,31).

Aqui está a afirmação magistral de Jesus. Todos já sabiam que amar a Deus é o maior mandamento. Mas Jesus mostra o passo seguinte: se algo a mais deve ser amado, não são as coisas divinizadas. Se algo a mais deve ser amado, esse algo a mais deve ser visto como tão importante quanto o próprio Deus. Algo que é imagem e semelhança de Deus: ou seja, a pessoa humana.

Assim temos o resumo dos mandamentos: toda ação e dedicação a Deus, passa pelo respeito ao ser humano. E o inverso também é verdadeiro: O desrespeito ao ser humano implica em desamor a Deus. O ato de fé, portanto, começa com o desapego dos pequenos deuses cotidianos, passa pela valorização/amor ao irmão e isso nos leva ao amor a Deus, pois só Ele é o Senhor.

Resta, sabermos qual é nosso Deus. Para isso temos que saber a que destinamos nosso tempo, atenção e esforços; o que amamos acima de tudo? Esse é o centro de nossa vida; esse é nosso Deus!




Neri de Paula Carneiro

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sexta-feira, 22 de outubro de 2021

Que eu veja!

(Reflexões a partir de: Jeremias 31,7-9; Hebreus 5,1-6; Marcos 10,46-52)




Quantos e quais são os empecilhos que nos impedem de nos aproximarmos de Jesus?

Esses impedimentos estão em nós ou naquilo que nos circunda?

Quase nunca somos capazes de admitir nossas fraquezas ou nossos erros; quase sempre atribuímos a outros as causas de nossos insucessos. Mas o que temos recebido de Deus e o que temos para Lhe retribuir?

Lendo esta pequena passagem de Jeremias (Jr 31,7-9) ouviremos o clamor do povo: “Salva, Senhor, teu povo, o resto de Israel”. Mas não é uma multidão que se dirige ao Senhor!

Ou seja, não se trata de uma multidão que chama e pede ajuda. São uns poucos. A multidão é como a ramagem das árvores, pende para o lado que o vento sopra. E os ventos das propostas enganosas sopram constantemente: pela boca daqueles que se dizem pastores, mas trazem intenções enganosas, pois só querem tirar proveito da inocência do povo. Pelos líderes políticos que enganam, usando o nome de deus e aproveitando-se da simplicidade da fé ingênua. Pelos veículos de comunicação de massa que massificam as multidões para melhor domá-las e as entregar aos falsos pastores e lideranças religiosas, prontas para serem conduzidas ao matadouro, como o gado gordo.

Mas aqueles poucos do povo, o resto, não é assim. Esse pequeno grupo percebe os engôdos e redes lançados pelo inimigo. Percebe como são mortais as armadilhas dos discursos inflamadosdaqueles que tanto usam o nome de deus como do demônio; das propagandas dizendo que tudo é fácil e simples, desde que se siga a trilha do consumo, da anulação da consciência, do endeusamento dos líderes políticos que se apresentam como messias inflamados. Os poucos, o resto do povo, esse é capaz de dizer: Não é esse o caminho para as “torrentes de água” prometidas pelo senhor. E são capazes de dizer isso porque, permanecem com os olhos abertos... enxergando!

Esses poucos são capazes de ver, porque não se colocam acima do povo, mas ao seu lado. Aliás é isso que nos ensina a carta aos Hebreus, afirmando que todo aquele que têm função de liderança é “tirado do meio dos homens e instituído em favor dos homens nas coisas que se referem a Deus”. Esse não se apresenta como santo salvador, mas sabe-se limitado e “cercado de fraqueza”. Seu poder é a compaixão, não a exploração; é a mediação para levar a Deus e não a enganação interesseira; sabe que não age em seu nome, mas apresenta-se a Deus com humildade, carregando os anseios do povo… sabe que se torna um porta-voz do povo e não seu carrasco!!!

E a nós, o que resta fazer?

Com certeza não é manter as atitudes dos grandes deste mundo,que se fazem passar por bons meninos, mas que de fato são a causa da perdição!

Os que estão nos cargos e funções e instituições de liderança são como aqueles que tentaram conter o cego Bartimeu (Mc 10,46-52). Mas ele, integrando o pequeno grupo, gritava, clamava e pedia a ajuda de Jesus… enquanto os adoradores da discórdia tentavam impedi-lo.

