sábado, maio 29, 2021

Santíssima Trindade: Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo

(Reflexões baseadas em: Dt 4,32-34.39-40; Rm 8,14-17; Mt 28,16-20)




Já parou para pensar nas tantas situações em que, de forma espontânea, mecânica, impensada… ou apaixonada, dizemos que somos cristãos?

Se nos perguntam: Tens religião? Frequentas igreja?… sempre respondemos sim e dizemos que somos católicos ou luteranos, ou presbiterianos… E, com isso afirmamos que somos seguidores de Jesus Cristo. E, por vezes, até citamos o apóstolo Paulo, que numa de suas cartas afirma que: “Viver é Cristo e o morrer é lucro” (1Fl 1,21).

Muitos de nós, no mundo Católico ou em qualquer das denominações das outras Igrejas cristãs, alimentamos uma fé muito especial e calorosa para com o Divino Espírito Santo. Tanto que se fala em avivamento pentecostal, renovação carismática… alguns até mencionam os dons do Espírito: falar em línguas, cura… alguns, muito raros, falam ou pedem o dom da sabedoria (como o fez Salomão 1Rs 3,1-15).

A maioria de nós, quando pretendemos fazer uma oração, pública ou no silêncio de nossa fé, dirigimo-nos a Deus Pai. Quase sempre começamos nossa oração com expressões como: “Pai Santo…”, “Senhor Deus…”, “Senhor,…” Isso quando não recitamos, de forma meio mecânica, o “Pai Nosso”...

Você já deve estar se perguntando e querendo que eu explique o porquê destas afirmações.

É simples.

A Igreja, ao final do tempo pascal, nos convida para duas celebrações muito importantes. Elas nos ajudam a compreender melhor os mistérios da redenção. Não só uma compreensão intelectual, mas principalmente aquela que nos leva à prática da fé cristã. A primeira dessas celebrações ocorre no sétimo domingo após a Páscoa: é a celebração da Ascensão do Senhor. É o momento litúrgico em que Jesus Cristo se despede dos discípulos e lhes confia a missão de levar a Boa Nova a todas as nações do mundo.

No domingo seguinte à Ascensão do Senhor, concluindo o Ciclo da Páscoa, a Igreja nos propõe a celebração de Pentecostes. Seguem-se todas as demais semanas do Tempo Comum.

O reinício do tempo comum nos convida à celebração da Santíssima Trindade e as leituras que a Igreja nos propõe, para esta solenidade sugerem a ação de cada uma das Pessoas da Santíssima Trindade.

No livro do Deuteronômio (Dt 4,32-34.39-40) visualizamos as palavras de Deus Pai. Deus, é um Pai que orienta Moisés, mostrando que outras crenças não conduzem ao Deus verdadeiro. É o Pai que, ao escolher um povo se mantém fiel a ele, mesmo que esse povo seja infiel. Deus é o Pai que, além de escolher um povo, liberta-o da servidão. Um Deus Pai, que só quer uma coisa de seus escolhidos: fidelidade. Um Pai que afirma claramente sua lei: “Reconhece, pois, hoje, e grava-o em teu coração, que o Senhor é o Deus lá em cima do céu e cá embaixo na terra, e que não há outro além dele” (Dt 4,39). Este é o discurso do Pai, orientando os filhos.

Por seu lado, Paulo escrevendo aos Romanos (Rm 8,14-17), apresenta-nos o Espírito de Amor. O Espírito da união. O Espírito enviado por Jesus (como se viu na celebração do Pentecostes) e que nos ensina a reconhecer o Pai. O Espírito que nos adota a fim de nos fazer integrantes da família de Deus e, para fazer isso, nos ensina a chamar a Deus de Pai (Rm 8,15). Em tudo isso somos mobilizados pelo Espírito que nos guia, pois esse é o Espírito de Amor e que nos convida a viver em comunidade.

Na terceira leitura (Mt 28,16-20) é o próprio Jesus quem se apresenta. E também apresenta a missão dos seus seguidores: fazer com que todos os povos tornem-se discípulos e seguidores, cumprindo com seus ensinamentos. Para que isso ocorra é necessário apenas que sejam batizados em nome do único Deus que se manifesta em três pessoas, três manifestações de amor. Nesse amor trinitário é que se ministra o batismo: “em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo” (Mt 28,19)

Qual o ensinamento que se pode tirar disso?

Primeiro: que nosso Deus é uma Trindade Santa. Entretanto não são três deuses, mas um único Deus que, por ser pleno de amor, não se contenta em ser sozinho. Ou seja, o amor, por ser pleno, e por isso verdadeiro, exige companhia. O amor que não leva ao outro, é egoísmo. O amor só tem razão de ser em comunidade, na relação com o outro, a exemplo da comunidade trinitária.

Segundo: só podemos dizer que conhecemos a Deus, no exercício do amor. E para dizer que amamos a Deus, temos que partir do pressuposto do amor ao outro. Mas como amar ao outro se não amo a mim mesmo? Portanto o amor também é trinitário: Ama-se a Deus em função do amar ao outro e o amor ao outro é consequência do amor a si mesmo. Quem não se ama, também não ama ao outro e, consequentemente não ama a Deus. Notando que o “amar a si mesmo” não é colocar-se no centro, pois isso seria egoísmo, egocentrismo…; o “amar a si mesmo” é reconhecer os próprio méritos, os próprios valores, é saber que tem algo a oferecer ao outro; é saber-se completo na relação com o outro.

Em terceiro lugar: o caminho para o Deus Trindade é a própria Trindade que foi se manifestando ao longo da história até ser plenamente apresentada à humanidade por Jesus, o Filho que leva ao Pai pelo Espírito de Amor. Com isso podemos dizer que antes de Jesus, ainda era admissível a maldade presente entre as pessoas, mas com a plenitude da manifestação de Deus, na pessoa de Jesus de Nazaré, as pessoas não tem mais justificativas para agir maldosamente… a não ser que renunciem a Deus aderindo ao seu opositor...

Por isso, podemos dizer com plena segurança: se ainda existe maldade nas pessoas é porque não conhecem a Deus; se ainda existem pessoas sofrendo, passando fome, sendo vítima da ambição dos outros… é porque ainda existem pessoas que não conhecem a Deus; se ainda existem pessoas ludibriando, enganando, tirando proveito, explorando… aos irmãos, é porque ainda existem pessoas que não sabem quem é Deus e não entenderam nada do que ensinou Jesus; pessoas que não se abriram nem abriram o coração para receber os dons do Espírito, pois não reconhecem a Deus como Pai. Não entenderam a Trindade de Amor!

Por sua vez, aqueles que conheceram e conhecem Jesus sabem que dele receberam uma missão vital que é fazer com que cresça o compromisso com o outro, numa crescente relação do amor trinitário: amar ao outro para ambos demonstrarem o amor a Deus.

Como levar diante essa missão? Cumprindo a missão dada pelo Senhor Jesus: aprendendo e ensinando a amar ao Deus que aprendemos chamar de Pai, Filho e Espírito Santo.




Neri de Paula Carneiro

Outros escritos do autor:

Filosofia, História, Religião: https://www.webartigos.com/index.php/autores/npcarneiro;

Literatura: https://www.recantodasletras.com.br/autores/neripcarneiro.

domingo, maio 23, 2021

Pentecostes: Recebam o Espírito Santo

Reflexões baseadas em: At 2,1-11b; 1Cor 12,3b-7.12-13; Jo 20,19-23




No dia de Pentecostes o cento do discurso, evidentemente, é o Espírito Santo manifestando-se (At 2,1-11), sendo entregue (Jo 20, 19-23) e ensinando a reconhecer Jesus como Senhor (1Cor 12, 3b-7.12-13).

Entretanto, se o Artista principal é o Espírito, a cena é desenhada a partir da atuação de Jesus de Nazaré. E, também, Jesus quem dirige todo o enredo a fim de fazer com que todos reconheçam “as maravilhas de Deus” (At 2,11). Na solenidade de Pentecostes estamos diante do Pai, do Filho e do Espírito santificador. A festa solene é do Espírito, mas é a Trindade que dá o tom e dirige a orquestra.

Isso tudo nos indica que ao celebrarmos o Pentecostes como a grande festa do Espírito Santo, a Igreja nos ensina que, efetivamente, estamos celebrando mais uma manifestação trinitária: os discípulos (de Jesus, o Filho) “Ficaram cheios do Espírito Santo e começaram a falar” (At 2,4) as coisas que levam ao Pai. A plenitude ocorre porque Jesus entrega o Espírito de Amor aos seus discípulos reunidos no momento em que “soprou sobre eles e disse: Recebei o Espírito Santo” (Jo 20,22), com esse gesto lhes transmite uma missão do Pai. Nesse momento entendemos que a fonte inspiradora para toda a cena é o Pai, uma vez que Jesus, ao oferecer a paz, insere os discípulos na missão “Como o Pai me enviou, também eu vos envio” (Jo 20,21).

E os discípulos são enviados para anunciar a proximidade do Reino! O Reino que é oferecido por Deus, mas que precisa ser construído por aqueles que recebem o Espírito da esperança!

Cientes da dimensão trinitária (da Santíssima Trindade), na festa do Espírito, somos levados a observar mais alguns detalhes. E são detalhes importantes que nos indicam o sentido da celebração do dia de Pentecostes.

Notemos que “os discípulos estavam todos reunidos”(At 2,1). Mas o detalhe é que a reunião ocorria com as portas fechadas, pois os discípulos estavam com medo. E o medo se justifica, pois ainda não haviam recebido os dons do Espírito (Jo 20,19). Quando recebem o Espírito de Força, abrem as portas e começam a falar. O dom do anúncio corajoso se concretiza na media em que os discípulos se põem a anunciar as “maravilhas de Deus” aos “devotos de todas as nações do mundo”(At 2,5), pois a proposta divina é universal, destina-se a todas as nações e a todos os povos, pois as “maravilhas de Deus” não têm fronteiras!

Notemos também que Jesus sopra o Espírito de Vida sobre os discípulos oferecendo a paz que vem do Pai: “Como o Pai me enviou, também eu vos envio” (Jo 20,21). A partir disso todos são enviados a todas as nações, pois a missão envolve o mundo inteiro. Por isso a necessidade de falar em outras línguas (At 2,4). E o que vai ser anunciado? A necessidade de se construir o “bem comum” (1Cor 12,7), uma vez que a proposta do Reino não é para indivíduos isolados, mas um presente do Pai para a comunidade.

