quinta-feira, 11 de novembro de 2021

O Cristianismo nascente e a filosofia

As filosofias do helenismo fizeram contato e, de alguma forma influenciaram o cristianismo nascente. Ao ponto de podermos dizer que, do ponto de vista filosófico, o cristianismo também é uma corrente de pensamento helenista. Essa influência pode ser observada na literatura neotestamentária e na patrística. Mas também é verdade que, posteriormente, a filosofia medieval recebeu grande carga de influências do cristianismo. Talvez por esse motivo se cunhou a afirmação de que a “filosofia é serva da teologia”

O fato é que as dessas correntes filosóficas e dentro desse mesmo período nasceu o cristianismo. E várias das correntes helenistas influenciaram no desenvolvimento dessa nova mística. O cristianismo, portanto é uma religião que se fez por ecletismo, tendo por base o judaísmo, os ensinamentos de Jesus e os diferentes elementos culturais dos povos do oriente médio dominados pelos romanos e pela língua grega.

Pode-se dizer mais: sem entrar na discussão do significado e do alcance religioso, mas apenas do ponto de vista filosófico, o cristianismo nasceu não de Jesus, o jovem de Nazaré ou do grupo inicial de discípulos, e sim a partir do sincretismo de elementos helênicos que se misturaram com traços do judaísmo, das culturas orientais e romanas.




O cristianismo e o Helenismo


A partir do quê se pode afirmar isso?

Jesus era um judeu e praticante do judaísmo. As narrativas dos evangelhos o colocam em várias oportunidades nas sinagogas, o que sugere que era um praticante de sua religião. Apesar e além disso, podemos identificar em sua postura e atitudes características de algumas das correntes do pensamento helenista.

Cinismo: Desenvolvia uma prática de solidariedade aos marginalizados, aos pobres, às mulheres e prostitutas. Andava com pescadores e curava os enfermos (lembrando que estes eram considerados como “possuídos” pelo demônio). Valorizava a simplicidade. Não ostentava o luxo de uma morada, mas afirmava que “as aves do céu tem seus ninhos, as raposas suas tocas, mas o filho do homem não tem nem onde reclinar a cabeça”.

Epicurismo: Valorizava a vida e a alegria de viver. Isso se pode perceber, pelas inúmeras curas realizadas e porque seu primeiro milagre foi realizado para dar continuidade a uma festa, transformando água em vinho. O casamento é uma celebração à vida e o vinho pode ser visto como um simbolo da alegria de viver.

Ceticismo: os inúmeros embates com os sacerdotes e doutores da lei, mostram que não só era profundo conhecedor de sua crença judaica, como também colocava em questão os dogmas do judaísmo, os costumes e tudo aquilo que não representasse um valor em favor do ser humano.

Cultura e língua: Posteriormente à sua execução, seus discípulos continuaram sua obra e difundiram seus ideais. Para isso os discípulos contaram e usaram as estruturas do império romano. Moveram-se usando as estradas e caravanas que circulavam pelos caminhos do império. E, com isso, a essência dos ensinamentos do jovem de Nazaré, foi fazendo contato com as culturas dos diferentes povos.

Além do anúncio oral, nas diferentes cidades, os discípulos também difundiram sua fé por meio dos escritos neotestamentários: os evangelhos, as cartas, o apocalipse. Tudo isso produzido escrito e difundido na língua grega, com visíveis sinais de uma estrutura argumentativa e lógica que lembra a filosofia grega.

Estoicismo: após alguns anos, já se estruturando como uma instituição com ritos e normas próprias, o cristianismo assume uma outra característica: o estoicismo o qual pode ser representado pela valorização das posturas e práticas penitenciais e o cumprimento de regras sedimentadas nos procedimentos litúrgicos.

Dessa forma, pode-se dizer que os valores adotados por Jesus (cinismo, ceticismo e epicuristas), foram abandonados em favor de uma postura estoica. Em “O mundo de Sofia”, eis o que diz J. Gaarder, a respeito de Jesus: “Jesus foi um homem único. De um modo genial, ele usa a linguagem do seu tempo e dá simultaneamente às ideias antigas um conteúdo completamente novo e mais vasto. Não admira que ele tenha sido crucificado. A sua radical mensagem de salvação punha a nu tantos interesses e jogos de poder que tinha de ser afastado”. E o pensador norueguês vai além. Afirma a profundidade da exigência ética no ensinamento de Jesus: “No caso de Jesus vemos como pode ser perigoso pedir um amor incondicional pelo próximo e um perdão igualmente incondicional. Ainda hoje vemos como Estados poderosos vacilam se são postos perante pedidos simples de paz, amor e alimento para os pobres e perdão para os inimigos do Estado.”




Paulo e as missões aos gentios

Como sabemos, Jesus não criou o cristianismo. Como Sócrates, foi um mestre que não deixou escritos de próprio punho. O que sabemos nos chegou a partir do que disseram dele seus discípulos… e alguns adversários. Os ensinamentos dos discípulos é a doutrina cristã.

O grande criador-divulgador do cristianismo foi o apóstolo tardio, Paulo de Tarso. Após sua conversão levou os ensinamentos de Jesus para além do mundo judeu. A mensagem cristã demorou a ser aceita por alguns judeus, mas se desenvolveu rapidamente entre os gentios, os povos de outras culturas, fora dos círculos da religião de Moisés.

O que teria sido a proposta de Jesus Cristo passa a ser reinterpretada de acordo com categorias greco-romanas. Isso, entretanto, só foi possível porque Paulo era não só um judeu esclarecido, conhecedor de sua religião, como também um conhecedor da língua e filosofia gregas. E tinha facilidade de locomoção dentro do império, pelo fato de ser cidadão romano.

