quarta-feira, outubro 30, 2024

Finados: Deus, tudo em todos

Reflexões baseadas em: Jó 19,1.23-27a; 1Cor 15, 20-24a.25-28; Jo 11, 17-27




O dia de finados se presta a algumas indagações.

Quantos de nós já nos demos conta da volatilidade da vida humana e, em razão disso, tivemos a atitude de Jó (Jó 19,1.23-27a)? Quantos de nós temos a convicção do apóstolo Paulo, para afirmar, não tanto a transitoriedade da vida humana, mas a certeza de que até a morte será submetida a Deus (1Cor 15, 20-24a.25-28)? Por que, diante da morte de uma pessoa querida, muitos de nós entramos em desespero, lamentamos e, em alguns casos, até esbravejamos e inquerimos a Deus, pedindo explicações; recusamo-nos a aceitar o fato natural e inexorável da natureza humana. E, nesse caso deixamos pouco espaço para ouvir o consolo do próprio Senhor Jesus (Jo 11, 17-27)?

Três perguntas que nos colocam diante da companheira mais fiel da vida, a morte. A morte que mostra quão fluída é a vida; quão efêmera é a vida; quão importante esse curto espeço de tempo que chamamos de vida. Talvez foi pensando nisso que o poeta cantou “Nuit”, na voz de Raul Seixas, dizendo: “E quão longa é a noite. A noite eterna do tempo se comparado ao curto sonho da vida”. O sonho da vida, a vida nossa de cada dia que se esvai, segundo a segundo, como que buscando seu outro lado…: a morte é o outro lado da vida.

Morte, a companheira da vida, o outro lado da vida, o complemento da vida… a morte não é o fim, mas a porta de entrada para a plenitude.

A vida humana é a semente que germina na morte para crescer na eternidade. Essa constatação levou Jó a afirmar: “Depois que tiverem destruído esta minha pele, na minha carne, verei a Deus. Eu mesmo o verei, meus olhos o contemplarão, e não os olhos de outros” (Jó 19,26-27). Ele já sabia aquilo que Jesus veio mostrar: A morte não é uma prisão nem um ponto final. É, sim, um convite à fé, como Jesus sugere em seu diálogo com Marta, inconsolável com a morte do irmão: “Senhor, se tivesses estado aqui, meu irmão não teria morrido.” (Jo 11,21).

Diante do pranto de Marta, Jesus cobra um ato de fé: “Diz Jesus: ‘Teu irmão ressuscitará’. Disse Marta: ‘Eu sei que ele ressuscitará na ressurreição, no último dia”. Então Jesus disse: ‘Eu sou a ressurreição e a vida. Quem crê em mim, mesmo que morra, viverá’” (Jo 11,23-25).

Mais uma vez, o dia de finados, ou a Celebração dos fiéis Defuntos, nos ajuda a reler as palavras de Paulo. Seu discurso à comunidade de Corinto também é dirigido a cada um de nós. É um convite a voltarmos nossas atenções para aquele que deu pleno sentido à vida, pois nos mostrou o sentido da morte. É a demonstração definitiva do sentido da morte: Nossa vida é um caminho para a morte e nossa morte nos encaminha para o Cristo Ressuscitado.

Como assim? alguém pode perguntar. O apóstolo responde: “Cristo ressuscitou dos mortos como primícias dos que morreram” (1 Cor 15,20). Ele foi o primeiro a ressuscitar porque queria nos mostrar o caminho completo: a vida pelos necessitados e a morte para resgatar a todos.

Mas a morte não é uma punição pelo pecado de Adão?

De fato, novamente é Paulo quem vem nos esclarecer. E as palavras do apóstolo nos fazem refletir em profundidade esse momento de despedida, apontando para o que vem em seguida. Diz ele: “Com efeito, por um homem veio a morte e é também por um homem que vem a ressurreição dos mortos” (1 Vor 15,21).

Com isso, nos diz que a natureza humana e todos os demais elementos da criação vão chegar ao seu ocaso. Tudo está em transição. Tudo caminha e se encaminha para o seu sentido e o objetivo do Criador. Ou seja, a morte tem uma explicação, tem um sentido maior: a ressurreição. Só existe ressurreição porque existe a passagem pela morte.

