sexta-feira, 24 de setembro de 2021

Todo o povo a profetizar

(Reflexão a partir de: Números 11,25-29; Tiago 5,1-6; Marcos 9,38-43.45.47-48)



Qual seria nossa postura se estivéssemos no lugar de Josué, num episódio como este narrado pelo livro dos Números?

No episódio, sem maiores avisos, um grupo de anciãos começa a profetizar.Diante do fato alguém fala a Moisés que, vê isso com naturalidade. Ele entende que isso é obra divina. Mas Josué, talvez com medo de perder seu posto, se propõe a calar o surto profético.

Como nós agiríamos se, de repente, víssemos algo semelhante? Agiríamos como o jovem Josué, em defesa do mestre ou com a sapiência de Moisés, reconhecendo a mão de Deus em ação?

A pergunta tem sentido pois nos dias atuais não são poucas as vozes proféticas condenando asagressões ao meio ambiente e ao povo trabalhador… Não são poucas as vozes condenando os atos do presidente, deputados e senadores, de juízes e governadores, de prefeitos e vereadores legislando, governando e julgando em causa própria… E, por outro lado, não são poucos os empresários que anseiam pelo aumento do lucro sem ampliar os salários dos seus operários… Não são poucas as vozes condenando as justas reivindicações de trabalhadores, por vezes considerando-os vagabundos… Não são poucas as pessoas dizendo que essa não é a função da Igreja. Que a Igreja não se deve meter em política…

Nos dias atuais são muitos os que se dizem cristãos, mas condenam aqueles que agem e realizam as obras de Jesus. São muitos os que se dizem cristãos, mas agem como o jovem Josué; “manda que eles se calem!” (Nm 11,28). Nos nossos dias muitos são os que se comportam como João, “nós o proibimos, pois não nos segue!” (Mc 9,38)

A postura de Josué e de João, são idênticas: condenar a atuação profética; condenar aquele que se esforça para oferecer melhores condições ao desamparado,ao excluído, ao empobrecido.…; condenar aqueles que defendem os escolhidos de Deus. Condenar aquele que usa sua vida para combater as injustiças e as obras más, prejudiciais ao povo e à natureza.

Que diz Moisés? “Quem dera todo o povo fosse profeta” (Nm 11,29) como a dizer:Alguém precisa falar, profetizar, pois talvez assim possa estimular o povo a reagir contra aqueles que o exploram, que os enganam, que lhe tiram direitos básicos…. O profeta sabe que não cabe ao povo esperar; sabe que o povo tem que cobrar e reagir….

Que afirma Jesus? “Ninguém faz algo de bom em meu nome e depois age contra mim” (Mc 9,39). E Jesus não para nisso. Convoca seus discípulos para que se engajem na defesa dos explorados, pois assim fazendo, receberão a recompensa que o Senhor destina aos seus eleitos: “Quem vos der a beber um copo de água, porque sois de Cristo, não ficará sem receber a sua recompensa” (Mc 9,41)

Mas, se por um lado o Senhor promete recompensas celestes, também explica o destino daqueles que produzem as condições e situações nas quais os pequeninos do Senhor são vítimas: “E, se alguém escandalizar um destes pequeninos que creem, melhor seria que fosse jogado no mar com uma pedra de moinho amarrada ao pescoço.” (Mc 9,42).

Como sabemos, Deus é o Senhor que a todos ama e a todos oferece a salvação.Exige apenas uma condição: a conversão pessoal e total. E, justamente por ser pleno de amor, não tolera atitudes desamorosas; não tolera que uns poucos vivam às custas das dores de quem vive a sofrer.

Éo apóstolo Tiago que nos ensina os critérios para viver nos caminhos do Senhor: fazer de tudo para eliminar as causas da pobreza. O sofrimento e a situação de pobreza, não são naturais nem existem por negligência ou preguiça. Existem porque aqueles que tem mais, ou que tem muito, tiraram seus bens da boca dos pequeninos. A concentração existe porque aquilo que foi concentrado pertencia aos explorados. Diz o apóstolo: “Osalário dos trabalhadores que ceifaram os vossos campos, que vós deixastes de pagar, está gritando, e o clamor dos trabalhadores chegou aos ouvidos do Senhor todo-poderoso.”(Tg 5,4).

É necessário, portanto, que sejam quebradas as relações e estruturas causadoras de dor. Mesmo tendo que agir contra e sobre as vozes dos que condenam a organização popular. É necessário que todo o povo se ponha a profetizar. É necessária uma reação.

Neri de Paula Carneiro

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segunda-feira, 20 de setembro de 2021

Depois da pandemia?

Já virou clichê a afirmação de que “depois desta pandemia nada será como antes”.

O clichê tem alguns pontos abertos que nos permitem longas divagações…. Mas nem precisamos de tanto. Vejamos só alguns pontos:

O primeiro ponto é a questionável afirmação: “depois desta pandemia”.

Não haverá um “depois”, como se o corona tivesse vindo para passar uma temporada, depois da qual iria embora. Ele veio, assim como o vírus da gripe e outros tantos, para ficar. Então não haverá um depois dele, como se ele nos fosse deixar um dia desses. Portanto teremos que aprender a conviver com ele e, ao mesmo tempo, morrer com sua companhia rondando a todos. Mesmo vacinados!

A pandemia pode até amenizar, mas o vírus continuará assombrando….

O segundo questionamento é a frase, meio tola, que serve de complemento ao “depois desta pandemia”. A parte que diz: “nada será como antes”.

Com ou sem pandemia, o momento seguinte sempre é diferente do instante passado. A história não se repete. Os fatos, os personagens, as circunstâncias sempre são diferentes, em cada instante da existência. E se nada se repete, evidentemente, nada será como antes… Heráclito, lá na Grécia antiga já dizia: “Não se pode tomar banho duas vezes no mesmo rio”; em pleno século XX o poeta cantou: “Nada do que foi será, de novo, do jeito que já foi um dia; tudo muda o tempo todo”. Por isso, mesmo que quiséssemos que tudo continuasse como era antes, tudo será diferente.

Talvez, quem afirma que “depois desta pandemia nada será como antes”, esteja querendo dizer apenas que muitos amigos e parentes morreram; que muitos empregos se extinguiram ou foram perdidos; que os ricos enriqueceram mais e os pobres e trabalhadores que, continuam sendo explorados, estejam sofrendo uma exploração ainda maior; que a sociedade ficou mais podre… e o mau cheiro propaga-se cada vez mais! Entretanto, não é verdade que as pessoas estejam saindo mais humanizadas. Que as relações entre as pessoas tenham melhorado; que os laços familiares e de amizade tenham se fortalecido; que tenha aumentado a solidariedade; que as pessoas tenham aprendido o valor de um abraço…. Não! Definitivamente não!

