quinta-feira, 30 de julho de 2020

Vinde

O que Deus está nos propondo neste 18º domingo do tempo comum?

A resposta, se a quiséssemos de uma forma rápida e simplificada, seria dizer que o Senhor nos apresenta uma descrição do Reino de Deus, instalado entre os seres humanos.

Mas, a curiosidade humana nos leva a perguntar: em que consiste esse Reino?

Essa resposta foi-nos apresentada ao longo dos três domingos precedentes, nos quais líamos o capítulo 13 de Mateus. Ali Jesus nos descrevia o Reino, mediante parábolas.

Agora a liturgia nos convida a um passo a mais. Nos convida a olhar por dentro do Reino apresentado por Jesus.

Como sempre, trata-se de uma proposta. É como se Deus dissesse: “Isto é o que tenho para lhe oferecer!” Esta proposta vem na forma de uma ilustração do Reino! É como se olhássemos o Reino por dentro, depois dele consumado, instalado, entre nós.

Aos que aderem a essa proposta, Paulo, na carta aos Romanos (8,35.37-39), apresenta a força dessa promessa, com uma pergunta: “Quem nos separará?” (Rm 8,35). Aqueles que aderem à proposta, mesmo passando por dificuldades, perseveram, pois “Em tudo isso, somos mais que vencedores, graças àquele que nos amou!” (Rm 8,37). Jesus é a força e nos dá força para perseverarmos; para nos mantermos fiéis ao Reino.

Àqueles que ainda estão em dúvida, Isaías (55,1-3) convida: “Vinde” (55,1.3). Diante da sede ou da fome o profeta apresenta o convite do Senhor: “vinde às águas; vós que não tendes dinheiro, apressai-vos, vinde e comei, vinde comprar sem dinheiro, tomar vinho e leite, sem necessidade de pagamento” (Is 55,1).

Notemos que o apóstolo e o profeta nos apresentam um primeiro retrato do Reino: superação das dificuldades e satisfação das necessidades.

É claro que cada um de nós, individualmente, pode se recusar a entrar nesse Reino. Mas para aqueles que aderem à proposta, que respondem “Sim, eu vou”, “Sim, eu quero”, o Reino nos é apresentado em sua plenitude.

Aos que aderem à proposta do Reino, Paulo diz que nada “será capaz de nos separar do amor de Deus por nós” (Rm 8,39). E isso por um motivo simples e quase evidente: Deus não quer que ninguém se perca; Deus não quer o sofrimento; Deus não quer as dificuldades. A proposta do Reino é superação e satisfação plenas e de forma definitiva.

Mesmo que enfrentemos as piores dificuldades, e o apóstolo faz uma breve lista delas, “Tribulação? Angústia? Perseguição? Fome? Nudez? Perigo? Espada?” (Rm 8,35), Deus nos dará a força necessária para a superação e, antecipadamente, já podemos comemorar a vitória, pois “em tudo isso, somos mais que vencedores, graças àquele que nos amou!” (Rm 8,37).

Nascemos para a vitória sobre os dissabores, neste mundo; e na instalação do Reino receberemos as recompensas. Por isso, o profeta insiste no convite do Senhor: “Inclinai vosso ouvido e vinde a mim, ouvi e tereis vida; farei convosco um pacto eterno” (Is 55,3)

Outra amostra do Reino é a prática de Jesus, como nos mostra Mateus (14,13-21). Ele tem “compaixão” (Mt 14,14) e por isso cura e dá o alimento (Mt 14,19), com fartura (Mt 14,20).

Mas qual é a novidade desta imagem do Reino?

Talvez o fato de que sua instalação depende de nós! Talvez por isso sua apresentação em algumas etapas: a primeira é o fato de ser gratuito, é dom. Deus o oferece gratuitamente. Mas é um dom que tem que ser buscado: as multidões “saíram das cidades e o seguiram” (Mt 14,13). Certamente muitas outras pessoas havia nas cidades, e não seguiram Jesus, nem foram por ele curadas nem alimentadas. Mas quem o buscou recebeu o que buscava. Ou seja, o Reino está à nossa disposição, mas nós temos que desejá-lo, seguindo o mestre. Ele é dado para aquele que o procura.

Outra etapa é o fato de que o reino se instala pela mediação humana. Evidentemente Jesus poderia ter alimentado a multidão com seus próprios meios divinos. Mas à multidão faminta, Jesus envia os discípulos. Por seu lado, querendo desfazer-se do problema, os discípulos pretendem dispensar a multidão: “Este lugar é deserto e a hora já está adiantada. Despede as multidões, para que possam ir aos povoados comprar comida!” (Mt 14,15).

Outro aspecto está no fato de Jesus mostrar que a solução dos problemas não ocorre pela sua rejeição ou quando o passamos adiante, para que outro resolva. O reino exige comprometimento com o outro. Por isso Jesus não aceita a solução fácil e diz aos discípulos: “Eles não precisam ir embora. Dai-lhes vós mesmos de comer!” (Mt 14,16). Mas tem outro ingrediente: é necessário dar o que se tem. Era quase nada, mas havia algo a oferecer: “Só temos” (Mt 14,17).

A próxima etapa é o fato da organização. “Jesus mandou que as multidões se sentassem na grama” (Mt 14,19). Na balbúrdia e cada um buscando seu próprio interesse, não há possibilidade de se alcançar o bem comum. A multidão, organizada e buscando objetivos comuns, torna-se Igreja.

Havendo busca, por parte do ser humano, havendo a mediação de uns intervindo em favor de outros, havendo comprometimento e organização, o passo seguinte é a oração. Tendo o povo se organizado, concretiza-se a imagem definitiva do reino. Aí, então, Jesus “pronunciou a bênção. Em seguida partiu os pães” (Mt 14,19).

A supressão das dificuldades, o compromisso com o outro, é o objetivo. E, àquele que busca, o Senhor convida: pelo profeta “Vinde”; pelo mestre “Vinde benditos de meu pai” (Mt 25,34).

Neri de Paula Carneiro

domingo, 19 de julho de 2020

Dou-te um coração

Deus está fazendo uma oferta a Salomão e, por extensão, também a nós, neste 17º domingo do tempo comum. Salomão fez sua escolha (1 Rs 3,5.7-12). E nós, qual será nosso pedido?