Aliás, é isso que cantamos na celebração da Páscoa, quando a liturgia nos convida a exultar de alegria, pois da morte vem a vida. E nisso está o sentido da transgressão do casal original. Na liturgia da noite da Páscoa cantamos não a transgressão de Adão, mas a graça do amor redentor. Um amor tão intenso e absoluto que dissolve a transgressão. Por isso a Igreja nos convida a cantar: “Ó pecado de Adão indispensável,/Pois Cristo o dissolve em seu amor;/ Ó culpa tão feliz que há merecido/ A graça de um tão grande Redentor!”

O grande catequista, o apóstolo Paulo, nos ajuda a entender o momento da separação. As pessoas queridas despedem-se, no momento da morte. Mas é uma despedida como a de quem vai para uma viagem. É uma despedida como a de alguém que fez uma mudança de endereço. É uma despedida como a do filhos que deixam a casa paterna para unirem-se em casamento formando nova família… quem viaja, quem muda de endereço, quem se casa, não faz uma mudança querendo excluir, esquecer ou abandonar aquele que ficou. Na despedida sempre dizemos: até breve!

Assim é a morte. Isso é o que celebramos ao celebrarmos o dia de finados, o dia daqueles que finalizaram sua jornada entre nós. Celebramos o até breve!

Tudo isso, portanto, é necessário para que na morte de cada um, até que se completem os tempos, o Filho de Deus complete sua missão de submeter tudo à vontade do Pai. E, quando tudo estiver consumado, “o próprio Filho se submeterá àquele que lhe submeteu todas as coisas, para que Deus seja tudo em todos” (1Cor 15,28).




Neri de Paula Carneiro

Mestre em Educação, filósofo, teólogo, historiador

Outros escritos do autor:

Filosofia, História, Religião: https://www.webartigos.com/index.php/autores/npcarneiro;

Literatura: https://www.recantodasletras.com.br/autores/neripcarneiro.

terça-feira, outubro 29, 2024

O grito da voz ausente

Por que alguém se desloca de sua casa, num domingo, para votar?

O que leva uma pessoa a querer eleger este ou aquele candidato sendo que, muitas vezes, nem conhece o candidato em quem vai votar?

Alguém vai dizer que isso ocorre porque vivemos numa democracia.

Vai dizer que essa pessoa está exercendo seu direito político… Mas o que é isso que as pessoas chamam “Democracia”? Que direito é esse? De que política está se falando?

Em tese e de modo muito simplificado, democracia é um modelo político pelo qual o povo escolhe, pelo voto direto, aqueles que vão exercer atividades de gerar leis ou executá-las com a finalidade de assegurar melhores condições de vida para todos que fazem parte desse povo.

E a escolha da pessoa que vai fazer isso se dá pelo voto.

E isso implica dizer que o voto é uma delegação de poderes.

O eleitor é detentor de direitos e um deles é o direito de delegar seu direito de querer melhores condições de vida a outra pessoa que deverá desenvolver atividades para atender aos interesse do eleitor que lhe delegou poderes.

Evidentemente, essa pessoa que recebe a delegação (esse delegado) também tem seus direitos e também defende interesses. É necessário destacar, entretanto, que nem sempre os interesses do delegado correspondem aos interesses do eleitor… daquele eleitor, que num domingo saiu de casa para votar e que, muitas vezes, nem conhece o candidato…!

E essa divergência ou pluralidade de interesses ocorre porque o delegado tem os próprios interesses (que não são, necessariamente, iguais aos do eleitor); porque já se comprometeu com outros interesses (e não os confessa ao eleitor); porque recebe muitas delegações (são muitos os eleitores, com interesses diversos…); porque o delegado, antes de candidatar-se a esse cargo, já havia pactuado outros interesses, com um grupo específico de eleitores cujos interesses, na maioria dos casos, se contrapõem aos interesses daquele eleitor do domingo…

O fato é que esse delegado recebe muitas delegações (poderíamos também dizer que o voto é uma procuração) de muitas pessoas, com interesses diversos. Daí a pergunta: como vai atender às expectativas de cada um de seus eleitores?

Não vai!

De fato e sem rodeios, o candidato que se apresenta para receber as procurações, não está interessado em seus outorgantes! Ao se lançar candidato tem os próprios interesses e apenas está em busca de legitimidade (o voto dos outorgantes, os eleitores) para satisfazer seus interesses. Mas ele já sabe que esses interesses não são os dos eleitores. Repetindo, estes servem, apenas, para lhe conferir legitimidade! Afinal, estamos numa democracia!

