sábado, dezembro 02, 2023

Advento: a vinda e o retorno






A Igreja é sábia. Disso não há dúvidas.

Por esse motivo assimilou dos pagãos a celebração da luz e a identificou com a celebração do nascimento de Jesus, o Sol que a todos ilumina. E assim nasce a celebração do Natal.

O mesmo se pode dizer do advento.

Vários povos pagãos, quando estavam para receber uma autoridade, durante vários dias organizavam a cidade para a festa da chegada. E então ocorria uma recepção festiva para dizer que essa autoridade, seu rei, era uma pessoa querida, bem vista e esperada na cidade.

Observando isso, a Igreja assimilou o modelo e instituiu um período de preparação para o Natal: o Rei dos reis; Sol que nasceu para todos os povos; o Emanoel que não nos abandona.

Em algum lugar, perdido na história, alguém teve a ideia de aproveitar esses costumes pagãos para celebrar o Deus da vida. Foi para celebrar o nascimento de Jesus que nasceu o Advento.

Entretanto, somente a partir do século cinco é que essa prática se popularizou a partir da região que hoje é a Espanha e a França. E nasceu como um tempo de jejum e abstinência pelos quais os catecúmenos se preparavam para o batismo, realizado nas celebrações natalinas.

Alguns séculos depois a Igreja de Roma acrescenta o caráter escatológico. Ou seja, o advento não só prepara para a vinda do Jesus menino, como é um convite para que o cristão faça sua revisão de vida, olhando para o encontro escatológico com Cristo, que virá no fim dos tempos.

Portanto, ao celebrar o advento temos estas duas perspectivas: a festa do Natal, quando Deus vem ao nosso encontro, para nos ensinar os caminhos da solidariedade, da fraternidade na forma do mandamento do amor; além disso, nos convida a nos mantermos em clima de espera para o feliz dia do retorno glorioso do Senhor, no fim dos tempos. Ou seja, o advento tem uma dimensão cotidiana e histórica e um olhar escatológico, aguardando o fim da história.

A sabedoria da Igreja inseriu o advento na liturgia como uma das formas do diálogo de Deus com sua Igreja peregrina. Por isso o tempo de advento corresponde ao início do ano litúrgico. Ou seja, diferentemente do ano civil, o ano litúrgico começa com o primeiro domingo do advento e se encerra com a celebração do Natal do Senhor

O calendário litúrgico organiza o tempo de advento em quatro domingos que antecedem o Natal. E isso por um motivo simples: é no advento que se inicia todo o mistério da salvação. O povo se prepara para receber o Deus supremo que se apresenta como um menino, na celebração do Natal; depois, ao longo do ano, Deus caminha lado a lado conosco no tempo comum até consumar seu ato salvador no sacrifício do mistério pascal.

Tudo isso para nos dizer que a liturgia quer nos ensinar algo muito importante: a encarnação é o primeiro passo da ressurreição.

Durante as quatro semanas do advento, a liturgia nos convida a uma revisão de vida a partir de alguns personagens: os apelos de Isaías que chamam nossa atenção para a necessidade de conversão e o conforto oferecido pelo Senhor. Também recebemos um convite para a revisão de vida feito por João Batista que nos orienta a preparar as veredas, os caminhos do Senhor. Com um carinho muito especial somos convidados a olhar o mistério da encarnação seguindo o exemplo de Maria que se apresenta como a serva do Senhor, aquela que guardava tudo em seu coração. Outro personagem é José em cuja postura somos convidados a olhar um personagem singelo e discreto, mas foi quem deu amparo a Maria para que tivesse condições de gerar o Filho de Deus.

Em síntese, no advento somos convidados a refletir sobre nossas vidas enquanto aguardamos chegada do Deus menino e, ao mesmo tempo, nos preparar para a vinda definitiva do Senhor. Somos convidados a celebrar a alegria, pois Deus vem ao nosso encontro; e também somos convidados a celebrar a nossa reconciliação com Deus, neste tempo penitencial. Sendo uma celebração de alegria pela expectativa da vinda do Senhor, o advento, é também tempo de penitência no qual devemos nos purificar para receber o Deus que vem.





Primeiro domingo do Advento: 

VIGIAI





(Reflexões baseadas em: Isaías 63,16b-17.19b;64,2b-7; 1 Coríntios1,3-9; Marcos 13,33-37)








Estamos iniciando um novo ano litúrgico: primeiro domingo do Advento.

Estamos celebrando a esperança: apesar de toda as negligência humana, Deus não nos abandona. Mesmo e apesar da nossa infidelidade, Deus insiste em nos visitar. Ele continua acreditando em nós, apesar de nossa incredulidade; mesmo contra nossa desesperança… Por tudo isso, neste tempo de advento, Deus nos convida a dar mais uma oportunidade à esperança; ainda é possível alimentar a esperança!

É verdade que precisamos abrir um espaço em nossa agenda. E, se fizermos isso, certamente ouviremos o convite: Deus nos chama a rever nossas passos; nos convida a redefinir nossos rumos; nos propõe redefinir nossa trajetória; nos encoraja a buscá-lo em nosso caminhar.

A proposta é bastante clara, pois estamos num ponto em que precisamos tomar uma decisão: continuar nos caminhos tortuosos da indiferença para com a proposta divina degradando o mundo e vitimando nossos irmãos ou aderir ao projeto do Reino.

O profeta Isaías (63,16b-17.19b;64,2b-7) chama nossa atenção para este ponto importante: estamos nos afastando do Senhor. Diz o profeta: “Todos nós nos tornamos imundície e todas as nossas boas obras são como pano sujo. Murchamos todos como folhas e nossas maldades empurram-nos como o vento” (Is 64,5).

E assim, afastados do Senhor, uma vez que “não há quem invoque teu nome” (Is 64,6), estamos completamente atolados em nossos desatinos. Como estamos “à mercê da nossa maldade” (Is 64,6), o trem da história humana encontra-se fora dos trilhos. E, dessa forma, cresce entre nós não o projeto do Reino, mas o anti-Reino alimentado pela maldade humana que, não só cresce como também floresce e frutifica em nossa sociedade.

Prevalecendo a vontade humana e não o projeto de salvação, mesmo as ações aparentemente solidárias, altruístas não passam de “imundície”, pois o motor para essas ações está assentado nas aparências. Por isso o profeta usa a metáfora do “pano sujo” (Is 64,5): quem tenta limpar algo com um pano sujo o que faz é espalhar a sujeira. A melhor obra de caridade e os grandes gestos de solidariedade, quando não são autênticos, mas movidos pelos interesses pessoais (da política, da exploração econômica, da evidência…) ou pela sede da retribuição, pela vontade de se evidenciar… não passa de maldade humana, reflexo da nossa imundície.

Só tem valor, como semeadura do Reino, aquilo que é feito desinteressadamente. O bem que faço a alguém, argumentando que “quando eu precisar alguém fará o mesmo por mim”, não tem valor para o Reino. Nesse caso, estarei fazendo em busca do meu benefício e não pensando no outro. Faço o bem, porque desejo uma retribuição. Nesse caso eu permaneço no centro dos interesses e não na necessidade do outro.

Importa, para frutificar a semente do Reino entre nós, realizarmos não o que nos apetece, mas aquilo que é agradável ao Pai. Importa comportarmo-nos não como donos da verdade, mas como o barro na mão do oleiro, como diz o profeta: “Tu és nosso pai, nós somos o barro; tu és nosso oleiro e nós todos, obra de tuas mãos” (Is 64,7).

Por sua vez, constatando o aumento da maldade humana, as ambições humanas, as atitudes egoístas e interesseiras, entre as pessoas, Paulo orienta a comunidade de Corinto (1Cor 1,3-9), a fim de que permaneçam na graça de Deus, no seguimento de Jesus. E o apóstolo é categórico, dizendo que é Jesus quem “dará a perseverança em vosso procedimento irrepreensível” (1Cor 1,8). A graça cresce e frutifica na mesma proporção da entrega e do “testemunho” sobre Cristo (1Cor 1,6).

A fidelidade de Deus é constante e por isso, dos seus, espera a “comunhão com seu filho, Jesus Cristo” (1Cor 1,9). A fidelidade divina, sendo constante, pede, da parte humana, de nossa parte, também atitudes de fidelidade ao projeto do Reino, que se expressa em atos de “amorização”.

Isso nos conduz à proposta do tempo litúrgico que estamos celebrando: o advento é um Momento propício para deixarmos de lado as posturas tortuosos e trilhas traçadas que nos afastam do Senhor. Daí a recomendação de Jesus, narrada por Marcos (13,33-37): vigilância. Importa a postura de se deixar moldar pelo oleiro divino (Is 64,7). Importa abrir espaço para o crescimento da graça de Deus entre nós. Mas, sobretudo, importa permanecer atentos aos sinais do Reino e ao combate ao anti-Reino.

Como o joio e o trigo, as sementes do Reino e do anti-Reino estão presentes na sociedade humana. A acomodação e a negligência em relação às boas obras são a terra fértil do anti-Reino. Por seu lado a vigilância se expressa nas atitudes em favor do outro, na medida em que cada um cumpre com “sua tarefa” (Mc 13,34) de fazer crescer atos em favor do bem, em favor dos menos favorecidos, em favor de quem precisa.





Segundo domingo do Advento: 

CONSOLAI





(Reflexões baseadas em: Isaías 40,1-5.9-11; 2 Pedro 3,8-14; Marcos 1,1-8)








O tempo do Advento nos enche de inspiração.

No primeiro domingo, fomos convidados à vigilância a fim de alimentar a esperança. Ou seja, rever nossas atitudes e comportamentos a fim de adequá-los à proposta divina da renovação do mundo. Afinal, essa é a esperança que alimenta o mundo.

Neste segundo domingo a proposta nos é feita em vista da consolação. Depois seremos convidados a exultar de alegria porque no quarto domingo nos será comunicada a presença de Deus entre nós.

O apelo à consolação nos é apresentada por Isaías (Is 40,1-5.9-11), quando o profeta explicita a ordem do Senhor: "Consolai, consolai o meu povo” (Is 40,1).

Por que o povo deve ser consolado? Essa é a pergunta inevitável. E a resposta nos é apresentada pelo mesmo profeta, dirigindo-se à “mensageira de sião” (Is 40,9), encarregada de levar ao povo a notícia de que “o seu serviço está cumprido, que a sua iniquidade está expiada, que ela recebeu da mão de Iahweh paga dobrada por todos os seus pecados" (Is 40,2).

O povo havia se distanciado do Senhor e cometera as mais absurdas profanações. Mas o que o povo havia feito de tão ruim, que merecera tamanha punição? Havia seguido lideranças políticas cujas atitudes enganavam ao povo e os distanciavam dos caminhos do Senhor. Ou seja: O povo estava, sim, afastado do Senhor. Mas fizera isso porque se deixara seduzir pelos seus governantes que diziam estar falando em nome do Senhor, mas efetivamente agiam em beneficio próprio.

Algo muito parecido com o que assistimos nos dias atuais. Quando vemos governantes cometendo atrocidades contra os direitos do povo, contra a saúde, contra a vida, contra o ssitema escolar, contra o saber.… E eles fazem isso repetindo o nome de Deus. Mas, na verdade, são representantes do demônio. Suas belas palavras são enganosas, sua boca se abre para a mentira. E todas essas mentiras fazem com que o povo caia na tentação… Pensam que estão seguindo um líder que fala em nome de Deus, mas são enganados pelo representante do Anticristo.

E, se isso é verdade em relação à política, não é menos verdade em relação a muitos líderes religiosos: Gritam o nome de Deus, mas profanam o seu nome quando seu interesse é o dinheiro extorquido dos pobres...

O mesmo alerta emitido por Isaías é repetido na carta de Pedro (2 Pe, 3,8-14).

Em sua carta, o apóstolo reitera que pecado do povo é perdoado, mas isso não afasta nem impede a chegada do “dia do Senhor” que “chegará como um ladrão” (2 Pe 3,10).