Ele, cego, estava vendo o caminho a seguir,gritava… e o Senhor o ouviu; eles, com olhos perfeitos, não conseguiam ver a proposta de Jesus… e tentavam barrá-lo.

Contra as expectativas do que se acham donos da verdade, do dinheiro, do poder, da moral, dos bons costumes… Jesus, referindo-se ao cego que o estava vendo, disse apenas: “Chamai-o”

Dando “um pulo” aproximou-se. “Que queres?” pergunta Jesus. “Quero ver!” diz o cego!

Certamente o diálogo prosseguiu com Jesus dizendo: “Você já me viu melhor do que essa multidão”. Possivelmente ele respondeu: “Mas a multidão segue qualquer um. Segue belas palavras. Quero ver o caminho por onde andas e andar contigo”. Só então Jesus lhe diz: “Tua fé te curou!”

E ele recuperou a visão do corpo, para melhor ver com os olhos da alma; para melhor seguir a Jesus; para nos ensinar que Jesusnão atende a inconstância da multidão, que enche estádios e comícios e baladas e motociatas e passeatas e outros ajuntamentos de multidões… Mas atende, sim, aqueles que querem ver a situação de miséria em que o povo se encontra e se esforçam e lutam contra ela. Aqueles que querem ver como transformar a sociedade para que “todos tenham vida”… Aqueles que se engajam num processo de análise e crítica dos padrões dominantes e dominadores que valorizam não o ser humano mas as aparências...

Então, quantos e quais são os empecilhos que nos impedem de nos aproximarmos de Jesus? Esses impedimentos estão em nós ou naquilo que nos circunda?E, se queremos nos aproximar de Jesus, também temos que começar a pedir: Senhor, que eu veja para poder me aproximar daqueles que necessitam...




Neri de Paula Carneiro

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quarta-feira, 20 de outubro de 2021

A filosofia no Helenismo: as origens

A filosofia havia chegado a um ponto alto, com a atuação de Sócrates, Platão e Aristóteles. É natural, portanto, dizermos que na fase seguinte tenha ocorrido um relativo declínio, pois se não houve declínio a fase anterior não teria sido o cume.

Mas também não podemos negar que após esse trio de ouro seus discípulos prosseguiram suas escolas. Entretanto a conjuntura política era outra, da mesma forma que os desafios filosóficos eram diferentes. Por essa razão, no helenismo – assim se denomina este período – a filosofia procurava responder a novos problemas. Agora não mais ligados à natureza, como nos pré-socráticos; nem à explicação metafísica do homem, como nos clássicos. Os problemas agora eram referentes à vida social e os comportamentos humanos, ou seja, o problema agora era de ordem ética; principalmente para responder aos apelos de uma sociedade decadente.

A partir do século IV aC. ocorreu uma decadência político-militar da Grécia. Com o enfraquecimento de Atenas, cresce o poder macedônico. Primeiro Felipe depois Alexandre conquistam e dominam a Grécia, além de expandirem seus domínios para o oriente. Depois vieram os romanos, dominando a Europa e os reinos que formaram a Grécia e o antigo império de Alexandre. Todo esse conjunto de fatos intensificou o processo de sincretismo cultural que se denominou de Helenismo




O Helenismo

O fato é que a Grécia, tendo Atenas como centro filosófico, deixou de representar uma ponta de lança nas inovações do pensamento. Esse papel inovador coube a Alexandre e seus exércitos que, imprimiu a vitória final sobre os persas e dominou, além da Grécia e da Pérsia, o Egito e a Índia formando, com suas conquistas militares, um vastíssimo império, no qual a cultura grega estava presente. Assim, se é verdade que Alexandre não era um filósofo, suas campanhas militares foram o meio difusor da cultura grega.

No livro, “O mundo de Sofia”, J. Gaarder faz a seguinte afirmação, a respeito das origens do Helenismo. “Começa então uma época nova na história da humanidade, caracterizada pelo desenvolvimento de uma comunidade internacional em que a cultura e a língua gregas desempenham um papel dominante. Este período, que durou cerca de três séculos, é denominado “Helenismo”, termo que designa tanto um período histórico como a supremacia da cultura grega nos três grandes reinos helenísticos – a Macedônia, a Síria e o Egito”. Na verdade os exércitos de Alexandre foram além, chegaram até a Índia e, evidentemente, desses e nesses contatos ocorreram influências múltiplas e multilaterais.