Além disso, se há “diversidade de dons” e “diversidade de ministérios” (1 Cor 12,4-5) o corpo é um só. É o corpo de Cristo, formando a Igreja, a comunidade dos que fazem opção pelo Deus do Amor. Por isso que Paulo insiste na afirmação de que todos “fomos batizados num único Espírito, para formarmos um único corpo, e todos nós bebemos de um único Espírito” (1Cor 12,13). E, mais uma vez, tudo isso com a finalidade de nos ensinar a produzir nossos frutos “para o bem comum”. Essa edificação do bem para todos é o caminho que leva à paz, oferecida pelo Senhor.

A semente da paz pode até ser plantada a partir de atos individuais, mas a colheita é coletiva. Não há paz se não houver coletividade e ação harmoniosa!

Uma outra dimensão da celebração do Pentecostes está no fato de que o Espírito de Pureza, entregue por Jesus, implica na oferta do perdão. A oferta é para todos. Entretanto, diante da diversidade de ministérios, da diversidade de dons, da necessidade de construir a paz, da exigência do bem comum… surgem aqueles que não se assumem como membros da comunidade. Daí a missão purificadora: “A quem perdoardes os pecados, eles lhes serão perdoados; a quem não os perdoardes, eles lhes serão retidos” (Jo 20,23).

À igreja, e seus ministros ordenados, cabe essa incumbência. Mas também essa é uma missão comunitária e vinculada ao Espírito de Perdão. A proposta é universal, mas sua aceitação é pessoal. Como nem todos aderem à proposta do Reino, esses se excluem da comunhão com a comunidade da Igreja e, portanto, também da convivência com a comunidade trinitária. Daí a missão de explicitar e deixar claro o sinal da adesão ou da rejeição. Ao aderir ao projeto do Reino opta-se, também, pelo perdão. Mas aqueles que se negam a viver em favor do bem comum, se excluem. Daí a necessidade de se explicitar a exclusão.

Entretanto, se o perdão sacramental é atribuição do ministro ordenado, a edificação de uma comunidade amorosa, em que os membros se perdoam mutuamente, também é um dom do Espírito.

Sempre que alguém desejar e se fizer membro do corpo de Cristo, com suas ações em favor do bem comum, terá os pecados perdoados. E para esses o Senhor continua dizendo: receba o Espírito Santo.

Como se vê, na celebração do Pentecostes, a festa solene do Espírito, o que prevalece é a ação da Trindade. E isso se torna um convite e um desafio a que os cristãos edifiquem a comunidade pelos moldes da Trindade...

Neri de Paula Carneiro

Mestre em educação, filósofo, teólogo, historiador

Outros escritos do autor:

Filosofia, História, Religião: https://www.webartigos.com/index.php/autores/npcarneiro;

Literatura: https://www.recantodasletras.com.br/autores/neripcarneiro.

domingo, maio 16, 2021

DO MITO À FILOSOFIA

Sabemos que a filosofia caracteriza-se pela atitude de busca de conhecimento. Além disso, ela se ocupa em estudar todas as realidades mediante reflexão crítica.


Agora podemos nos perguntar: como surgiu essa preocupação em explicar a realidade? Desde quando existe filosofia? Se filosofia é o processo humano de busca de conhecimentos para chegar à verdade, como foi que isso começou? Qualquer tentativa de explicação é filosofia?


Procurando uma resposta para estas, e outras, indagações veremos a seguir, que a filosofia, como conhecemos hoje, nasceu na Grécia. Mas também é verdade que o ser humano, desde suas origens, ocupou-se em compreender e explicar seu mundo. Todos os povos em todas as épocas fizerem esse processo. Ou seja, a filosofia não é criação dos gregos, mas do ser humano. Os gregos tiveram o mérito de sistematizar esse processo de interpretação da realidade. Mas antes dos gregos os seres humanos já faziam perguntas...





Os mitos


As primeiras tentativas de explicação do mundo, ainda nos primórdios da humanidade, foram os mitos. A partir dos mitos foi que os gregos desenvolveram a filosofia. Mas isso já por volta dos séculos VIII e VII antes de Cristo. Antes dos gregos, entretanto, o ser humano sempre esteve preocupado e ocupado em conhecer e explicar a realidade, pois o conhecimento e a compreensão implicam ter poder sobre ela.


Nos primórdios da humanidade todas as realidades, particularmente a natureza, eram muito mais inquietantes, desafiadoras, assustadoras e complexas para os primeiros homens: tudo era completamente desconhecido. O sentimento era de completa impotência, daí a sensação de medo.


Como o medo gera insegurança e essa sensação dificulta a vida, os seres humanos buscaram alternativas em relação ao desconhecido. Era necessário explicar o mundo para superar o medo. Assim os primeiros seres humanos buscaram, criaram e produziram explicações: os mitos. O mundo começou a ser explicado de forma mítico-religiosa.


Por isso, de forma sintética, podemos dizer que o medo foi cedendo lugar ao mito e à religião. Os diferentes deuses e credos foram criados com essa finalidade: possibilitar a sensação de segurança. O processo de criação de mitos perdurou até o advento da filosofia e da ciência. Mas também é verdade que em nossos tempos de racionalidade ainda não se extinguiram os mitos, pois ainda hoje somos levados a explicar miticamente aquilo para o quê não temos explicações lógico-filosófico-científicas.


A respeito dos mitos, o filósofo alemão F Nietzsche, no livro “Crepúsculo dos ídolos” faz o seguinte comentário: “Reduzir uma coisa desconhecida a outra conhecida alivia, tranquiliza e satisfaz o espírito, proporcionando, além disso, um sentimento de PODER. O desconhecido comporta o perigo, a inquietude, o cuidado – o primeiro instinto leva a suprimir essa situação penosa. Primeiro princípio: uma explicação qualquer é preferível à falta de explicação. Como, na realidade, se trata apenas de se livrar de representações angustiosas, não se olha de tão perto para encontrar os meios de chegar a isso: a primeira representação, pela qual o desconhecido se declara conhecido, faz tão bem que ‘é considerada por verdadeira’.


Para compreendermos melhor a dinâmica dos mitos, é preciso considerar que os primeiros seres humanos viam e conviviam com fenômenos que não entendiam. A primeira reação, sempre, era o medo. Mas, em seguida, sentiam a necessidade de entender os fenômenos, explicar suas causas e seus significados, pois, na maioria das vezes as consequências dos fenômenos eram assustadoras.


Devemos nos lembrar, também, que eles não possuíam os aparatos e os resultados que hoje a ciência oferece. Assim, aparelhado apenas com sua capacidade reflexiva, carregada de medos, os primeiros humanos desenvolveram várias explicações. Criaram mitos e religiões; deuses e demônios. Por isso surgiram tantas e diferentes explicações para as mesmas realidades.


Podemos dizer que todos os povos antigos utilizaram mitos para explicar aquilo que não podiam compreender imediatamente e a respeito de tudo aquilo para o quê não tinham domínio. Essa perspectiva mítica pode ser encontrada entre os vários povos do Oriente, destacando-se os mesopotâmicos e os egípcios (nordeste da África), como também entre as diversas nações indígenas da América pré-colombiana. Em nossa sociedade são mais conhecidos os mitos dos hebreus, descrevendo, na Bíblia, a criação do mundo, da natureza, do ser humano.





Características dos mitos


Nestas alturas você está se perguntando: o que é Mito e como ele se caracteriza?


Os mitos podem ser vistos como as primeiras tentativas que o ser humano fez para explicar os fenômenos: da natureza e humanos; pois eles lhe infundiam medo ou diante dos quais intuía a necessidade de respeito.


Essas explicações, os mitos, podem ser caracterizados como uma explicação em que aparecem elementos religiosos, fantásticos e com caráter explicativo. Nisso eles se diferenciam das lendas que consistem em narrativas culturais e folclóricas.


Uma das narrativas míticas mais antigas explicando as origens do mundo e dos sere humanos é a narrativas das origens, ou o livro do Gênesis, da Bíblia. Os capítulos 1 e 2 desse livro apresentam duas versões da criação. Mostrando que todas as realidades se originam do sopro vital que sai de Deus. Trata-se de uma narrativa harmoniosa em que o ser humano aparece para coroar o mundo criado.


Outra narrativa mítica, ao que tudo indica, mais antiga que a da bíblia, é o poema babilônio Enuma Elish. Nessa narrativa várias divindades disputam o poder, lutam entre si. No final uma delas, Marduque, vence o conflito e sacrifica uma das divindades adversárias para, com seu sangue criar a humanidade.


Esses dois exemplos nos dão uma ideia da força do mito como literatura para explicar uma realidade. No mito bíblico a criação é colocada a serviço da humanidade. Na versão babilônica os seres humanos são criados para aliviar o serviço dos deuses. A narrativa bíblica foi criada como suporte para os hebreus se unificarem como povo. A narrativa babilônica justifica a dominação dos monarcas sobre o povo.





Mito e filosofia


Nestas alturas você deve estar se perguntando: qual é a relação entre mito e filosofia?


Alguns afirmam que o mito dá uma explicação falsa enquanto a filosofia apresenta uma explicação verdadeira, mas essa parece ser uma opinião equivocada. Na realidade tanto a Filosofia como o mito têm a preocupação de explicar. Mas fazem isso com linguagens diferentes; podemos dizer que são dois níveis diferentes de abordagem de uma mesma realidade. Pode-se perguntar, então, o que diferencia essas duas abordagens?


Veja o que Fedro, escritor romano do século I aC, em suas Fábulas, diz a respeito dos mitos: “Devemos atentar para o significado e não para as palavras. A lenda de Ixião em cima de uma roda em movimento é símbolo da Fortuna que sempre se transforma e nunca repousa. Sísifo, contra a montanha, empurra, com suores, a pedra, que do cume rola sempre para baixo, anulando todo o trabalho. Isso representa a infinda miséria do homem. Tântalo, com sede, em meio a um rio, é o avarento ao qual os bens da vida lambem, mas não o envolvem. As criminosas Danaides, que carregam água, eternamente, não logram encher as jarras perfuradas. Eis aí a luxúria que, enquanto algo dá, também esbanja. Tácito, por nove jeiras foi sacrificado, tendo o fígado inchado com acréscimo de sofrimento. Isso revela que quanto mais bens possuir, maior angústia daí advém. Os antigos revestiam a verdade com mitos a fim de ensejar entendimento ao sábio e equívoco ao ignorante.”