O clima de iniquidade é grande, e não é de hoje. Desde os tempos antigos a maldade vem tomando conta das pessoas, das cidades, das nações. Até a literatura já o repetiu, como nos versos de Chico Buarque, quando cantou “Geni e o Zepelim”: “Quando vi nesta cidade tanto horror e iniquidade resolvi tudo explodir”. E o comandante dessa nave só não explode o mundo de iniquidade porque se enamora de uma moça malvista, marginalizada. Por isso condiciona o perdão: “Posso evitar o drama, se aquela formosa dama esta noite me servir”.

Na música, a mulher marginalizada, excluída e estigmatizada salvou aquele povo fictício que representa o povo real que respira maldade. Os canhões do comandante da música se assemelham ao mundo se desfazendo “com estrondo, os elementos, devorados pelas chamas, se dissolverão e a terra, juntamente com as suas obras, será consumida” da carta de Pedro (2Pe 3,10). Também nos faz lembrar dos montes “aplainados” e à necessidade de que “seja entulhado todo vale, todo monte e toda colina sejam nivelados” (Is 40,3-4), a fim de que se instale a glória do Senhor, conforme se lê na carta de Pedro: “aquilo que nós esperamos, conforme a sua promessa, são novos céus e nova terra, onde habitará a justiça” (2 Pe, 8, 13). Aquela mulher humilhada, pode ser vista como uma metáfora de Jesus que, com seu sofrimento, resgata a todos aqueles que o acolhem. Jesus, é o pastor que cuida do “seu rebanho, com o seu braço reúne os cordeiros” (Is 40,11).

Com esse olhar nos voltamos para Marcos (1,1-8), retomando as palavras de Isaías, para falar do “mensageiro” que vem para “preparar os caminhos do Senhor” (Mc 1,3). Ele “batizará com o Espírito Santo” (Mc 1,8) a fim de que se instale a Justiça entre os seres humanos.

O mudo corrompido e a sociedade sem rumo é o espaço em que vai agir o mensageiro a fim de anunciar o “novo céu e a nova terra” (2Pe 8,13). Nesse novo mundo a justiça será uma luz guiando a todos. Todos que não estiverem cegos pelos seus próprios interesses, não estiverem cegos pela cobiça, cegos pela exploração dos pobres...

O novo mundo, crescerá por sobre os escombros da sociedade humana, destruída como o foram os montes, para “preparar os caminhos do Senhor, tornando retas as suas veredas” (Mc 1,3)

O novo mundo, onde ajustiça há de reinar, será um espaço em que os pobres não mais chorarão, pois suas necessidades serão atendidas, não por um Deus distante, mas por um Senhor que vem ao nosso encontro. E, então, não mais será necessário apelar para que o povo seja consolado, mas todos se apoiarão mutuamente, todos consolados e saciados pelo Senhor que veio para os seus.




Terceiro domingo do Advento: - 

O ESPÍRITO DO SENHOR





(Reflexões baseadas em: Isaías 61,1-2a.10-11; 1Tessalonicenses 5,16-24; João 1,6-8.19-28)








“O Espírito do Senhor Deus está sobre mim”, são as primeiras palavras de Isaías (61,1-2a.10-11), na primeira leitura deste terceiro domingo do Advento.

E se atentarmos para a sequência da leitura, veremos a explicação; o porquê da presença do Espírito: a unção, o envio e o tempo da redenção (Is 61,1-2)

A unção, nesse contexto, é uma referência ao caráter messiânico da profecia. Ao receber a unção, recebe-se também a autoridade do Senhor. Por isso o ungido é, também, enviado por Deus para uma missão definitiva: “proclamar o tempo da graça” (Is 61,2a). Ou seja, o ungido recebe a missão de perdoar e salvar. Esse é o motivo da alegria (Is 61,10): em posse do “manto da justiça” o messias (o ungido) “fará germinar a justiça” (Is 61,11). Havendo justiça, existe alegria, pois cessam os sofrimentos.

O “Tempo da Graça” é o tempo do perdão, mas isso só porque é um tempo de justiça. Só é possível o perdão mediante a possibilidade da justiça. Como o Senhor sempre é justo, cabe ao ser humano, se quiser ser perdoado, praticar a justiça, aprendendo e reproduzindo a Justiça do Senhor Justo. A justiça, portanto, é um dom divino a ser praticado e partilhado.

E em que consiste a prática da justiça? Na redenção dos cativos. No contexto em que viveu Isaías muitas pessoas eram escravizadas ou aprisionadas por dívidas. Os cativos, portanto, eram os pobres. Não tendo como saldar as dividas o pobre era feito escravo. E o tempo da graça é o tempo da remissão das dívidas, da libertação dos cativos.

Anunciar a justiça, portanto, implicava em colocar um ponto final à situação de escravidão. Era um gesto e um processo de resgate da dignidade humana. A mesma dignidade que vem sendo negada aos pobres da nossa sociedade aos quais são negados vários direitos. Basta olharmos com os olhos de cristão, para percebermos o que efetivamente ocorre ao nosso redor. Quando deixarmos de olhar o mundo, a sociedade e a relação ente as pessoas com os olhos da ganância, poderemos enxergar a degradação das pessoas que vivem na marginalidade, os empobrecidos.

Somente cumprindo essa condição é que se pode ser feliz, como orienta Paulo na primeira carta aos tessalonicenses (1Tes 5,16-24). Permanecer na alegria (1Ts 5,16) é um bom estado para se permanecer na oração e na ação de graças ( 1Ts 5,17-18). Mas isso somente é possível para aqueles que se afastam da maldade (1 Ts, 5,22). Eliminar a maldade é eliminar a degradação humana. A valorização do ser humano é a condição para permanecer “sem mancha alguma para a vinda de nosso Senhor Jesus Cristo” (1 Ts 5,23). A preparação para o Natal, para a vinda do Senhor, como podemos perceber, é um convite à valorização do ser humano.

Alguém poderia perguntar: Onde o ser humano é desrespeitado? Ao se lhe negar amplo acesso à saúde, à moradia, à escola, ao trabalho, ao direito de discordar, ao alimento… quando nós ou nossos governantes valorizamos a ostentação, admitimos leis excludentes ou dizemos que o outro é pobre por preguiça… estamos desrespeitando ou apoiando governos e pessoas que desrespeitam o ser humano. E isso não é divino. Por isso a orientação de Paulo “examinai tudo e guardai o que for bom.” (1 Ts 5,21).

Não é demais ressaltar que a obra do anticristo é mostrar a degradação como algo natural. E quando alguém apoia os geradores da degradação humana e ambiental, está apoiando o anticristo, o adversário de Deus.

Com isso em mente podemos observar a postura de João Batista (João 1,6-8.19-28). Como sobre ele pairava o espírito do Senhor, tinha autoridade “para dar testemunho da luz” (Jo 1,6). Tinha autoridade para se apresentar como a voz que gritava no deserto: “Eu sou a voz que grita no deserto: ‘Aplainai o caminho do Senhor’” (Jo 1,23).

O batista não pretendia atrair as atenções para si, numa atitude soberba de quem deseja aplausos. Pelo contrário, fugia da ostentação e, indagado sobre sua atuação, mostrava não a sua obra, mas apontava para aquele que era a luz, por ele testemunhada (Jo 1,7-8). Por não desejar ser o centro das atenções, mas para indicar o Messias (ungido), dizia não ser digno de estar aos pés daquele a quem viera anunciar: “Eu não mereço desamarrar a correia de suas sandálias” (Jo 1,27). E podia recriminar seus ouvintes: “no meio de vós está aquele que vós não conheceis” (Jo 1,26).

Talvez essa postura do Batista possa ser, também, um critério para examinarmos nossas atitudes e a daqueles pregadores que buscam os holofotes...

Conhecedor da força do Espírito do Senhor, o Batista podia dar testemunho da luz; apontando aquele que daria o Espírito santificador, podia exigir que se aplainassem os seus caminhos; em nome da luz benfazeja, sabia ser uma voz a clamando a presença do Ungido/Messias e, este sim, Senhor de todo poder, envia a todos, anunciando o tempo da redenção…

E Ele está para chegar! E quando chegar quem sabe nos dará o dom de receber os dons do Espírito do Senhor.





Quarto domingo do Advento:

FAÇA-SE EM MIM




Reflexões baseadas em: 2 Sm 7,1-5.8b-12.14a.16; Romanos 16,25-27; Lucas 1,26-38








O que deixa um pai ou uma mãe orgulhosos?

Saber que seu filho é uma pessoa destacada, bem vista, respeitada na sociedade… Saber e poder divulgar o sucesso de seu filho: Isso deixa os pais orgulhosos; e os pais gostam de fazer isso!

Mas Maria não caiu nessa. É diferente sua postura, segundo nos mostra Lucas (Lc. 1,26-38).

A jovem, “Maria de Nazaré” não entrou na onda do anjo que “rasgava” elogios ao seu filho que ainda nem era nascido e que, aliás, ainda não havia sido concebido. O anjo veio lhe pedir autorização para que a “sombra” ou “o poder do Altíssimo” (Lc 1,35) a cobrisse, para que o filho fosse concebido.

Da resposta de Maria dependeu o futuro da humanidade, pois da mesma forma que ela respondeu sim: “faça-se em mim segundo a tua palavra!” (Lc 1, 38), poderia ter dito não. Poderia ter recusado a proposta… e, certamente, Deus, em sua bondade, não a recriminaria. Ele conhece o ser humano. Sabe de quê é capaz, para o mal e para o bem!

Independentemente de sermos católicos ou de qualquer outra denominação cristã, não podemos negar que, apesar de sua pouca idade, Maria demonstrou profunda maturidade: “Faça-se em mim!”

Essa menina de Nazaré (Lc 1,26) teve uma postura exatamente oposta à de Davi (2 Sm 7,1-5.8b-12.14a.16). Ela, profundamente devota ao seu Deus, deu-se o direito de questionar o anjo: “Como se fará isso?” (Lc 1,34). Certamente ela argumentou, dizendo ao anjo: “Você me aparece, falando belas coisas a respeito de meu filho”; dizendo que ele “será grande, será chamado Filho do Altíssimo, e o Senhor Deus lhe dará o trono de nosso pai Davi” (Lc 1,32). E ela conclui seu argumento demonstrando a completa inveracidade da mensagem do anjo: “Como você pode dizer uma coisa dessas se eu nem estou grávida ainda? Aliás, ainda não se consumou meu casamento!”

Exatamente o oposto do que havia feito Davi. Numa atitude soberba o rei estava se comparando a Deus: “Vê: eu resido num palácio de cedro, e a arca de Deus está alojada numa tenda!” (2Sm 7,2). Nessa postura ostentatória engambela até o profeta que lhe dá razão: “Vai e faze tudo o que diz o teu coração, pois o Senhor está contigo”. (2 Sm 7,3).

O fato é que Deus não está na ostentação. Ele vive no meio do povo simples, humilde, empobrecido! Por isso se opôs aos planos do rei!

Não sendo um Deus de ostentação leva o profeta reformular sua postura e voltar com uma reprimenda ao rei: “Porventura és tu que me construirás uma casa para eu habitar?” (2 Sm 7,5). E o Senhor deve ter dito mais. Deve ter falado ao rei: “ponha-se em seu lugar, garoto! Afinal de contas, quem é você?” E leva o rei a uma revisão de sua história: “Fui eu que te tirei do pastoreio, do meio das ovelhas, para que fosses o chefe do meu povo, Israel.” (2Sm 7,8). E o Senhor conclui a conversa dizendo que Ele, Deus, é quem edifica e não o rei. E, no tempo oportuno, de acordo com a vontade de Deus, nascerá um filho do rei. E Deus afirma que nesse filho “Tua casa e teu reino serão estáveis para sempre” (2 Sm 7,16).

Essa promessa divina se concretiza e se torna definitiva em Jesus Cristo que “reinará para sempre sobre os descendentes de Jacó, e o seu reino não terá fim” (Lc 1,33).

A postura do rei não está adequada ao plano do Senhor. A observação de Davi expressa a vontade humana, não a sintonia com o plano divino.