Numa situação destas, com certeza, muitos de nós agiríamos como se estivéssemos diante do "gênio da lâmpada", na história das “Mil e uma noites”. Lá o “gênio da lâmpada” concede três pedido, ao ser libertado. Como o Senhor Deus é muito melhor e mais benevolente que o gênio, oferece uma oportunidade mais ampla: “pede o que desejas” (1 Rs 3,5), sem limites de quantidade de pedidos, pois nesse "pede o que desejas" está implícito um "tudo". Portanto Deus está dizendo: "Pede TUDO que desejas"

Diante de uma oportunidade dessas, a maioria de nós pediríamos: dinheiro, saúde, longevidade…. Alguns ainda pediriam poder… e, em muitos casos, a ruína dos inimigos…

Diante da oferta do Senhor, Salomão não pensou primeiro em si. Penou em seu povo. Pensou em sua responsabilidade diante desse povo. Pensou no outro.

E nisso está o valor da decisão de Salomão. Podendo pedir tudo, o jovem rei nada pede em benefício próprio. Pede algo em favor dos outros. E ele recebe, mas para o uso em favor do outro: seu povo. Seria isso uma lição para nossas lideranças políticas?

Em vez de se vangloriar por ser um jovem rei, reconheceu sua inexperiência: “eu não passo de um jovem, que não sabe comandar” (1 Rs 3,7). Essa postura, confessando a pequenez, mostrou sua grandeza. E essa condição foi a a condição de seu pedido: “Dá, pois, a teu servo um coração que escuta para governar teu povo e para discernir entre o bem e o mal”(1 Rs 3,9).

O tamanho da oferta do Senhor é a medida do coração de quem faz o pedido. Por esse motivo, ao dar o que Salomão pediu, um coração compreensivo, o Senhor lhe concede além do desejado: Concede sabedoria, riqueza e glória. O Senhor lhe informa: “Vou satisfazer o teu pedido; dou-te um coração sábio e inteligente” (1Rs 3,12). E se continuarmos a leitura veremos o alcance dos dons divinos. “E também o que não pediste, eu te dou: riqueza e glória” (1Rs 3,12).

Qual a explicação para a postura de Salomão e para a resposta de Deus?

A explicação nos vem da carta ao Romanos (8,28-30). Paulo, da mesma forma que Salomão, não queria algo para si. Deu-se, completamente, à comunidade. Em vários momentos, nas várias cartas paulinas, podemos ler a afirmação do apóstolo, dizendo que está completamente a serviço do evangelho e, portanto, da comunidade. Em razão desse ministério ele, acima de tudo, sabia que “tudo contribui para o bem daqueles que amam a Deus, daqueles que são chamados para a salvação” (Rm 8,28).

O dom de Deus é sempre infinito, cabe a nós acolhê-lo. Quem o acolhe é porque ama a Deus e manifesta esse amor na doação aos outros. Na doação aos irmãos. Na entrega em favor da comunidade.

Assim o fez Salomão, pedindo em favor do povo. Assim o fez Paulo, explicando que os dons são concedidos “aqueles que Deus contemplou com seu amor”. Esses são chamados a “serem conformes à imagem de seu Filho, para que este seja o primogênito numa multidão de irmãos” (Rm 8,29). Essa multidão de irmãos Deus “chamou”, “tornou justa” e, principalmente, “glorificou” (Rm 8,30).

A proposta divina do chamado, da justificação e da glorificação é como que o destino ou o objetivo da humanidade. A proposta é para todos, mas não são todos que optam por responder ao chamado, por assumir a tarefa de se tornar justo e, como consequência, receber a glória dos céus. A glória de poder participar do Reino dos Céus.

Mas Jesus insiste na explicação e no convite-oferta-chamado para o Reino. Ele, no desejo de que a multidão opte pelo reino (Mt 13,44-52) o apresenta, dizendo o que é “reino dos céus”. O reino é: “um tesouro escondido” (Mt 13,44); é “uma pérola de grande valor” (Mt 13,46); é “uma rede lançada ao mar”.

O reino é uma proposta de Jesus. Da mesma forma que a Salomão é feita uma proposta (pode pedir) e da parte de Paulo vem o chamado, de Jesus vem o convite para fazer uma escolha. Sabendo o que é o reino, ou sabendo do seu valor, Jesus convida à opção. E diz o que ocorrerá no final do período das escolhas: “Assim acontecerá no fim dos tempos: os anjos virão para separar os homens maus dos que são justos” (Mt 13,49).

Os maus serão descartados.

Os bons, já em vida, farão as obras do Senhor, como “discípulos do reino dos céus” (Mt 13,52) e depois merecerão o Reino que é um valor em si mesmo. Mas para merecê-lo o “discípulo do Reino” tem que estar voltado para o outro. Com o coração no outro. Um coração compreensivo. E, então, fazendo para o outro, ouvirá de Deus: “Dou-te um coração sábio”.

Em que consiste a sabedoria? Em fazer para o outro… Como anda o teu coração?
Deus está te fazendo uma oferta. O que você vai escolher?




Neri de Paula Carneiro

sábado, 18 de julho de 2020

Os justos brilharão

A contemplação do Reino de Deus. Este é um dos temas que a Igreja nos propõe para a reflexão, nas leituras deste 16º domingo do tempo comum.

E quais os critérios para contemplarmos e entendermos esse Reino, proposto e apresentado por Jesus e destinado aos justos?

A resposta se encontra nos detalhes das leituras que a Igreja nos propõe para a reflexão, neste dia, a começar com o trecho do evangelho segundo Mateus 13, 24-43.

Antes disso, entretanto, é bom nos lembrarmos que todo o capítulo 13, do evangelho segundo Mateus, é uma sucessão de parábolas (pequenas histórias de comparações). E com essas parábolas é que Jesus nos apresenta o Reino e os caminhos para chegar a ele.

Na perícope de hoje (trecho do evangelho ou de outro livro) Jesus nos apresenta o Reino em três comparações. Primeiro: “O Reino dos Céus é como um homem que semeou boa semente” (Mt 13,24). Depois diz que “O Reino dos Céus é como uma semente de mostarda” (Mt 13,31) e na terceira comparação Jesus diz que o “O Reino dos Céus é como o fermento” (Mt 13,33).