O lado mesquino do ser humano permanece e se fortalece!

Empresas e empresários continuam focados no lucro e não no trabalhador. Políticos e seus assessores continuam aproveitando-se dos eleitores, da dor das pessoas, da simplicidade e credulidade do povo… para continuar ludibriando e se dando bem às custas do povo. As estratégias se aprimoram e as falcatruas se avolumam…. Há uma permanência nesse fato. Ao mesmo tempo, a mudança, em tudo isso, é a percepção de que que todas essas mazelas se intensificaram. No fim das contas, a sociedade, ou mundo humano, não terá aprendido a lição!!!! De Buda a Jesus, de Gandhi a Mandela… e todos os profetas da bíblia… não faltaram lições de como agir e melhorar o mundo e as relações entre as pessoas. Mas a maldade prevalece!

Então, o que realmente mudou? Além do fato de que tudo é transitório, que tudo está em constante transformação, mudou o ser humano, mas não para melhor…

Campanhas de alimento foram feitas, mas depois de alguns meses o nível de desemprego aumentou. Um auxílio emergencial foi criado, mas, além de não suprir as necessidades das pessoas assistidas, serviu como trampolim eleitoreiro no discurso político… além de milhões terem sido desviados para muitos que não precisavam e incontáveis famílias necessitadas ficaram na penúria.

De fato nada será como antes…. Não! Não será como antes, será pior! Está sendo pior!

Alguns indivíduos podem ter aprendido algo; podem ter aprendido a valorizar o que antes nem percebiam que existia. Mas o conjunto da sociedade humana, essa apenas colocou em evidência uma face do mal que existe e convive com os seres humanos. E, talvez, a grande lição que a sociedade humana tenha aprendido tenha sido esta: ainda dá para tirar proveito das tragédias e das dores humanas…

Como se vê, essas são algumas das coisas que o vírus nos ensinou.... E então, o que fazer depois da pandemia? Pois nada será como antes!

Neri de Paula Carneiro

sexta-feira, 17 de setembro de 2021

Bandeira vermelha

Nestes tempos conturbados, turbas brigam, por nada… ou por coisas sem sentido.

Tem uns tontos tentando polemizar os tons da cor da bandeira!

Várias cores, mas qual delas nos representa?

Verde? O que tinha virou cinza e carvão, as sobras estão caindo...

Amarelo? Talvez de fome, pois cresce a concentração e a exclusão social e econômica...

Azul? Se ainda tem algum nos céus ou mares a poluição está emporcalhando os tons

Branco? Embotado pela corrupção crescente!!! O branco ficou rubro

…..........................

Que cor sobrou para o trabalhador, além da cor da fome, do desemprego, da perseguição, da falta de opção? Sobrou a cor do seu sangue, vertido na labuta!




Mas aqueles exploradores do povo e seu exército acéfalo, vêm tentar dizer que nossa bandeira não é vermelha…

Mas é vermelha nossa história...vermelha a história dos açoites contra os negros escravizados; contra os índios expropriados...

Vermelha a terra fértil de algumas regiões produtivas...

Vermelho o brasil de nosso nome: Brasil!

Só não é vermelha a cara sem vergonha dos exploradores do povo!

Não é vermelha a ausência de sentimento humanista dos corruptos e corruptores

…………………………...

O brasil é vermelho… ou não é Brasil… E se não for um vermelho brasil… seria, talvez, cinza? Desbotado?

………………………….

Aliás, que importa a cor da bandeira, se ela não representar as necessidades do nosso povo?

Que importa a cor da bandeira se a que está aí não nos representa, pois foge às nossas necessidades; Que importa a cor da bandeira se é usada em favor dos privilégios de poucos contra as necessidade de muitos…

…………………………..

Que sobra para o trabalhador, vítima do sistema?

Seu sangue vermelho, nas bandeiras de luta, nesse Vermelho Brasil!




Neri de Paula Carneiro

Ciladas ao justo

(Reflexão a partir de: Sb 2,12.17-20; Tg 3,16-4,3; Mc 9,30-37)

“Armemos ciladas ao justo”. Essas são as intenções e assim se comportam os maldosos, ou os ímpios, segundo o livro da Sabedoria (Sb 2,12).

Esse projeto maléfico nos ajuda a perceber algo, infelizmente, muito presente no ambiente de trabalho competitivo na sociedade em que vivemos. É o tradicional “puxar o tapete”. Coisa própria dos incompetentes, daqueles que não suportarem assistir o sucesso de quem é capaz de progredir. É o mundo da inveja!!!

Esse invejoso, segundo a Sabedoria, arma as ciladas ao justo e explica o motivo: “Armemos ciladas ao justo, porque sua presença nos incomoda”. E a lista dos motivos para trair a confiança daquele que é íntegro continua. O justo “se opõe” ao comportamento do malandro; o justo “repreende” e “reprova” suas transgressões…. Por isso o ímpio o persegue.

Esse justo, de que fala a Sabedoria, nós o identificamos com Jesus, também apresentado por Isaías como o “Servo Sofredor”. Mas em nossa sociedade ele pode ser personificado em cada pessoa que realiza coisas boas em favor de quem sofre, de quem precisa de ajuda, dos excluídos… quem busca o bem de sua própria família… e recebe as críticas e, por vezes, as maledicências de quem o circunda. O justo vive próximo daquelas pessoas a quem ajuda e ambos vivem cercado e envolvidos pelos invejosos!

Essa situação nos leva às palavras de Tiago, comentando o ambiente em que existe inveja. O ambiente no qual o “impio” está instalado: “Onde há inveja e rivalidade, aí estão as desordens e toda espécie de obras más”. Isso porque o “ímpio”, o invejoso, aquele que é carregado de maldade – pois vive ao lado do príncipe do mal – não consegue ver, nem valorizar o bem. Sua maldade é tamanha que só se realiza ao espalhar maldades. Por isso, fala em seu coração “armemos ciladas ao justo”.

Notemos que o apóstolo destaca os frutos das ações do justo. Suas ações são pautadas pela verdade, pela sinceridade, pela bondade: “a sabedoria que vem do alto é, antes de tudo, pura, depois pacífica, modesta, conciliadora, cheia de misericórdia e de bons frutos, sem parcialidade e sem fingimento. O fruto da justiça é semeado na paz, para aqueles que promovem a paz.”. (Tg 3,17-18).

Pode até não parecer, mas o justo, apesar de sofrer perseguições, é um difusor de paz. Exatamente o oposto das atitudes do ímpio. Este, com sua postura de inveja, produz as guerras e as brigas. (Tg 4,1) E faz isso por inveja. Esse é o motivo pelo qual vive tramando maldades: alimenta-se do ódio. E, justamente por isso, está condenado ao fracasso. Pode até, momentaneamente, ser bem sucedido em infernizar a vida do justo, mas seu destino é o fracasso. “Cobiçais, mas não conseguis ter. Matais e cultivais inveja, mas não conseguis êxito. Brigais e fazeis guerra, mas não conseguis possuir” (Tg 4,2).