Essa é a diferença entre a postura de Davi e de Maria: ele quer ostentar poder edificando a casa do Senhor. Por seu lado, questionando o anjo, Maria se coloca nas mãos de Deus: “faça-se em mim de acordo com suas palavras!”

Podemos dizer que esse é o espírito do Avento. Uma proposta de mudança de atitude.

Durante quatro semanas fomos convidados a rever nossas vidas, nossas posturas, nossos projetos… tudo que se adequar ao plano divino de simplicidade, de doação ao outro, de reformulação e reconstrução do mundo e da sociedade… tudo isso está em sintonia com o plano de Deus e adequado ao advento: em sintonia com o sim de Maria e da preparação para a vinda do Senhor. Mas, na medida em que as pessoas se colocam como centro de ostentação, como o fez Davi, estão retardando a implantação do Reino. Por outro lado, aqueles que se dedicam a preparar e ajudar a instalar o Reino, podem dizer, como Paulo (Rm 16,25-27): “Glória seja dada àquele que tem o poder de vos confirmar” (Rm 16,25) na fé, na esperança e no engajamento em favor do outro. Como nos mostrou a Mãe do Senhor.

Então, como o advento é uma proposta de reflexão, de reformulação, de redefinição, de recondução da vida…. Vamos aproveitar este tempo para reformularmos nossas vidas. Agindo assim nós nos afastaremos da postura de Davi e nos aproximarmos da doação mariana. E nós também saberemos dizer: Faça-se em mim de acordo com suas palavra.





Neri de Paula Carneiro.

Mestre em educação, filósofo, teólogo, historiador

Outros escritos do autor:


sexta-feira, novembro 24, 2023

Cristo Rei: o Filho do Homem em sua glória

Reflexões baseadas em: Ez 34,11-12.15-17; 1Cor 15,20-26.28; Mt 25,31-46)







No dia em que a Igreja celebra “Jesus Cristo: Rei do Universo”, ela pode nos dizer muita coisa e nos orientar em relação aos nossos comportamentos. Ela nos diz que Deus cuida dos seus; e nos orienta a respeito às nossas atitudes em relação às outras pessoas.

Além deste ser o último domingo do ano litúrgico, as leituras que a Igreja nos propõe para a reflexão, são um forte convite: ou estamos do lado de Deus ou estamos sem Ele. Não há meio termo. Mas o estar ou não com Deus, não depende do Senhor, mas das nossas opções. Isso fica muito claro nas palavras de Ezequiel (Ez 34,11-12.15-17). E mais nítida ainda é a afirmação de Jesus (Mt 25,31-46). As palavras do Senhor não poderiam ser mais claras: “todas as vezes que fizestes isto a um dos menores dos meus irmãos, foi a mim que o fizestes” (Mt 25,40).

O profeta mostra a disposição de Deus em cuidar de nós, seu rebanho. Ele afirma: “Eu mesmo vou procurar minhas ovelhas e tomar conta delas”. E por que o Senhor faz isso? Por que vai cuidar de suas ovelhas? Porque os pastores, aqueles que deveriam cuidar do rebanho, as dispersou; os maus pastores deixaram que as ovelhas se perdessem. E quando as ovelhas estavam perdidas o Senhor veio pessoalmente para resgatar o rebanho. Isso no-lo afirma o profeta e o demonstra Jesus Cristo com sua paixão e ressurreição.

Para socorrer as ovelhas extraviadas, feridas, enfraquecidas e doentes (Ez 34,16), o Senhor se coloca como pastor zeloso, cuidadoso, e pronto a fazer justiça (Ez 34,17). Em meio a essa situação catastrófica para com o rebanho, o Senhor, proprietário do rebanho, do curral e das pastagens… vem em defesa das suas ovelhas, mal cuidadas por aqueles que as deviam proteger. E o cuidado do Senhor, não será como a dos pastores irresponsáveis e negligentes. O cuidado do Senhor é feito em sintonia com o direito: contra os pastores negligentes e opressores exerce sua justiça; e, para completar, separa as ovelhas e dos bodes (Ez 34,17).

E em defesa dos marginalizados e sofredores, excluídos e desprezados, Jesus se coloca como Juiz. E assume essa postura não só porque é o Senhor, Filho de Deus feito homem, mas porque é o Rei e soberano do universo (Mt 25,31).

A pergunta que nos colocamos, neste ponto é: por que um Deus tão compassivo e disposto ao perdão assume sua majestade e se coloca como juiz definitivo? Ou, dizendo de outra forma: Por que o Senhor, em sua vinda gloriosa, separará ovelhas e cabritos?

A primeira resposta é a afirmação de que a convivência com os maus pastores corrompeu o rebanho. Por causa dos maus pastores muitos se afastaram da proposta inicial, apresentada ainda no livro do Gênesis: Tudo que Deus fez é muito bom; como tudo é bom e bem feito, deu aos seres humanos uma só missão: Crescer!

A segunda resposta diz respeito a cada um de nós e vale para todos os tempos. Trata-se das nossas atitudes. Noutras palavra: não é o Senhor que fará a separação, mas aquilo que tivermos realizado é que mostrará a nossa essência.

Assentado sobre seu trono de glória, Jesus, o pastor eterno, chamará a todos. Ovelhas e bodes; bons e maus. “Todos os povos da terra serão reunidos diante dele” (Mt25,32). Então é que fará a seleção. Então é que apresentará sua lista com os critérios seletivos. Então cada um olhará para aquilo que tiver realizado ao longo de sua vida, como quem olha em um espelho. Nesse momento cada um de nós olhará o espelho de sua vida...

E, então, nos veremos como somos.

E, então, não é o Senhor quem julga, mas cada um de nós é que nos aproximaremos do Senhor, em função das nossas obras; ou nos afastaremos dele, envergonhados por tudo que tivermos realizado ao longo de nossa vida.

Os atos dos nossos pais do Gênesis inseriram no mundo o germe da maldade, nos ensina Paulo (1 Cor 15,20-26.28). Mas pelos méritos de Jesus, tivemos nova oportunidade. Mas continuamos livres… podemos ou não, aderir ao projeto de Deus! A escolha é nossa!

E essa nova oportunidade, selada com o sangue na Cruz, é a face do espelho diante do qual nos colocaremos para nos olharmos em plenitude.

Esse espelho nos mostra que não é o Rei do Universo que nos julga, mas as nossas atitudes cotidianas é que nos aproximam ou mostram que nunca aderimos ao projeto de Reino. O juiz definitivo, portanto, não é o Senhor, mas nós mesmos ao percebermos se cumprimos ou não as exigências, os critérios do Reino.

O senhor está de braços abertos para nos acolher. O reflexo das nossas obras nos impulsionará para retribuirmos ao abraço definitivo; ou nos obrigará a nos afastarmos, curtindo uma eternidade de vergonha e remorsos por não termos feito aquilo que poderia sanar a dor dos menores irmãos do Senhor.

O senhor, Rei do Universo, quer a todos em seu reino… mas nem todos estão dispostos a aderir ao seu projeto…

Neri de Paula Carneiro.

Mestre em educação, filósofo, teólogo, historiador

Outros escritos do autor:


sexta-feira, novembro 17, 2023

Os talentos

Reflexão baseada em: Provérbios 31,10-13.19-20.30-31; 1Tessalonicenses5,1-6; Mateus 25,14-30




O que nos vem à cabeça quando ouvimos ou falamos ou lemos a palavra talento?

Parece que a maioria de nós pensa em uma determinada habilidade para realizar algo: fulano tem talento para a música; aquele menino tem talento para contar piada. Aquela menina é uma dançarina talentosa… Ou seja, ao mencionarmos talento, estamos nos referindo a uma qualidade; uma característica que tem a ver com algo valoroso. Um valor humano!

E o que nos vem a cabeça quando lemos, nos textos bíblicos, a palavra talento?

Parece que nos vem a cabeça a ideia de moeda, pagamento, recompensa, retribuição… Parece que nos lembramos mais de aspectos econômicos do que de habilidades. Parece que tem algo a ver com valor, sim, mas valor econômico.

Voltemos à questão: o que, exatamente, significa o talento bíblico? Essa é a questão que nos é apresentada por Mateus (Mt 25,14-30), no trecho conhecido como parábola dos talentos. Também o livro dos Provérbios apresenta as características de uma mulher virtuosa (Pr. 31,10-13.19-20.30-31), ou “talentosa” (Pr. 31,10). Até mesmo Paulo, na carta aos Tessalonicenses (1 Ts 5,1-6), chama a atenção para uma virtude, um talento, uma habilidade, que a comunidade deve preservar: a vigilância (1 Ts 5,6)

Então voltemos à questão: o que é o talento, na bíblia?

Não se trata, nem de uma moeda nem de uma virtude ou habilidade. Trata-se de uma unidade de medida de volume. Popularmente chamaríamos de peso. E, mais especificamente, o talento, correspondia ao volume que podia variar entre aproximadamente 30 a 40 quilos, dependendo do lugar e da época. Parece que no tempo de Jesus correspondia a um volume entre 25 a 30 quilos.

Poderíamos dizer, portanto, que na parábola narrada por Mateus os servos receberam, respectivamente (Mt 25,15): o primeiro, cinco talentos correspondendo a aproximadamente 150 quilos dos bens do seu patrão; o outro recebeu dois talentos, que correspondia a aproximadamente 60 quilos dos bens do patrão. E o terceiro recebeu um talento que correspondia a aproximadamente 30 quilos dos bens do patrão.

Esses bens tanto podiam ser em ouro como em prata – ou outro bem. Mas como os dois primeiros aplicaram os talentos e ao retornar o patrão repreende ao terceiro por não ter aplicado nem depositado no banco (Mt 25,27), isso nos leva a supor ou a imaginar que eram moedas de ouro ou prata. O primeiro transformou os cinco em dez; o segundo transformou os dois em quatro. E o terceiro escondeu o tesouro (afinal, trinta quilos de prata/ouro é um tesouro, é um valor alto)…

Agora, convenhamos: será que Jesus estava querendo falar a respeito de riquezas, de ouro e prata? Ou ele queria chamar nossa atenção para algo muito mais valoroso?

Com certeza não estava interessado em ouro ou prata, mas nas posturas, nos comportamentos, nas atitudes. Usa a metáfora, uma parábolas, para chamar nossa atenção em relação a uma postura muito mais importante: ser capaz de agir e não de se esconder. Importa ser capaz de realizar as obras da construção do reino e não se omitir, como o servo que escondeu o tesouro.

Isso nos é demonstrado na descrição da mulher ideal. Notemos que as virtudes elogiadas, em primeiro lugar não são os dotes domésticos, mas o fato de ser merecedora de confiança (Pr 31,11) e promotora da felicidade (Pr 31,12). Suas mãos são elogiadas, por executarem algumas tarefas (Pr 31,13.19), mas sua principal virtude é a generosidade para com o necessitado (Pr 31,20) e sua fé no Senhor (Pr 31,30).

Paulo reforça a importância da postura voltada não para os valores econômicos, mas para aqueles que podem conduzir à vida. O apóstolo não diz que os bens materiais são imprestáveis ou que sua posse é condenável. Afirma que a base da confiança não são os bens, mas a vigilância. Não basta ter tudo e acreditar que isso trará “paz e segurança” (1 Ts 5,3). A verdadeira segurança não se deposita nos bancos, mas está depositada na confiança para com o Senhor. O acúmulo dos bens, ao invés de produzir confiança e agradecimento ao Senhor, leva a acomodação e à displicência. O verdadeiro valor se manifesta na vigilância. “Portanto, não durmamos, como os outros, mas vigiemos e sejamos sóbrios” (1Ts 5,6).

E isso nos traz de volta à narrativa de Mateus. O discurso tem, sim, uma base econômica, mas a parábola, como é de sua natureza, leva para algo que está além; a parábola é uma comparação que arremete àquilo que realmente importa: fazer com que o servo (o cristão) que é fiel, ou seja, aquele que faz de sua vida uma ação transformadora para mais, possa participar das alegrias do Senhor: “Parabéns, servo bom e fiel! Como te mostraste fiel na administração de tão pouco, eu te confiarei muito mais. Vem participar da alegria do teu senhor!” (Mt 25,21.23).