Essas três comparações nos dão algumas pistas a respeito do Reino: a primeira pista é a afirmação do Reino: ele “é”. Esse verbo é usado para indicar a existência. Jesus diz que ele “É” porque ele existe. Admitamos ou não o Reino é uma realidade. A segunda pista está na primeira comparação: o reino é como a “boa semente”. A boa semente, quando plantada, germina. Isso significa que o Reino, embora existente em si mesmo, ente nós ele precisa germinar, para crescer. E a germinação depende do solo (e a respeito dos tipos de solo Jesus falou na liturgia do domingo anterior – 15º domingo do tempo comum; Mt 13,1-23). Uma terceira pista a respeito do Reino Jesus fornece na outra comparação: a semente do reino, que é uma semente boa, é a de mostarda. Uma semente pequenina mas, por ser boa, germina e cresce oferecendo abrigo. E o abrigo do reino está disponível a todos. A quarta pista a respeito do reino está na comparação com o fermento. O fermento-Reino, faz crescer a massa, mas para que isso ocorra, é necessário que a mulher faça a mistura. Aqui Jesus nos faz lembrar e valorizar o dom da fecundidade.

O homem, pode até ser bom semeador, e usar uma boa semente, mas sem a fecundidade feminina não há crescimento. A terra-mãe é fecunda e faz nascer a semente. A semente é boa, e germina. Mas o fermento (que é masculino), pode até ser excelente, mas sem a mistura feita pelo dom fermento, não é eficiente. Não faz crescer. O crescimento do Reino-entre-nós, depende da mistura do fermento na massa. A interação faz o crescimento. O crescimento do Reino não é para indivíduos isolados, mas para a comunidade. É o fermento, misturado pela fecundidade feminina, que faz o Reino crescer na comunidade, semente-do-Reino.

Outras pistas, ou características, do Reino, podem ser buscadas no livro da Sabedoria (12,13.16-19). Algo a ser destacado é o fato de que o Reino é o convívio com Deus, Todo Poderoso. Um Deus que fundamenta seu poder na justiça. Cabendo destacar que a justiça divina não é o cumprimento de algum principio legal, mas a equidade. Ou seja, cumprir uma lei qualquer, nem sempre é uma ação justa, mas é justo quem domina a “própria força”, quem “julga com clemência”, quem governa “com grande consideração” (Sb 12,18). como o faz o Senhor. Também faz parte das características do reino o dom da esperança e “o perdão aos pecadores” (Sb 12,19).

Também Paulo (Rm 8,26-27), oferece informações a respeito do Reino. O apóstolo parte da afirmação da ação do Espírito. Mesmo sem mencionar o Reino dos Céus, ao dizer que o "Espírito vem em socorro da nossa fraqueza” e que “é o próprio Espírito que intercede em nosso favor” (Rm 8,26), Paulo está demonstrando que as sementes do Reino se estendem em favor das pessoas. E a ação do Espírito é uma ação do Reino porque “é sempre segundo Deus que o Espírito intercede” (Rm 8,27).

Nessa descrição e caracterização do Reino manifesta-se mais uma: a dimensão trinitária. O Reino é dom do Pai, manifestada pelo Espírito e anunciada pelo Filho. A ação de Jesus de Nazaré, anunciando o Reino, é uma manifestação do Espírito que nos conduz ao Pai. E isso para nos indicar que o Reino de Deus entre nós acontece e se manifesta na vida comunitária. O fermento do reino, é uma mistura comunitária. O reino é uma oferta para todos, recebido individualmente, mas se manifesta na comunidade.

Por fim, não podemos nos esquecer que diante da proposta do Reino, o ser humano tem que tomar uma decisão: assume-se como trigo ou como joio.

A opção, a escolha, é de cada um. A proposta de ser trigo é oferecida a todos. Mas alguns preferem ser joio. Ser trigo é aceitar o reino e todas as maravilhas inerentes à presença e convívio com Deus. Ser joio é escolher o afastamento definitivo da convivência com Deus, no Reino que nos foi preparado. Ser trigo é se juntar à comunidade em favor da comunidade. Ser joio é o afastamento da vida comunitária, escolhendo ser queimado no fogo do isolamento (Mt 13,42).

Aqueles que escolhem e acolhem a semente e o fermento do Reino, esses são aqueles que “brilharão como o sol no Reino de seu Pai” (Mt 13, 43)

Neri de Paula Carneiro

sábado, 11 de julho de 2020

Assim como

O que Deus está nos propondo neste décimo quinto domingo do tempo comum?

Estamos diante de leituras que se apresentam não só como belos textos metafóricos, mas como textos profundos em suas comparações, ensinando os caminhos para a vida.

Na primeira leitura Isaías (55,10-11) nos informa a respeito do poder a palavra de Deus. Ela vem de Deus, assim como a chuva vem do céu. E assim como a chuva cai sobre a terra com a finalidade de fazer a semente germinar, a palavra de Deus vem a nós com a finalidade de produzir efeitos.

Essa palavra é poderosa não por ser um texto, mas por representar a vontade de Deus. Por isso ela “realizará tudo que for de minha vontade e produzirá os efeitos que pretendi” (Is, 55,11).

A palavra de Deus é eficiente, é produtiva, é fecunda, é plena de vida, pois faz germinar a semente e essa semente produz alimento…. E o alimento produz vida, mantém a vida. O alimento é vida, pois o alimento é dom de Deus. E, na celebração litúrgica, o alimento é o próprio Deus.

Por sua vez, Paulo, na carta aos romanos (8,18-23) aponta para o sentido da vida. E não só o sentido da vida, mas também o sentido do sofrimento. Ele nos ensina que o sofrimento é o caminho para a glória definitiva. Ao ser libertado das dores o ser humano participará “da liberdade e da glória dos filhos de Deus”.

Diante das palavras de Paulo, mostrando o sentido da dor, afirmando que ela é o caminho para a plenitude de Deus, alguém poderia argumentar: “Se o caminho para a glória eterna é o sofrimento, isso significa que Deus gosta de ver as pessoas sofrendo para lhes conceder a vida plena. Então esse é um Deus maldoso”.

Não é esse o sentido da dor. Nem para Paulo, nem para a Bíblia e menos ainda para os ensinamentos de Jesus. A dor, os sofrimentos, os dissabores da vida, as dificuldades… não são a vontade de Deus. Tudo isso representa os reflexos das limitações da vida, das coisas, da materialidade.

E, em alguns casos, os sofrimentos são consequências de nossas escolhas!