Além disso, e esta é outra face do mesmo problema: quem determina o que é "bom para todos", se nem todos participam das decisões?

Além disso, o que é bom para o trabalhador não é o mesmo “bom” para o patrão. O que é bom para o produtor da agricultura familiar (que labuta junto com a família) não é o mesmo “bom” para o latifundiário que sobrevive de financiamentos para sua monocultura. O que é bom para o professor que se dedica ao ensino, não é o mesmo “bom” para o atual sistema escolar que promove aprovação em massa gerando essa multidão de analfabeto com diploma na mão. O que é bom para o estudante aprender (embora ele nem sempre se dê conta) não é o mesmo “bom” para os empresários do sistema de escola teleguiada, uniforme e sem capacidade crítica…

É assim que vamos nos deparar com a pessoa eleita. É esse individuo, junto com os outros que também foram eleitos (receberam delegação/procuração), que vai decidir o que é bom. Ele é quem decide o que é bom e para quem isso vai ser bom. E vai decidir isso de acordo com os seus interesses, pois para isso se fez candidato e buscou a eleição. E suas decisões serão pautadas por esses interesses e, quando isso não for possível imediatamente, o delegado alia-se a outros delegados para selecionaram os interesses que são comuns e que serão atendidos.

E os interesses daquele eleitor, que saiu de casa para votar, num domingo?

Ele, como também o restante da grande massa, vai continuar sendo apenas mais um na massa.

Talvez isso explique o porquê de tanta gente anulando o voto, votando em branco… ou nem comparecendo para votar. Talvez a massa esteja se dando conta de que é só isso: massa manobrável!

Talvez esse eleitor do domingo, tenha percebido o engodo da democracia. Talvez tenha percebido que essa democracia que lhe apresentaram não representa as aspirações do “demo” (o povo), mas é só uma forma pela qual o “cratos” (poder) do capital deseja sugar o sangue do eleitor, do filho do eleitor, dos netos do eleitor…

Quem sabe, um dia, aquele eleitor, que num domingo, sai de casa pra votar, acorde e perceba que passou a vida sendo ludibriado… quem sabe, um dia, ele aprenda a dizer: não!





Neri de Paula Carneiro

Mestre em educação, filósofo, teólogo, historiador

Rolim de Moura - RO

quinta-feira, outubro 17, 2024

Direita ou esquerda?

(Reflexões a partir de: Is 53,10-11; Hb 4,14-16; Mc 10,35-45)




Em tempos de rivalidade política, onde se deve assentar ou por onde deve andar o discípulo de Jesus: pela direita ou pela esquerda?

Algo parecido foi o que pediram os filhos de Zebedeu (Mc 10,35-45). Ocupados apenas com seus interesses pediram para se assentar, um à direita e outro à esquerda de Jesus. Foram, os dois reprovados! Essa decisão cabe ao Pai e está destinada não a quem pede, mas a quem merece!

Nesse ponto, recordando-se de Isaías (Is 53,10-11), Jesus ensina o verdadeiro lugar do servo de Deus. O profeta mostra isso com a imagem do Servo Sofredor.

Esse servo, por saber cumprir a vontade do Pai “terá descendência duradoura, e fará cumprir com êxito a vontade do Senhor” (Is 53,10). Ele não pediu privilégios, pelo contrário: ao se deparar com dificuldades encarou-as sem vacilar e, apesar das dores, foi em frente. Essa sua coragem de assumir as dores e riscos da vida foi-lhe imputada como condição para a vitória, para a superação das dificuldades, para a glória final, como ensina o profeta: “Por esta vida de sofrimento, alcançará luz e uma ciência perfeita”(Is 53,11).

O mérito desse “servo sofredor” não foi ter pedido isto ou aquilo, este ou aquele privilégio, esta ou aquela regalia… seu mérito foi ter aceitado as dores e pedras do caminho e, por esse motivo o Senhor o reconheceu como “justo”. E sua justiça é o caminho para o resgate das culpas de outros: “Meu Servo, o justo, fará justos inúmeros homens, carregando sobre si suas culpas” (Is 53,11).

Mas, alguém pode perguntar: o que isso tem a ver com a direita ou a esquerda?