Do ponto de vista político o desmoronamento da supremacia grega abre um espaço a ser preenchido. O que foi feito pelos macedônios com Alexandre na liderança.

Do ponto de vista da filosofia, a pureza e aprofundamento da filosofia clássica cedem espaço para a tendência de universalizar e expandir os horizontes geográficos e temáticos. Ocorre o que podemos chamar de sincretismo cultural ou, se quisermos, nasce uma nova cultura. O mundo grego interage com culturas, tradições e crenças, principalmente do Oriente, e disso nasce a cultura helenista.

Eis o que diz Batista Mondin, no livro Curso de Filosofia, (vol 1):

“Politicamente subjugada a Hélade conquista o mundo com a sua cultura, que encontra abertos à sua frente novos horizontes e novas vias para estenderem-se mais e, ao mesmo tempo, para enriquecer-se mais pela assimilação de novas ideias. É o fenômeno do helenismo, isto é, da universalização da língua e da cultura gregas, de sua expansão pelos países orientais (Ásia Menor, Egito, Pérsia), que os exércitos de Alexandre tinham aberto à influencia espiritual da Grécia. E Atenas já não é o único centro deste mundo intelectual; formaram-se outros focos de cultura: Pérgamo, Antioquia e, principalmente, Alexandria, no Egito.”

Podemos dizer, portanto, que o Helenismo caracteriza-se pelo sincretismo de elementos culturais provindos dos povos do oriente, conquistados por Alexandre e de sua interação com os valores e cultura gregos. Na cultura grega esse sincretismo produziu um novo mundo e uma nova concepção de mundo.

A filosofia desse período é, ao mesmo tempo, continuação dos ensinamentos de Platão e Aristóteles, mantidos pelos seus discípulos e uma reelaboração desses ensinamentos filosóficos, tendo em vista que os problemas são outros.

Trata-se de uma época em que a sociedade e os valores entraram em decadência. Consequentemente, do ponto de vista político, para ocupar o vácuo do poder grego ascenderam os macedônios que assimilam a cultura grega, com Alexandre, discípulo de Aristóteles. Mais tarde, também entra em cena o Império Romano com seu exército esmagador.

Do ponto de vista filosófico e em resposta à decadência moral em que esteve mergulhada a sociedade desse período, ocorre um sincretismo de ideias. Trata-se, portanto, de uma sociedade em que a crise de valores se havia infiltrado e, por esse motivo, diante dessas novas necessidades a filosofia se propõe a responder a novos problemas, agora de ordem ética.

O que se constata é que as preocupações da filosofia Helenista, mudam de curso. Deixam de ser centradas no homem social e político e na compreensão da natureza e do universo para se concentrar na análise dos comportamentos, ou seja, as atenções se voltam para problemas éticos. A filosofia começa a tratar não do coletivo, mas da vida interior do homem. Essa preocupação ética permaneceu durante todo o período Helenista, passou pelo Império Romano e continuou com a chegada do Cristianismo, quando começou uma nova etapa da história da filosofia.




Alexandria

Nenhuma região ou cidade rivalizou tanto com Atenas, no que se refere à produção de novos conhecimentos como a cidade de Alexandria. Não tanto pela produção filosófica, como por ter se tornado um centro “científico” catalisador dos grandes pensadores e pesquisares da época.

Alexandre fundou várias Alexandrias, nas paragens do oriente, conquistadas por seus exércitos. E a partir de todas elas difundia a cultura helênica, incrementando o mudo helenista. Entretanto a Alexandria que marcou a história ficava na costa africana do Mediterrâneo. Dessa cidade, com sua biblioteca e museu irradiava-se o helenismo, da mesma forma que atraia estudiosos e estudantes, todos, cada um ao seu modo, trazendo novidades para ampliar o sincretismo e incrementando o helenismo.

O norueguês J. Gaarder, no livro “O mundo de Sofia”, faz o seguinte comentário “A cidade de Alexandria, no Egito, tinha um papel chave como ponto de encontro do Oriente e do Ocidente. Enquanto Atenas continuava a ser a capital da filosofia, com as escolas filosóficas deixadas por Platão e Aristóteles, Alexandria tornou-se a metrópole da ciência. Com a sua grande biblioteca, esta cidade passou a ser o centro dos estudos de matemática, astronomia, biologia e medicina”.

Mas, por que essa cidade passou a ser assim tão concorrida?