Por isso é que Paulo afirma: “toda a criação, até o tempo presente, está gemendo como que em dores de parto. E não somente ela, mas nós também”. E Paulo explica o alcance dessas dores. Elas existem enquanto estamos “aguardando a adoção filial e a libertação para o nosso corpo” (Rm 8,22-23). Quer dizer: as dores existem, como contingência da criação, porque a criação é limitada, mas a criação se destina à glória divina, pois se origina do próprio Deus.

Assim sendo, podemos afirmar que Deus não quer nosso sofrimento. Mas como eles existem, porque são condições da materialidade e finitude das coisas e de nós mesmos. Então, qual o significado disso, desse mundo que chora como em dores de parto?

A Deus interessa a atitude diante do sofrimento. Deus não se alegra com o sofrimento, mas quer saber como nos comportamos no seu enfrentamento. Aqueles que amam a Deus sabem que Ele não nos permite um fardo maior do que aquilo que podemos suportar.

E podemos nos comportar de duas formas diante desse fardo: o primeiro é aproveitando a dor para crescer; para nos fortalecermos; para aprendermos as lições que a dor ensina. São lições doloridas, mas salutares. Então podemos enfrentar nossos sofrimentos de forma positiva. Sabendo que o problema antecede a solução, mas sabendo que a solução existe!

Outra forma é enfrentar os dissabores de forma negativa. Maldizendo e não sendo capaz de aprender, com a dor. Agir assim é não perceber que não existe planta nova sem que a semente germine. E o germinar da semente é um processo de aniquilamento. A semente deixa de existir para ceder lugar à planta, à nova vida.

Essa é uma das lições que podemos aprender da parábola, contada por Jesus, no evangelho de Mateus (13,1-23). Também Jesus, falando dos diferentes terrenos em que a semente é lançada, está falando do valor da vida, dos problemas a serem superados e da postura que podemos adotar ao nos depararmos com as dores do nosso dia a dia, ou os problemas de nossa existência.

São duas as posturas. A primeira é pessimista. Pra esses Jesus afirma: “Todo aquele que ouve a palavra do Reino e não a compreende, vem o Maligno e rouba o que foi semeado em seu coração” (Mt 13,19). A segunda é otimista. E para estes Jesus diz: “A semente que caiu em boa terra é aquele que ouve a palavra e a compreende. Esse produz fruto”(Mt 13, 23).

A semente é a palavra, e vem de Deus, como a chuva. Nós somos os terrenos: alguns pedregosos, outros à beira do caminho, outros repletos de espinhos. Mas também existem os terrenos férteis. Estes são produtivos. Nesse terreno a semente vai morrer (sofrendo) e ressurgirá em frutos de e para vida nova.

Os terrenos espinhentos, pedregosos ou à beira do caminho, são as dores. Ao perceber o lado edificante da dor, a semente pode germinar e produzir muito fruto. Mas essa já é a nossa resposta. E a resposta depende apenas de nós.

Pode ser difícil e dolorido, mas é possível tirar lições da dor. Mas é necessário lembrar que Essa semente e nesses terrenos, quem semeia é Jesus. A nós cabe dar a resposta. A nós cabe a postura diante da dor: o desespero que aumenta a dor ou a abertura para aprender com a dor e edificar ainda mais nossa vida. Assim como a chuva, assim como a semente, assim como as dores do parto: tudo é proposta e esperança de vida melhor.

Neri de Paula Carneiro

sábado, 4 de julho de 2020

Seu domínio se estenderá

Qual é a proposta que Deus nos faz neste decimo quarto domingo do tempo comum?

Tanto a leitura de Zacarias (9,9-10) quanto na carta de Paulo aos Romanos (8,9.11-13) fazem propostas para mudanças. Mudança de comportamento; mudança de atitude. Mas, para que essas mudanças ocorram é necessária uma outra mudança, esta indicada por Jesus: fazer-se pequenino.

Uma mudança de comportamento é sugerida por Zacarias. A ideia que temos de uma monarca é de uma pessoa que sempre faz questão de mostrar sua majestade por meio das aparências. O poderoso evidencia seu poder mediante o esplendor de sua apresentação. Ele apresenta-se com carros e cavalos e exércitos (Zc 9,10). E, normalmente, se preocupa apenas em fazer cumprir sua vontade, independentemente de isso ser ou não o melhor para seu povo. Aliás, para o monarca, nesses termos, o seu povo é o que menos importa.

Não é essa a figura do o rei, apresentado por Zacarias. E aqui temos uma mudança de perspectiva, pois este rei, apresentado pelo profeta vem ao encontro; ele é justo e salvador; ele é simples, pois “vem montado num jumento” (Zc 9,9) ao contrário do comportamento dos monarcas que se apresentam montados em belos cavalos e esperam a ovação do povo.

Esse rei humilde, apresentado pelo profeta, vem, não para a guerra e conquista, mas para a paz entre as nações. Por isso quebra o arco (ou seja, vai eliminar as armas). Os carros e cavalos perderão o valor pois seu objetivo é anunciar a paz. E, havendo paz, as fronteiras deixarão de ter sentido. Por isso o reino desse rei justo, humilde salvador, será tão abrangente: de mar a mar e atingirá os “confins da terra”(Zc 9,10). Seu domínio é extenso não poque é poderoso, mas porque é justo e vem em nome da paz.

Por sua vez, Paulo (Rm 8,9.11-13), faz referência a uma mudança de atitude: viver, não de acordo com nossas vontades carnais, “mas segundo o espírito” (Rm 8,9). Podemos dizer que Paulo é ainda mais exigente que Zacarias pois sua proposta cobra radicalidade completa, sem meios termos. Trata-se de fazer uma opção definitiva cujo alcance, ou resultado, pode conduzir à vida ou à morte (Rm 8,13).

Então, qual a consequência dessa nova postura, dessa mudança de atitude?

Um redirecionamento na vida. São as atitudes, ou a forma de conduzir o dia a dia, que demonstram a presença do Espírito; que evidenciam as opções que assumimos.

Não se trata de dizer, mas de fazer. A vida cristã exige matar o “procedimento carnal” (Rm 8,13), para viver “segundo o espírito”. E isso implica assumir a postura dos “pequeninos” (Mt 11,25) e não da ostentação.

Cabe lembrar que somos devedores de uma dívida “não para com a carne, para vivermos segundo a carne” (Rm 8,12), mas com o Espírito de vida que nos “vivificará” (8,12). O espírito de vida, está presente naqueles que realizam, em suas vidas, os atos do Espírito: amor, solidariedade, altruísmo… que são posturas de quem não está em busca da ostentação.