Estamos, pois, diante de dois projetos. O projeto do justo, que promove a paz, a concórdia, o bem estar dos seus…. E o projeto do ímpio, produtor do mal, aliado do pai da maldade; aquele que se guia pelo sofrimento do outro. Este provoca a dor do outro, além de ser blasfemo, tentando a Deus. Maltrata pensando em ver a reação de Deus. Produz as dores e fica assistindo o “circo pegar fogo”. Assistindo ao sofrimento do justo, regozija-se: “Vejamos, pois, se é verdade o que ele diz, e comprovemos o que vai acontecer com ele. Se, de fato, o justo é 'filho de Deus', Deus o defenderá e o livrará das mãos dos seus inimigos” (Sb 2,17-18).

O ambiente de inveja também se instalara entre os discípulos e Jesus. Enquanto oMestre ensina os caminhos da solidariedade e do serviço, os discípulos disputam para ver quem se coloca em evidência. Querendo saber quem é o maior (Mc 9,34).

Jesus ensina o caminho para a resposta: não é o estar em destaque, na ostentação, mas se destacará aquele que se colocar a serviço do outro. O que ajudar o outro a ser melhor: “Se alguém quiser ser o primeiro, que seja o último de todos e aquele que serve a todos!” (Mc 9,35).

Essa postura, além de estimular a solidariedade, diminui o conflito; além de estimular a prática do bem, diminui a competição. E conseguirá esse tipo de realização, não quem tentase projetar pisando no outro, mas quem se faz criança. Não quem arma ciladas ao justo, mas quem acolho o reino como o fazem os pequeninos.

Quem age com a pureza da criança, está preparado para acolher o reino: “Quem acolher em meu nome uma destas crianças, é a mim que estará acolhendo. E quem me acolher, está acolhendo, não a mim, mas àquele que me enviou” (Mc 9,37).




Neri de Paula Carneiro

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sexta-feira, 10 de setembro de 2021

Alguns dizem!

(Reflexão a partir de: Isaías 50,5-9; Tiago 2,14-18; Marcos 8,27-35 )



Hoje somos convidados a mais um ato de fé. Mas um ato de fé duplamente comprometido: conosco e com aqueles que estão próximos de nós.

Como se dá isso?

A resposta nos vem do profeta Isaías, dirigindo-se a nós, hoje, numa exortação de ânimo: “Ao meu lado está quem me pode ajudar” (Is 50,8). Como num eco do profeta, o apóstolo Paulo, em uma de suas cartas exclama: “Se Deus é por nós, quem será contra nós? (Rm 8,31)”. Ambos afirmando a presença de Deus amparando nas dificuldades da vida.

Mas essas falas não ocorrem de forma isolada. Elas tem repercussão ao longo das páginas da Palavra Sagrada. Um eco dessa palavra repercute em Tiago que propõe, mediante uma indagação: “Meus irmãos, que adianta alguém dizer que tem fé, quando não a põe em prática?” (Tg 2,14).

E aqui está o “X” da questão. Notemos que o X ocorre porque duas linhas se cruzam. Seu centro é ponto de convergência e, ao mesmo tempo, ponto de partida.

A confiança no senhor, como aquele que ampara nas dificuldades, é reflexo de um ato de fé. Mas a fé tem que ser posta em prática! Portanto, vai em direção ao outro! Não se concebe um ato de fé, como algo isolado, alheio ao que ocorre com aqueles que estão ao nosso redor! Não existe ato de fé, quando o centro das nossas atenções somos nós mesmos! E, se ocorrer uma profissão de fé, sem que ela esteja voltada para as necessidades dos outros, será uma profissão falsa, interesseira, mentirosa. Pode ser tudo, menos uma profissão de fé cristã!

Por quê? Porque assim ensinou o Mestre. Porque assim agiu o Mestre. Porque essa foi a condição do Mestre…. E quem crê no Senhor tem que seguir seus passos: “Se alguém me quer seguir, renuncie a si mesmo, tome a sua cruz e me siga. Pois quem quiser salvar a sua vida, vai perdê-la; mas quem perder a sua vida por causa de mim e do Evangelho, vai salvá-la” (Mc 8,34-35). E aquele que se contrapõe ou tenta impedir esse projeto solidário, vale a palavra de Jesus: “Vai para longe de mim, Satanás! Tu não pensas como Deus, e sim como os homens” (Mc 8,33).

Portanto, não é exagero repetir: O projeto de Deus vai além do ato de fé, exteriorizado em palavras. Exige atitudes!

Atitudes que geram a gratidão pelo bem recebido e as perseguições por parte dos inimigos da Boa Nova.Essas atitudes podem gerar oposições como as enfrentadas pelo profeta. Nessa situação a resposta do agredido deve ser como a de Isaías: “Ofereci as costas para me baterem e as faces para me arrancarem a barba: não desviei o rosto de bofetões e cusparadas”. A resposta às agressões podem enfrentadas porque: “O Senhor Deus é meu Auxiliador, por isso não me deixei abater o ânimo, conservei o rosto impassível como pedra, porque sei que não sairei humilhado” (Is 50,6-7).

E isso nos levade volta ao apóstolo Tiago. O apóstolo que, sob inspiração do Espírito de Deus, teve uma clareza cristalina ao afirmar a necessidade juntar aquilo que nunca esteve separado no plano do Senhor: A fé não se dissocia das ações. É repetitivo, mas a fé exige compromisso com o outro. Ensina o apóstolo: “Imaginai que um irmão ou uma irmã não têm o que vestir e que lhes falta a comida de cada dia; se então alguém de vós lhes disser: 'Ide em paz, aquecei-vos', e: 'Comei à vontade', sem lhes dar o necessário para o corpo, que adiantará isso? Assim também a fé: se não se traduz em obras, por si só está morta.” (Tg 2,15-17).

É claro que as circunstancias hoje são outras. A conjuntura é diferente. As estruturas sócio-econômicas são mais exigentes. Os problemas atuais são muito mais complexos…. Mas isso não invalida a orientação do Senhor. Não revoga a lei instituída desde o coração do Pai. Pelo contrário, torna o compromisso com as transformações das estruturas de pecado e de morte ainda mais exigentes. Exige maior comprometimento, pois as vítimas continuam sendo engolidas pela voracidade dos representantes do anticristo. Esse é o ambiente onde o cristão tem que afirmar: “eu te mostrarei a minha fé pelas obras!” (Tg 2,18).