Talvez porque Ptolomeu, herdando o Egito dos restos do Império de Alexandre, procurou atrair para o Egito os principais pensadores da sua época. Querendo, com isso transformar Alexandria na capital intelectual do mundo helênico. E assim cada cabeça pensante que ali se instalava dava um jeito de convidar e atrair outros parceiros.

Os italianos Giovanni REALE e Dario ANTISERI, no primeiro volume de sua monumental História da Filosofia, dão a seguinte explicação para o crescimento de Alexandria como centro cultural, dizendo que seus administradores pretendiam

“Reunir em uma grande instituição todos os livros e todos os instrumentos científicos necessários às pesquisas, de modo a fornecer, aos estudiosos, material que não pudessem encontrar em nenhum outro lugar, induzindo-os assim a irem para Alexandria. Desse modo, nasceram o ‘Museu’ (que significa: ‘instituição sagrada dedicada às musas’ protetoras das divindades intelectuais) e a ‘Biblioteca’, a ele anexa: o primeiro oferecia todo o instrumental para as pesquisas médicas, biológicas e astronômicas; a segunda oferecia toda a produção literária dos gregos”

Assim, enquanto Atenas perdia espaço e pesquisadores, a cidade de Alexandria ganhava destaque. E, quanto mais crescia, mais atraía as atenções de todos os que de alguma forma se importavam com o saber. Essa é a razão pela qual ela pode ser comparada a um caldeirão fervente, onde se misturavam as diferentes tendências e perspectivas. Dessa forma, lentamente passou a imprimir os rumos não só para a filosofia, como para as novas descobertas matemáticas, astronômicas, além de inovações médicas e geográficas. Podemos dizer que um dos mais expressivos símbolos do helenismo foi a cidade de Alexandria.




Os romanos

É verdade que os macedônicos ocuparam o vácuo deixado pelos gregos. Entretanto isso não é toda a verdade. Desde o século VIII a.C. vinha se desenvolvendo, o que no final do primeiro século antes de Cristo, passaria a ser o Império Romano. Alexandre havia conquistado um império que abrangia três continentes (Europa, África e Ásia). Mas morrendo cedo, sem descendentes, também deixou um vácuo de poder. Seus sucessores não conseguiram manter a unidade territorial. Sem grandes opositores, cresceu a capacidade de influência dos romanos. E o que não se fez pelas ideias foi feito pela espada. O fato é que o poder romano se instalou.

Roma assumiu a hegemonia militar, não só na península itálica, como no mundo grego e por quase toda a Europa e grandes extensões orientais. Roma dominou as áreas de influência grega, depois os reinos helenistas e por fim, por volta de meados do último século antes de Cristo a língua latina e padrões romanos se estendiam do estremo ocidente, na Espanha, até vastas regiões orientais, na Ásia.

E nisso se manifesta uma daquelas curiosidades da história. Roma conquistou o mundo helenístico mas, antes disso, já havia se tornado uma consumidora e difusora da cultura grega. E assim a cultura grega permaneceu em seus dominadores, em alguns costumes, na mitologia e na filosofia… que os romanos, com seu pragmatismo, latinizaram.

Vale ressaltar, entretanto, que o universo romano não foi tão decisivo para a filosofia como havia sido o mundo grego. Entretanto esse universo herdou o legado grego e dentro dele se desenvolveu o cristianismo. Levando tudo isso em consideração, não podemos deixar de considerar a cultura romana como um dos pressupostos não somente para o cristianismo como também para o mundo medieval que o sucederia.

Da mesma forma que, com Alexandre, no período romano, nas praças e nos mercados multidões se aglomeravam vindas dos mais diferentes pontos da Ásia, da África e mesmo da Europa. Nesse burburinho de comerciantes, aventureiros, soldados e outros tantos sacerdotes e filósofos, os diferentes elementos culturais afloravam e, por vezes, conflitavam. Mas todos se utilizavam cada um a seu modo, das estruturas produzidas pelo Estado Romano. Filósofos para difundir suas ideias. Sacerdotes para fazer fiéis. Mercadores para fazer fortuna. Soldados para fazer com que todos se curvassem ao poder central romano.