Em compensação, aquele que se diz cristão, mas não faz nenhuma ação transformadora, em sua vida nem na sociedade, esse é o servo “mau e preguiçoso” (Mt 25,26). Esse merece ser descartado pois escolheu esconder sua capacidade de transformar (Mt 25,30).

E a nós, cabe nos perguntarmos: qual tem sido nossa ação? Como temos nos comportado? Qual servo nós somos? O que temos feito com nossos talentos?




Neri de Paula Carneiro

Mestre em educação, filósofo, teólogo, historiador

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quinta-feira, novembro 09, 2023

O noivo está chegando

Reflexões baseadas em: Sb 6,12-16; 1 Ts 4,13-18; Mt 25,1-13)




No meio da noite, um grito: “O Noivo está chegando!”

Não se preocupe, este não é um conto de suspense: é Mateus (Mt 25,1-13) narrando uma das parábolas de Jesus. Portanto não é um grito de medo, suspense ou terror, mas um alerta e convite para iniciar a recepção daquele que, na cultura judaica, é o centro da cerimônia. Junto com esse grito de alerta está o convite para atender ao apelo da Sabedoria (Sb 6,12-16).

A pergunta que agora se faz é: qual o significado dessa parábola, narrada por Mateus?

No livro da Sabedoria está a primeira dica: mostra algumas características da Sabedoria que, em várias passagens da Bíblia, pode ser identificada com o Espírito Santo. A primeira característica é a afirmação de que a “Sabedoria é luminosa” (Sb 6,12). Essa luz permite que ela seja contemplada e encontrada pelos que a procuram. Ela mostra-se àqueles que a desejam (Sb 6,13). Mas atenção ao detalhe: Ela não só se mostra como também “sai à procura dos que dela são dignos” (Sb 6,16).

Isso implica dizer que a Sabedoria, dom do Espírito, é compartilhada por Deus com quem a procura, mas essa busca implica na dignidade, ou seja, no merecimento.

Isso implica dizer, também, que muitos a buscam, mas são indignos dela. Esses podem até praticar atos inteligentes, ter posturas que aparentam sabedoria, mas não passam de atos interesseiros. Não se trata de sabedoria, mas de esperteza. Aqueles golpes maravilhosos efetuados pelos malandros; aquelas artimanhas e emaranhados de falcatruas dos políticos… aparentam sabedoria, mas demonstram apenas a esperteza, a capacidade de enganar. A esperteza não é uma face da sabedoria e sim uma demonstração da capacidade para enganar os outros. Isso não é divino, pelo contrário: é diabólico. É o diabo quem instrui os enganadores, malandros, mentirosos...

Cada um dos políticos que enganam o povo com belos discursos ou cada golpe dos espertalhões de plantão, não evidenciam uma expressão da sabedoria, mas uma demonstração de sua face diabólica. A esperteza é diabólica, porque não pensa no crescimento coletivo. E, por ser individualista, busca apenas a vantagem pessoal; a sabedoria é divina, porque se preocupa não com o indivíduo mas com a coletividade. A sabedoria busca a satisfação e felicidade de todos.

A sabedoria está representada pelas cinco acompanhantes do cortejo nupcial, que levaram não só as lamparinas acesas, mas também o óleo para reabastecê-las ao longo da festa (Mt 25,4). A esperteza são as cinco acompanhantes que somente levaram as tochas acesas, sem o combustível para abastecimento (Mt 25,2). A esperteza malandra aparece em sua tentativa de se dar bem e tirar proveito da sabedoria das outras, tentando ludibriá-las: “Dá, nos um pouco do seu óleo” (Mt 25,8).

Mas a sabedoria, orienta e corrige a malandragem: “Não podemos fazer isso porque, se o fizermos ficaremos todas desabastecidas e a festa perderá o brilho.” A sabedoria mostra o caminho da honestidade e sensatez: “Da mesma forma que nós fomos ao mercado e compramos, vão vocês também. Comprem o que lhes falta e todos teremos o suficiente” (Mt 25,9).

Só a sabedoria pode se contrapor aos espertalhões. Só a sabedoria pode construir a justiça e a equidade. Só a sabedoria pode desbancar os espertalhões e aproveitadores.

Aqui está um significado da parábola: Jesus mostra que as acompanhantes descuidadas, aproveitadores, não se deram bem; ao terem seu golpe desmascarado, foram obrigadas a buscar, por conta própria, a solução de sua deficiência: “vão vocês mesmas comprar o que lhes falta”. E, por estarem despreparadas; por terem tentado se aproveitar das outras; por terem deixado pra depois; por terem ido às compras fora de hora; por não estarem comprometidas com a festa… as cinco não entraram na festa de Jesus (Mt 25,12). Colheram o resultado de sua ação.

Nessa perspectiva, também podemos entender a carta de Paulo aos tessalonicenses (1 Ts 4,13-18). Nem na vida nem na morte o cristão pode se esquivar à fazer justiça. Nem na vida nem na morte há privilégios ou privilegiados. O que há é postura comprometida com a equidade e com a ordem estabelecida pelo Senhor.

E, de Jesus, ouvimos o conselho: “Vigiai, pois não sabeis o dia, nem a hora” (Mt 25,13). São necessárias a vigilância e a sabedoria. É a sabedoria que determina o grau de vigilância e o comprometimento com a chegada do Noivo, convidando a todos para a festa no céu, para a qual Jesu nos convida.

O Noivo concede a liberdade para que as pessoas não se preparem, para a festa. E, nesse caso, até tolera e aceita que se tente sanar a deficiência. Mas para isso tem que haver honestidade e não tentativa de se aproveitar do outro.

Todos são convidados para a festa. Só não temos a informação sobre o momento em que ela vai começar. Por isso, é necessária a sabedoria, sem apelar para a postura aproveitadora; por isso é necessário ver o que temos para contribuir e não só quer tirar vantagem.

É a sabedoria que vem de Deus, que é dom do Espírito… e que nos permite, quando soar o grito, acompanhar o Noivo, que é o próprio Jesus em seu regresso.

O grito vai soar, resta saber como estamos cuidando de nossas lâmpadas. Com sabedoria ou com esperteza? Quando menos esperarmos ouviremos o grito: “O noivo está chegando!”




Neri de Paula Carneiro

Mestre em educação, filósofo, teólogo, historiador

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quinta-feira, novembro 02, 2023

Finados: o sentido da morte é a vida!

(Reflexões baseadas em: João 6,37-40; Jó (19,1.23-27; Rm 5,5-11)




Na celebração do dia de Finados podemos lembrar o que Raul Seixas cantou no último verso de sua música “Caminhos”: “O caminho da vida é a morte”. Com isso, certamente, querendo nos dizer que ao ser vivo, neste mundo, não há outra alternativa: vive por um período, que pode ser curto ou longo, mas invariavelmente termina no encontro com a morte, companheira do fim da vida.

Num escrito sobre filosofia, tempos atrás, dizíamos que o sentido da vida é a morte. E, antes disso, em nosso livro, “Filosofia dos muros” mencionamos uma frase, pichada no muro de um cemitério, em Londrina: “Caminhe pela vida e encontre seu objetivo: a morte”.

Como você pode ter percebido, nestes dois parágrafos mencionamos: finados e cemitério; e por quatro vezes a palavra morte. Assim sendo: se o “caminho da vida”, o sentido da vida e o objetivo da vida encontram-se na morte, podemos nos perguntar: Qual o sentido da morte?

Aparentemente, na música de Raul Seixas e no muro do cemitério, a palavra morte está associada à ideia de término. E até a denominação de “dia de finados” está associada à ideia de fim. Finado é aquele que finalizou. Chegou ao ponto final. Terminou. Assim, o dia de finados, é o dia dos mortos, entendendo a morte como ponto final. É o dia em que se celebra os que chegaram ao final de suas vidas; aquele cuja vida terminou. Essa, de fato, é uma das faces do dia de finados.

Mas se atentarmos para a liturgia do dia de finados, ou dos “fiéis defuntos”, como a Igreja denomina este dia, notaremos que se pode desenvolver outra compreensão a respeito deste dia. Quando prestamos atenção aos textos bíblicos que a Igreja nos propõe para refletirmos sobre o “dia de finados”, notaremos que não se celebra a morte como um fim, mas como preparação para uma vida plena. Ou seja, a morte é uma porta de entrada!

No livro de Jó (19,1.23-27) a tônica é a Esperança. Por que Jó tem esperança? Ele responde: “Porque meu redentor está vivo”. E completa dizendo que no final o redentor “se levantará sobre o pó!” (Jó, 19,23-24). E conclui, sobre seu momento final: “Eu mesmo o verei, meus olhos o contemplarão” (Jó 19,27). Isso implica dizer que, haverá, sim o processo da morte, mas esse processo não é o fim. Não é o ponto final. É, no máximo, uma vírgula, para levar adiante o discurso da vida. A morte é a ponte que liga esta vida àquela preparada por Deus.

Seguindo adiante, na carta de Paulo aos romanos (Rm 5,5-11) a tônica da esperança se mantém. Escrevendo à comunidade de Roma o apóstolo afirma que “a esperança não decepciona” (Rm 5,5). E por que a esperança não decepciona? Porque ela procede da própria vida de Cristo. É a vida, morte e ressurreição de Cristo que nos fazem ter esperança. A morte de Jesus, portanto é, além de sinal de esperança, certeza da reconciliação com o Pai. Em nossa vida cotidiana, frequentemente nos afastamos de Deus, mesmo assim Ele nos oferece a reconciliação pois “fomos reconciliados com Ele pela morte de seu Filho, quanto mais agora, estando já reconciliados, seremos salvos por sua vida” (Rm 5,10). Essa, portanto é a nossa esperança: em nossas limitações podermos contar com o suporte do sangue derramado pelo Senhor, mostrando-nos que a morte não é definitiva, pois do sangue derramado nasce a vida nova na ressurreição, abrindo e mostrando-nos o caminho.

Outra indicação da transitoriedade da morte são as palavras do próprio Jesus, narradas por João (6,37-40). Jesus afirma ter vindo cumprir a vontade do Pai: resgatar a todos. “Todo aquele que o Pai me dá, virá a mim, e quem vem a mim eu não lançarei fora” (Jo 6,37). Jesus, cumprindo a vontade do Pai, é canal e caminho seguro para chegar ao Pai: “E esta é a vontade daquele que me enviou: que eu não perca nenhum daqueles que ele me deu, mas os ressuscite no último dia” (Jo 6,40). Ressurgindo da morte Jesus, nos dá sua certeza: a nós também ressuscitará.

Então o que celebramos no dia de finados, na celebração dos “fiéis defuntos”? Não celebramos a morte, mas a vida. Celebramos a certeza da vitória da vida sobre a morte. Celebramos a certeza de que, a vida presente tem prazo de validade, mas a vida que nos espera é eterna.

Além disso, também podemos celebrar nossa esperança. Não uma esperança que lança tudo para um depois indefinido, mas aquela que nos faz caminhar, que nos impulsiona. Aquela esperança que nos lança em frente na construção dos nossos projetos e no projeto definitivo junto ao Pai.

Mais ainda. Celebrar o dia de finados implica em fazer um exame de vida. E a preocupação de nossas reflexões não deveria ser com a morte, mas com a vida. A morte é certa, mas o que conta é a vida que levamos para o momento de nossa morte. Portanto não deveríamos nos preocupar com a morte ou em saber “qual será a forma de minha morte?” (como contou Raul Seixas) mas nos indagar “como estou conduzindo esta vida que me levará a uma morte?”. Depois de minha morte viverei com Deus ou sem ele?

Justamente por esse motivo a Igreja nos propõe a celebração de Todos os Santos ligada ao dia de finados. Ao celebrar todos os santos somos convidados a rever nossa vida construindo nossa santidade para, ao chegar o nosso dia de finado não caiamos no ponto final. A proposta é que em nosso dia final, tenhamos uma vida santa para entregar ao Pai.

Assim sendo, o caminho da vida, sim, é a morte; o sentido da vida, é a morte; o objetivo da vida é a morte… mas o objetivo da morte é a vida!