Quase nada. A não ser o fato de que ao ser indagado sobre a direita ou a esquerda, Jesus indica outra direção. E essa direção é reafirmada em Hebreus (4,14-16). Uma direção que é a própria pessoa de Jesus, o “sumo sacerdote capaz de se compadecer das nossas fraquezas” (Hb 4,15).

E quais são essas nossas fraquezas, das quais Jesus se compadece? (Lembrando que aquele que se “compadece” é aquele que sofre junto, padece com o que sofre…) E Jesus se compadece porque ao se fazer um de nós assumiu nossas dores.

E isso quem o afirma é ainda carta aos hebreus: Jesus, o cordeiro santo, o “sumo sacerdote”, o Filho de Deus, “capaz de se compadecer de nossas fraquezas, pois ele mesmo foi provado em tudo como nós, com exceção do pecado” (Hb 4,15). Por esse motivo foi capaz de nos resgatar: dos nossos pecados e das nossas fraquezas. Das nossas ambições pessoais (querer isto ou aquilo, em benefício próprio); das nossas mesquinharias (distanciar-se dos companheiros de jornada para solicitar regalias); do nosso desprezo em relação ao desejo e direito dos demais, pois querer privilégios às escondidas é uma afronta à decência e evidencia a incompetência.

Isso foi o que fizeram os “filhos de Zebedeu” e como o fazem inúmeras pessoas (principalmente no serviço público) agarrando-se aos cabides dos empregos conseguidos não pela qualificação nem pela competência, mas ao aceitar ser capacho, aceitar o cargo de “baba ovo”… com a missão de ajudar a encobrir malandragens e para ajudar a elogiar quem não tem mérito próprio. Quando um chefe de setor, um político, um administrador de qualquer órgão ou empresa, precisa de bajuladores é porque não está cumprindo com sua função ou papel e usa do bajulador para ser exaltado na qualidade que não tem.

Diante dessa atitude de tentativa de bajulação, foi que Jesus reagiu. Mostrou como agem os “chefes das nações” e “os grandes” que oprimem e tiranizam o povo. E afirma categoricamente: “entre vós não deve ser assim!”. Por isso, Jesus reuniu os discípulos para uma lição definitiva. “Jesus os chamou e disse: ‘Vós sabeis que os chefes das nações as oprimem e os grandes as tiranizam. Mas, entre vós, não deve ser assim: quem quiser ser grande, seja vosso servo; e quem quiser ser o primeiro, seja o escravo de todos’” (Mc 10,42-44).

Então, o que conta para ser discípulo de Jesus?

A capacidade de ser diferente dos “chefes das nações” e dos “grandes”. Por que ser diferente? Por que estes oprimem e tiranizam ao povo. E fazem isso porque não se deixam guiar pelos valores ensinados pelo Mestre. guiam-se pelas suas ambições.

Além disso, o discípulo é aquele que se faz servo, pois só quem é capaz de servir é capaz de se compadecer, de ter compaixão, de se comprometer, de compartilhar. E essas atitudes do servo do Senhor lhe permitem aproximar-se do trono do cordeiro, pois foi isso que ele ensinou, não com palavras bonitas, mas com a própria vida.

Por fim, quando alguém desejar o privilégio de sentar-se à direita ou à esquerda, deve lembrar-se da lição do Mestre: para “ser o primeiro”, antes disso tem que se fazer escravo de todos, tem que servir a todos, tem que desejar o privilégio de servir, pois “quem quiser ser o primeiro, seja o escravo de todos. Porque o Filho do Homem não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida como resgate para muitos” (Mc 10-44-45).

Queremos nos aproximar do trono do Senhor? Então cumpramos com os requisitos apresentados por Jesus. Tendo cumprido essas condições, “Aproximemo-nos, então, com toda a confiança, do trono da graça, para conseguirmos misericórdia e alcançarmos a graça de um auxílio no momento oportuno” (Hb 4,16).

Então, em tempos de disputas pela direita ou pela esquerda, pelo centro, por ser situação ou oposição… nestes tempos conturbados é imprescindível ouvir de Jesus: “Vós não sabeis o que pedis”. E Jesus complementa, para nós: não importa o lugar social. Importa a capacidade de servir!