O fato é que graças à dominação romana, várias correntes de pensamento se instalaram. Além disso, várias personalidades romanas produziram inúmeros escritos sobre filosofia. Cícero, Sêneca, o imperador Marco Aurélio, entre outros. O Ecletismo e o Estoicismo, embora de origem grega, se instituíram como escolas tipicamente romanas




Neri de Paula Carneiro

Mestre em educação. Filósofo, Teólogo, Historiador

Outros escritos do autor:

Filosofia, História, Religião: https://www.webartigos.com/index.php/autores/npcarneiro;

Literatura: https://www.recantodasletras.com.br/autores/neripcarneiro.

sábado, 16 de outubro de 2021

Jesus: à direita ou à esquerda

(Reflexões a partir de: Is 53,10-11; Hb 4,14-16; Mc 10,35-45.)



Já pensou se a atitude de Jesus fosse seguida pelos nossos representantes políticos?

Dois interesseiros pedem privilégios. Dois discípulos, que já andavam com Jesus há algum tempo, quiseram tirar proveito da situação; da amizade com o mestre; da condição de discípulo. Queriam proveito próprio. Queriam as mamatas das malandragens políticas…. Queriam, mas não para servir melhor, e sim para serem vistos e admirados e poderem dizer: “veja onde cheguei!” “Sabe com quem está falando?” “Deixa comigo que dou um jeito, sou chegado do chefe!” ou o que é pior, queriam ficar próximos do mestre porque isso lhes possibilitava fazer aqueles joguinhos de troca de favores. Aqueles jogos de “toma-lá-dá-cá” tão na moda entre os políticos.

Foram, realmente, petulantes os dois irmãos: “Deixa-nos sentar um à tua direita e outro à tua esquerda, quando estiveres na tua glória!” (Mc 10,37). Seu raciocínio: “já que estamos ajudando na campanha, temos direito a uma vaguinha no primeiro escalão!” É a eterna busca do privilégio!

Mas Jesus não dá moleza. Faz aquilo que, infelizmente, não fazem nossos representantes políticos.E dispara: “Vós não sabeis o que pedis!” (Mc 10,38). Certamente disse mais: “você não entenderam nada do que lhes ensinei…!!!”

Na verdade eles sabiam. Mas não sabiam que Jesus não estava ali para atender o ego ou a sede de privilégios e interesses pessoais.

Por esse motivo foi que os companheiros reagiram. “Quando os outros dez discípulos ouviram isso, indignaram-se” (Mc 10,41). E não é pra menos. Quem fica satisfeito com colegas de grupo que não agem em favor do grupo, mas dos interesses pessoais?

E então, para mostrar que, definitivamente, não é e não age como nossos líderes políticos, Jesus deixa claro: “Vós sabeis que os chefes das nações as oprimem e os grandes as tiranizam. Mas, entre vós, não deve ser assim: quem quiser ser grande, seja vosso servo” Mc 10,42-43). A grandeza, é o que nos ensina Jesus, não está no cargo ou função que se ocupa, mas na disposição para o serviço. Ter disposição para servir a quem precisa: essa é a grandeza!

Alguém poderia dizer que estabelecer normas e regras e leis… é uma coisa. Cumpri-las, é algo muito diferente. Nós estamos acostumados a ver isso: aqueles que fazem as leis. Aqueles que são nossas lideranças políticas, criam as normas que, a bem da verdade, só penalizam e reprimem ao povo. Pois os “chefes” e os “grandes” colocam-se acima de tudo e de todos.

Mas não é assim, no Reino anunciado pelo Senhor: “O Filho do Homem não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida como resgate para muitos” (Mc 10,45). Aquele que não tiver essa disposição, até pode se dizer cristão, mas na primeira oportunidade abandonará o rebanho. Esse vive de aparências, pois não está disposto a se sacrificar pelo outro; não está disposto a “dar a sua vida”, como sugere Jesus.

E, é bom notar, Jesus anuncia seu plano e seu objetivo não como um gesto tresloucado, como se fosse um jovem aventureiro, mas como passos do que foi traçado e prefigurado pelos profetas.

A proposta de Jesus não é um caminho de flores e perfumes, mas de renúncia, sofrimento e dedicação àqueles que necessitam. Isaías já o anunciara: “Oferecendo sua vida em expiação, ele terá descendência duradoura, e fará cumprir com êxito a vontade do Senhor.” (Is 53,10). E o profeta vai além. Como que prefigura a ação da Igreja naqueles que assumem a proposta do Mestre.

O profeta prefigura as dores do Servo, mas afirma que seu gesto será modelo seguido por quem entender, assumir e se doar, como Ele fez. Os que assumirem essa proposta formarão a “descendência duradoura”, anunciada pelo profeta.