Mais próximo de nossos dias Jostein Gaarder, no livro O Mundo de Sofia, diz que os filósofos gregos desenvolveram a filosofia porque constataram que, embora sendo produzidos há muitos milênios, não era possível confiar nos mitos. Diz ele que: “Vemos a filosofia como uma forma completamente diferente de pensar, que nasceu aproximadamente em 600 a.C. na Grécia. Antes disso, as diversas religiões tinham respondido a todas as perguntas do homem. Essas explicações religiosas eram transmitidas de geração para geração por meio dos mitos. Um mito é uma narração sobre os deuses que procura explicar a vida nas suas diversas manifestações. As explicações míticas floresceram durante milênios em todo o mundo. Os filósofos gregos procuraram provar que os homens não podiam confiar nelas. Para compreendermos o pensamento dos primeiros filósofos, temos de compreender igualmente o que significa ter uma concepção mítica do mundo”.


Com base nisso podemos dizer que a explicação mítica caracteriza-se pelo seu caráter subjetivo religioso, fantástico e simbólico. Sua estruturação lógica e argumentação não se fundamentam na veracidade, mas em sua simbologia e no fim a que se destina: dar uma explicação.


Não importa se essa explicação é parcial, limitada ao tempo e às contingências do volume de conhecimento que se tem no momento específico em que ele é criado. O valor da explicação mítica encontra-se na sua própria lógica simbólica, abrindo-se às diversas interpretações.


Aceita-se ou não o mito a partir de seus elementos internos.


Por seu lado a explicação da filosofia baseia-se na força dos raciocínios argumentativos, racionais, impessoais. O valor da explicação filosófica fundamenta-se na coerência e na razoabilidade. A filosofia se faz a partir dos argumentos que são aceitos pela sua coerência ou refutados a partir de outros argumentos, também lógicos, coerentes e razoáveis.


Enquanto a verdade mítica vincula-se à sua simbologia, a verdade filosófica fundamenta-se na lógica e coerência dos argumentos.





Do mito à filosofia


A questão é saber como se dá a passagem da era mítica para o tempo da filosofia. Pode-se dizer que todos os povos, em todas as épocas desenvolveram alguma "filosofia" e algum mito, pois todos os povos procuraram, a seu modo, explicar a realidade e o mundo. E se considerarmos que a filosofia pode ser entendida como busca por explicações, isso implica dizer que os mitos são uma espécie de filosofia.


Entretanto o que hoje os livros e as escolas chamam de filosofia ou isso que está presente nas faculdades, nas escolas tanto de ensino fundamental, como médio e superior, desenvolveu-se aproximadamente a partir do século VII aC., no mundo grego. Nesse universo percebeu-se que as explicações míticas eram insuficientes, limitadas e mesmo contraditórias. Num período em que se buscava maior exatidão para o que se dizia, para as relações comerciais e mesmo para as atividades políticas, a afirmação mítica tornou-se insuficiente.


Isso levou os pensadores a buscarem outras explicações que tivessem por base não mais o mito, a religião, o fantástico, mas a observação objetiva dos fenômenos, a classificação das respostas, a comparação de resultados, a racionalidade dos enunciados.


A base, antes religiosa e mítica desloca-se para um plano racional-lógico-argumentativo. Esse processo aconteceu, principalmente, por que os gregos começaram a comparar as culturas dos diferentes povos com a sua: respostas diferentes, de povos diferentes, para os mesmos fenômenos, geraram um ponto de interrogação. Nascia a crítica à resposta mítica. Estava posto o problema do conhecimento.


É evidente que isso não se deu mecanicamente, muito menos “da noite para o dia”, mas ao longo de um processo secular. Ao lado dos mitos foi se desenvolvendo a crítica, os questionamentos, a constatação das limitações dos mitos em relação à necessidade de explicações mais racionais.


Com isso não se pretende dizer que a filosofia nasceu para acabar com o mito, ou que durante o período em que as respostas eram míticas não houvesse filosofia. Em sentido amplo, toda vez que alguém desenvolve alguma reflexão, está "filosofando". Portanto o próprio processo de criação dos mitos era um processo "filosófico". E como filosofia é um processo de crítica constante o "pensar mítico" passou pelo acrisolamento da razão, gerando o "pensar filosófico".


Também não se pode dizer que a filosofia superou o mito, mas que veio como uma alternativa/acréscimo a ele. O gênio humano já não se satisfazia apenas com o mito. Precisava de maior profundidade, coerência e da possibilidade de ampliar os horizontes. E isso não era possível com o mito, pois este trazia uma resposta pronta e, ao mesmo tempo, subjetiva.


Também é verdade que a filosofia não pretendeu acabar com os mitos. E isso porque não existe apenas uma forma de se expressar uma verdade ou um ponto de vista. Assim sendo a "verdade" mítica pode conviver com a filosófica. Também precisa ficar claro que atualmente o leque de manifestações míticas é tão variado como são correntes filosóficas para abordar a mesma realidade.


Resumindo podemos dizer que em um primeiro momento o ser humano explicou seu mundo a partir da subjetividade mítico-religiosa, naquilo que podemos denominar de fase mítica. Quando os mitos começaram a ser insuficientes, desenvolveu-se a filosofia. E isso foi feito pelos gregos.


E nos dias atuais, outro passo foi dado. Além das manifestações míticas do cotidiano e das correntes filosóficas que se desenvolveram, nasceram as ciências como mais uma forma de conhecer e manusear o mundo e os conhecimentos. Hoje vivemos num mundo infotecnovietual, criado pela ciência, mas a filosofia nos mostra que ainda convivemos com mentalidades míticas...


Isso implica dizer que as tentativas e formas de explicações do real ampliam-se, diferenciando-se apenas pelos seus pressupostos. Diversificam-se as explicações porque suas bases se diversificam. E por que isso ocorre? Porque a necessidade de explicação é cada vez maior; e porque se constata que todas as explicações são insuficientes. E essa foi a grande contribuição dos gregos. Ao constatar que as explicações míticas dadas eram insuficientes originou-se a filosofia, em sua concepção lógico-formal.


Neri de Paula Carneiro


Mestre em Educação, filósofo, teólogo, historiador


Rolim de Moura - RO

sábado, maio 15, 2021

Ascensão do Senhor: É agora que vais restaurar?

(Reflexões baseadas em: At 1,1-11; Ef 1,17-23; Mc 16,15-20)





A pergunta dos discípulos, no início do livro dos Atos dos Apóstolos (At 1,1-11) mostra bem a limitação humana em compreender as coisas de Deus.

Jesus ressuscitado estava reunido com os discípulos. E enquanto ainda os instruía, em seus últimos momentos antes de voltar para o Pai, pouco antes da partida, um deles lhe pergunta: “Senhor, é agora que vais restaurar o reino em Israel?” (At 1,6)

Paulo, conhecendo as fraquezas humanas, na carta aos efésios (Ef 1,17-23) em tom de oração instrui a comunidade, pedindo o dom do entendimento: “o Pai a quem pertence a glória, vos dê um espírito de sabedoria que vo-lo revele e faça verdadeiramente conhecer.” (Ef 1,17).

Do ponto de vista histórico, a restauração, pretendida pelo discípulo só ocorreu após a Segunda Guerra Mundial, em meados do século XX, por ocasião da criação do atual Estado de Israel. E foi uma ação problemática, pois restaurou a nação ao povo judeu mas, ao mesmo tempo, criou o atual problema e o conflito entre Judeus e Palestinos. Uma restauração meramente humana, carregada e mantida com os problemas humanos...

Mas do ponto de vista do Reino de Deus, a restauração ainda não aconteceu. O povo de Deus continua esperando. E quem é o Povo de Deus? Todo aquele que nele crê!

Por esse motivo as palavras do Senhor continuam válidas: “Não vos cabe saber os tempos e os momentos que o Pai determinou com a sua própria autoridade” (At 1,7). Notemos que na fala de Jesus estão presentes alguns elementos importantes: inicialmente é necessário frisar que a restauração é obra de Deus e, portanto, nenhum ser humano está autorizado a dizer que será hoje ou amanhã. Todos os que fazem essas previsões não falam em nome de Deus. Podem dizer o que quiserem, mas não falam em nome de Deus.

Em segundo lugar, Jesus ensina que seus discípulos serão instruídos pelo Espírito: que descerá, instruirá e fará dos discípulos testemunhas até os confins da terra. “Recebereis o poder do Espírito Santo que descerá sobre vós, para serdes minhas testemunhas em Jerusalém, em toda a Judeia e na Samaria, e até os confins da terra” (At 1,8). E isso implica dizer que nenhuma sociedade ou grupo pode se considerar o povo de Deus; no máximo pode fazer parte dele… se fizer as obras do Senhor!

Podemos, agora, nos perguntar: por que Jesus orienta dessa forma seus discípulos? Porque os quer testemunhas. Porque os quer continuando sua obra. Porque não os quer olhando para o alto sem se colocar a caminho. Não quer oração sem pé no chão. “Por que ficais aqui, parados, olhando para o céu?” (At 1,11). A alternativa a ficar parado olhando para o céu já havia sido dada: ser testemunha “até os confins da terra”. E, para dar testemunho não se pode ficar parado…

Com essa perspectiva é que entendemos o ensinamento/oração de Paulo explicando como o Espírito agirá: dará o conhecimento abrindo os corações dos discípulos para o entendimento. Mas não é só isso: ensinará a ter esperança, mostrará a riqueza da glória celeste, pois o céu é herança de todos os que, com sua vida, derem testemunho do Senhor. Esses, no tempo oportuno, que só o Pai conhece, poderão contemplar Jesus em sua glória definitiva. “Que ele abra o vosso coração à sua luz, para que saibais qual a esperança que o seu chamamento vos dá, qual a riqueza da glória que está na vossa herança com os santos” (Ef 1,18)

Podemos notar, além disso, que em sua súplica Paulo mostra a ação da Trindade, em favor daqueles que assumem o compromisso de dar testemunho: Cristo, o Filho, está voltando ao Pai (por isso celebramos a Ascensão do Senhor). Do céu Pai e o Filho concedem o Espírito do conhecimento àqueles que se comprometem com o Reino.