Neri de Paula Carneiro

Mestre em educação. Filósofo, teólogo, historiador

Outros escritos do autor:

Filosofia, História, Religião: https://www.webartigos.com/index.php/autores/npcarneiro;

Literatura: https://www.recantodasletras.com.br/autores/neripcarneiro.

sexta-feira, julho 05, 2024

Um bando de rebeldes

(Reflexões baseadas em: Ez 2,2-5; 2Cor 12,7-10; Mc 6,1-6)




A Palavra de Jesus, não só parece, mas é verdadeiramente dirigida a cada um de nós. Entre outros motivos para nos questionar a respeito de como tratamos as pessoas que estão próximas de nós e como tratamos os estranhos. É o próprio Senhor quem faz a constatação (Mc 6,1-6). E a palavra de Jesus está em sintonia com a profecia de Ezequiel (Ez 2,2-5). A explicação para essa nossa atitude vem das palavras de Paulo (2Cor 12,7-10).

Vejamos como isso acontece.

Tudo começa quando Ezequiel recebe a missão do Senhor. O profeta deve dirigir-se aos israelitas, uma “nação de rebeldes”; sua missão que consiste em dirigir-se àqueles “que se afastaram de mim”. Esses rebeldes formam um grupo de “cabeça dura e coração de pedra”.

O Senhor já sabe que seu profeta não será levado em conta, por isso alerta a Ezequiel que deve transmitir a mensagem do Senhor, “quer te escutem ou não”. Esse “bando de rebeldes” ficará sabendo que as consequências nefastas que se manifestarão em suas vidas poderiam ser evitadas se tivessem levado em canta que “houve um profeta entre eles”.

Consequências negativas que ocorrem não por “castigo de Deus”, mas porque esse “bando de rebeldes” não foi capaz de ouvir os alertas. Qualquer pessoa de bom senso, ao ser alertada sobre um perigo, o mínimo que faz é analisar os fatos e verificar a pertinência do alerta.

Mas, neste caso, o “bando de rebeldes”, os “filhos de cabeça dura e coração de pedra” não quis saber de, ao menos, considerar os alertas do profeta. E não o fez exatamente por ser alguém próximo a eles. Ezequiel não era um figurão. Não era uma pessoa famosa. Não era um ídolo da grande mídia. Não era um estranho… pelo contrário, era alguém que convivia com seus ouvintes; era o “sacerdote Ezequiel, filho de Buzi” (Ez 1,3).

Esse é o nosso retrato! Assim agimos nós! Valorizamos o estanho, o estrangeiro, o famoso… mas não damos valor a quem conosco vive e convive em nosso cotidiano. Consumimos a marca famosa e não o produto do nosso vizinho.

Essa foi a “bronca de Jesus” ao visitar Nazaré, sua terra, juntamente com seus discípulos. Depois de uns tempos perambulando e pregando e curando e anunciando o Reino, voltou para sua terra e foi visitar os parentes. E no dia destinado às orações comunitárias, juntamente com os discípulos e, certamente, com Maria sua mãe, foi à sinagoga.

Aos seus parentes e amigos e conhecidos, da cidadezinha de Nazaré, foi que “começou a ensinar na sinagoga”. E justamente esses foram os que estranharam sua pregação: “De onde recebeu ele tudo isto? Como conseguiu tanta sabedoria?”. Diziam isso como a dizer: “alguém aqui da nossa cidade não pode ser sábio”. Falaram isso como quem diz: “Alguém que vimos crescer não pode ser, assim, tão sábio”. E por isso desdenharam: “Esse não é o carpinteiro, filho de Maria?”

Não só desdenharam, “ficaram escandalizados por causa dele”!

Mas, por que isso ocorreu? Porque, para eles, até aquele momento, Jesus era uma pessoa comum. E, da mesma forma que ocorre conosco, queriam saber coisas de gente famosa. Queriam, como também ocorre conosco, discursos bem elaborados, com palavras difíceis, com frases rebuscadas e incompreensíveis… para, só assim, darem valor.

Por isso foi que Jesus disse a eles, e o repete cotidianamente a cada um de nós: “Um profeta só não é estimado em sua pátria, entre seus parentes e familiares”.

Façamos um exame de vida. Analisemos nossos comportamentos: Como temos tratado aqueles que convivem conosco? Com que valor olhamos ou ouvimos os estranhos? Como estamos tratando nossos pais, nossos maridos, nossas esposas, nossos filhos? Como temos tratado aqueles que convivem conosco? Será que Jesus também está admirado com a nossa falta de fé naqueles que vivem ao nosso redor?