Neri de Paula Carneiro

Mestre em educação, filósofo, teólogo, historiador

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quarta-feira, novembro 01, 2023

Todos os Santos no sangue do Cordeiro

(Apocalipse 7, 2-4.9-14; 1 Pd 1,14-15; 1 João 3,1-4; Mateus 5,1-12a)




Por que um santo é santo? O que faz um santo ser santo?

Possivelmente seja essa a grande pergunta para a qual todos queremos uma resposta, quando celebramos o dia de Todos os Santos. E, se celebramos “Todos os Santos”, também nos perguntamos por que alguns são santos e outros não? O que diferencia um santo das demais pessoas? Ele passa a ser santo quando a Igreja o denomina ou é santo durante sua vida terrena?

Podemos iniciar compreendendo o significado da palavra “santo”. Além de significar “algo sagrado”, a palavra “santo” tem a conotação de algo ou alguém escolhido por Deus. Como se pode ver na primeira carta de São Pedro aos “eleitos conforme a presciência de Deus Pai e pela santificação do Espírito, para obedecerem a Jesus Cristo” (1 Pd 1,1). Esses “eleitos” sãos os escolhidos por Deus para formar uma “nação santa”, cono diz o apóstolo: “Vós sois a gente escolhida, o sacerdócio régio, a nação santa, o povo que ele adquiriu, a fim de que proclameis os grandes feitos daquele que vos chamou das trevas para sua luz maravilhosa.” (1 Pd 2,9).

Mas a santidade não é via de mão única. Não basta a escolha divina. Tem que ter uma resposta humana. Essa é a orientação que podemos ler na primeira carta de Pedro: “Como filhos obedientes, não moldeis a vossa vida de acordo com as paixões de antigamente, do tempo de vossa ignorância. Antes, como é santo aquele que vos chamou, tornai-vos santos, também vós, em todo vosso proceder.” (1 Pd 1,14-15). A santidade, portanto, tem a ver com as posturas, com os comportamentos do dia a dia.

Há, portanto, um chamado divino, uma escolha divina e ao ser humano, cabe dar uma resposta. Resposta que se expressa na manutenção de uma vida exemplar; cabe viver num processo de purificação e “praticar um amor fraterno sem fingimento. Amai-vos, pois, uns aos outros, de coração e com ardor”(1 Pd 1,22), orienta Pedro. Sem atos de amor ao outro, não há santidade.

A proposta à santidade vem de Deus, mas a resposta é postura humana, como ensina João, em sua primeira carta (1 Jo. 3,1-3). É necessário, da parte humana, aderir àquele que deu seu sangue purificador: “Todo o que espera nele, purifica-se a si mesmo, como também ele é puro.” (1 Jo 3,3).

A afirmação da importância da adesão, da fé, da esperança, da confiança em Jesus Cristo, pode ser lida em outro escrito joanino. No livro do Apocalipse (7, 2-4.9-14). Aí encontramos os eleitos, aqueles que aderiram ao chamado. Eles formam “uma multidão imensa de gente de todas as nações, tribos, povos e línguas, e que ninguém podia contar. Estavam em pé diante do trono e do Cordeiro; trajavam vestes brancas e traziam palmas na mão” (Ap 7,9).

E João explica o porquê dessa multidão trajar vestes brancas: isso ocorre porque eles enfrentaram e superaram a “grande tribulação”. A fé, sendo expressa em atos, tem consequências. Essas consequências manifestam-se nas tribulações da vida cotidiana. Por isso, João afirma que, ao enfrentarem, ao passarem e ao superarem, as tribulações, aqueles que formam essa multidão “lavaram e alvejaram as suas roupas no sangue do Cordeiro". (Ap 7,14).

E quem faz parte dessa multidão? Quem nos dá essa resposta é Mateus (Mt 5,1-12a), dizendo que a multidão de eleitos é formada pelos “bem aventurados”: os pobres, os aflitos, os mansos, os que desejam justiça, os misericordiosos, os de coração puro, os promotores da paz, aqueles que são perseguidos por serem justos, aqueles que são injuriados e perseguidos por causa de sua prática cristã. Todos esses são bem aventurados, são os santos, são os eleitos… são os que deram uma resposta ao chamado de Deus. Podemos até dizer mais. Os santos não são aqueles que passam a vida rezando, mas os que fazem de sua vida uma oração constante; são os que colocam sua vida a serviço dos irmãos; são os que não se calam nem se intimidam diante dos podere e poderosos que oprimem ao povo… são esses, todos, os santos porque se distinguem dos demais ao se fazerem agentes do bem contra as cruzadas do mal!

É claro que a Igreja, só para nos evidenciar alguns modelos de virtude, escolhe entre seus santos do cotidiano, alguns para nos servirem como modelos. E a esses santos dedica-lhes um dia específico. Entretanto, a celebração de todos os santos não se destina à exaltação daqueles que já mereceram o destaque dos altares. A celebração de todos os santos é dedicada aos santos do cotidiano.

No dia de todos os santos a Igreja nos convida a prestar homenagem a esses que fazem de sua vida um cotidiano de resposta ao apelo divino. Todos os batizados, são convidados a fazer isso: ser santo em seu dia a dia. Se aceitarmos a proposta, o mundo pode vir a ser melhor: será o mundo de todos os santos. Pois os santos não são santos porque fazem milagres, ou coisas extraordinárias, mas porque fazem sua vida ser extraordinária por fazer de sua vida um serviço em favor do Reino.




Neri de Paula Carneiro.

Mestre em educação, filósofo, teólogo, historiador

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quinta-feira, outubro 26, 2023

O maior mandamento

(Êxodo 22,20-26; 1Ts 1,5c-10; Mateus 22,34-40)




Quem lê a bíblia pode perceber as maravilhas que Deus faz em favor de seu povo. O livro do Êxodo está repleto de exemplos. Um deles podemos ler em Ex 22,20-26, mostrando como o Senhor toma o partido de seu povo. E lendo com um pouco mais de atenção podemos notar um detalhe: no meio do povo o Senhor toma a defesa de quem está à margem e é mal visto. O senhor faz opções sociais que vão além do status: opta pelo estrangeiro (Ex 22,20), pelo órfão e sua mãe viúva (Ex 22,21) e, principalmente, faz uma opção pelo pobre (20,24).

É maravilhosa a forma como Deus defende o indefeso; como se coloca ao lado daquele que não tem companhia; como faz questão de ameaçar aqueles que ameaçam aos fracos. Mostra que sabe usar sua mão poderosa e a força de sua ira: “minha ira se inflamará” (Ex 22,23) contra aquele que causa a dor do indefeso, diz o Senhor. Mas, por outro lado, mostra sua compaixão, mostra sua face amorosa e sua misericórdia quando defende o fraco que clama por justiça: “eu o ouvirei, porque sou misericordioso.” (Ex 22, 26).

Então, se você ouvir por aí, ou ler em algum lugar, a afirmação de que não se pode misturar a prática religiosa com questões sociais, com política… pode crer que esse faz parte do time do anticristo. Deus não é neutro. Pelo contrário, Ele toma partido contra os poderosos opressores e defende as vítimas do sistema sócio-econômico-político; ele condena a ambição dos usurários e banqueiros. “Se emprestares dinheiro a alguém do meu povo, a um pobre que vive ao teu lado, não agirás como um agiota.” (Ex 22, 24).

A postura de Deus no Antigo Testamento, defendendo o fraco, repercute na postura de Paulo, escrevendo aos tessalonicenses (1Ts 1,5c-10). O apóstolo elogia, não eventuais orações vazias, mas atitudes de solidariedade. Paulo elogia os tessalonicenses porque ouviram a Boa Nova anunciada por ele e, em seguida a comunidade tornou-se “um modelo para todos os fiéis” (1Ts1,7). O exemplo dessa comunidade foi tão convincente que passou a ser mais eficiente que a própria pregação (1 Ts 1,8), “pois todos contam como fomos recebidos por vós” (1Ts 1,9). Sua solidariedade perdurou por séculos, tanto que hoje somos convidados a olhar nossas atitudes tendo como parâmetro o que fizeram os tessalonicenses.

E se tudo isso ainda não for suficiente para demonstrar a necessidade da prática da fé, Mateus (22,34-40), mostra como Jesus subverte os valores antiquados e resume todos os mandamentos da lei e ensinamentos dos profetas (Mt 22,40. Ele mostra que todos os mandamentos se resumem em dois, que na prática é um só: trata-se do mandamento do AMOR. Um amor que, ao mesmo tempo, está voltado para Deus, sem deixar de estar voltado para o outro. Amar a Deus e amar ao próximo: essa é a lei! Isso é tudo!

E Jesus é bem específico, ao dizer que “toda a lei e os profetas DEPENDEM desses dois mandamentos”. Ou seja, não adianta nenhuma outra atitude, dita cristã, se essa outra atitude não for pautada pelo mandamento do amor.

A questão, agora, é saber o porquê dessa opção em favor do amor para com o outro; o porquê da defesa do pobre, do fraco, do injustiçado… A resposta está no fato de que são vítimas do sistema, estão em situação de vulnerabilidade, não têm quem os defenda. E estão nessa situação por que estão abandonados.

E não tem como negar: A existência de pessoas não amadas, sofrendo, sendo vítimas de todo tipo de espertalhão é um fato. Por isso o Livro Sagrado fala em sua defesa. E a lei, ou a nova lei, vale enquanto persistirem as situações contra as quais ela foi criada. Enquanto existirem pessoas sendo enganadas, ludibriadas, extorquidas, roubadas em seus direitos… vale advertência do livro do Êxodo: quando o pobre gritar em seu sofrimentos “eu ouvirei seu clamor. Minha ira se inflamará, e eu vos matarei à espada” (Ex 22,22-23).

Com isso tudo em mente a questão que se nos apresenta não poderia ser outra: qual a nossa preferência: viver na graça do Senhor e trabalhar por um mundo solidário ou ser destinatário de sua ira? Para viver na graça é necessário que cada um de nós aprendamos a respeitar, valorizar e amar aqueles que convivem conosco. Mas tem um detalhe: não foge da ira do Senhor aquele que se faz de bonzinho apenas por medo da sua ira. É necessário ser justo e honesto em todas as nossas atitudes porque isso é certo a fazer.

E se alguém ainda estiver pensando que não se deve misturar religião com a busca pela justiça sócial, que é uma questão política, então essa pessoa não deve ser levada a sério. Ela ainda não entendeu que o Senhor fala pela bíblia, ou faz parte do time do anticristo. Por outro lado, se queremos levar a sério aquilo que o Senhor ensina temos que fazer valer o maior mandamento...




Neri de Paula Carneiro

Mestre em educação, filósofo, teólogo, historiador

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quinta-feira, outubro 19, 2023

A Deus o que é de Deus

(Isaías 45,1.4-6; 1Tessalonicenses 1,1-5b; Mateus 22,15-21)



Quais os planos de Deus? Quem é escolhido por Deus? O que deve ser ofertado a Deus?

A primeira indagação tem a ver com o profeta Isaías (Is 45,1.4-6). Nestes poucos versículos o profeta mostra como Ciro, rei persa, um estrangeiro, é visto e apresentado como emissário de Deus.

O contexto é o final do período exílico. Ciro acabara de vencer os babilônios e o profeta vê nisso um indício de que o fim do cativeiro está próximo, pois o jovem rei está vencendo seus inimigos. E, do ponto de vista político, trata-se de uma leitura simples: derrotando os adversários, Ciro pode a ser visto como aliado do povo hebreu. Portanto os dados históricos e políticos são fáceis de entender.

Entretanto a questão é anterior. É saber qual o propósito de Deus em permitir que seu povo tivesse sido dominado e exilado. A resposta histórica: porque o império babilônico estava em expansão e os descendentes de Abraão estavam em decadência moral e política. Mas do ponto de vista religioso, entende-se que o cativeiro ocorreu porque os dirigentes do povo se corromperam, aderiram a outros deuses e aceitaram os valores das nações dominantes. Ou seja, a corrupção da classe dirigente respingou malefícios sobre o povo.