Tudo isso está fundamentado nas palavras de Jesus (Mc 16, 15-20). É Ele quem faz a afirmação inicial: a missão universal da pregação a todos. “Ide pelo mundo inteiro e anunciai o Evangelho a toda criatura!” (Mc 16,15). Evidentemente, se a mensagem é destinada a todos, ninguém pode ficar de fora, por negligência dos anunciadores, pois a mensagem salvadora é destinada a todos!

Diante da proposta do Senhor, duas alternativas: crer ou não crer. E cada uma delas com consequências definitivas. Ao que crê se oferece o batismo e consequentemente a salvação, pois o batizado passa a ser discípulo e continuador da obra do Senhor; aquele que não crê, não receberá o batismo e a sua descrença o levará à condenação. “Quem crer e for batizado será salvo. Quem não crer será condenado.” (Mc 16,16)

Como podemos ver, não é Deus quem age. A oferta é de Deus, mas a resposta é humana. Deus oferece a graça, oferece a opção. Diante da oferta de Deus faz-se necessária uma opção pessoal que implica em salvação ou condenação.

E assim podemos nos perguntar: quando será a restauração? Evidentemente não sabemos a resposta. O que podemos dizer é que enquanto o Senhor Deus não restaurar este mundo, instalando seu Reino, cabe a nós preparar o caminho com nosso testemunho. 
 

Neri de Paula Carneiro

Mestre em educação, filósofo, teólogo, historiador.

Outros escritos do autor:

Filosofia, História, Religião: https://www.webartigos.com/index.php/autores/npcarneiro

Literatura: https://www.recantodasletras.com.br/autores/neripcarneiro


sábado, maio 08, 2021

Páscoa 6 - Isto vos ordeno

Reflexões baseadas em: At 10,25-26.34-35.44-48; 1Jo 4,7-10; Jo 15,9-17




Quem é pai ou mãe, sabe disso.

Quem já passou pela experiência da despedida sabe disso.

Mesmo entre amigos, a cena não é muito diferente: na despedida, além das emoções afloradas, ocorrem recomendações e demonstrações de afeto.

Quem vai e quem fica, ouve, de quem vai e de quem fica, palavras como: tome cuidado com isto ou aquilo. Faça isto e não faça aquilo… Volte logo! Chegando lá, liga, manda notícias… e seguem outras recomendações e demonstrações de cuidado.

As leituras que a Igreja nos apresenta, neste sexto domingo da Páscoa trazem um pouco deste tom de recomendações e demonstrações de afeto, em momentos de despedida. Na liturgia de hoje, Jesus dá as últimas orientações aos discípulos, antes de retornar ao Pai, como se verá na celebração da Ascensão.

As primeiras orientações, de hoje, começam com Pedro, nos Atos dos Apóstolos (At 10,25-26.34-35.44-48). Ao visitar a casa de Cornélio confirma e ensina o que Jesus havia dito: a mensagem salvadora é para todos.

Ao entrar na casa de Cornélio encontra um grupo de pessoas ansiosas por receber o ensinamento cristão e o batismo. Pedro relembra as orientações de Jesus e põe em prática os ensinamentos do Mestre, confirmando que: “Deus não faz distinção entre as pessoas. Pelo contrário, ele aceita quem o teme e pratica a justiça, qualquer que seja a nação a que pertença” (At 10,34-35).

Daí sua conclusão: o fato de Deus não fazer distinção entre as pessoas significa que todos devem ser acolhidos como iguais. E nos dias atuais, nossa missão é continuarmos essa obra.

Não fazer distinção entre as pessoas é uma forma de amar, como sugere João, em sua primeira carta (1Jo 4,7-10). Aqui o apóstolo demonstra que o amor é um dom divino. Dá pra dizer mais: todo e qualquer preconceito e discriminação são sentimentos dos inimigos de Deus. São sentimentos opostos ao amor. Este sim um sentimentos divino com o qual Deus nos presenteou “porque o amor vem de Deus e todo aquele que ama nasceu de Deus e conhece Deus” (1jo 4,7). O amor é dom de Deus porque “não fomos nós que amamos a Deus, mas foi ele que nos amou e enviou o seu Filho como vítima de reparação pelos nossos pecados.” (1Jo 4,10).

Entretanto as orientações definitivas saem da boca do Mestre (Jo 15,9-17) ao ensinar o mandamento supremo. O mandamento do amor. E para isso o ponto de partida, referência e modelo pleno está na relação do Pai com o Filho. O amor de Jesus e do Pai tem a mesma intensidade. E essa mesma intensidade do amor trinitário é a medida do amor de Deus para conosco: “Como meu Pai me amou, assim também eu vos amei” (Jo 15,9).

É claro que sempre temos a opção de renunciar ao amor de Deus, mas se o aceitamos, então temos a obrigação de corresponder e responder ao convite: “Permanecei em meu amor” (Jo 15,9).

E aqui reside a dificuldade para seguir as orientações/ensinamentos do Mestre. Não basta apenas uma relação vertical, afirmando o amor a Deus. Essa relação, de acordo com a palavra de Jesus, somente ocorre se for explicitada e se manifestar em sentido horizontal, em relação às outras pessoas. O amor vertical, em relação a Deus, só tem sentido e pode ser visto como verdadeiro, se tiver um correspondente horizontal, na relação com os outros. Esse é o sentido da cruz redentora.

É necessária a relação com o Pai, sem a menor dúvida. Mas essa relação com o Pai, tem uma condição que é guardar os mandamentos do Mestre: “Se guardardes os meus mandamentos, permanecereis no meu amor, assim como eu guardei os mandamentos do meu Pai e permaneço no seu amor” (Jo 15,10).

Mas qual é o mandamento que Jesus nos orienta a seguir? Trata-se de algo radical. Trata-se do mandamento que define quem é discípulo do Senhor. Trata-se de assumir a radicalidade evangélica. Trata-se de um mandamento que exige compromisso de vida. Trata-se do mandamento do amor: “Este é o meu mandamento: amai-vos uns aos outros, assim como eu vos amei. Ninguém tem amor maior do que aquele que dá sua vida pelos amigos” (Jo 15,12-13).

Dizer que ama a Deus, recitar as mais diferentes orações e preces é fácil. Qualquer um pode fazer. Mas poucos aceitam a prova definitiva de dar a vida pelo outro.

Claro que só saberemos se somos ou não capazes dessa entrega radical quando houver uma situação definitiva. Mas também é verdade que essa pode ser uma prática cotidiana: fazer do seu cotidiano uma dinâmica de entrega. Por isso a necessidade de se afirmar este detalhe, dar a vida não significa ser martirizado; dar a vida é fazer da vida cotidiana espaço e ambiente para relações amorosas, afetuosas, caridosas, solidárias...

Então como saber se estamos ou não no caminho certo? Jesus nos oferece o critério: saber se nossas preces são atendidas. Também nisso ele nos orienta: “fui eu que vos escolhi e vos designei para irdes e para que produzais fruto e o vosso fruto permaneça. O que então pedirdes ao Pai em meu nome, ele vo-lo concederá” (Jo 15,16) Quantas de nossas preces em favor da vida são atendidas? E aqui é importante observar o que recitamos no “Pai Nosso”: “Seja feita a vossa vontade!”

O fato é que a relação para com Deus é um mandamento, mas a relação com os outros é uma ordem. É a palavra definitiva de quem está se despedindo: “Isto é o que vos ordeno: amai-vos uns aos outros” (Jo 15,17).

Neri de Paula Carneiro

Mestre em educação, filósofo, teólogo, historiador.

Outros escritos do autor:

Filosofia, História, Religião: https://www.webartigos.com/index.php/autores/npcarneiro

Literatura: https://www.recantodasletras.com.br/autores/neripcarneiro

sábado, maio 01, 2021

Páscoa 5 – A Videira e os ramos

Reflexões baseadas em: At 9,26-31; 1Jo 3,18-24; Jo 15,1-8



“Eu sou a videira, vocês são os ramos.”

Quem de nós ainda não ouviu, leu ou falou essas palavras, ensinadas por Jesus? (João 15,1-8). O que o Senhor afirmou? Que os galhos de uma planta só sobrevivem se estiverem unidos ao seu tronco. Isso indica uma profunda união que deve haver entre as pessoas e Jesus Cristo. Por quê? Porque essa é uma união que conduz ao Pai.

Além disso, muitos de nós, com certeza, nos recordamos de uma passagem da vida de Paulo, quando perseguia os cristãos. No caminho encontra-se com Jesus e “cai por terra”. Mas o que acontece com o perseguidor depois desse encontro com Jesus ressuscitado? O começo da resposta está nesta narrativa dos Atos dos Apóstolos 9,26-31.

Frequentemente se coloca a questão da diferença entre o que se diz e o que se faz. Neste quinto domingo da Páscoa, a primeira carta de João (1Jo 3,18-24) chama a atenção para essa dicotomia. Afirma que não bastam as palavras, são necessárias ações para explicitar a fé: “não amemos só com palavras e de boca, mas com ações e de verdade!”(1Jo 3,18). As palavras são o pontapé inicial para a relação amorosa que se expressa nas ações amorosas. Para que as palavras amorosas sejam verdadeiras dependem das ações amorosas. Falar é muito fácil, qualquer um pode dizer qualquer coisa… mas demonstrar o dito pela ação amorosa...

O fato é que essas três leituras nos sugerem um ponto em comum: a sintonia com Jesus ressuscitado. Essa sintonia leva a união com o Pai: para se trilhar o caminho da união na comunidade; para expressar um convite para darmos testemunho fidedigno e convincente; para ser uma amostra da união entre a videira-Jesus e seus ramos, que somos nós, os cristãos.

O caso de Paulo é exemplar: inicialmente ele perseguia dos seguidores do Homem de Nazaré. Depois daquele encontro definitivo, passou a ser integrante do grupo que antes perseguia. Essa experiência acabou sendo uma especie de enxerto. Um galho (Paulo) que vivia noutra planta (o judaísmo), desligou-se dessa antiga planta para unir-se ao novo grupo que começava a crescer e produzir. Um grupo que se desenvolveu justamente a partir do momento em que Paulo, enxertado na nova comunidade, foi aceito por ela e começou a pregar a nova fé. “Daí em diante, Saulo permaneceu com eles em Jerusalém e pregava com firmeza em nome do Senhor.” (At 9,28).