Essas indagações são necessárias pois a resposta que a elas damos é o que vai explicar o porquê de não vermos milagres entre nós. Ali onde não foi reconhecido, em Nazaré, Jesus “não pode fazer milagre algum”. Ali Jesus ficou admirado com a tamanha falta de fé. E o mesmo vale para nós: se não aprendemos a valorizar quem convive conosco; se não acreditamos no potencial de quem está entre nós… também não temos fé no Senhor a quem não vemos. E não o vemos porque não somos capazes de enxergá-lo na pessoa que está ao nosso lado. Não somos capazes de reconhecer o Senhor nas pessoas que realizam maravilhas ao nosso redor e por isso também não temos fé no Senhor que, neste caso, não passa de um personagem de uma história comovente que conhecemos só por tradição…

Por isso a importância do convite do apóstolo Paulo. Diz ele ser necessário prestar atenção não na grandeza das coisas e das pessoas, mas na singeleza da graça. Diz ele que a “extraordinária grandeza das revelações não me ensoberbecesse”. Diz ele o que aprendeu do Senhor: “Basta-te a minha graça. Pois é na fraqueza que a força se manifesta”.

Então, o que somos: um bando de rebeldes? Como disse o profeta. Um grupo que se escandaliza pela graça de Deus estar atuando em nossos vizinhos? Como fizeram os parentes de Jesus. Ou agimos como o apóstolo Paulo, aprendendo a valorizar nossas fraquezas e a força daqueles que estão ao nosso redor?




Neri de Paula Carneiro

Mestre em educação, filósofo, teólogo, historiador

Outros escritos do autor:

Filosofia, História, Religião: https://www.webartigos.com/index.php/autores/npcarneiro;

Literatura: https://www.recantodasletras.com.br/autores/neripcarneiro.

sábado, junho 01, 2024

Foste escravo no Egito

Reflexões baseadas em: Deuteronômio 5,12-15; 2 Coríntios 4,6-11; Marcos 2,23-3,6




Qual a importância de guardar o dia do Senhor?

Quando devemos trabalhar e quando devemos prestar culto ao Senhor?

O que é mais importante: guardar o dia do Senhor ou ser solidário e ajudar quem precisa?

Em que momento se deve ajudar quem precisa: antes ou depois de ter cultuado ao Senhor?

E se meu ato solidário, altruísta; se meu gesto de socorro ao necessitado; se meu gesto de amor ao irmão… me impedir de prestar culto ao Senhor?

E se minhas preces forem interrompidas pelos gritos de socorro: continuo minha prece ou respondo ao pedido de socorro?

É claro que estas interrogações são só indagações… mas elas se encaixam e cobram uma postura quando ouvimos o trecho do discurso no livro do Deuteronômio (Dt 5,12-15).

Mais ainda, esse trecho chega a nós pedindo esclarecimentos diante de afirmações este preceito a respeito do sábado: “O sétimo dia é o do sábado, o dia do descanso dedicado ao Senhor teu Deus. Não farás trabalho algum, nem tu, nem teu filho, nem tua filha, nem teu escravo, nem tua escrava, nem teu boi, nem teu jumento, nem algum de teus animais, nem o estrangeiro que vive em tuas cidades, para que assim teu escravo e tua escrava repousem da mesma forma que tu” (Dt 5,14). Ou seja, a Palavra do Senhor é taxativa: o dia do Senhor tem que ser respeitado! E o crente é aquele que respeita as leis do Senhor!

Mas aqui está a grande questão. Ela pede uma resposta. Os fariseus, no tempo de Jesus, pedira essa resposta. E, em nossos dias, a mesma indagação, pede uma resposta.

E de onde ela vem? Quem pode nos tirar da dúvida?

A resposta vem do próprio Senhor (Mc 2,23-3,6). E vem, justamento a partir de um questionamento dos concidadãos de Jesus. Os fariseus questionaram o comportamento de Jesus e seus discípulos. E Jesus responde.

Como reage o Senhor?

Reage com outro questionamento. Devolve o questionamento àqueles que o interrogam: Jesus “perguntou-lhes: ‘É permitido no sábado fazer o bem ou fazer o mal? Salvar uma vida ou deixá-la morrer?’ Mas eles nada disseram.” (Mc 3,4). Quem não se deixa guiar pelo amor, não tem resposta que exige atitude amorosa.