Tudo isso nos leva à indagação de Jesus: “Quem dizem os homens que eu sou?” (Mc 8,27).

A resposta do cristão não pode ser como a daqueles mencionados por Pedro: “alguns dizem...”; “outros dizem...”. Os outros podem dizer isto ou aquilo, pois não estão comprometidos com a causa do Evangelho. Do cristão, é cobrada uma postura. É Jesus quem faz a cobrança: “E vós, quem dizeis que eu sou?” (Mc 8,28-29).

Hoje somos convidados a mais um ato de fé. Mas um ato de fé duplamente comprometido: conosco e com aqueles que estão próximos de nós. Não nos cabe ser como os outros: “alguns dizem!….” A nós é feita a pergunta de forma direta: Quem é Jesus para nós…?




Neri de Paula Carneiro

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terça-feira, 7 de setembro de 2021

A FILOSOFIA CLÁSSICA (II-c) - Aristóteles: as mudanças no mundo sensível

Aristóteles é o terceiro grande nome do período clássico da filosofia grega. Juntamente com Sócrates e Platão, forma aquela que, possivelmente tenha sido a maior tíade de pensadores do mundo grego.

Evidentemente a academia de Platão formou vários discípulos. Mas somente um marcou a história da filosofia: Aristóteles, que viveu entre 384 a.C. a 322 a.C.


O mestre do liceu

Ao contrário de seu mestre e de Sócrates, que eram de Atenas, nasceu em Estagira, uma colônia grega. Só veio para Atenas aos 18 anos, justamente para estudar na academia de Platão. Aí permaneceu por 20 anos.

Após a morte do mestre fez várias viagens de estudos até ser convidado pelo rei Felipe, da Macedônia, para ser instrutor de seu filho. Na época um garoto de treze anos. Após a morte da Felipe o rapaz assumiu o governo, expandindo seu reino. Suas conquistas militares o fizeram entrar para a história como Alexandre, o grande. Com suas conquistas também contribuiu para a disseminação da cultura grega em todo o seu império, trazendo para a Europa inúmeras contribuições do saber oriental, produzindo o fenômeno denominado de Helenismo

A contribuição de Aristóteles para a filosofia foi enorme. Mas não só a filosofia lhe paga tributo. Suas observações e conclusões lhe permitiram colocar as bases de várias ciências atuais. Um exemplo disso é sua classificação de plantas e animais que perdurou até a reformulação feita por Lineu, no século XVIII. Mas não para aí. Escreveu sobre: a geração dos animais e suas migrações; meteoros e o céu…. Além de escritos sobre a alma (psicologia), sobre economia, política, matemática, ética, estética, e várias outras áreas. Evidentemente, todos os seus estudos e escritos tiveram o auxilio dos seus discípulos.

Enquanto Platão dava atenção ao processo de se sair do mundo sensível para se concentrar no “mundo das ideias”, em busca das realidades inatas, ele queria “sair da caverna” a fim de entender o mundo circundante e sensível, exatamente o inverso de Platão: olhava para a natureza e nela estudava tudo.





Anotações e escritos

Não sabemos com exatidão, mas alguns estudiosos dizem que Aristóteles teria produzido mais de 170 escritos, dos quais a maioria se perdeu. Restam-nos apenas 47 textos dos quais alguns são livros completos, e outros apontamentos para suas lições aos discípulos.

No tempo de Aristóteles, a filosofia (e assim agiam todos os mestres) era uma atividade oral. Sócrates conversava com seus discípulos na praça de Atenas. Platão em sua academia.

No caso de Aristóteles suas lições eram ministradas em seu Liceu, localizado nas proximidades do jardim dedicado a Apolo Lício. De manhã dirigia-se a aos discípulos e à tarde ao publico geral que o procurasse.

Suas anotações e escritos serviram de base para uma linguagem técnica ainda hoje utilizada pelas ciências. Além disso, criou e sistematizou inúmeros saberes que deram origem a diversas ciências.





Preservado pelos muçulmanos

Deve-se lembrar, no entanto, que todos esses saberes da filosofia grega havia se perdido sem haver chegado ao mundo ocidental. Isso só não ocorreu porque os estudiosos muçulmanos copiaram os textos gregos, traduzindo-os para o árabe. No tempo das cruzadas os europeus redescobriram os gregos e os trouxeram para a Europa onde os monges católicos os traduziram, inicialmente para o latim e depois foram sendo absorvidos pelas outras línguas locais.

Dessa forma foi que a importância de Aristóteles foi realçada. E isso se deve, principalmente, a santo Tomás de Aquino que o estudou profundamente de modo que passou a ser um filósofo de conhecimento quase que obrigatório entre os estudantes e clérigos católicos.

Deviso a importância a ele atribuída por Aquino, os estudiosos medievais nem mais o chamavam pelo nome mas de “O Filósofo”.

Talvez por esse motivo, ao longo de vários seculos medievais não houve inovações, pois todos o saber e as possibilidades de conhecimento já haviam sido alcançadas pelo Filósofo. De modo que qualquer indagação a ser respondida passou a ter duas fontes de resposta: a bíblia e os escritos de Aristóteles. Ou seja, como comentam alguns altores, deixava-se de observar e estudar o fato ou o fenômeno para se observar apenas O Filósofo.

Tanto que Aristóteles passou a ser critério de verdade. Qualquer pesquisa tinha que estar em consonância com a bíblia e com o Filósofo. Se não estava na bíblia nem nos escritos de Aristóteles era anátema, ou seja, algo condenável. Daí a anedota a respeito de um grupo de estudantes queria saber quantos dentes existem na boca de um cavalo adulto. Como não encontravam resposta na bíblia nem em Aristóteles, um deles sugeriu que se fosse até o estábulo para contar, diretamente no animal. Em vez de acatar a sugestão, o grupo expulsou o estudante herege, pois estava propondo um “absurdo”!





Afastando-se de Platão

O fato de se ocupar com inúmeras dimensões do saber, a filosofia de Aristóteles se distanciou daquela desenvolvida por Platão, pois preferia investigar fatos, uma vez que em sua concepção os fatos manifestam e explicam as realidades em si mesmas; os fatos do passado explicam e mobilizam cada coisa para que se atualize no que é; a realidade presente gera o desenvolvimento da coisa de modo que no futuro, cada realidade mesmo alterada, mantenha sua identidade. Ou seja, o fato manifesta a realidade.

Não se trata de uma tentativa de explicação sobre o tempo ou da tentativa de entender o que é passado, presente e futuro, mas de perceber – como já o havia dito Heráclito – que toda realidade é o que é, mas também pode vir a ser algo diferente. A realidade, enquanto é o que é, se mantém idêntica a si mesma, mas sua existência acena para a possibilidade daquilo que É vir a ser algo diferente. Estamos, portanto, diante de duas teses aristotélicas: uma afirmando a essência da realidade em si mesma, mas em sendo isso, ocasiona inúmeras possibilidades até atingir sua “meta”. Trata-se de saber qual é essa meta, qual o fim último de cada realidade.