Esse mesmo Espírito de vida, que dá força para superar o espírito carnal, é aquele que confere forças para superar os desafios, as dificuldades, os problemas, as dores… tudo que se insere na forma de um jugo, ou fardo, pesado.

A leveza do fardo, ou do jugo, manifesta-se numa vida de simplicidade, de amizade, de superação dos conflitos…

Para que isso isso aconteça é necessário se quebrarem, ou se eliminarem, as armas. Que se acabem com os símbolos de poder, os mecanismos de dominação…

E, para isso acontecer, se faz necessário assumir não a dominação, mas a mansidão, a humildade, que não foram reveladas “aos sábios e entendidos”, mas aos que se fazem pequenos. E estes, justamente por não almejarem a grandeza, é que são capazes de ampliar os domínios da paz e do amor.

É para quem assim procede que Jesus dirige suas palavras: “Tomai sobre vós o meu jugo e aprendei de mim, porque sou manso e humilde de coração, e vós encontrareis descanso. Pois o meu jugo é suave e o meu fardo é leve” (Mt 11,29-30). E quando as pessoas puderem assim proceder, se instalará o reino do amor, cujo “domínio se estenderá de um mar a outro mar, e desde o rio até aos confins da terra” (Zc 9,10).

Neri de Paula Carneiro

domingo, 28 de junho de 2020

Não somente a mim

Estamos celebrando a solenidade de São Pedro e São Paulo. Para tanto, a Igreja nos propõe refletir Atos dos Apóstolos 12,1-11; 2 Timóteo 4,6-8.17-18; Mateus 16,13-19.

Mas o que tem de especial nesta festa, que vai muito além dos festejos juninos?

Tem dois personagens que, podemos dizer, foram “escolhidos a dedo” por Jesus.

O primeiro, Pedro, a pedra que se tornou fundamental para a Igreja. Pedro o homem da iniciativa. Aquele que sem pensar muito sabia, pois era guiado pela fé, que Jesus era muito mais que só o mestre. Ele era “o Messias, o Filho do Deus vivo" (Mt 16,16).

Pedro é esse personagem que, aprisionado por Herodes, não entra em desespero. Mesmo sabendo que outros irmãos já haviam sido mortos a mando do rei (12,2). Preso, com risco de ser executado no dia seguinte, “Pedro dormia entre dois soldados, preso com duas correntes” (At 12,6).

A serenidade de Pedro contrasta com o comportamento da maioria de nós. Em uma situação extrema, como no caso do apóstolo, a maioria de nós entraria em desespero. Ele se mantém sereno, pois sabe que em razão de seus méritos e da oração da Igreja (At 12,5), o Senhor não o abandonaria. E o anjo libertador vem para colocá-lo em pé: “Levanta-te depressa!” (At. 12, 7); para o revestir: "Coloca o cinto e calça tuas sandálias!" e para clocá-lo a caminho: "Põe tua capa e vem comigo!"( At 12, 8).

Pedro sabe que o Senhor não o abandona, mas também sabe que a liberdade não é um milagre espontâneo. Sabe que é um processo que depende de uma resposta sua. Deus o liberta, mas é ele que precisa se por a caminho. A superação da dificuldade depende, sim da oração e do apoio do Senhor, mas é resultado da ação humana. Deus não realiza milagre contra a ou independentemente da vontade humana, pelo contrário, Ele vem para responder ao ser humano.

O outro personagem, desta celebração é Paulo. Aquele que, sem medo de não ser modesto, é capaz de afirmar: “Combati o bom combate, completei a corrida, guardei a fé.” (2 Tm 4,7).

Paulo deve ter sido um personagem admirável. Entre outras coisas pela sua dedicação apaixonada a Jesus. A considerar pelo vigor dos seus escritos, deve ter sido um pregador incansável e que cativava pelos seus discursos.

Podemos, inclusive, dizer que, junto com Pedro, Paulo é cofundador da Igreja, em sua ampliação para o mundo. O ardor missionário de Paulo foi o que plantou a semente da Igreja ramificada pelo mundo

Mas Paulo também passou por dificuldades e, nem por isso perdeu a esperança. Pelo contrário, sabia-se amparado pelo Senhor. Tinha certeza de que em suas dores o Senhor: “esteve a meu lado e me deu forças” (2 Tm 4,17).

Paulo, também prisioneiro, sabe que está em risco de vida: “estou para ser derramado em sacrifício; aproxima-se o momento de minha partida” (2 Tm 4,6). Mesmo assim, não perde o ardor missionário: continua a obra missionária por meio das cartas e afirmando que a vitória sobre as dores está reservada “não somente a mim, mas também a todos que esperam com amor” (2 Tm 4,8).

A mensagem paulina, portanto, além de ser otimista, é uma demonstração de que, apesar das dificuldades, existe a possibilidade da superação. Ele nos ensina que a superação das dores não é um dom gratuito. Pelo contrário, depende do engajamento, da ação; depende daquilo que nós realizamos. A superação dos sofrimentos é consequência daquilo que fazemos para o superar. E, mais uma vez, a graça de Deus vem como resposta ao nosso esforço. Àquele que se esforça, dedica-se à causa do reino, pode dizer, como Paulo que “Agora está reservada para mim a coroa da justiça” (2 Tm 4,8).

Por que é necessário esse engajamento, por parte do cristão?

Para participar do processo de instalação do reino de paz e justiça. É a ação do cristão que realiza, que atualiza e faz acontecer as transformações necessárias ao mundo corrompido. A ação do cristão não se resume à oração para que o mundo seja melhor. A ação do cristão supõe, ao lado e como consequência da oração, a ação.

Sem a ação do cristão o mundo continuará sem conhecer Jesus (e consequentemente, sem saber realizar as obras cristãs) e se não o conhecem, dirão, a respeito de Jesus aquilo que disseram os que com Ele conviveram: "Alguns dizem que é João Batista; outros que é Elias; outros ainda, que é Jeremias ou algum dos profetas" (Mt 16,14). Dirão isso e muito mais, sem realmente conhecê-lo.

Ao cristão é que cabe esse anúncio. Esse esclarecimento. Se o cristão não o disser e não o demonstrar, o mundo continuará sem saber quem é e como realizar as obras de Jesus. As obras de salvação, as obras de transformação. Isso implica dizer que se o cristão não apresentar Jesus ao mundo, o mundo não o conhecerá.