Como o Senhor não abandona os seus, Isaías vê em Ciro o enviado de Deus, para purificar o povo, depois de “dobrar o orgulho dos reis” (Is 45,1). O rei persa é escolhido pelo nome, “por causa de meu servo Jacó, e de meu eleito Israel” (Is 45,4), diz o Senhor que sempre se apresentou como único Deus (Is 45,5-6).

Qual o plano de Deus? Apresentar-se: “Eu sou o Senhor, não há outro”(Is 45,6).

Paulo (1 Ts 1,1-5) acrescenta novo ingrediente: mostra que esse único Deus é, também, trino. E por ser trino é uma comunidade e mobiliza a comunidade dos crentes para a união e a oração. E Paulo constata isso em Tessalônica. A comunidade está, “reunida em Deus Pai e no Senhor Jesus Cristo” (1 Ts 1,1) e se mantém produzindo frutos os frutos da fé que é “o esforço da vossa caridade e a firmeza da vossa esperança” (1Ts 1, 3), mediante a “força que é o Espírito Santo” (1Ts 1,5). É a ação da trindade que mantém a comunidade.

Paulo mostra, dessa forma, que além do estrangeiro Ciro ser escolhido pelo Senhor, o próprio Senhor se manifesta aos estrangeiros, pois a comunidade cristã de Tessalônica é uma comunidade de uma cidade grega. Ou seja, a Igreja que nasceu do sangue do cordeiro, tem vocação para ir além das fronteiras. É uma igreja missionária. Não é de Israel, é do mundo!

Sendo uma comunidade missionária, o que a Igreja pode entregar a Deus?

Evidentemente não é a atitude vil dos representantes do povo, como mostra Mateus (Mt 22,15-21). Aqueles que se fazem dirigentes do povo traçam planos para enganar e angariar proveito próprio. O exemplo está aqui: adversário como fariseus e herodianos (Mt 22,15-16) são capazes de se unir para praticar maldades. Ocorria lé e continua aqui: partidos adversários que se unem para enganar o povo alcançar o poder… e usufruir dos benefícios do poder.

Esse exemplo nefasto se perpetuou e muitos daqueles que, atualmente, são ou pretendem ser representantes do povo manobram para enganar à população. Da mesma forma que tentaram enganar a Jesus. Aqueles foram desmascarados pelo Mestre. Cabe a nós, nos dias atuais, não nos deixarmos levar na onda dos espertalhões. Desmascarar aqueles que nada plantam junto ao povo, mas em jogadas eleitoreiras querem colher votos dos desavisados.

É claro que o imposto devido, se justo e retornável em forma de benefícios sociais, devem ser pagos. Por isso, Jesus admite que se deve dar “a César o que é de César”. Isso porque o cristão não está aqui para desestabilizar o sistema. Mas, por outro lado, o cristão é aquele que dá “a Deus o que é de Deus.” (Mt 22,21).

Em que consiste isso?

Trata-se de manter uma atitude, ao mesmo tempo orante e atuante na sociedade. Deus não perde nem lhe é acrescentado nada, quando as pessoas APENAS se prostram em recitações mecânicas, em orações estardalhosas ou nos retiros desconectadas da caridade. Ao Senhor importa a atitude e a postura diante e ao longo da vida, como Paulo elogiou entre os Tessalonicenses: oração e caridade (1Ts 1, 3).

Isaías diz que Ciro, o persa, deu a liberdade ao cativos. Paulo assegura que os tessalonicenses deram, “a atuação da vossa fé, o esforço da vossa caridade e a firmeza da vossa esperança” (1Ts, 1,3). A postura de Ciro e a dos tessalonicenses foi semelhante: fizeram algo pelo outro. A a libertação, a fé, a caridade e a esperança tinham o objetivo de ajudar.

O que se deve ofertar a Deus, muito mais que orações vazias de ação, são as ações em forma de oração. Isso é o que faz, o que ensina e o que move o cristão: a fé que se manifesta em oração; a oração que se traduz em caridade e a caridade regando sementes de esperança...




Neri de Paula Carneiro

Mestre em educação, filósofo, teólogo, historiador

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sexta-feira, outubro 13, 2023

O traje de festa e os poucos escolhidos

(Isaías 25, 6-10a; Filipenses 4,12-14.19-20; Mateus 22,1-14)



Quem deve ser convidado para uma festa de casamento? Para isso, o traje é importante?

Essa parece ser a pergunta que Mateus (22,1-14) nos coloca ao nos apresentar o Reino de Deus numa situação festiva. Nesta narrativa o rei prepara a festa para o casamento de seu filho (Mt 22,2). Emite os convites (Mt 22,3). Mas os destinatários recusam ou desdenham do convite e dedicando-se a outros afazeres (Mt 22,4-6).

Entretanto o casamento e a festa não poderiam deixar de acontecer apenas porque os primeiros convidados não compareceram; ou não foram “dignos” de estar presente (Mt 22,8). Então o rei, abre as portas e convida outras pessoas (Mt 22,9-10) e a festa acontece.

Note-se que não é uma festa qualquer: é o casamento do filho do rei. E nisso estão presentes dois momentos importantes

O primeiro é a alegria de conviver e comemorar. O fato de estar juntos na alegria pode ser visto como um sinal do paraíso, a felicidade plena. A comemoração tem relação com a saciedade e a convivência com a vida em comum: neste mundo preparando o definitivo.

O segundo é o fato do casamento. Não se trata apenas da alegria da vida em comum ou de estar juntos. Diz respeito à corresponsabilidade do ser humano no projeto da criação. Não é só um homem e uma mulher entregando-se por amor, mas é Deus compartilhando com o casal a responsabilidade pela continuação da vida. O casamento, portanto é uma extensão da obra criadora de Deus, sendo prosseguida na complementariedade do casal que se entrega. A festa é um sinal do amor de Deus manifestando-se no amor das pessoas.

Por causa dessa vida em comum, prenúncio do paraíso e da complementariedade da obra da criação presente no casamento, o rei da parábola fez questão de que sua sala de festas estivesse cheia de convidados. Por isso, a insistência que seus servidores saíssem às ruas convidando a todos para se fazerem presentes: queria alegria e compromisso com o outro.

Esse convite é feito pelo próprio Deus, como o monstra Isaías (25, 6-10a). É o convite para o paraíso; um encontro definitivo, com o Senhor. Quando ele “eliminará para sempre a morte e enxugará as lágrimas de todas as faces” (Is 25,8). Trata-se de um convite “para todos os povos” participarem de “um banquete de ricas iguarias”. Nessa festa não haverá sofrimento. Apenas “um banquete de ricas iguarias, regado com vinho puro” (Is 25,6).

O critério, a porta de entrada ou a roupa adequada para a participação nessa festa de Deus é a solidariedade. O ingresso para a festa definitiva é a atenção à necessidade do outro. Isto é Paulo quem diz (Fl 4,12-14.19-20). Ele, ao suportar as dificuldades, ensina como sobreviver nas dificuldades, pois a força está não nas coisas que se pode ter, mas naquele que dá a força: “tudo posso naquele que me dá forças” (Fl 4,13). A importância da solidariedade, ensina o apóstolo, consiste no fado de, ao partilhar com quem precisa, ter em Deus a recompensa: “Fizestes bem em compartilhar as minhas dificuldades” (Fl 4, 14). Àquele que se solidariza “Deus proverá esplendidamente com sua riqueza a todas as vossas necessidades, em Cristo Jesus.” (Fl 4,19).

E assim voltamos à festa oferecida pelo Rei, para a qual os primeiros convidados deram as mais divergentes respostas, recusando o convite; mesmo assim o rei encheu sua sala de festas. Com quem? Com os marginalizados que aceitaram o convite.

E aqui surge um episódio intrigante. Depois de tanto insistir para que a sala estivesse repleta de convidados, parece estranha a atitude do rei mandando retirar da festa aquele que ali se encontrava “sem o traje de festa” (Mt 22,11-12).

Para entender isso, um pouco de atenção. Todos são convidados. Todos podem entrar na sala de festa. Porém, durante a festa, o rei dirige-se àquele sem o devido traje. E depois de interpelar o convidado o rei o manda retirar da sala (Mt 22,13). Por qual motivo?

Aparentemente é a ausência do traje adequado. Mas se os convidados estavam pelas “encruzilhadas dos caminhos” (Mt 22,9), seguramente também não trajavam roupas de festa. Então o que ocorre?

Ocorre que o rei questiona o convidado: “Amigo, como entraste aqui sem o traje de festa?” (Mt 22,12). A ausência do traje foi o motivo do questionamento, mas o interpelado nada responde. Se não ocorreu a resposta não houve interação. E se não acontece interação, entre os convidados, a festa perde o sentido.

A festa é para todos, diz Isaías (25,6). “Ide até às encruzilhadas dos caminhos e convidai para a festa todos”, diz Mateus (22,9). Mas antes da festa, no cotidiano, deve ocorrer a partilha solidária, diz Paulo (Fl 4,14). Esse é o traje adequado para a festa que Deus oferece. Faltando isso, falta interação. E se falta interação, não ocorre a alegria da festa, nem a participação e compromisso com o projeto da criação. A ausência desse comprometimento produz a escuridão e o choro pelo vazio da existência.




Neri de Paula Carneiro

Mestre em educação, filósofo, teólogo, historiador

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domingo, outubro 08, 2023

Nossa Senhora Aparecida

Além do dia das crianças, no dia 12 de outubro os católicos também comemoram o dia de Nossa Senhora Aparecida.

Quando se fala isso, não são poucas as pessoas que argumentam: “Não entendo: Tem Nossa Senhora de Fátima, Nossa Senhora de Lourdes, Nossa Senhora do Carmo, Nossa Senhora de Guadalupe… e Nossa Senhora Aparecida, além de outras. Afinal de contas, quantas Nossas Senhoras existem?”

A resposta é esta: só existe uma. É sempre a mesma Maria de Nazaré, mãe de Jesus. Essa é a Nossa Senhora. É Nossa Senhora por ser mãe de Nosso Senhor, como canta o Padre Zezinho:

“O povo te chama de Nossa Senhora por causa de Nosso Senhor.
O povo te chama de Mãe e Rainha porquê Jesus Cristo é o Rei do céu.
E por não te ver como desejaria, te vê com os olhos da fé, por isso ele coroa a tua imagem Maria: Por seres a mãe de Jesus, Por seres a mãe de Jesus de Nazaré.
Como é bonita uma religião que se lembra da mãe de Jesus.
Mais bonito é saber quem tu és: não és deusa, não és mais que Deus, mas depois de Jesus, o Senhor, neste mundo ninguém foi maior”

Como podemos ver, a canção nos explica o porquê da devoção a Nossa Senhora: por ser a mãe do Nosso Senhor; é rainha porque Jesus é o Rei dos céus; não é deusa, nem maior do que Deus. A devoção mariana existe porque neste mundo ninguém a superou: só ela teve a graça de carregar Deus em seu ventre, motivo que nos leva a repetir com Isabel: “bendito é o fruto do teu ventre”. Nós a veneramos por nos ter dado Jesus como “presente de Natal”!

Mas, antes de entendermos as “tantas nossas senhoras”, vamos entender porque fazemos preces a Maria, mãe de Jesus. É a mesma canção do pe. Zezinho que explica:

“Aquele que lê a palavra Divina por causa de Nosso Senhor
Já sabe que o livro de Deus nos ensina que só Jesus Cristo é o intercessor
Porém se podemos orar pelos outros, a Mãe de Jesus pode mais
Por isto te pedimos em prece oh! Maria, que leves o povo a Jesus
Porque de levar a Jesus entendes mais”

Só Jesus leva ao Pai, mas a mãe leva ao Filho e seu filho é Jesus. Ela o levou, ou seja, carregou Jesus em seu ventre, por isso pode nos levar, ou seja, conduzir a Jesus. E só Ele nos leva ao Pai. Aliás esse é sentido do texto do Evangelho (Jo 2, 1-11) que a Igreja nos convida a refletir no dia de Nossa Senhora: Maria viu que havia um problema: o vinho estava acabando. Não teve dúvidas, foi até Jesus como a mãe que vai ao filho: “Eles não têm mais vinho” (Jo 2,3).