Por esse motivo o Senhor, diante do silêncio dos adversários, afirma ser Senhor de tudo, inclusive do sábado: “Portanto, o Filho do Homem é senhor também do sábado” (Mc 2,28).

E vai além! O Senhor Jesus recoloca o sentido do sábado e do culto a Deus: o sábado está colocado não para gerar peso, mas libertação. Não para produzir medo, mas coragem. Não pelo seguimento cego á letra da lei, mas para afirmar a importância do ser humano. Por isso a afirma: “O sábado foi feito para o homem, e não o homem para o sábado” (Mc 2,27).

O que está em questão não é a norma que afirma a necessidade de um dia destinado ao culto e ao descanso. A afirmação diz respeito à necessidade de fazer o que tem que ser feito para que o ser humano seja preservado e Deus reverenciado.

O Senhor merece o culto e a ele devemos entregar nossas orações, dedicar nossas preces, entregar nossos louvores, destinar nossa gratidão… mas isso não é impedimento de levar ao outro aquilo que o outro precisa. Por isso, o Deuteronômio afirma a importância do sábado. Para destinar tempo ao Senhor e assegurar o descanso: “não farás trabalho algum” porque este é o momento de cultuar ao Senhor; mas também aqueles que te ajudam merecem o descanso: tanto os “escravos” como os animais. O respeito ao outro também passa pela defesa do direito do outro. E o argumento é simples: “lembra que foste escravo” (Dt 5,15). Lembrar do tempo da escravidão implica lembrar que o outro também não pode ser escravizado; implica lembrar que é o Senhor quem liberta. E se o Senhor liberta, como podemos nós gerar opressão?

Tanto a ação de Jesus, curando em dia de sábado, como o discurso do Deuteronômio são afirmações em defesa do outro e em favor da vida. É quando colocamos o outro no centro que vamos entender o discurso de Paulo (2Cor 4,6-11).

A preciosidade do ser humano transparece no discurso de Paulo: o dom de Deus é um tesouro. O ser humano é um dom de Deus. Portanto o ser humano é um tesouro. Isso leva o apóstolo a afirmar: “trazemos esse tesouro em vasos de barro, para que todos reconheçam que este poder extraordinário vem de Deus e não de nós” (2Cor 4,7).

Então, o que fazer no tempo destinado ao culto a Deus? Cultuar a Deus.

E se alguém precisar de nós, no momento do culto? O culto maior é a mão estendida!

Essa libertação é necessária porque o “Egito” continua em nós. Continua nos escravizando.

“Foste escravo”, e se não te libertas do legalismo, do egoísmo, das ambições e de todos os gestos de maldade, continuas “escravo”. Por isso, para superar as amarras de todas as escravidões, temos que nos lembrar: O sábado (ou seja, os preceitos) foi feito para o homem e não o contrário. Valorizar o que não valoriza a vida, é morrer na escravidão. Lembremo-nos de que Jesus é nosso libertador. É ele que, nos dias atuais, nos diz: “foste escravo… mas eu te libertei. Aceitas minha liberdade?”




Neri de Paula Carneiro

Mestre em Educação, filósofo, teólogo, historiador

Outros escritos do autor:

Filosofia, História, Religião: https://www.webartigos.com/index.php/autores/npcarneiro;

Literatura: https://www.recantodasletras.com.br/autores/neripcarneiro.

sábado, maio 18, 2024

Pentecostes e os dons do Espírito

Atos dos Apóstolos 2,1-11; 1Coríntios 12,3b-7.12-13; João 20,19-23




A celebração do Pentecostes convida-nos a algumas reflexões: sobre o Espírito Santo; sobre os dons do Espírito de Vida e sobre a Trindade Santa.

A respeito do Espírito Santo, temos que levar em conta: Primeiro que o Espírito é uma pessoa da Trindade Santa e não O podemos compreender fora dessa relação. O Espírito é espírito da Trindade e não uma espécie de deus ao lado de Deus, como, por vezes, alguns o tratam. Tentar isolá-lo ou supervalorizá-lo independente da relação com o Pai e o Filho, pode nos levar a uma numa heresia.