Essa é a função da chave, “dada” a Pedro (Mt 16,19). A “chave do céu” é entregue a Pedro, porque ele passa a simbolizar a Igreja, que são os cristãos que reconhecem em Jesus o Messias. Mas não se trata de conhecer, por saber quem é Ele, mas em agir como Ele ensinou. Se o cristão não age como Ele ensinou, é porque ainda não O conhece, mesmo que frequente a casa de oração ou a comunidade.

O poder a chave é da Igreja, do povo de Deus. É o povo de Deus, ao realizar as obras do Senhor, que pode ligar a terra e o céu. Por isso a afirmação paulina: “não somente a mim, mas também a todos que esperam com amor” (2 Tm 4,8). Por isso, a pergunta de Jesus, continua sendo dirigida a nós: "E vós, quem dizeis que eu sou?"

Neri de Paula Carneiro

sábado, 20 de junho de 2020

Injúrias de tantos homens

Neste décimo segundo domingo do tempo comum podemos começar nossa reflexão a partir das palavras de Jeremias (20,10-13).

E podemos começar justamente pelo que, às vezes, se diz dele: que é um profeta que gosta de reclamar. Tanto que a ele é atribuída a autoria do livro das Lamentações.

Mas, de que reclama Jeremias?

Entre outras coisas, das “injúrias” e do “medo” espalhado por “tantos homens” (v 10). Mas, alguém pode dizer, só isso não é motivo suficiente para passar a vida se lamuriando.

Isso é verdade. Mas também é verdade que não é só disso que o profeta está falando. Está se referindo àqueles que o cercam. Na realidade está se referindo a todos aqueles que se fazem de amigos, mas permanecem torcendo para que cometa uma falha; torcendo para que “cometa um engano”. Torcendo para ver seu fracasso.

E por que Jeremias se lamenta?

Por conta da infidelidade dos dirigentes do povo. Pois, ao invés de os levar na direção de dias melhores os conduzem por caminhos que não levam ao Senhor. Para confirmar isso, basta lermos alguns os versículos iniciais desse capítulo e também o capítulo seguinte: os dirigentes são a causa do sofrimento pelos quais passa o povo. E pelos quais sofre o profeta.

Certo de que sua causa, que é a denúncia contra os dirigentes, é a causa de Deus, o profeta se sente à vontade para dizer que o Senhor está com ele. E, por ser fiel a Deus, o profeta sabe que seus inimigos, que são os inimigos de Deus, embora até invoquem seu nome, serão humilhados. E o profeta afirma categoricamente: esses opressores do povo fracassarão completamente, nada conseguirão “a não ser uma vergonha eterna, que jamais será esquecida” (v 11). vergonha que, historicamente se concretizou naquilo que costuma ser chamado de “cativeiro na Babilônia”.

Essa aflição do profeta encontra eco nas palavras de Paulo aos Romanos (5,12-15). As maledicências, de que fala o profeta, são o reflexo do pecado, que “que entrou no mundo por um só homem” (v 12) trazendo, com ele, a morte… para todos os homens. E a perdição para os que se afastam dos caminhos do Senhor.

E, da mesma forma que, para o profeta, o Senhor “salvou a vida de um pobre homem das mãos dos maus (Jr 20,13), para Paulo a “graça de Deus”, como um “dom gratuito”, é dada a todos “através de um só homem, Jesus Cristo”. Essa graça, esse dom, essa salvação é derramada “em abundância sobre todos” (Rm 5,15). E por ser graça, por ser um dom, a salvação é a alternativa à morte, mas isso somente para os que escolhem se afastar do caminho da perdição que é o caminho de quem prejudica os outros.

A mesma relação pode-se fazer relação ao evangelho (Mt, 10,26-33). Vendo-se perseguido, agredido e injuriado, Jeremias se dá conta de que “o Senhor está ao meu lado, como forte guerreiro” (Jr 20,12). Da mesma forma, em Mateus, Jesus afirma aos apóstolos que não devem ter medo. Toda maldade será desmascarada, uma vez que “nada há de encoberto que não seja revelado, e nada há de escondido que não seja conhecido” (Mt 10,26). Mesmo que esse, ou esses, que escondem o mal vivam invocando o nome de Deus!

Jesus insiste na necessidade da coragem para enfrentar os representantes da maldade, que se revestem com aparências de pessoas de bem: não tenhais medo, diz Jesus. “Não tenhais medo dos homens” (v 26). Eles são falsos, mas sua mentira e falsidade será descoberta. E Jesus vai além: “Não tenhais medo daqueles que matam o corpo, mas não podem matar a alma!” (v 28).

Três vezes Jesus insiste: “Não tenhais medo” (vv 26; 28; 31).

Mas, por que Jesus insiste, dizendo que não precisa ter medo?

Porque ele sabe que o sofrimento, provocado pelos homens maus, não tem alcance definitivo. Porque sabe, e o demonstra com a própria vida, que acreditar e realizar as obras do bem é o único caminho para superar, para se preservar e para vencer as obras do mal. Porque sabe do nosso valor: nós valemos a sua vida.

Jesus sabe do nosso valor. Por isso oferece a oportunidade da escolha. Uma oportunidade de autodeclaração. E declarar-se contra ou a favor de Jesus, não é o que se pode expressar com palavras, mas aquilo que se pode fazer com os gestos, com as atitudes, com a vida.

Assim sendo, declarar-se a favor de Jesus, é realizar obras de salvação, contra as “injúrias de tantos homens”. E quem faz isso, concorda e se posiciona como Jeremias, dizendo: “Cantai ao Senhor, louvai o Senhor, pois ele salvou a vida de um pobre homem das mãos dos maus.”

Neri de Paula Carneiro

sábado, 13 de junho de 2020

Às ovelhas perdidas

Na sequência do ano litúrgico, estamos retornando ao tempo comum. Estamos no décimo primeiro domingo.

Nossa reflexão, para este domingo, pode começar justamente com uma indagação: o que tem levado o ser humano a se afastar de Deus?

A partir de nossa fé, sabemos que Deus é o criador e como tal deseja que o ser humano não o abandone. Sabemos, também, que Deus não depende nem precisa de nós, mas, mesmo assim, deseja que nos mantenhamos fiéis aos seus ensinamentos e princípios. Sabemos, além disso, que seus ensinamentos e princípios chegaram a nós a partir de um povo escolhido. Só que esse povo, também cometeu inúmeros deslizes, afastando-se do Senhor.