Podemos até pensar que Jesus foi grosseiro com sua mãe. Mas Ele somente argumentou, nestes termos: “O que você está me pedindo, mãe? Minha hora ainda não chegou. Mas pode deixar que dou um jeito” (Jo 2,4). E ela, conhecendo o filho que educara, com a certeza de que o filho atende à mãe, dirigiu-se aos garçons: “Confiem no meu filho. Ele vai tirar vocês do apuro. Vai salvar a festa e o casamento. Façam o que ele disser” (Jo 2,5). E repete, diariamente, para nós: “faça o que ele ensinou!” e, seguramente acrescenta: “Não faça por mim, faça por Ele. Ele é o Senhor!”

A postura de Maria, na festa de Caná, foi semelhante à atitude da rainha Ester (5,1b-2; 7,2b-3): ambas são intercessoras em favor do povo. Maria intercede em favor da felicidade do casal, pois a família é importante. Tão importante que começa numa festa. E Maria intercede para que a festa continue e a família possa iniciar sem contratempos. Da mesma forma Ester, intercede pela vida de seu povo: "Se ganhei as tuas boas graças, ó rei, e se for de teu agrado, concede-me a vida - eis o meu pedido! - e a vida do meu povo - eis o meu desejo!” (Es 7,3).

E assim chegamos aos títulos de Nossa Senhora. A mesma e única Maria de Nazaré, cultuada, venerada, admirada, amada de várias formas. Por ensinar a rezar: Nossa Senhora do Rosário; Por ser luz no caminho das pessoas: Nossa Senhora das Candeias. Por ter se manifestado nas localidades de Fátima, Lourdes: Nossa Senhora de Fátima e Nossa Senhora de Lourdes. Por ser protetora e defensora dos índios: Nossa Senhora de Guadalupe, manifestando-se em Guadalupe, no México. E Nossa Senhora Aparecida, a imagem encontrada no rio pelos pescadores apareceu preta, a cor da pele dos escravizados. Por isso o povo a reconheceu como protetora da nação brasileira. Não que não olhe por todos, mas ela escolheu se manifestar entre os pobres, pescadores, escravizados… vítimas dos exploradores que vivem nos palácios e nas casas grandes. Essa é a Nossa Senhora Aparecida: apareceu em favor dos que dela precisavam. E continua a ser amada pelos brasileiros porque nosso povo ainda precisa da intercessão da “advogada nossa”.

Nos dias que estamos vivendo, com tanto sofrimento no meio do povo, podemos nos apegar com Maria, a Nossa Senhora e, talvez, devamos confiar mais nela. Talvez devamos nos dirigir a Maria, não como quem vai ao mercado, mas como o filho que confia na mãe. Talvez devamos confiar na mãe de Jesus como confiaram os garçons de Caná e os pescadores do rio Paraíba do Sul.

E vamos pensar juntos: se podemos manter uma boa relação com Maria, seguramente teremos boa amizade com seu Filho; uma relação de amizade, a partir da qual podemos até dizer que somos da família do Pai, do Filho e do Santo Espírito, pois a mão já nos adotou.

E se ainda temos alguma dúvida, vamos, novamente, cantar com os versos do pe. Zezinho:

“Quero lembrar os fatos que aconteceram naquele dia
Quando por entre as redes, aquela imagem aparecia
Vendo surgir das águas a tosca imagem de negra cor
Agradeceram todos à mãe de Cristo por tanto amor!

Quero entender o culto que começou, desde aquele dia
Muitos não compreendem, dizendo ser uma idolatria
Mas neste simbolismo daquela imagem, de negra cor
Chega-se com Maria ao santuário do salvador!

Torno a lembrar os fatos que agora tocam a tanta gente
Esta senhora humilde, de cor morena, se fez presente
Numa nação, aonde imperava a mancha da escravidão
Nossa Senhora escura nos diz que o Cristo nos quer irmãos”

O centro de nossa fé é o Deus Trindade. Sem não existe cristianismo. Mas uma das pessoas da Trindade Santa veio nos visitar. E fez questão de nascer, feito homem, de uma mulher: e Maria era seu nome. Então, em honra ao Filho podemos agradecer à mãe e, como ela fez, que tal olhar para Deus de mãos dadas com o povo que gosta da mãe de Deus?




Neri de Paula Carneiro

Mestre em educação, filósofo, teólogo, historiador

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quarta-feira, outubro 04, 2023

O Reino de Deus vos será tirado

(Isaías 5,1-7; Filipenses 4,6-9; Mateus 21,33-43)





Que espera o agricultor, quando lança a semente ao chão? Que espera o operário, ao fim de um período de trabalho? Que esperam os pais, depois dos filhos crescidos? Que espera o professor, ao longo da jornada de ensino? Que espera alguém que faz planos e projetos para sua vida e seu viver…? O que esperar…?

As condições para um bom relacionamento entre as pessoas; para a felicidade da família; para o pleno desenvolvimento das pessoas; para um mundo justo; para a plenitude humana; para a harmonia entre os diferentes… Para haver sucesso nessas e noutras situações, as condições nos são dadas. São dons divinos em nós e para nós. E o quê fazemos com tudo que nos é entregue, gratuitamente, pelo Senhor da vida?

Essas situações e indagações nos são apresentadas quando Isaías (5,1-7) fala sobre o vinhedo que só “produziu uvas selvagens”, mesmo depois da terra ter sido preparada para “que produzisse uvas boas” (Is 5,2).

As condições para a implantação do bem, são dadas como graça divina em plenitude. Tanto que o Senhor se pergunta: “que mais poderia eu ter feito?” (Is 5,4). Uma pergunta que, na verdade, é uma afirmação: “já fiz tudo”. Ou seja, a plenitude da graça é dada, mas as pessoas preferem recusar o dom recebido. Em Isaías, o vinhedo é o povo de Israel que está, cada vez mais, afastado dos caminhos do Senhor. Por isso o anúncio da devastação (Is 5,5-6).

Os dirigentes do povo causaram a ruína do povo. “Eu esperava deles frutos de justiça - e eis injustiça; esperava obras de bondade - e eis iniquidade.” (Is 5,7). Mas o povo também erra, pois segue dirigentes inescrupulosos. Por esse motivo todos sofreram as consequências. Lá se concretizou como a ruína da nação, invadida por uma potência estrangeira. E a consequência definitiva foi o “cativeiro na Babilônia”. Em nossa atualidade a consequência depende de como respondemos a estas indagações: como estão agido nossos dirigentes? Nós, os seguimos no mar de corrupção ou lutamos por um país melhor? E se lutamos por algo melhor por que eles continuam lá? É necessário darmos uma resposta, sob pena de sermos igualados às videiras que só produziram uvas imprestáveis.

Na narrativa de Mateus (21,33-43), da mesma forma que Isaías, Jesus fala aos “sumos sacerdotes e os anciãos do povo”: os dirigentes do povo (Mt 21,41). Mas Jesus vai além do profeta. Ele mostra que o problema não está no parreiral, que é o povo; nem do proprietário do plantação, que é o Senhor. O problema está nos vinhateiros, que são os dirigentes. Esses mataram os enviados (os profetas) do dono da vinha (Mt 21,35-36) e também mataram o filho do proprietário. Tudo com o propósito de roubar a herança (Mt 21,38). Todas as ações dos dirigentes do povo foram desonestas. E sua desonestidade causou dificuldades para o povo que acabou sendo iludido pelos seus dirigentes.

Que fazer com esses administradores desonestos?

Na proposta de Isaías, perderam a nacionalidade e foram exilados. Porém, depois de quatro décadas de exílio o Deus clemente e pleno de graça e perdão, concede o retorno, com objetivo de reestruturar a fé, desenvolvendo a esperança na vinda do Messias.

Ocorreu que os novos dirigentes, que deveriam reconhecer o Messias não o fizeram e, perderam, não só o território, mas a primazia de ser luz do mundo. Em resposta à perversidade dos dirigentes, Mateus anuncia a sentença: “O Reino de Deus vos será tirado e será entregue a um povo que produzirá frutos.” (Mt 21,43). E assim nasce uma nova fé: a crença daqueles que seguem Jesus, os cristãos encarregados de construir um mundo de justiça.

Querendo evitar que este novo povo se desvirtue, Paulo (Fl 4,6-9) faz recomendação e dá as diretrizes. O objetivo é que essa comunidade possa crescer, não só na caridade mas, principalmente, na justiça, pois é assim que se manifesta e se demonstra a fé. E o apóstolo, constatando que na comunidade de Filipos existem alguns problemas, faz a recomendação: “Quanto ao mais, irmãos, ocupai-vos com tudo o que é verdadeiro, respeitável, justo, puro, amável, honroso, tudo o que é virtude ou de qualquer modo mereça louvor.” (Fl 4,8).

Paulo sabia que até isso poderia não ser entendido ou seguido, por isso diz algo como: “Em vez de fazer as besteiras costumeiras, façam aquilo que ensinei.” Nas palavras do apóstolo: “Praticai o que aprendestes e recebestes de mim, ou que de mim vistes e ouvistes. Assim o Deus da paz estará convosco.” (Fl 4,9).

Noutras palavras, e agora acolhendo para a nossa vida, nossa comunidade, nossa sociedade: a proposta do dono da vinha é que se faça uma boa produção que consiste na pratica do amor, da justiça, da caridade… e se nós também, não oferecermos a Deus esses frutos, a consequência já está estabelecida: “o Reino de Deus vos será tirado”. Então, o que esperar dos cristãos?





Neri de Paula Carneiro


Mestre em educação, filósofo, teólogo, historiador


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terça-feira, outubro 03, 2023

A raposa tinha razão ou sobre o contexto da palavra.

E a raposa tinha razão. Quando as palavras não são lidas nem ouvidas em seu devido contexto elas geram mal entendido. DESCONTEXTUALIZADA, tanto a Palavra de Deus como a palavra humana, passa a servir não a Deus, mas ao inimigo.

Ocorre que numa das páginas de o “Pequeno Príncipe” a raposa disse ao princepezinho: “As palavras são uma fonte de mal entendidos”. Parece que a raposa estava querendo explicar o perigo da descontextualização das palavras. Aí elas conduzem ao erro. E se isso ocorrer a pessoa está servindo ao inimigo.

Descontextualizando a Palavra de Deus, criamos todas as falsas doutrinas; supervalorizamos nossas crenças pessoais; endeusamos nossos pregadores e desacreditamos aqueles que nos falam verdades. Dizem a verdade aqueles que são abertos ao diálogo e não aqueles que dizem o que desejamos ouvir.  Se nos trancarmos ao diálogo incorremos em erro de sintonia. Agindo assim geramos contenda e divisão e passamos a servir ao inimigo.

Descontextualizando o que dizem as pessoas criamos fofocas, criamos atritos, criamos divisões, criamos aquele clima insustentável de estigmatização das pessoas, de marginalização de pessoas, de segregação de pessoas. Com isso se alimentam os preconceitos, a intolerância… A palavra humana, e mais ainda a Palavra divina, tem força e deve ser usada para selar uniões, criar pontes e quando não fazemos isso prestamos serviço ao inimigo.

Descontextualizando o que Deus fala e o que as pessoas falam demonstramos nossa mesquinhez e evidenciamos que somos lentos em compreender; mostramos que somos capazes de louvar "com os lábios mas não com o coração" (Mt 15,8). Não foi a toa que Jesus se revoltava com os fariseus e doutores da lei. Eles até costumavam atar tiras de pergaminho com os preceitos da Torá em seus turbantes. Faziam isso para “ter a lei diante dos olhos”, descontextualizando a orientação de Dt 6,8, sem observar o significado do preceito. Não serviam a Deus, mas ao inimigo.

Os discípulos de Jesus, quando não entendiam o que o Mestre falava, perguntavam-lhe, ou lhe pediam: “Explica-nos...” (Mt 13,36). Quando alguém diz algo que não concordamos ou não entendemos, se somos de Deus, pedimos explicações e não geramos divisões. Porém 
quando lemos ou ouvimos algo fora do contexto, e não nos preocupamos com a contextualização somos levados ao erro. E o erro é coisa do inimigo.