Contra as mazelas dos políticos e todos os mal-intencionados, enganadores do povo “esta vida de sofrimento, alcançará luz e uma ciência perfeita” (Is 53,11). Ciência perfeita que consiste em abrir espaço e preparar a implantação do Reino definitivo mediante a busca de uma sociedade justa, entre as pessoas na história.

Como saber se isso, de fato se cumprirá? Trata-se de uma aposta na esperança. Trata-se de uma aposta na promessa do próprio senhor. Trata-se daquilo que o autor da carta aos Hebreus anuncia: contra os que se deixam guar pela maldade, “Temos um Sumo Sacerdote eminente, que entrou no céu, Jesus, o Filho de Deus. Por isso, permaneçamos firmes na fé que professamos. Com efeito, temos um Sumo Sacerdote capaz de se compadecer de nossas fraquezas” (Hb 4,14-15).

Sendo assim, se por um lado sabemos que existem e convivemos com os malandros de planão, também temos a promessa de que, se não nos corrompermos seremos acolhidos por esse Sumo Sacerdote perfeito, Jesus de Nazaré, o Cristo ressuscitado! O enviado do Pai que sabe quem ficará à direita ou à esquerda!




Neri de Paula Carneiro

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sexta-feira, 15 de outubro de 2021

O mestre mal recompensado

O sol ainda ardia sobre a terra torrada. A chuva ainda não caíra, como quem canta a vida. A tarde se estendia lentamente em direção ao ocaso do dia. Era dia dos professores.

Homenagens, sim, eu havia recebido.

Empolgadas? não sei!

Sinceras, com certeza, pelo menos por parte dos pupilos!

Os colegas? Todos vibrantes…

Dia do professor…. Parabéns!

Trrriiiiiiimmmm….. toca o telefone!!!

- “Professor, não sei se você lembra de mim. Estou precisando….”

Era um antigo aluno solicitando uma ajuda para concluir sua monografia de conclusão de curso. Uma autorização formal para usar minhas palavras e meus escritos. Claro que não neguei. E ele veio até mim. Conversamos. Ele me fez recordar, não só dele que está concluindo a graduação em História e quer fazer mestrado na mesma área.

Com ele recordei de outros …. que infelizmente se perderam pelas curvas da vida. Inclusive aquele que morreu na prisão…. Não é só de sucessos que vive nossa atuação docente. Há, também, indecências!

Com ele recordei de outros …. que alcançaram sucesso. Lembrei de alguns que concluíram doutorado, mestrado… e estão na docência… e que me deram a honra de ter convivido com eles em sala de aula.




De frustrações e sucessos faz-se a vida dos professores!!!!




- “Professor, não sei se você lembra de mim. Mas estou precisando de sua ajuda para….”

Noutras tantas oportunidades já ouvira o mesmo apelo.

Mas, neste caso, era dia dos professores. O sol, feito guia, iluminava as nuvens que trouxeram a chuva. Não eram lágrimas. Eram gotas de vida. E, é claro, autorizei o menino a usar meus escritos em sua monografia.

Ele se foi! Feliz! Faria, com certeza, belo trabalho e nos honraria! Mais um de nossos alunos a se fazer professor!

Mas meu coração ficou, naquele momento, misto, meditante… radiante:

Mais um professor!

Mais um professor?

Meditando, me pus a pensar nas palavras daquele que se confessou discípulo de Dionísio, e, talvez por isso, “preferiria ser um sátiro antes que um santo”.

Em minhas meditações sobre o dia do professor e o professor que sou e o que me sucedeu neste dia do professor e o que me veio foi dar um passo a mais no pensamento de Nietzsche, em “Ecce Homo”:

“O homem que busca o conhecimento não só deve amar os seus inimigos, mas deve também poder odiar os seus amigos. Recompensa mal um mestre quem se contenta de ser discípulo.”

E, de fato, não sei se já cheguei ao meu mestre. Sei, entretanto, que pelo menos alguns dos meus discípulos já me superaram.

E assim, discípulo que sou, fico com as palavras de outra obra de Nietzsche, quando Zaratustra lança um brado ao sol:

“Tu, grande astro! Que seria de tua sorte, se te faltassem aqueles a quem iluminas?”

De fato, hoje é dia dos professores!




Neri de Paula Carneiro

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