E nisso já se nos apresenta um princípio importantíssimo: Deus nos quer, mas respeita nossa decisão e nossas escolhas. Respeita, inclusive nossa decisão de não o seguirmos.

Em razão de um dos tropeços do povo infiel é que se insere a primeira leitura (Êxodo 19,2-6 a). Enquanto o povo está acampado ao pé da montanha, Moisés sobe para o encontro com Deus, de quem ouve uma promessa condicionada. Deus rememora o episódio do Êxodo, para referendar sua proposta, que deve ser transmitida ao povo por Moisés mediador: “Se ouvirdes a minha voz e guardardes a minha aliança, sereis para mim a porção escolhida dentre todos os povos” (v. 5)

Notemos que a promessa divina é eterna, concedendo alto privilégio: ser a nação escolhida. Mas isso somente SE. Se o povo for fiel, será escolhido; caso não o seja…

Observando a história sagrada, e também a história da humanidade, logo descobrimos: o povo não foi fiel. Essa infidelidade foi o que propiciou a vinda de Cristo que, de acordo com o apóstolo Paulo (Romanos 5,6-11), em resposta à nossa fraqueza, “morreu pelos ímpios” (v. 6).

Por que foi que Cristo morreu? Porque seu povo foi infiel e desviou-se do Deus da Aliança. Mesmo seu povo escolhido tendo sido infiel, Deus não o abandonou. E Paulo apresenta o argumento pelo qual demonstra o amor de Deus: “a prova de que Deus nos ama é que Cristo morreu por nós, quando éramos ainda pecadores”. Os pecados do mundo foram redimidos pela morte de Cristo. A morte de Cristo foi um ato de rebeldia do povo escolhido.

Por esse motivo é que Paulo afirma que em sua morte Cristo redime ao mundo e com sua ressurreição nos assegura a vida.

O povo escolhido havia sido escolhido não por seus méritos, mas por predileção divina. E não foi sem motivo. Por meio desse povo, o Senhor Deus quis alcançar todos os povos.

Entretanto, segundo Mateus (9,36-10,8), Jesus constata o abandono em que se encontra seu povo. As multidões dão mostras do abandono. O povo que deveria ser luz dos povos, não estava cumprindo com esse propósito.

Essa situação de abandono foi a constatação de Jesus. E isso motivou sua compaixão. Olhou a multidão e percebeu seu abandono: “estavam cansadas e abatidas, como ovelhas que não têm pastor” (9,36)

Então o Senhor, compassivo, envia seus discípulos para tentar reacender o espírito da Aliança. “Ide, antes, às ovelhas perdidas da casa de Israel!” (10,6)

Naquele contexto de renovação da Aliança, as ovelhas perdidas eram os membros do povo eleito, que estavam abandonando ao Senhor: eram a ovelha abandonando o pastor.

Em nossos dias a palavra do evangelho é dirigida não em primeiro lugar ao povo hebreu mas aos seguidores de Jesus. “O Reino dos Céus está próximo!”

E, para que ninguém mais se perca, o próprio Senhor Jesus faz o apelo aos seus discípulos: Peçam ao “dono da messe que envie trabalhadores para a sua colheita” (9,38)

Deus desejou que um povo fosse luz dos povos. Mas essa luz não foi luminosa o suficiente para atrair a todos. Então veio o próprio Senhor e é Ele que nos envia não só à casa de Israel, mas a todas as ovelhas perdidas. As quais se afastaram do senhor por conta de sua liberdade de escolha. Somo enviados, portanto, para reconvocar todas as ovelhas perdidas.

Neri de Paula Carneiro

quarta-feira, 10 de junho de 2020

Não é como aquele

A solene festa do Santíssimo Corpo e Sangue do Senhor é uma das poucas que a Igreja celebra e que não remonta à Igreja primitiva, do período apostólico. Trata-se de uma solenidade que nasceu da fé que a Igreja aprendeu a cultivar. Foi instituída pelo papa Urbano IV, mas o pontífice apenas oficializou aquilo que o povo já havia consagrado.

Eis o que podemos ler nono site da CNBB :

“A festa de Corpus Christi foi instituída oficialmente pelo papa Urbano IV, com a publicação da bula Transiturus de hoc mundo, em 8 de setembro de 1264. A origem da celebração remete à devoção eucarística iniciada na França e na Bélgica, antes do século XII.

Ligada à piedade do povo cristão, a solenidade também é lembrada pela influência das visões da monja agostiniana belga Juliana de Cornillon, as quais mostravam o anseio de Cristo para que o mistério da Eucaristia fosse celebrado com destaque.

Tais visões foram consideradas decisivas para a decisão do papa, em 1264. Mas foi somente 50 anos depois da morte de Urbano IV que a Solenidade ganhou caráter universal definitivo com a confirmação bula Transiturus de hoc mundo,pelo papa Clemente V em 1314.” (https://www.cnbb.org.br/corpus-christi-a-celebracao-da-presenca-real-de-jesus-cristo-no-pao-e-no-vinho-consagrados-com-a-santa-missa/)




E se acompanharmos as leituras da solenidade podemos perceber a centralidade da Eucaristia, desde sua prefiguração, no livro do Deuteronômio (8,2-3.14b-16a), sua confirmação na palavra de Paulo (1 Cor 10,16-17) e nas palavras de Cristo, expressas no evangelho de João (Jo 6,51-58)

Na leitura do Deuteronômio, Moisés instrui ao povo, insistindo na necessidade da fidelidade ao Senhor. Lembra ao povo como o Senhor usou a trajetória pelo deserto para reforçar o episódio da libertação. Tudo para dizer que o senhor é quem fornece não só os rumos da sociedade (sair da “casa da servidão”, no Egito v 14), como o alimento para a caminhada (“fez jorrar água”, v 15; e “alimentou no deserto com maná”, v 16).

Com esses dons água e maná, o Senhor pretendia demonstrar que Ele está no controle, por isso Moisés faz a afirmação retomada por Jesus, mostrando que: “nem só de pão vive o homem, mas de toda a palavra que sai da boca do Senhor”(v 3).

Não podemos nos esquecer, portanto que tudo foi dado pelo Senhor, mas foi necessário que as pessoas colhessem, sem acumular excedente. A oferta é divina, mas a realização é humana.