Para percebermos a influência grega sobre o cristianismo primitivo podemos ler as cartas de Paulo, um primor de argumentação e retórica grega; também pode ser tomado como exemplo disso o discurso de Paulo aos Atenienses, narrado no livro dos Atos dos Apóstolos, 17,16-32. Eles o ouvem embevecidos, embora não se convertam por considerarem absurda a pregação sobre a Ressurreição.

O mesmo Paulo, na carta aos colossenses, utiliza elementos platônicos e estoicos contrapostos a elementos dos epicuristas. Paulo exorta seus leitores para que não sejam julgados pela “comida e bebida”, a respeito de “festas anuais ou da lua nova ou de sábado porque são apenas sombra” (Col, 2,16-23). Notemos o tom irônico de Paulo, condenando o que poderia ser uma postura de alguns cínicos na comunidade de Tessalônica: “Quem não quer trabalhar, também não deve comer. Ora ouvimos dizer que alguns entre vós levais a vida à-toa, muito atarefados sem fazer nada” (2Ts 3,7-8).

Tudo isso nos permite dizer que, vasculhando os escritos neotestamentários, podemos encontrar inúmeras referências às escolas helenistas. Por vezes algumas são condenadas, outras vezes são apenas mencionadas e por vezes são assumidas na redação, como é o caso da postura estoica, presente em inúmeros trechos dos escritos paulinos.




Da Patrística à Idade Média

Terminada a primeira geração de seguidores de Jesus, começa uma nova etapa no cristianismo. Período esse chamado de Patrística (do sec. I ao V, aproximadamente). Trata-se da produção filosófico-teológico daqueles que são chamados de “Pais da Igreja” ou os “Santos Padres”. Nesses escritos podem ser encontrados elementos de filosofia para falar e expor a doutrina cristã. Eles podem ser agrupados em dois blocos: os textos dos apologistas e os textos contra as heresias.

As apologias surgiram por que os cristãos precisavam mostrar às autoridades romanas uma defesa de sua fé. Entre os apologistas podemos mencionar dois deles: Clemente de Alexandria e seu discípulo Orígenes.

Apareceram, também, algumas distorções (as heresias ou doutrinas falsas) sobre como entender os ensinamentos de Jesus ou como falar sobre sua divindade. Contra essas distorções forma produzidos inúmeros argumentos com a intenção de as corrigir essas doutrinas erradas. Entre os inúmeros autores que escreveram contra as heresias podemos destacar Santo Irineu de Lion e seu livro Contra Hereges.

Tanto a defesa da fé como o combate às heresias foram trabalhos que precisaram ser desenvolvidos com uma boa argumentação baseados nos ensinamentos de Jesus e na tradição Judaica. Isso tudo apresentado de forma clara, para que a argumentação fosse convincente. Essa clareza veio dos elementos e argumentação lógico, aprendida da filosofia grega.

Além disso, também serviu de suporte elementos que vieram do Neoplatonismo. Assim cada vez mais se cristalizava a visão platônica de que este mundo é onde reside o pecado e a maldade, mas o homem, criatura divina, tende ao céu, onde todas as dores, tristezas e imperfeições são sanadas. Uma típica argumentação platônica. Um bom exemplo da filosofia platônica aplicada à teologia é a obra “Cidade de Deus” de Santo Agostinho.

O neoplatonismo serviu de suporte aos autores cristãos por vários séculos. Em suas produções esteve presente a afirmação platônica de que o ser humano deve se purificar de seus pecados a fim de chegar ao céu, o espaço da perfeição, ao lado de Deus.

O suporte platônico permaneceu sendo utilizado pela Igreja e seus teólogos ao longo dos séculos. Já em plena Idade Média com Santo Tomás de Aquino, também Aristóteles passou a ser uma presença constante nos discurso teológicos. Cabe destaque para sua monumental de Suma Teológica

Em síntese, podemos dizer que o cristianismo desenvolveu-se, inicialmente, ao desvincular-se do judaísmo assumindo uma conotação greco-romana. Com isso conseguiu se expandir dentro do Império Romano, uma vez que era assumido por diferentes grupos sociais dentro do Império. Depois, com uma estrutura romana e com roupagens gregas, durante a Idade Média, o cristianismo, já como instituição forte, assumiu o aristotelismo como instrumento de manutenção do poder e para melhor apresentar seu discurso. Ou seja, o cristianismo sobreviveu por saber trocar de "roupa" em momentos determinantes da história, sabendo fazer a releitura da proposta de Jesus Cristo dentro de cada contexto. Isso pode ser exemplificado na Idade Média quando Tomás de Aquino fez uma adequação do cristianismo com o aristotelismo. Nascia, assim a escolástica.

Graças a isso é que a partir do século III o cristianismo passou a exercer domínio não só sobre o pensamento, mas também sobre o mundo político dos romanos. A influência do cristianismo se tornou cada vez maior e permaneceu até o fim da Idade Média. Com o Renascimento, com o advento da Reforma Protestante e o desenvolvimento das bases do capitalismo, o cristianismo católico perdeu espaço quando se desenvolveram os tempos modernos produzindo um vasto leque de correntes religiosas, filosóficas, políticas e econômicas. Mas, ao mesmo tempo, a filosofia continua sendo o ponto de partida para o desenvolvimento dos novos saberes...




Neri de Paula Carneiro

Mestre em educação. Filósofo, Teólogo, Historiador

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