O entendimento do fim último (o telos) leva a segunda tese: ato e potência. O que é, é em ato; o que pode vir a ser é a potência. Em ato, a semente da castanheira é semente, mas potencialmente pode vir a ser uma árvore, alimento para outro ser vivo ou simplesmente decompor-se na terra tornando-se adubo. Mas qual é a finalidade (telos) da semente: germinar, ser alimento ou adubo? Ao se chegar a esse fim último, supondo que seja germinar, a semente que em ato é semente, desenvolve sua potencialidade tornando-se ato na árvore. Esta, por sua vez, atualmente é arvore, mas pode vir a ser lenha, madeira para construção, ou apenas continuar na floresta, produzindo flores e sementes que manterão o processo...

Podemos observar que a teoria do ato e potência, provém da teoria do devir ou da dialética de Heráclito, posteriormente outros pensadores se utilizaram da dialética, sendo que ela ganhou realce principalmente com os trabalhos de Hegel e Marx.





Quatro causas

Outro aspecto importante, da filosofia de Aristóteles é a teoria das quatro causas. Trata-se de um desdobramento da teoria do ato e potência, mostrando o movimento, ou seja, o processo pelo qual as coisas se constituem. Ou seja, há uma causa e um efeito. Daí sua teoria das quatro causas: material, formal, eficiente e final.

Em que consiste isso? Vamos imaginar uma xícara artesanal de barro/argila.

Causa Material: é aquilo de que a xícara é feita. Imaginemos uma xícara barro. A causa material dessa xícara é o barro, a argila.

Causa formal: é a forma do objeto ou da coisa; como essa realidade se manifesta. Ou seja, a própria xícara, na forma como ela se manifesta.

Causa eficiente: trata-se daquilo que deu origem à coisa em questão. Em nosso exemplo a xícara artesanal tem no artesão sua origem.

Causa final: corresponde à finalidade, ao sentido da existência da coisa. Qual o sentido de existir uma xícara artesanal de barro? É ser usada para se tomar café, por exemplo.

A filosofia de Aristóteles tem outras particularidades. Não só porque examina os diferentes aspectos da realidade, material, formal e metafísicos, mas também porque se propõe analisar mecanismos da organização social. Para isso escreve sobre política e ética. Ao mesmo tempo analisa a sociedade e propõe mecanismos para melhorar as relações.

Suas contribuições para a política e a ética podem ser encontradas em dois de seus livros: a Política e Ética a Nicômaco.

O fato é que ainda hoje a cultura e o saber ocidentais são tributários à mentalidade e à filosofia grega, do período clássico: quando falamos em corpo-alma estamos nos referindo a conceitos originários de Platão. Quando pretendemos maior clareza de nosso interlocutor, e para isso lhe fazemos uma série de questionamentos, estamos nos reportando a Sócrates. Quando falamos em lógica, organização e sistematização de conhecimentos, estamos aplicando uma metodologia aristotélica.

Outra consequência da ação desses três pilares da filosofia grega foi o fato de, após suas mortes, a filosofia ter entrado em um período de declínio. Não por ter perdido qualidade ou preocupação com o saber, mas pelo fato de, por um longo período, não terem aparecido grandes nomes, propondo novos sistemas. Vale lembrar que Aristóteles inicia seu livro Metafísica dizendo que “todos os homens têm, por natureza, desejo de conhecer: uma prova disso é o prazer das sensações, pois, fora até da sua utilidade, elas nos agradam por si mesmas”. A preocupação com o saber permaneceu, mas ela ganhou novas roupagens.

Neri de Paula Carneiro

Mestre em educação. Filósofo, Teólogo, Historiador


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sexta-feira, 3 de setembro de 2021

Não tenhais medo!

(Reflexão a partir de: Isaías 35,4-7; Tiago 2,1-5; Marcos 7,31-37)



Quando olhamos nosso cotidiano. Quando analisamos o que acontece mundo a fora. Quando somos envolvidos pelos noticiários…. São tantas amostras da maldade humana, tantos atos desumanos praticados pelos dirigentes das nações, tantas atos de injustiça contra os mais necessitados, contra os mais pobres, contra os mais fracos…. Quando vemos tudo isso e muito mais… somos levados ao desespero… ou nossa fé é posta à prova!

Parece não haver mais sinais de esperança…. Parece certa a desolação….

Ainda há motivos para esperança?

A realidade cotidiana, mostra o mal avançando… tomou conta dos sistemas humanos. Prevalece a corrupção, o jogo de interesses pessoais, a superposição dos poderosos sobre aqueles que mais necessitam. O grito dos excluídos,encontra ouvidos surdos numa sociedade de morte.

O quadro da realidade é pintado com cores terríveis. E, mais uma vez se impõe a indagação:

Ainda existe espaço para esperança?

Cenas como esta, descrita por Tiago (Tg 2,1-5), são cada dia mais comuns. A discriminação, a exclusão, as atitudes hostis, estão cada dia mais presentes em nossas relações: “Imaginai que na vossa reunião entra uma pessoa com anel de ouro no dedo e bem vestida, e também um pobre, com sua roupa surrada. Vós dedicais atenção ao que está bem vestido, dizendo-lhe: 'Vem sentar-te aqui, à vontade', enquanto dizeis ao pobre: 'Fica aí, de pé', ou então: 'Senta-te aqui no chão, aos meus pés'” (Tg 2,2-3). Estas cenas são corriqueiras em nosso cotidiano!

Por isso a indagação é, cada dia, mais insistente

Ainda existemmotivos para manter a esperança?

Talvez a resposta não esteja em nossos atos nem em nossas estruturas, menos ainda nos valores tão caros aos nossos contemporâneos(riqueza e poder)…. Talvez tenhamos que parar com tudo… talvez assim consigamos ouvir, não só o grito angustiado do que sofrem, mas também o grito que vem do silêncio da Palavra Divina….

Isaías, que tens a nos dizer?

“Dizei às pessoas deprimidas: 'Criai ânimo, não tenhais medo!” (Is 35,4).

A vós do profeta indica de onde vem o alento.Quando tudo estiver sufocando, quando todas as portas estiverem se fechando, quando todas as luzes estiverem se apagando… é de Deus que vem o alento. Quando a esperança estiver morrendo, é de Deus que vêm as sementes de esperança. Quando estiverem no fim as forças para caminhar em buscar de alternativas… é de Deus que vem a coragem para levantar e se por a caminho...