Só o amor e o entendimento e a caridade e a sinceridade e o respeito e o diálogo… vem de Deus! Tudo o resto vem do inimigo.



Neri de Paula Carneiro

Mestre em educação, filósofo, teólogo, historiador

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quarta-feira, setembro 27, 2023

Para a glória de Deus Pai

(Ez 18,25-28; Fl 2,1-11; Mt 21,31)




Qual é a conduta correta? Por que Cristo foi exaltado? Quem faz a vontade do Pai? Estas perguntas nos ajudam a entender não só quem é Jesus Cristo como também a Igreja derivada da ação dos apóstolos. Sendo assim, como respondê-las?

Ezequiel (18,25-28) ajuda a responder. A conduta correta é arrepender-se da maldade e praticar a justiça. Dessa forma, é possível conservar a vida. O profeta explica: quando alguém se “desvia da justiça, pratica o mal e morre, é por causa do mal praticado” (Ez 18,26) que ele morre. Em que consiste esse “praticar o mal”? Em gerar situações de morte...

Cabe ressaltar que a morte à qual o profeta está se referindo, diz respeito ao distanciamento completo de Deus na vida terrena. Notando que essa morte eterna é consequência do estilo de vida aqui na terra. Talvez por isso é que se diz que o mal que atrai o mal; e o bem atrai o bem! Portanto, se você ainda não entendeu de que mal o profeta está falando, Jesus dá a resposta, nos termos do profeta: não cumprir a vontade do Pai.

O que nos leva à indagação sobre o porquê de Cristo ter sido exaltado. A resposta vem de Paulo (Fl 2,1-11). Cristo foi exaltado porque não se apegou ao seu ser igual a Deus (Fl 2,6). Ele abriu mão de tudo para se igualar a nós (Fl 2,7). Mais ainda, não só se igualou a nós, como se entregou à morte por nós. “E morte de cruz” (Fl 2, 8), explica o apóstolo. A morte de Cristo, portanto, é uma morte redentora, que pode conduzir à vida, ou seja à convivência definitiva com Deus. Mas só é morte redentora para quem não fez de sua vida uma corrente para o mal, maltratando a vida dos outros.

Sua morte “pode conduzir à vida” porque essa convivência definitiva com o Senhor, não depende de Deus, mas de cada indivíduo. A decisão é pessoal. Deus oferece. Nós aceitamos ou recusamos, como fizeram os irmãos, mencionados por Mateus (21,28-32).

Então, por fim, quem faz a vontade do Pai?

Há que se entender a postura dos dois irmãos, mencionados por Mateus. Eles agiram diferentemente das respostas que deram ao seu pai. Falam o oposto daquilo que realmente executam. A partir disso Jesus pergunta aos representantes do povo: “quem fez a vontade do pai?” (Mt 21,31) E os representantes do povo, mesmo não fazendo o que é sua obrigação fazer, sabem responder corretamente. Fez a vontade do pai aquele que diz não, mas executa o trabalho. Lá eles sabiam a resposta correta, mas não estavam tendo a postura correta. Sabiam como conduzir o povo para Deus, mas agiam como se isso não tivesse importância.

E Jesus os repreende, não por causa de sua resposta, mas por causa de sua postura. Não adianta saber o que se tem que fazer, mas não realizar essa obra. A mesma repreensão é dirigida às atuais lideranças políticas e religiosas. O mesmo que Jesus lhes disse, cabe hoje: “os pecadores e as prostitutas vos precedem no Reino de Deus”, e vocês sabem o porquê!

Neste ponto, não é demais reiterar a afirmação de que é necessário tomar cuidado para não realizar algo que deve ser feito por “competição ou vanglória”. As obras do bem não são realizadas para mostrar a capacidade de fazer o bem, como orienta Paulo: “Nada façais por competição ou vanglória mas, com humildade, cada um julgue que o outro é mais importante” (Fl 2,3). Além disso, a boa ação para o outro deve ser “para o outro” e não uma ação/ajuda pensando na retribuição que se pode receber. Se o bem é feito pensando na retribuição, não é um bem, mas uma troca de favores; e quem o fez não fez para o outro, mas para si mesmo...

Isso implica dizer que não é o fato de poder ostentar o bem realizado que conta; também não importa saber do bem a realizar sem, no entanto, fazê-lo. Nessas circunstâncias não há mérito naquilo que se realiza. Para o Senhor importa não o que se sabe ou o que se mostrou…, mas o que vai no coração. Isso é o que ensina Ezequiel ao dizer que “Quando um justo se desvia da justiça, pratica o mal e morre, é por causa do mal praticado que ele morre. Quando um ímpio se arrepende da maldade que praticou e observa o direito e a justiça, conserva a própria vida.” (Ez 18, 26-27). No caso dos irmãos: não fez a vontade do pai aquele que concordou com ele, mas o filho que depois de discordar executou o que o pai pedira.

Mas, então, qual é a conduta correta? Por que Cristo foi exaltado? Quem faz a vontade do Pai? E a resposta encontramos na pessoa de Jesus Cristo, sua conduta é a correta porque cumpriu com a vontade do Pai e por esse motivo foi exaltado, ensina Paulo na carta aos filipenses. E isso também mostra como é a Igreja de Jesus Cristo. Ela é convidada a ter “os mesmos sentimentos que havia em Jesus”. Uma Igreja onde não haja senhores e nem escravos; não existam poderosos nem oprimidos; onde aquele que tem mais reparte com os que precisam não para evidenciar suas posses e humilhar o necessitado; onde o “irmão” não é só mais uma palavra, ou uma forma de tratamento, mas uma comunidade na qual todos o sejam de fato, a fim de que “para glória de Deus, o Pai, toda língua confesse: Jesus Cristo é o Senhor!”

Podemos não entender o que Deus nos reserva, mas isso não nos impede de realizar sua vontade. E, além disso, todo aquele que se ocupa em fazer algo pensando no outro, esse tem a aprovação divina, pois está realizando a vontade do Pai.




Neri de Paula Carneiro

Mestre em educação, filósofo, teólogo, historiador

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quinta-feira, setembro 21, 2023

O que for justo

(Isaías 55,6-9; Filipenses 1,20c-24.27a; Mateus 20,1-16a)






Em que consiste o pagamento justo? Quem paga o que é justo? Qual é a justiça no pagamento do salário? Estas indagações nos chegam a parir da proposta de Jesus (Mt 20,1-16a) falando de um patrão que, ao longo do dia, contratou trabalhadores em diferentes horários e, ao final do expediente, a todos deu o mesmo pagamento.

Esse gesto do patrão, pagando a todos igualmente, independentemente do tempo trabalhado, gerou descontentamento entre os operários, pois os últimos só trabalharam uma hora e receberam tanto quanto os que haviam trabalhado a jornada inteira. “Ao receberem o pagamento, começaram a resmungar contra o patrão: ‘Estes últimos trabalharam uma hora só, e tu os igualaste a nós, que suportamos o cansaço e o calor o dia inteiro’” (Mt 20,11-12).

Essa parábola intriga muitos de nós. Com certeza, damos razão aos trabalhadores resmungões, com o argumento: se quem trabalhou uma hora recebeu uma diária, aquele que trabalhou o dia inteiro deveria receber muito mais. Entretanto, só pra relembrar, este é o pensamento capitalista. Economicista. Interesseiro. Egoísta… não é a postura justa e cristã!

Neste ponto é que se encaixam nossas indagações iniciais: em que consiste o pagamento justo? Quem paga o que é justo? Em que consiste a justiça no pagamento do salário?

Para entender isso e entender os motivos de Jesus, temos que atentemos às palavras de Isaías (55,6-9): “Meus pensamentos não são como os vossos pensamentos, e vossos caminhos não são como os meus caminhos, diz o Senhor. Estão meus caminhos tão acima dos vossos caminhos e meus pensamentos acima dos vossos pensamentos quanto está o céu acima da terra” (55,8-9). Ou seja, o ser humano tem dificuldade para entender o projeto de Deus.

Jesus está se referindo à justiça do Reino. Para Deus não há alguém que mereça uma graça maior do que outro. Todos recebem, plenamente, a graça de Deus. E se a graça é plena, não tem um que a receba mais que o outro. E quem recebe a graça não a recebe por mérito próprio, mas porque Deus a deu. Por isso é graça, é dom de Deus. Isso nos leva a Paulo (Fl 1,20c-24.27a), afirmando: “Só uma coisa importa: vivei à altura do Evangelho de Cristo.” (Fl 1,27). Essa é a base em que se realiza a justiça divina: viver em sintonia com o Evangelho.

Então reflitamos nossas indagações.

Quem paga está retribuindo algo que recebeu. Houve uma troca. E, para ocorrer a troca, as partes envolvidas estabelecem, antecipadamente, os valores. Trata-se de uma negociação, mais ou menos nestes termos: “Eu te dou isto em troca daquilo. Você aceita a troca?” Se as partes fizerem o acordo e ambos aceitarem e concordarem que “isto” pode pode ser trocado por “aquilo” então a transação acontece de foma justa e legal: os dois lados concordaram!

Porém pode ocorrer que haja um “acordo” forçado por alguma circunstância, de modo que “isto”, de fato, tenha um valor menor do que “aquilo”. E o possuidor “daquilo” seja como que obrigado a aceitar “isto” como pagamento. Nesse caso não será um pagamento justo, pois uma das partes está sendo forçada a aceitar o que de fato não aceitaria noutras circunstâncias.

O pagamento dos salários, por exemplo. Não é um pagamento justo, embora estejam protegidos pela lei. O salário, portanto, está dentro da legalidade, mas não se enquadra na justiça. E por que não é justo? Porque o assalariado não tem poder de negociação. Ele tem que aceitar o que lhe foi imposto. Pode até não aceitar esse salário e não trabalhar, mas, nesse caso, ficará em uma situação de maior penúria ainda. Então, forçado pela necessidade aceita. Por outro lado, todos sabemos que aquele que lhe paga o salário se beneficia muito mais com os resultados do trabalho do trabalhador do que o trabalhador com o salário recebido. E por isso o pagador de salário cria mecanismos para justificar (as leis) e convencer o recebedor de salário de que foi uma relação/troca justa. Para sabermos se houve justiça basta invertermos os papéis para que o pagador sobreviva com aquilo que paga. Se não aceita receber somente o valor que paga como salário, é porque sabe que o que está pagando não é justo, embora seja legal. Pode até criar mil e uma justificativas para mostrar suas responsabilidades… etc… mas se não aceita viver com o que paga a quem produz é porque sabe que não está praticando justiça. Seria feita justiça se todos os envolvidos no processo usufruíssem dos mesmos benefícios, sem que um fosse mais beneficiado que os outros.

Qual foi a proposta de Jesus? Com aqueles que contratou de madrugada, combinou “uma moeda de prata” (Mt 20,2). Com aqueles das nove horas combinou pagar “o que for justo” (Mt 20,4). Ao meio dia e às três horas “fez a mesma coisa” (Mt 20,5), isto é, prometeu “o que for justo”. E na última hora, àqueles a quem “ninguém contratou” (Mt 20,7) nada prometeu. Mesmo sem promessa de pagamento, foram ao trabalho. E, no acerto das contas, foram os primeiros a receber “uma moeda de prata” (Mt 20,9).

Por que pagou a todos igualmente? Por que disse: “Eu quero dar a este que foi contratado por último o mesmo que dei a ti (Mt 20,14)? Certamente não foi pelo volume da produção. O que estava em jogo não era a produção, mas a sobrevivência. Tanto os primeiros como os últimos, tinham que sobreviver, por isso receberam o mesmo pagamento.

Esse é o gesto da graça divina. Não é dada pelo mérito do trabalho realizado, mas pela vontade de quem pediu para o trabalho ser feito. É o dom da graça que permite a afirmação: “Pagarei o que for justo” (Mt 20,4)

Neri de Paula Carneiro

Mestre em educação, filósofo, teólogo, historiador

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