A fé era nova, mas seus fundamentos eram os mesmos: a promessa de Deus, desde o início do Antigo Testamento, coroando-se no momento presente. O enxerto é novo, mas as raízes da planta são antigas, firmes e fortes. Raízes que fazem a planta crescer e produzir muito. E Paulo foi um enxerto altamente produtivo, movido pala assistência do Espírito: “A Igreja, porém, vivia em paz em toda a Judeia, Galileia e Samaria. Ela consolidava-se e progredia no temor do Senhor e crescia em número com a ajuda do Espírito Santo.” (At 9,31).

Crescendo, a Igreja passou a sentir necessidade de orientações seguras para os comportamentos dos cristãos. Por isso a intervenção de João. Não bastam palavras. São necessárias ações. Não se trata de falar bonito e ir para casa curtir a vida da forma que achar conveniente. O passo seguinte tem que ser dado: agir em consonância com as palavras. Falou bonito? Então mostre ações no mesmo nível. Tem que mostrar ações bonitas.

A vida do cristão não é uma profissão qualquer. Uma pessoa pode ser um excelente médico ou advogado ou professor. Mas terminado seu trabalho pode voltar pra casa e fazer coisas absurdas, como sabemos que vez por outra acontece. Mas com o cristão não é assim. Com o cristão o falar e o agir tem que andar juntos. “Este é o seu mandamento: que creiamos no nome do seu Filho, Jesus Cristo, e nos amemos uns aos outros, de acordo com o mandamento que ele nos deu.” (1Jo 3,23).

E aqui entram as palavras do mestre. Não bastam palavras bonitas. Se o belo discurso não nasce de um ramo ligado à videira, pode até ser bonito, mas corre o risco de não conduzir ao Agricultor, que é o Pai. E, o que é pior, o ramo não sendo produtivo pode ser podado, excluído. “'Eu sou a videira verdadeira e meu Pai é o agricultor. Todo ramo que em mim não dá fruto ele o corta; e todo ramo que dá fruto, ele o limpa, para que dê mais fruto ainda.” (Jo 15,1-2). E triste é o destino dos ramos podados: “Quem não permanecer em mim, será lançado fora como um ramo e secará. Tais ramos são recolhidos, lançados no fogo e queimados.” (Jo 15,6).

Mas quais são os frutos esperados pelo tronco da Videira? Pelo Agricultor? E pela seiva do Espírito vivificador? Quais são os frutos esperados desses ramos unidos ao tronco?

Os frutos são sempre os mesmos: a plenitude de vida. A defesa da vida. A valorização da vida. A alegria de viver promovendo a vida de quem se aproxima de nós. E esse pode ser um critério para olharmos para as pessoas com as quais convivemos, as pessoas que elegemos, as pessoas que admiramos, as pessoas que se colocam como líderes das nossas comunidades, as pessoas que nos dizem o quê e como agir…. São elas promotoras de vida ou só produzem belos discursos?

Sempre foi necessário, porém atualmente ainda mais, observar os atos dos que fazem belos discursos. Quais são seus frutos? Esses ramos estão ligados a quais troncos?




Neri de Paula Carneiro
Mestre em educação, filósofo, teólogo, historiador.

Outros escritos do autor:

Filosofia, História, Religião: https://www.webartigos.com/index.php/autores/npcarneiro;

Literatura: https://www.recantodasletras.com.br/autores/neripcarneiro.

sábado, abril 24, 2021

Páscoa 4 – O Bom Pastor e os filhos de Deus

(Reflexões a partir de: At 4,8-12; 1Jo 3,1-2; Jo 10,11-18)




O sentimento de um Pai em relação aos filhos quase sempre é mais facilmente perceptível do que dos filhos em relação ao Pai. Em diferentes oportunidades os filhos questionam e, por vezes, se rebelam em relação a orientações dos pais. Os pais, quase sempre, amam aos filhos de forma paciente procurando entender os motivos dos comportamentos dos filhos. Cabe aos pais, a missão de, além de gerar, também orientar a vida dos filhos. E, de fato, na maioria das vezes a relação pai-filho ocorre de forma amorosa e harmoniosa.

Essa é uma afirmação verdadeira em nossas relações cotidianas e muito mais verdadeira na relação com o Pai celeste. Na liturgia deste quarto domingo da Páscoa a Igreja nos mostra isso de forma muito transparente e nos convida a refletir sobre as atitudes condizentes à vida do cristão.

Na primeira leitura (At 4,8-12) em resposta aos questionamentos que lhes são feitos por terem feito o bem, Pedro explica o porquê de estarem curando o enfermo. Quase que completando a explicação de Pedro, na segunda leitura (1Jo 3,1-2) João afirma nossa filiação divina e as consequências disso. E, no trecho do Evangelho (Jo 10,11-18), Jesus apresenta-se como o Bom Pastor, levando-nos à conclusão de que ao cristão não resta alternativa: o amor do Pai por nós é tão intenso que nossa única opção é procurar fazer o que o Pai nos orienta, mediante a ação do Filho.

Sendo assim, da mesma forma que Pedro, deveríamos poder dizer, em todas as nossas atitudes e em relação a cada um dos nossos atos: isso que estamos realizando “é pelo nome de Jesus Cristo, de Nazaré” (At 4,10). Esse deveria ser nosso comportamento, mas eu nem me atrevo a indagar aos cristãos: tudo que estamos fazemos tem sido realizado em nome de nosso Senhor?

Sei que se perguntasse, muitos de nós, se fossemos dizer a verdade, não poderíamos afirmar que sim. Mas, já que a indagação nos deixaria embaraçados, vamos permitir que a pergunta permaneça em nossa consciência. Como naquela orientação dos moralistas: aquilo que não posso fazer diante das pessoas, também não me é licito fazer sozinho e tudo que posso fazer sozinho não preciso ter receio de dizer ou realizar diante das pessoas.

Noutras palavras: por adoção divina e pelos méritos do sangue de Jesus, recebemos uma dádiva que dos dá o direito “de sermos chamados filhos de Deus! E nós o somos!” (1 Jo 3,1). Isso significa que, sendo filhos de Deus, cabe a nós trilharmos os caminhos do Pai e realizarmos as obras de Jesus. Por que? Porque somos filhos daqueles que nos indica o melhor caminho: “Caríssimos, desde já somos filhos de Deus, mas nem sequer se manifestou o que seremos! Sabemos que, quando Jesus se manifestar, seremos semelhantes a ele, porque o veremos tal como ele é” (1 Jo 3,2).

Deus nos oferece a graça de o contemplarmos, mas cabe a nós optarmos pelo encontro. E a trilha segura para esse encontro é realizarmos as obras que Ele nos ensinou a fazer. Desenvolver nossas atividades “pelo nome de Jesus Cristo, de Nazaré” é optar por aquele que foi rejeitado. “Jesus é a pedra, que vós, os construtores, desprezastes, e que se tornou a pedra angular” (At 4,11).

Talvez por isso tão poucos, dos que se fazem chamar de cristãos, realmente agem como tal. Ou seja, realizar as obras de Jesus, fazer tudo em seu nome … tem consequências: os adversários do Reino costumam perseguir aqueles que se doam em nome do Senhor. Mas, por outro lado, aqueles que seguem os passos do Mestre podem viver com esta certeza: “Em nenhum outro há salvação, pois não existe debaixo do céu outro nome dado aos homens pelo qual possamos ser salvos” (At 4,12).

Isso é o que nos possibilita entender o porquê de Jesus se apresentar como Bom Pastor. Qualquer um pode pastorear o rebanho. Qualquer um pode repetir o nome do Senhor. Qualquer um pode alardear que está fazendo isso e aquilo em nome do Senhor. Qualquer um pode dizer que faz milagres em nome do Senhor … e dizendo isso podem enganar a muitos. Mas se qualquer um desses não mostrarem, por atos no dia a dia, os comportamentos do Bom Pastor… esses podem ser tudo, menos obreiros do Senhor.

Não importa nossa confissão religiosa. Não importam nossas opções políticas. Não importa a quem dedicamos nossas predileções, em relação aos líderes que nos querem representar. Se eles não passarem no teste do Bom Pastor, podem ser representantes do anticristo, mas não são enviados do Senhor. E o teste é simples: os enviados do Pai podem dizer com seus atos: “Eu sou o bom pastor. O bom pastor dá a vida por suas ovelhas.” (Jo 10,11). Aqueles a quem admiramos, são capazes de dar a vida por nós ou só querem nos explorar? Se este for o caso, esse farsante é um “ mercenário, que não é pastor e não é dono das ovelhas, vê o lobo chegar, abandona as ovelhas e foge, e o lobo as ataca e dispersa. Pois ele é apenas um mercenário e não se importa com as ovelhas.” (Jo 10,12).

Somente o Bom Pastor nos ajuda a seguir o caminho seguro para nos reconfortarmos nos braços daquele nos adotou como filhos. Só o bom Pastor nos transforma em filhos de Deus.




Neri de Paula Carneiro

Mestre em educação, filósofo, teólogo, historiador.

Outros escritos do autor:

Filosofia, História, Religião: https://www.webartigos.com/index.php/autores/npcarneiro

Literatura: https://www.recantodasletras.com.br/autores/neripcarneiro

quarta-feira, abril 21, 2021

Um Rock para o dia das mães

Ainda estava muito longe o dia das mães, quando ela me localizou no facebook e enviou-me uma mensagem dizendo: “Sempre gostei desta música” e anexou um vídeo em que um grisalho B. J. Thomas cantava: “Rock and roll Lullaby”: “She was just sixteen and all alone / When I came to be...” (Se quiser ouvir: https://www.letras.mus.br/bj-thomas/40154/traducao.html)

Abri o link e ouvi a música, outra vez nos tempos de escola. Na minha lembrança o tom ainda era como que uma mistura de saudade e romantismo. Na realidade eu me vi e revivi em nossa juventude e nossa convivência juvenil. Tudo fora tão intenso que, ao lembrar, ouvindo a música, quase podia sentir o mesmo perfume.