Nesse panorama de dor e trevas, não é uma esperança nascida da ação humana: “Vede, é vosso Deus…. É a recompensa de Deus!” (Is 35,4). O profeta nos dá o recado divino: as dores cessarão, pois é de Deus que vem a alternativa. No cenário de morte, o indicativo de vida: “A terra árida se transformará em lago, e a região sedenta, em fontes d'água” (Is 35,7).

Nas palavras de Jesus, esse sinal de esperança torna-se ainda mais específico. “Abre-te!”, diz o mestre (Mc 7,34).

Os inúmeros sinais de cura, recuperando os movimentos, a saúde, a visão, a audição… tem um significado maior: são um convite a procurar o Senhor como fizeram aqueles que levaram o surdo-mudo em busca da cura. As dores e enfermidades; os sofrimentos e doenças; as tristezas e situações desesperadoras… tudo faz parte da fragilidade humana, mas, ao mesmo tempo, nos convidam a confiar e desenvolver a força que vem do alto!

Aforça que vem do Senhor pode nos levar a Ele, para, fortalecidos, voltarmos como alento a quem precisa. Ajudando a indicar os caminhos que levam ao Reino.

O que é necessário para isso? Apenas que se procure quem nos pode curar. Quem pode abrir os ouvidos, conceder a luz da visão, saciar a fome… não há mais espaço para os enganadores do povo. Não há mais espaço para governantes, juízes, legisladores e falsos profetas que usam “critérios injustos” (Tg 2,4).

Os que conviviam com o surdo-mudo o levaram até o mestre que o libertou. A nós cabe a mesma missão: ajudar a levar ao Senhor todos que dele precisam, pois dele vem a esperança! É ele que alimenta a esperança. Por isso, não tenham medo!

É necessário, entretanto,cuidado com os donos do mundo: Os representantes do anticristo estão por aí:
eles odeiam e maltratam os preferidos de Deus, criando esse panorama assustador. Para não cair em suas ciladas ouçamos Tiago: “Meus queridos irmãos, escutai: não escolheu Deus os pobres deste mundo para serem ricos na fé e herdeiros do Reino que prometeu aos que o amam?”

E aqueles que confiam, apesar dos sofrimentos e dores ouvirão do Senhor: Não tenham medo!




Neri de Paula Carneiro

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segunda-feira, 30 de agosto de 2021

A FILOSOFIA CLÁSSICA (II-b) - Platão: que ideia é essa?

A escola de Sócrates formou um bom número de discípulos. Com o mestre, frequentavam a praça de Atenas, onde os cidadãos se reuniam em assembleia para debater os problemas da cidade.

Entre os vários discípulos de Sócrates, um dos mais conhecidos foi Platão que, após a morte do mestre fundou uma escola no jardim de Academus. Daí o nome: Academia. Na porta de sua escola estava escrito algo que soava como: “Não entre aqui se não for matemático”. Isso porque a matemática é um dos melhores meios para se desenvolver a capacidade de raciocínio.

Seus textos, na forma de diálogos, têm Sócrates como personagem principal. Em razão disso é lícito que nos perguntemos: em seus escritos prevalecem suas ideias ou as de Sócrates?

O fato é que esse ateniense, depois de um tempo como soldado e político, resolveu dedicar-se à filosofia. Por volta dos 20 anos encontrou-se com Sócrates e decidiu-se por segui-lo. O que o levou a isso? O fato de considerar Sócrates o mais admirável entre os mestres. Talvez por isso tenha colocado na boca de Alcebíades, personagem de seu livro O Banquete, um elogio a Sócrates. Diz o personagem que ele “fala de coisas tão diferentes que, por mais que se procure, entre os modernos ou entre os antigos, não se encontra alguém que se assemelhe a ele”

Podem existir muita proximidade, entre discípulo e mestre. Entretanto é fato que Platão seguiu o próprio caminho. Desenvolveu sua filosofia apresentando um elemento inovador em relação aos pré-socráticos: a afirmação de um mundo físico, em que nos situamos e um mundo suprassensível. Mas manteve, de mestre, o estilo de uma filosofia feita com diálogos, que é a forma como produziu seus escritos.

Na distinção entre nosso mundo físico e o mundo das ideias está colocada a base da realidade vista sob a ótica platônica: todas as realidades, deste mundo físico, sensível, são aparência, são reflexos imperfeitos de um mundo ideal.

A afirmação de Platão é que tudo que vemos e com o que nos relacionamos, neste mundo – no mundo sensível – é apenas reflexo imperfeito do mundo da ideias. Cabe ao filósofo superar as aparências e chegar o mundo ideal, perfeito.

No seu livro Fédon, Platão assim se expressa a respeito do que vemos e do que é a coisa em si: “Parece-me, com efeito, que se existe alguma coisa bela, fora do belo em si, ela é bela porque participa deste belo em si”. E o mesmo ocorre com o ser humano.

O ser humano, antes de nascer habita o mundo das ideias. Aí contempla cada realidade em si mesma, e por isso, possui pleno conhecimento. Entretanto devido às contingências do mundo físico, ao nascer perde o contato com esse saber. Com a prática da filosofia poderá reencontrar o caminho da sabedoria e relembrar o que havia contemplado no mundo das ideias. Só a filosofia, pode conduzir o intelecto a recordar e re-conhecer aquilo com o quê se conviveu, no undo extra-físico.

E assim entramos na outra dimensão da filosofia de Platão. Esta diz respeito ao conhecimento, ou à possibilidade de conhecimento.

Esse aspecto pode ser lido na Alegoria da Caverna.

Em que consiste essa alegoria?

Platão cria essa alegoria para explicar a diferença entre o mundo físico e concreto em que vivemos o qual é uma espécie de cópia imperfeita do mundo das ideias. Nosso mundo seria uma espécie de sombra desse mundo ideal, perfeito onde existe todas as realidades em si mesmas. O exercício da filosofia permite ao ser humano recordar (teoria da reminiscência) o que já viu no mundo das ideias, pois ele veio de lá. E lá convivia com a verdade e o conhecimento pleno

Nessa alegoria, Platão coloca Sócrates conversando e explicando que: as pessoas vivem acorrentadas numa caverna. Todas elas imobilizadas de costas para a entrada e olhando para os fundos. Entre o portal da caverna e as pessoas acorrentadas há uma fogueira que faz com que as sombras das realidades sejam projetadas na parede dos fundos da caverna, de modo que esses prisioneiros, por nunca terem visto nada diferente dessas sombras, imaginem que elas sejam as verdadeiras realidades.

Vivem, dessa forma, num mundo de ilusão, de aparências, de sombras.

Vivem assim até que alguém, o filósofo, consegue libertar-se das correntes. Olha para trás. Vê a fogueira e a luz, do lado de fora da caverna. Faz, então, contato com a realidade, sem aparências. Caminha para fora da caverna e passa a conhecer a verdade.