A água e o maná podem ser vistos como prefiguração do corpo e sangue, na comunhão do Senhor. O corpo e o sangue, abençoados, partidos e comungados, de acordo com as palavras de Paulo (1Cor 10,16-17), é corpo e sangue de Cristo, formando a unidade que é a Igreja: há um só pão porque “somos um só corpo”.

E se alguém ainda não está acreditando, como os judeus, é o próprio Jesus que afirma, segundo o evangelho de João (6,51-58). Mas o que afirma Jesus?

Ele faz uma lista de afirmações: “Sou o pão vivo”; “quem comer desse pão terá vida eterna”; o pão “é minha carne”; se alguém não comer dessa carne nem beber esse sangue não terá vida; quem como e bebe “tem vida eterna”; quem come e bebe será ressuscitado “no último dia”; quem como e bebe, “permanece em mim e eu nele”; quem “me come viverá por causa de mim”.

Mas não se pode perder de vista a afirmação final: o pão (o maná) era um alimento divino, mas “vossos pais comeram e morreram”. Por isso a importância do pão e do vinho, que passam a ser alimento de vida: “minha carne é verdadeira comida e o meu sangue, verdadeira bebida”. É o pão e o vinho comungado que dão a vida, pois “Aquele que come este pão viverá para sempre.”

Esse pão e esse vinho, agora corpo e sangue, são diferentes daquele oferecido no deserto: “não é como aquele que os vossos pais comeram”. Este é o pão da vida.

Neri de Paula Carneiro

sábado, 6 de junho de 2020

Povo de cabeça dura

Nesta celebração da solenidade da Santíssima Trindade, retomando a caminhada do tempo comum, somos interpelados pelo gesto do amor do Deus Comunidade Trina. Essa interpelação tanto está expressa na leitura do livro do Êxodo (34,4b-6.8-9) como na carta de Paulo aos coríntios (2 Cor 13,11-13) e no evangelho de João (3,16-18).

Para entendermos o texto do Êxodo, precisamos situá-lo em seu contexto. Ou seja, precisamos nos lembrar de que num capítulo anterior o Povo de Deus havia quebrado a fidelidade, cultuando outras divindades. Em razão disso, Moisés quebra as tábuas da Lei. Mas Deus decide dar nova chance ao povo que, segundo Moisés é “um povo de cabeça dura” (34,9).

Mesmo diante da infidelidade o Senhor, por ser “ misericordioso e clemente, paciente, rico em bondade e fiel” (34,6) já havia se decidido a dar nova oportunidade ao povo infiel. Por isso havia ordenado a Moisés entalhar novas tábuas e subir ao monte, para um novo encontro. E assim, diante do Senhor, Moisés intercede em favor do povo. O representante do povo infiel intercede ao Deus fiel. E como intercessor, Moisés faz dois pedidos importantes: primeiro pede ao Senhor: “caminha conosco”, pois as outras divindades, por serem falsos deuses, eram estáticos, fixos… Só o Deus da vida poderia acompanhar ao povo pecador. Por isso o segundo pedido de Moisés: “perdoa nossas culpas” (34,9).

Mas a súplica de Moisés só é compreensível se for colocada não na perspectiva humana, mas numa perspectiva divina. A perspectiva humana diz respeito ao fato atual, ao momento presente. Por isso é limitada e se insere apenas na história. Mas a perspectiva divina, que concede nova oportunidade, insere-se na perspectiva do amor eterno. Por isso foi que o Senhor “desceu na nuvem e permaneceu com Moisés”.

Descer e permanecer com seu povo é uma ação constante do Pai. Afinal, diferente das pseudo divindades, desde o início do livro do Êxodo mostra seu plano de fidelidade. O Senhor é um Deus que “ouve”, “vê”, desce e liberta seu povo (Ex. 3,7-10).

O programa do capítulo 3 se concretiza no capítulo 34. Moisés foi enviado pelo Senhor e como tal se torna intercessor em favor do povo. E, dessa forma entendemos o novo compromisso, novo estágio da Aliança de Deus com o povo (34,10). E isso também nos remete à carta de Paulo (2Cor 13,11-13).

Por amor a Jesus Cristo, o Filho, Paulo também se faz intercessor. Ao mesmo tempo que ora pela comunidade, orienta-a no sentido do “aperfeiçoamento”. Podemos dizer, portanto, que da mesma forma que o povo de Moisés estava se afastando do convívio com o Pai, a comunidade de Corinto estava se afastando dos ensinamentos de Jesus, transmitidos pelo apóstolo.

Em razão da divisão na comunidade, Paulo exorta-os a viver na concórdia; em razão dos atritos, estimula a paz. A orientação do apóstolo é clara: havendo concórdia, haverá paz; havendo paz, significa que ali está presente “ Deus do amor e da paz” (v11). E isso nos leva à saudação final do apóstolo. Na medida em que a comunidade se esforça para superar seus problemas e divisões pode, cada vez mais, contar com ajuda do Deus trindade. Havendo esforço humano, significa que não há rejeição. E se a comunidade não rejeita ao Senhor, então passa a ser merecedora da intercessão paulina: “A graça do Senhor Jesus Cristo, o amor de Deus e a comunhão do Espírito Santo estejam com todos vós” (v 13).

Mas por quê estamos falando que essa presença divina depende da comunidade? Porque Deus se oferece constantemente, mas respeita o ser humano em suas vontades e decisões. O ser humano é livre para aderir ou não ao plano salvífico do Senhor.

E isso nos leva ao evangelho de João (3,16-18). Por amor, Deus nos envia seu filho, para nos conceder a vida eterna, como a nova tábua da lei, de Moisés. Entretanto, agora não se trata mais de letra morta, mas do próprio Senhor. Com a necessidade de observância de apenas um detalhe: Essa herança se destina a quem crê (v16).

E se alguém não seguir os princípios cristãos? E se alguém não acreditar? Não será Deus a recusá-lo, pois esta é uma questão de escolha. “Quem nele crê, não é condenado, mas quem não crê, já está condenado” (v 18).

O povo de coração duro, pode escolher livremente. E quem acredita, já fez a escolha.

Neri de Paula Carneiro

CICLO DA PÁSCOA: A vitória da vida.

Disponível em: https://pensoerepasso.blogspot.com/2024/03/ciclo-da-pascoa-celebrar-vida.html; https://www.recantodasletras.com.br/artigos-de...