Respondi que também gostava daquela música. Que ela tem um ritmo gostoso e meio que suave. Bom de ouvir. Viajei no tempo e lembrei que já naquela época sempre defendia os artistas nacionais e a música popular brasileira. Em minha discoteca não faltava Raul Seixas, Rita Lee, Belchior, Sílvio Brito, Ze Ramalho… e outros que embalavam a reflexão nas letras que conseguiam burlar a censura… eram tempos de ditadura!

Mas naquela época, e ela sabia disso, também ouvíamos Beatles, Lobo, Élvis Presley… e B. J. Thomas, entre outros que já estão quase apagados na memória… entretanto se a gente procurar, os encontra vivos na internet, contando com a mesma jovialidade na terra de ninguém...

E antes que eu me desse conta do sentido para além do artístico, que fica escondido e se revelando na letra da canção, ela completa a mensagem: “Nunca me preocupei em saber a tradução, mas sempre gostei da melodia”. E foi aí que me dei conta de que também não me havia atentado pela tradução da música que fizera tanto sucesso no início dos anos 1970 e que minha amiga enviara num gesto de antiga amizade realimentada na segunda década do século XXI.

Além de revê-la na memória, rememorei os outros colegas do nosso grupo, da mesma época. E, enquanto ouvia a música, fiz uma rápida busca. Localizei uma tradução para “Rock and roll Lullaby”. Em português soa meio estranho: Rock and roll para ninar… Só aí percebi que não é um rock romântico, algo como “Love-me tender”, do Élvis. Era uma canção de ninar!

Não uma canção de ninar de uma mãe acalentando ao filho, mas uma canção de um filho que reconhece, além do carinho, a doação de vida e o sofrimento e as dores e as esperanças e os sonhos de uma mãe: “She was just sixteen and all alone, when I came to be. So we grew up together, my mama child and me”. “Ela tinha apenas 16 anos e completamente só, quando eu apareci. Então nós crescemos juntos, minha mamãe criança e eu”. Não é lindo?

Uma criança gerando e cuidando e amando outra criança que dela nascera… uma criança gerando uma vida criança, uma mãe sozinha: “Now things were bad and she was scared, but whenever I would cry she'd calm my fears and dry my tears”. “Agora as coisas estavam ruins e ela estava assustada, mas sempre que eu chorava ela acalmava meus medos e enxugava minhas lágrimas”. Nem precisava de tantas palavras, poderia afirmar toda essa doação numa palavra: Mãe!

Como essa mãe-criança acalentava seu filho? Ela cantava! Essa criança consolava sua criança “with the rock and roll lullaby”. Ela acalmava o bebê “com um rock and roll de ninar”. Como se vê, ela acalentava não só em seu colo. Não só com seu carinho. Não só com seu amor, não com uma canção qualquer, mas “com um rock and roll de ninar”.

E aí me pus a lembrar e a analisar e comparar… o valor da vida dessa mãe-criança, da canção. Não deu pra não olhar como algumas mães tratam seus filhos em nossos dias, em nossa sociedade. Não são poucas as notícias de bebês encontrados no lixo, abandonados… ou mães que matam seus filhos e apoiam seus maridos assassinos… exploram a prostituição das filhas… percebi como tudo isso está distante daquele rock para ninar.

Na canção o filho agradece e reconhece o que recebeu da mãe. Ele sabe e reconhece o que ela fez por ele: “You made it through the lonely days”. “Você conseguiu atravessar aqueles dias solitários”. Com certeza essa mãe sofreu não tanto pelas suas privações, mas porque naquele momento não podia oferecer ao filho o que precisava, aquilo que sonhava. Ele sabe que o amor da mãe não tem limites. É um reflexo do amor de Deus. E ele agora canta esse reconhecimento: “‘Cause I just knew lots of love came thru in that rock and roll lullaby”. “Pois eu só sabia que muito amor vinha através daquele rock and roll de ninar”

Além de pensar a respeito da música, a música fez-me pensar em nós. Já que não é dia das mães: que tal vivermos cada dia uma sucessão de dia das mães? Talvez assim o comércio não mercantilize o amor. Talvez assim a doação não seja só ocasião de lucro. Talvez assim possamos reacender, redescobrir, reencontrar o valor da vida, tão negligenciada…

Ao ouvir a música enviada por ela, pensei mais. Recordei mais. Revivi momentos… na juventude. Também pensei nas mães, pensei num rock para o dia das mães, que são todos os dias.

Neri de Paula Carneiro

Mestre em educação, filósofo, teólogo, historiador

Rolim de Moura - RO

sábado, abril 17, 2021

Páscoa 3 - Sereis minhas testemunhas

(Reflexões baseadas em: At 3,13-15.17-19; 1Jo 2,1-5a; Lc 24,35-48)





O dia da Páscoa já passou. Mas o ambiente pascal permanece neste terceiro domingo do Tempo da Páscoa. Já se passaram vários dias. Já voltou a normalidade para a maioria das coisas. Já começam a cicatrizar as feridas da dor, da perda, da ausência. Já começa a aparecer a cicatriz...

Mesmo tendo ouvido algumas mulheres anunciando que o corpo não estava no túmulo, a incredulidade permanecia. Mesmo tendo ouvido o mestre por sucessivos dias e o acompanhado por diversos locais, a dificuldade em entender permanecia. Mesmo tendo visto as maravilhas que o Senhor havia realizado… a fé ainda não havia se manifestado!

E, junto com tudo isso… o medo ainda permanecia… Eles o mataram… aqueles que assassinaram o Senhor podem nos perseguir… será que nos matarão também?

Inquietos estavam os corações! Mas oravam! Tranquilidade e paz era o que, realmente, não sentiam! Mas estavam unidos! Queriam ter coragem com as mulheres tiveram! Mas o medo era maior!

E, afinal, quem não ficaria com medo? Quem não pensaria em se esconder e trancar as portas? (Lc 24,35-48) Quem não ficaria receoso de acreditar e não colocaria em dúvida, quando dois companheiros narrassem uma história meio estranha de ter visto o Senhor e ter com ele compartilhado o pão?…

Então dá pra imaginar o susto. Dá pra imaginar o medo. Dá pra imaginar, também, a alegria e a inquietação quando, o Senhor se faz presente saudando: “A paz esteja com vocês!” (Lc 24,36).

A paz era o que mais queriam, mas não seria um fantasma? (Lc 24,37)

Entretanto, aquela voz! Aquelas mãos! Aqueles pés! A voz transmitia a mesma paz! Nas mãos e os pés os mesmos sinais da violência na cruz (Lc 24,39). Mas Ele havia morrido. Eles o haviam visto morrer na cruz! Então como estava ali entre eles? Eles queriam acreditar. Queriam entender. Queriam se alegrar… mas a dúvida e o medo permaneciam…

Foi aí que Ele disse: “São estas as coisas que vos falei quando ainda estava convosco: era preciso que se cumprisse tudo o que está escrito sobre mim na lei de Moisés, nos Profetas e nos Salmos” (Lc 24,44). Não somente falou, mas também: “Abriu a inteligência dos discípulos para entenderem as Escrituras” (Lc 24,45).

Agora sim! Agora ficou tudo claro! Agora a coragem se instalou! Agora o medo cedeu e ganhou força a vontade e a necessidade de anunciar!

E foi o que eles fizeram. Abriram as portas e Pedro falou ao povo: “O Deus de Abraão, de Isaac, de Jacó, o Deus de nossos antepassados glorificou o seu servo Jesus” (At 3,13). E João confirma “Ele é a vítima de expiação pelos nossos pecados, e não só pelos nossos, mas também pelos pecados do mundo inteiro” (1Jo 2,2)

Pedro acusa os acusadores de Jesus. Mostra o que fizeram: Entregaram-no, rejeitaram-no, pediram a morte de santo e a libertação do assassino (At 3,13-14). Mesmo demonstrando o tropeço do povo, Pedro acena para a bondade de Deus demonstrando que esse povo foi manipulado para rejeitar o caminho da paz: “eu sei que vós agistes por ignorância” (At 3,17). E se agiram por ignorância, incitados por outros, são convidados ao arrependimento. Entretanto, aqueles, inclusive em nossos dias, que atentam contra a vida da sociedade, têm o mesmo pecado daqueles que o crucificaram.

Aqueles que o crucificaram continuam agindo, hoje, como agiram lá. Os tempos são outros, mas os gritos mentirosos são os mesmos. Os que continuam assassinando o Senhor são aqueles que, investidos de poder, político ou religioso, poderiam se concentrar em salvar vidas, preservar a saúde… mas permanecem numa disputa mesquinha e em mútuas acusações de irresponsabilidade, quando a irresponsabilidade consiste em ter o poder de melhorar a vida das pessoas e não o fazer. Desde o mais alto posto, politico ou religioso, até as bases nas pequenas comunidades, todos aqueles que não ajudam a defender a vida fazem parte do grupo que continua crucificando Jesus.

Pedro apresenta a proposta salvadora: “Arrependei-vos, portanto, e convertei-vos, para que vossos pecados sejam perdoados” (At 3,19).

E João explica as exigências da fé: “Quem diz: ‘Eu conheço a Deus’, mas não guarda os seus mandamentos, é mentiroso, e a verdade não está nele” (1 Jo 2,4). A condenação da difusão de notícias mentirosas valia naquele mundo em que nascia a Igreja e ainda vale nos dias atuais.

Os apóstolos, assumiram o mandato. Entenderam que Jesus Ressuscitado os orientou e os enviou, dizendo: “Assim está escrito: ‘O Cristo sofrerá e ressuscitará dos mortos ao terceiro dia e, no seu nome, serão anunciados a conversão e o perdão dos pecados a todas as nações, começando por Jerusalém’. Vós sereis testemunhas de tudo isso” (Lc. 24,46-48). Efetivamente os apóstolos entenderam a mensagem e se puseram a anunciar. Pedro confirma: “e disso nós somos testemunhas”. (At 3,16).

Como a missão ainda está em aberto, cabe a nós a continuação. A nós também é feita a proposta: “Vós sereis testemunhas de tudo isso”. Testemunho com base na fé. O tamanho da fé é o tamanho do testemunho.




Neri de Paula Carneiro

Mestre em educação, filósofo, teólogo, historiador.