Tendo conhecido a verdade, volta para a caverna e tenta libertar os demais prisioneiros acorrentados na ignorância. Entretanto, acostumados com as aparências, em vez de deixar-se conduzir pela sabedoria, preferem prender e matar o sábio que os pretendia libertar. E assim permanecem na ignorância e nas sombras, recusando-se a se voltar para a luz da verdade.

O cartunista Maurício de Souza, criador da “Turma da Mônica” recontou essa alegoria num gibi, com o título “As sombras da vida”. Essa versão pode ser encontrada facilmente em diversas páginas da Internet.

Como discípulo de Sócrates, Platão recria a filosofia do mestre, em seus livros, na forma diálogos. Mas, ao mesmo tempo, apresenta suas inovações. Sua explicação do mundo das aparências e do mundo das ideias, séculos depois foi absorvida pelo cristianismo para explicar que o ser humano está mergulhado num mundo de aparências e dominado pelo pecado; mas alimenta o desejo de encontrar o Paraíso, onde poderá se encontrar com o criador e fonte da verdade absoluta.

Um dos principais discípulos de Platão foi Aristóteles.




Neri de Paula Carneiro

Mestre em educação. Filósofo, Teólogo, Historiador




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sábado, 28 de agosto de 2021

Lábios e coração impuros

(Reflexões sobre:Dt 4,1-2.6-8; Tg 1,17-18.21b-22.27; Mc 7,1-8.14-15.21-23




Pode parecer estranha a pergunta, mas em que consiste a justiça de uma lei?

A pergunta pode parecer estranha porque a maioria de nós tem a convicção de que as leis são justas. Entretanto, nem sempre o cumprimento de uma lei é prática de justiça, pois nem toda lei é justa.

Um exemplo? Aqui no Brasil, os legisladores criaram leis que permitem aos integrantes do legislativo, do judiciário e do executivo, acumular salários e gordas gratificações que, se fossem juntadas todas, daria para pagar o salário de vários milhares de trabalhadores. É uma lei, mas não é justa. Cumprir essa lei, não é prática de justiça! Leis que não elevam o ser humano, não são justas.

Então a indagação inicial não é sem fundamento: em que consiste a justiça de uma lei?

Moisés e o povo de Israel defrontaram-se com essa questão, conforme nos ensina o livro do Deuteronômio (Dt 4,1-2.6-8). No deserto o povo foi convidado a optar pelo seguimento do Senhor e a cumprir suas leis. O cumprimento dessa lei traria, não benefícios isolados a alguns privilegiados da sociedade, mas a toda a população: entrar e tomar “posse da terra prometida pelo Senhor” (Dt 4,1). Essa lei, beneficiando a todos, tem justiça, pois não é excludente nem se destina a poucos.

Para evitar distorções na lei, evitar que alguns espertalhões se apropriem daquilo que é de todos, o Senhor determina: “Nada acrescenteis, nada tireis, à palavra que vos digo, mas guardai os mandamentos” (Dt 4,2). Fazer o contrário disso, jé é prática injusta.

Guardar e cumprir a lei que beneficia a todos, é o princípio da justiça. Se for diferente, pode até ser uma determinação legalizada, mas não é justa. Guardar e cumprir essa lei, que atende às necessidade de todos, sem privilegiar os espertalhões, é demonstração de inteligencia e sabedoria. “Vós os guardareis, pois, e os poreis em prática, porque neles está vossa sabedoria e inteligência perante os povos” (Dt 4,6).

A conclusão lógica do que ensina a Palavra Divina é uma só: aceitar leis injustas não é inteligente. Não é sábio um povo que deixa seus governantes ou seus legisladores produzirem e imporem leis injustas. A inteligência mandas buscar a justiça e não a letra morta da lei, ensina Jesus (Mc 7,1-23). Portanto, quando nos mobilizarmos para que sejam criados e cumpridos princípios de justiça as nações dirão de nós: esse é um grande povo pois tem leis e decretos justos (Dt 4,8).

Neste momento de nossa história, assistimos os mais altos escalões do poder político disputarem o primeiro lugar na capacidade de agressão ao povo. Produzem leis, decretos, medidas provisórias e decisões judiciais que ofendem a nação. Aqueles que exercem o poder, o fazem não em benefício do povo, mas em favor dos próprio interesses. Sua postura é exatamente oposta àquilo que ensina o apóstolo Tiago ao dizer que “Todo dom precioso e toda dádiva perfeita vêm do alto; descem do Pai das luzes” (Tg 1,17). E aqui também se impõe uma conclusão lógica: se as coisas boas nascem do Pai, quem produz coisas nefastas ao povo não representa a Deus, mas seu opositor.

“Com efeito, a religião pura e sem mancha diante de Deus Pai, é esta: assistir os órfãos e as viúvas em suas tribulações e não se deixar contaminar pelo mundo” (Tg 1,27). E não só a religião: também as ações sociais, políticas e econômicas…que promovem o ser humano… são ações sob inspiração divina. E, portanto, do outro lado, toda ação que faz o contrário disso não é ação divina, nem vem de Deus. Pelo contrário, é ação demoníaca! O Mal não vem de Deus! Mas do seu oposto!

Notemos que é diretamente para os líderes do povo que Jesus dirige estas palavras iluminadoras. Palavras que delimitam as posturas e expõe as intenções dos líderes do povo: “Jesus respondeu: 'Bem profetizou Isaías a vosso respeito, hipócritas, como está escrito: 'Este povo me honra com os lábios, mas seu coração está longe de mim. De nada adianta o culto que me prestam, pois as doutrinas que ensinam são preceitos humanos'. Vós abandonais o mandamento de Deus para seguir a tradição dos homens” (Mc 7,6-8).

Mas atenção! Não só as lideranças políticas. Também os líderes que se dizem religiosos; que dizem falar em nome de Deus… mas falam em nome de outra divindade. Eles não servem ao Deus da vida, mas aos deuses do dinheiro, do poder, da glória.… E em nome desses deuses é que destilam ódio e convidam ao seguimento do anticristo. “Todas estas coisas más saem de dentro, e são elas que tornam impuro o homem” (Mc 7,23), diz Jesus.

Então, que tal a gente começar a observar melhor? Que tal buscarmos a justiça e não a lei? Que tal fazermos uma revisão em nossos posicionamentos? Que tal revermos nossos valores e os valores daqueles a quem admiramos? Que tal olharmos e seguirmos melhor os passos de Jesus?… Que tal deixarmos de seguir essas leis e líderes que falam o nome de Deus com os lábios, mas que permanecem com ações e coração impuros?




Neri de Paula Carneiro

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segunda-feira, 23 de agosto de 2021

A FILOSOFIA CLÁSSICA (II-a) Eu sei que nada sei?