Outros escritos do autor:

Filosofia, História, Religião: https://www.webartigos.com/index.php/autores/npcarneiro

Literatura: https://www.recantodasletras.com.br/autores/neripcarneiro

sexta-feira, abril 16, 2021

Filosofia e a possibilidade do conhecimento

A filosofia caracteriza-se pela atitude de busca. Mas o que busca a atitude filosófica? O saber, o Conhecimento! Indaguemo-nos, portanto sobre a possibilidade do conhecimento: É possível, efetivamente, “conhecer” algo?

Caso pedíssemos a duas pessoas para descreverem a mesma cena, será que ambas fariam a mesma descrição?

A experiência diz que não! As percepções não são únicas. Cada pessoa vê e descreve o que viu de forma única e diferente das outras pessoas. E sujeitas a erros ou equívocos, como sugere Descartes, no livro “Discurso do Método”: “pode ocorrer que me engane, e talvez não seja mais do que um pouco de cobre e vidro o que eu tomo por ouro e diamantes. Sei como estamos sujeitos a nos enganar no que nos diz respeito, e como também nos devem ser suspeitos os juízos de nossos amigos, quando são a nosso favor.”

O que isso nos indica? Que o processo do conhecimento é complexo. Demanda mais do que apenas ver algo. Exige o processo da reflexão, o exercício do pensamento.

Podemos dizer que uma das preocupações centrais do ser humano é a compreensão da realidade. Ou seja, conhecer o mundo (ou as diferentes manifestações da realidade), é um mecanismo que permite não só interferir naquilo que o mundo pode oferecer, como também exercer domínio sobre ele: conhecer é dominar.

Neste ponto surge uma questão: por que se deseja conhecer? Porque o desconhecido é assustador. O ser humano, entre outras coisas, é medroso. Dessa forma o desejo de dominar o medo impulsiona o homem na busca do conhecimento pois aquilo que é conhecido passa a produzir segurança, certeza. Nossos medos são mecanismos para superação do desconhecido; o medo é um dos propulsores da humanidade. E esta constatação leva à seguinte conclusão: ao longo da historia da humanidade o medo produziu deuses, religiões, filosofia e ciência!

O imperador romano, Marco Aurélio, em suas Meditações, afirmou que somos nós a causa do medo; não tememos, exatamente o que nos assusta, mas nossa opinião a respeito daquilo que nos assusta. Portanto temos medo não da coisa que assusta, mas de algo que está em nós: nossa compreensão a respeito do coisa em questão. Mas também depende de nós a superação da situação desconfortável. Como o desconforto – o medo – advém do desconhecido, a solução é o conhecimento.

Feitas estas considerações, alguém poderia perguntar: Onde entra a filosofia nesse processo? Ela é a ferramenta no processo da busca! O homem é um ser que busca e criou a filosofia com essa finalidade: ampliar seu universo de instrumentos de busca. E o que move a busca? Além do desconhecimento, o espanto, como diziam os antigos, ou a curiosidade, como dizemos hoje.

Voltemos, então, à indagação inicial: O conhecimento é possível? Sim, é possível. Não como algo pronto e acabado, mas como processo. O processo da aprendizagem não tem fim.

A capacidade de conhecer e saber utilizar os conhecimentos acumulados é um dos elementos definidores do ser humano. O conhecimento torna-se ferramenta de trabalho. A ação do homem no mundo, ou seja, seu trabalho, depende daquilo que sabe realizar. A busca e geração de mais conhecimento, portanto, pressupõe, além da busca formal (em escolas e cursos) o mundo do trabalho. O conhecimento é possível, não como algo espontâneo mas na proporção exata dos interesses daquele que deseja conhecer.

Sendo esse não um processo espontâneo nem estanque, mas intencional e dinâmico, ele depende da conjugação de alguns elementos: o espanto que gera as indagações e o interesse em responder às dúvidas; associação de ideias e informações novas às ideias já incorporadas e, principalmente, a reflexão que se caracteriza como processo pelo qual se transforma a informação em conhecimento.
No mundo em que estamos inseridos e no qual nos coube viver, as informações (verdadeiras e falsas) estão à disposição de quem as procura, no universo virtual. Mas a informação ainda não é conhecimento. Ela depende da vontade, do intelecto e das intenções para ser transformada em conhecimento…

Neri de Paula Carneiro.

Mestre em educação, filósofo, teólogo, historiador

Rolim de Moura – RO

quinta-feira, abril 15, 2021

Filosofia: o senso comum e o mito

Conhecer e produzir conhecimento é possível. E isso está intimamente relacionada com a filosofia que se caracteriza como uma atitude pela qual o ser humano busca novos conhecimentos.

Da mesma forma que a ciência, a filosofia tem como finalidade ampliar os conhecimentos existentes e essa ampliação é uma forma de produção. Na produção dos conhecimentos ocorre o processo da inovação e essas são atribuições da Filosofia e das Ciências. Entretanto, embora ande junto, a filosofia vai além da ciência. Enquanto a ciência demonstra o saber apontado pela filosofia, esta desenvolve um processo de crítica do conhecimento estabelecido pela ciência procurando determinar a legitimidade e a veracidade desse saber.

Com base nisso podemos dizer que uma das questões centrais da filosofia é o problema do conhecimento que caminha ao lado da possibilidade de acesso à verdade. Isso posto, precisamos ter em mente que a preocupação com o conhecimento não é exclusividade da Filosofia nem da Ciência. As pessoas se apropriam do saber pelo senso comum, pelos mitos, pela religião e, obviamente, por meio da filosofia e da ciência. A filosofia é a base do conhecimento científico, mas antes da filosofia e da ciência as pessoas interpretam o mundo e todas as realidades a partir do senso comum.

O senso comum, o ponto de partida para qualquer tentativa para explicar o que ainda é inexplicável, cria argumentos e se transforma em conhecimento e, nesse processo, deixa de ser senso comum para converter-se em mito, em religião, em filosofia ou ciência. Como, então, se caracteriza cada uma dessas modalidades de conhecimento no qual o senso comum transforma-se em mitos, religiões, filosofias e ciências?

Qual é o ponto de partida para o conhecimento? O medo do desconhecido. Se levarmos em conta que o desconhecido é assustador somos levados a afirmar que o medo impulsiona a busca pelo conhecimento e este confere poderes sobre o desconhecido. No processo do saber, o desconhecido assustador exige uma resposta. A primeira alternativa é encontrar meios de superar o medo. Essa alternativa vem do senso comum e dos mitos.

O senso comum que antecede a filosofia e a ciência, também está na base do conhecimento mítico e religioso. Qualquer realidade que se apresente ao intelecto passa, antes, pelo senso comum, pelo conhecimento comum.

Trata-se daquele conhecimento que todas as pessoas possuem, a respeito de um determinado fato ou fenômeno. Arcângelo Buzzi, no livro “Introdução ao pensar” explica o senso comum, dizendo que é “A interpretação ou a racionalidade que surge da necessidade de enfrentar fatos imediatos, da necessidade de resolver problemas propostos por interesses os mais diversos, quando feita sem qualquer prévia discussão, a chamamos de conhecimento ordinário, senso comum ou bom senso.

E de onde vem o conhecimento do senso comum, ou esse conhecimento ordinário, de que fala o autor? Vem do acúmulo tradicional dos saberes populares. Ou seja, a tradição se encarrega de produzir a sabedoria do povo. Não é necessário estudo, pesquisa, ou qualquer outra ferramenta teórica ou experimental: basta um povo que se constitua historicamente com sua cultura e teremos um saber fundamentado no bom senso.

No seu livro “Discurso do Método” Descartes afirma que o bom senso é o que existe de melhor distribuído entre as pessoas, pois ninguém diz que tem a menos ou a mais. Todos se dizem sensatos. Diz o pensador francês: “Inexiste no mundo coisa mais bem distribuída que o bom senso, visto que cada indivíduo acredita ser tão bem provido dele que mesmo os mais difíceis de satisfazer em qualquer outro aspecto não costumam desejar possuí-lo mais do que já possuem.”

Tão importante quanto o senso comum, o conhecimento Mítico também antecede ao filosófico e científico. Além disso, os mitos também não se prestam à comprovação experimental nem racional, como a ciência e a filosofia.

Como surgiu a necessidade de explicar a realidade? No fato de que o desconhecido nos assusta. A explicação, que é uma manifestação de um conhecimento, substitui o medo pela sensação de poder, de segurança, de domínio. O conhecimento permite dominar o desconhecido e, com isso, matar o medo uma vez que o conhecimento implica poder.

Nos primórdios da humanidade as realidades inquietantes, desafiadoras, assustadoras e complexas para os primeiros homens: tudo era completamente desconhecido, particularmente os fenômenos da natureza eram assustadores. Se em nossos dias a força da natureza nos assusta, podemos imaginar para os primeiro seres humanos que não dominavam as informações que hoje possuímos. Partindo disso, podemos admitir que nos primórdios o sentimento do ser humano em relação ao mundo era de medo. Essa situação de medo e insegurança produziu o mito. Diferentes deuses e credos foram criados com essa finalidade: possibilitar a sensação de segurança.O processo de criação de mitos perdurou até o advento da filosofia e da ciência. Ainda hoje somos levados a explicar miticamente aquilo para o quê não temos explicações lógico-filosófico-científica. As mais diferentes situações em que o homem atual se depara com o desconhecido é ocasião para o surgimento de um mito: uma explicação que transmita alguma sensação de segurança. “Reduzir uma coisa desconhecida a outra conhecida alivia, tranquiliza e satisfaz o espírito, proporcionando, além disso, um sentimento de PODER. O desconhecido comporta o perigo, a inquietude, o cuidado” afirmou Nietzsche, na obra “O crepúsculo dos ídolos”.


Neri de Paula Carneiro.

Mestre em educação, filósofo, teólogo, historiador

Rolim de Moura – RO

Filosofia: Idealismo e Empirismo

O conhecimento é possível, sem a menor dúvida.

Entretanto e para ocorrer depende e é resultante da mediações do intelecto que estabelece as relações entre o sujeito cognoscente que observa e o objeto observado, cognoscível. Portanto o conhecimento ocorre na relação do sujeito com o objeto. Essa relação, ou a necessidade de se compreender esse processo, é que se denominou de Teoria do Conhecimento.

Desde os tempos dos antigos gregos se desenvolve uma discussão a respeito de como se dá o processo do conhecimento. Formaram-se duas linhas de explicação. Uma é denominada de idealismo e a outra de empirismo.