Sabemos que a filosofia nasceu quando nasceu o ser humano, mas ela só recebeu status e relevância quando alguns personagens gregos colocaram alguns pontos de interrogação ao processo de interpretação da realidade e do mundo.

Esse grupo de pensadores é conhecido como “pré-socráticos”. Mas, como sempre, o dinamismo da história acionou a roda do mundo e surgiram novas temáticas e novas respostas. A natureza perdeu seu espaço para a sociedade e os pensadores passaram a se dedicar à busca de novas explicações agora não mais para a natureza, mas para a vida social, para a realidade humana.

Estamos num novo período: a filosofia clássica, ou período antropológico. Neste período, além da atuação dos sofistas, três nomes se destacam: Sócrates, Platão e Aristóteles.

Vejamos alguns comentários a respeito de Sócrates.



Sócrates: Eu sei que nada sei?


Poucos estudantes podem dizer que nunca ouviram ou leram o nome de Sócrates.

Junto com esse personagem nos chegam algumas informações a seu respeito: não se tem notícia de que tenha produzido algum escrito. A informações que temos a seu respeito chegaram a nós mediante seus discípulos, sendo Platão o que mais nos fornece informações a seu repeito, uma vez que o mestre é o principal personagem em seus diálogos.

Também nos vem de Platão a informação de que Sócrates teve inúmeros atritos com os sofistas. E sua morte, após um julgamento polêmico, ocorreu ao tomar um copo de cicuta.

Quem já ouviu falar em Sócrates, também ouviu: “só sei que nada sei”, “conhece-te a ti mesmo”, ironia socrática e maiêutica.

Também se diz que era um homem muito feio e que um certo viajante, teria dito que ele tinha a fisionomia tão feia que se parecia com um monstro capaz de realizar qualquer crime. Ao ouvir isso, a seu repeito, o filósofo teria respondido: “acertou em cheio, senhor”.

Possivelmente de sua rivalidade com os sofista foi que nasceu a acusação que lhe foi imputada: a de estar corrompendo a juventude de Atenas. Seus acusadores o levaram a julgamento e foi condenado à morte. Seus discípulos o incentivaram a fugir da cidade, mas ele alegou que em toda sua vida cumprira a lei e que não seria na morte que a descumpriria. Dito isso tomou a taça com sicuta, o veneno da condenação.

Qual era, então, sua atividade filosófica? Após se sentir interpelado pelo oráculo de Delfos dedicou-se a ela: livrar os homens de sua ignorância, conduzindo-os à verdade.

Portanto sua filosofia se fez ao redor dessa questão: O homem. Não o homem como algo distante, teórico, conceitual ou distinto do cotidiano, mas o homem que se insere no cotidiano com tantos afazeres que se esquece de olhar para si mesmo.

A professora Marilena Chauí, em sua obra “Convite à filosofia” afirma o seguinte: “Sócrates dedicou-se à filosofia depois de haver ido ao templo de Apolo Delfos e ter ouvido uma voz interior, o seu daímon, que o fez compreender que o oráculo inscrito na porta do templo – “conhece-te a ti mesmo” – era sua missão. Por ela abandonou toda atividade prática e viveu pobremente com sua mulher Xantipa e seu filhos. Foi descrito por todos os que o conheceram como alguém dedicado ao conhecimento de si e que provocava nos outros perguntas sobre si próprios”

Indagando-se a si mesmo e aos outros em busca do autoconhecimento constatou sua própria ignorância. E nos seus interlocutores percebeu que nenhum detinha real conhecimento de nada. Dai sua brilhante conclusão: Ninguém sabe nada, mas alguns acham que sabem muita coisa. Mas essa é uma postura tola, pois o princípio da sabedoria não é dizer ou pensar sabe tudo, mas perceber-se como alguém que nada sabe.

Daí, também, a argumentação a ele atribuída: ele pensa que sabe mas não sabe: é um tolo. Eu, que não sei, e sei que não sei, sou mais sábio que ele. Essa é a base da sabedoria: “Sei que nada sei”

Sócrates desenvolve sua filosofia empregando um método na forma do diálogo. Inicia com uma pergunta e Sócrates comenta as várias respostas, mostrando que são conceitos pré-formados, imagens sensoriais percebidas ou opiniões subjetivas e não a definição buscada. Esta primeira parte chama-se ironia (eiróneia), isto é, refutação, com a finalidade de quebrar a solidez aparente dos preconceitos.

A segunda parte do método socrático desenvolve-se a partir de perguntas direcionadas que vão sugerindo caminhos ao interlocutor até que este avance e chegue à definição procurada. Trata-se da maiêutica, isto é, a arte de realizar um parto, que, neste caso é um parto de ideias e da verdade.

Podemos reiterar, portanto que a ironia é um processo de enredamento pelo qual Sócrates conduz o interlocutor a se expor, expondo seus pontos de vista. E, ao expor esse ponto de vista, que na realidade é apenas uma opinião, Sócrates intensifica os questionamentos até que o interlocutor se perceba em sua ignorância a respeito do tema em questão.

A ironia é uma espécie de simulação, mas, em Sócrates, ela tem a finalidade de por a descoberto a vaidade, desmascarar a impostura e buscar a verdade. Ao produzir esse processo de desinstalação, a ironia socrática muitas vezes é vista como revolucionária, ameaçando as opiniões e valores consagrados; é vista como irreverente. Entretanto ela não tem a finalidade de desprezar os valores, mas de verificar até que ponto são autenticos.

A partir da ironia – demonstração de que o interlocutor não está no cainho da verdade, mas num equivoco – Sócrates redireciona as perguntas a fim de que o interlocutor encontre o caminho que conduz à verdade. Não lhe é apresentada a verdade, como algo pronto, mas um caminho a ser trilhado. É o processo da maiêutica.

Pelo caminho da maiêutica importa que o homem seja capaz não de repetir o que todos dizem, mas da dar a sua resposta; não a partir da opinião, mas limpa das impressões, opiniões, preconceitos. Ou seja, a partir da ironia, desmascara-se a mentira para abrir o caminho para a verdade, por meio de um parto de ideias.

Em síntese podemos dizer que Sócrates ensinava na praça de Atenas, dialogando com seus discípulos e interlocutores. Usava a ironia e a maiêutica como instrumentos metodológicos de busca da verdade.

Um de seus principais discípulos foi Platão.





Neri de Paula Carneiro

Mestre em educação. Filósofo, Teólogo, Historiador



Outros escritos do autor:


CICLO DA PÁSCOA: A vitória da vida.

Disponível em: https://pensoerepasso.blogspot.com/2024/03/ciclo-da-pascoa-celebrar-vida.html; https://www.recantodasletras.com.br/artigos-de...