A primeira, ou o Idealismo, se desenvolveu a partir de Platão, o qual afirmava que nosso mundo sensível, ou seja, este mudo em que estamos vivendo, é repleto de equívocos e as realidades com as quais convivemos podem nos conduzir a erros. Segundo ele, vivemos num mundo de aparências. Por esse motivo a verdade só é acessível em nível de ideias. Devemos nos voltar para o “mundo das ideias” porque elas não nos enganam. O idealismo foi desenvolvido por vários pensadores ao longo da história da filosofia.

A segunda, ou seja, o Empirismo, desenvolveu-se a partir dos ensinamentos de Aristóteles, afirmando que o conhecimento só é possível a partir da experiência. Nossos conhecimentos, dizia esse pensador, dependem do nosso contato com a realidade ou os fenômenos com os quais convivemos. Dos ensinamentos de Aristóteles vem a afirmação de que “nada entra no intelecto sem ter passado pela experiência”. Ou seja, não tem como ensinar a alguém o que é a dor de uma queimadora. Só sabe disso aquele que passou pela experiência de se queimar. O empirismo também teve inúmeros defensores até chegar aos nossos dias.

Em pleno movimento renascentista Renê Descartes em seu livro “Discuso do método”, propõe um avanço na explicação idealista. Juntamente com outros contemporâneos desenvolve-se a proposição de que a base do conhecimento é a demonstração matemática. Nesse contexto Galileu Galilei afirma que o universo organiza-se com base na linguagem da matemática, conforme a frase a ele atribuída: “O universo não pode ser lido até termos aprendido a linguagem e ficarmos familiarizardos com os caracteres em que está escrita. Está escrita em linguagem matemática, e as letras são triângulos, círculos e outras figuras geométricas, sem a qual significa que é humanamente impossível compreender uma única palavra.”

De outro lado, contra o idealismo cartesiano, insurge-se o empirismo, afirmando a essencialidade das impressões sensíveis. O conhecimento provém, portanto, da experiência. Por esse motivo enquanto o idealismo ou o racionalismo alimentam a especulação filosófica, o empirismo mobiliza o desenvolvimento da ciência.

E aqui apresenta-se como que um paradoxo. Vivemos num mundo movido pela ciência e tecnologia constatamos que a teoria (filosofia), por não ser passível de comprovação experimental perde espaço para aquilo que é comprovado ou demonstrado. Dessa forma, o fato ou a experiência, acaba se sobrepondo e assistimos à desvalorização da filosofia que põe em dúvida o fato.

Percebemos, assim que não há apenas uma forma de conhecimento e nem de se chegar ao conhecimento. Além e simultaneamente ao conhecimento filosófico e cientifico existem os conhecimentos do senso comum, da religião, e o conhecimento mítico.




Neri de Paula Carneiro.

Mestre em educação, filósofo, teólogo, historiador

Rolim de Moura - RO

quarta-feira, abril 14, 2021

O Filósofo é um amante

Entre as diferentes formas pelas quais se pode conceber a filosofia, uma delas é a afirmação de que ela pode ser apresentada como amor pelo conhecimento. Sendo assim o Filósofo é um amante! E, como atitude, ela não se limita a uma área do conhecimento. Ela, em sua atitude de busca, se envolve com todas as realidades a fim de lhes descobrir o significado.

Agora precisamos saber em que consiste a atitude filosófica?

Iniciamos entendendo o próprio processo do conhecimento. Trata-se de um movimento do intelecto. A realidade a ser conhecida é a mesma, mas os olhares sobre ela se diferenciam e se ampliam. Esses olhares produzem novos saberes. Portanto o conhecimento não se manifesta como algo estanque, parado, pronto e acabado. Ele é dinâmico e acontece no processo, justamente na medida em que o pensante se relaciona com o pensado.

Esse mesmo movimento podemos observar no amor, na amizade, na postura do amante. Uma relação amorosa, para ser saudável e duradoura, precisa renovar-se. Se um amigo não questiona os erros ou equívocos do outro, pode ser tudo menos amigo.

A dinamicidade do amor e o movimento caracterizam a filosofia como busca. Esse processo em busca do conhecimento assemelha-se à atitude dos amantes que se procuram e ao se encontrarem se renovam, fazendo com que o amor seja sempre juvenil e o saber sempre inovador. Daí que o processo é infindo (está em movimento, é dinâmico) pois todo fim acaba sendo um novo começo. Cada novo saber, cada nova descoberta, cada nova invenção, cada novidade (que é um ponto de chegada) lança o desafio sobre o que fazer em seguida, com aquele resultado... e isso é um novo começo.

E assim, se fossemos falar sobre o que é filosofia, poderíamos dizer que ela não é, como algo que já chegou ao ponto final, mas ela é o processo. Acontece no devir, no movimento do intelecto que se mantém em atitude de busca pela respostas às perguntas filosóficas. Isso é o que nos sugere J. Gaarder no livro “O Mundo de Sofia”, do qual tomamos emprestado o seguinte trecho:

"A melhor maneira de nos iniciarmos na Filosofia é colocar perguntas filosóficas:

Como se formou o mundo? Haverá uma vontade ou um sentido por detrás daquilo que acontece? Haverá vida depois da morte? Como podemos encontrar resposta para estas perguntas? E, acima de tudo, como deveríamos viver? Estas perguntas foram colocadas desde sempre pelos homens. Não conhecemos nenhuma cultura que não tenha perguntado quem são os homens e de onde vem o mundo. As perguntas filosóficas que podemos colocar não são muitas mais. Já colocamos algumas das mais importantes.

A história oferece-nos muitas respostas diferentes para cada uma destas perguntas. Por isso, é mais fácil formular perguntas filosóficas do que encontrar a sua resposta.

Mesmo hoje, cada um deve encontrar as suas respostas para estas perguntas. Não podemos saber se Deus existe ou se há vida depois da morte, consultando a enciclopédia. A enciclopédia não nos diz como devemos viver. Mas ler o que outros homens pensaram pode, no entanto, ser uma ajuda, se quisermos formar a nossa própria concepção da vida e do mundo.

Segundo um filósofo grego que viveu há mais de dois mil anos, a Filosofia surgiu da capacidade que os homens têm de se surpreender. O homem acha tão estranho viver, que as perguntas filosóficas surgem por si mesmas.

Pensa no que sucede quando observamos um truque de magia: não conseguimos perceber como é possível aquilo que estamos a ver. E perguntamo-nos: como é que o ilusionista conseguiu transformar dois lenços brancos de seda num coelho vivo?

Para muitos homens, o mundo parece tão inexplicável como o coelho que um ilusionista retira subitamente de uma cartola até então vazia. No que diz respeito ao coelho, percebemos claramente que o ilusionista nos enganou. O que pretendemos descobrir é como nos enganou.

Quando falamos sobre o mundo, a situação é diferente. Sabemos que o mundo não é pura mentira, uma vez que nós estamos na Terra e somos uma parte do universo. Na verdade, somos o coelho branco que é retirado da cartola. A diferença entre nós e o coelho branco é apenas o fato de o coelho não saber que participa num truque de magia. Conosco passa-se de modo diferente. Sentimos que tomamos parte em algo misterioso, e gostaríamos de esclarecer de que modo tudo está relacionado ( J.GAARDER).

Com isso voltamos à afirmação inicial: o filósofo é um amante. Arrisca-se em busca do saber porque o objeto de sua paixão é o desconhecido e o desconhecido não oferece segurança. E a filosofia encara o desconhecido ou o cotidiano com a mesma perspectiva: um olhar crítico. Sobre o desconhecido para dominá-lo; sobre o cotidiano para inová-lo. E faz isso a partir da observação e da reflexão: observando e refletindo o real.

Neri de Paula Carnero 
Mestre em educação; Filósofo; Teólogo; Historiador
Rolim de Moura - RO

A história dos cordeiros

Os cordeiros viviam felizes numa fazenda. Pastavam e andavam de um lado para outro.

Acreditavam que eram livres e felizes, pois assim se comportavam, correndo dentro do cercado que acreditavam ser sua casa.

Diariamente o pastor lhes alimentava, cuidava deles e todos seguiam o pastor. Ele os conhecia pelo nome e os chamava, conduzindo-os para onde achava conveniente.

Todos os dias os cordeiros entravam na fila, dirigindo-se ao cercado, onde o pastor os alimentava e medicava, se necessário. Acariciava seus pelos e os tosquiava, pois a lã era muito quente.

Quando estavam livres, no pasto, dentro do cercado, o pastor e os chamava:

- Venham meus cordeirinhos. Sigam-me. Entrem na fila meus cordeirinhos

E o pastor os condizia para onde ele queria:

E todos o seguiam. Era seu líder e todos o admiravam.

Entretanto houve um dia em que o ritual foi modificado com uma longa permanência no cercado.

Alguns até acharam estranho, mas o pastor, seu líder, assim o fizera e eles se acalmaram quando disse:

- Calma, meus cordeirinhos, fiquem calmos no cercado.

E os cordeirinhos ficaram calmos, pacificamente. O pastor os tosquiou e lhes disse:

- Esperem mais um pouco meus cordeirinhos. Hoje não vou lhes soltar para o pasto. Vamos dar um passeio.

Os cordeiros viram uma movimentação diferente. Mas acreditavam no pastor que veio novamente:

- Vamos passear, meus cordeirinhos! Entrem no caminhão!

Os cordeiros ficaram alegres e disseram, lá na língua deles:

- Oba, hoje vamos passear! O pastor nos deu um prêmio de produtividade.

Como eram cordeiros pacíficos, nunca se haviam revoltado nem ido à escola e, portanto, não sabiam ler.

E foram passear, sem entender que no caminhão estava escrito:

FRIGORIFICO.

Confira outros textos e Livros:

O PEQUENO PRINCIPE: 

ALICE NO PAÍS DAS MARAVILHAS:
        https://www.baixelivros.com.br/literatura-estrangeira/alice-no-pais-das-maravilhas




Neri de Paula Carneiro

Mestre em Eduação, Filósofo, Teólogo, Historiador

Rolim de Moura - RO

Sagrada Família: para se cumprir!

Reflexões baseadas em: Eclo 3,3-7.14-17a; Cl 3,12-21; Mt 2,13-15.19-23 Todos os que, de alguma forma, tiveram contato com os ensinamentos d...