Em segundo lugar, os dons do Espírito, embora sejam inúmeros (costumamos elencar apenas sete) resumem-se, como Jesus o demonstrou, em Amar a Deus e amar aos irmãos (Nisso está toda lei e os profetas, ensinou Jesus). Negligenciar isso é negligenciar o próprio Espírito Santo. Por ser amor, por vezes, ao nos referirmos à terceira Pessoa da Trindade o chamamos de Espírito de Amor. Só que esse amor – aliás essa é a característica do amor – não se limita à afirmação: “eu te amo!”. O amor é, não só dinâmico, mas principalmente prestativo, solidário, proativo… Só tem razão de existir na relação com o outro. Caso contrário passa a ser egoísmo.

Em terceiro lugar, e este é um ponto muito controvertido, está o “dom das línguas”. Este também deve ser compreendido na mesma perspectiva: trata-se da linguagem do amor. Essa é universal! Um gesto amoroso é compreendido em qualquer canto do mundo independentemente da língua falada.

Assim, se o princípio maior é o amor; se Deus é amor; se Deus veio a nós porque nos ama, o dom das línguas pode, perfeitamente, ser compreendido como o dom de amor. E o amor se traduz em gestos, em atitudes...

E, evidentemente, não importa se falo usando a língua portuguesa ou alemã; se falo em russo ou francês… o que importa são as atitudes; se meus gestos e minhas atitudes forem amorosas e gerados pelo amor, sempre serei compreendido. Se minhas ações amorosas não forem assim compreendidas, podem estar ocorrendo duas coisas: ou não estou amando suficientemente ou quem recebe meus atos não é de Deus e, por isso, não consegue reconhecer gestos de amor…

Caso as minhas atitudes não estejam pautadas pelo amor, serão atitudes incompreensíveis, pois brotam do egoísmo, da soberba... E se aqueles que olham para meus atos são representantes do anticristo, sempre dirão que agi “com segundas intenções”; caso meus atos conduzam a vida (eu vim para que todos tenham vida em abundância, disse Jesus) podem ser reconhecidos como gestos de amor, que nascem do Deus Trino, iluminados pelo Espirito, como ensinou o Filho. Mas se meus atos, negligenciam a vida, não são amorosos ou, pelo contrário, escarneço a dor alheia, então meus atos nascem não do Deus de amor, mas daquele ser que se opõe a Deus e suas obras e seus obreiros.

Como sabemos, alguns até se apresentam como capazes de balbuciar palavras que ninguém entende, dizendo estar “falando em línguas”. Mas de que adiantam palavras incompreensíveis se as atitudes não transmitirem amor? Pior do que isso, infelizmente em alguns casos, alguns poucos emitem sons incompreensíveis não para comunicar a Deus, mas para falsamente dizer que estão em sintonia com o Espírito. E alguns destes, tentam tirar proveito das pessoas: querendo se sobrepor aos outros, querendo ser reconhecidos pelos demais membros da comunidade; e, o que é pior, querendo extorquir e enganar aqueles que se deixam manipular. Portanto, longe de querer minimizar os dons do Espírito, mas apenas como alerta: se não é uma linguagem compreensível, cuidado! Será que é manifestação divina?

Deus (o Pai, o Filho e o Espírito) é um Deus de puro amor e quer comunicar isso aos seres humanos. E deseja fazer isso para que aprendamos a amar. Portanto não depende de sons incompreensíveis, para se comunicar, pois quando quer usar as pessoas ou nosso processo de comunicação o faz com palavras claras e acessíveis a todos os ouvintes. O melhor e mais claro exemplo disso é a Palavra Santa nas Escrituras Sagradas: desde a narrativa da criação, a história do povo hebreu, os salmos, os profetas… em tudo Deus manifesta-se claramente. E, para ser ainda mais claro, falou-nos por seu Filho, como lemos em Hebreus, 1,1-2: “Muitas vezes e de modos diversos falou Deus, outrora, aos Pais pelos profetas; agora, nestes dias, que são os últimos, falou-nos por meio de seu Filho”.

Notemos que o livro do Gênesis é bastante claro: “Toda a terra tinha uma só linguagem e servia-se das mesmas palavras.” (Gn 11,1). Entretanto o que moveu os ancestrais não foi o amor que “servia-se das mesmas palavras”, mas o gesto oposto ao amor; a vontade de ser grande, famoso; o querer se igual a Deus. Por isso, movidos pela soberba e pelo ser que se opõe a Deus disseram: “façamos para nós uma cidade e uma torre cujo cimo atinja o céu. Assim, ficaremos famosos…” (Gn 11,4).

Exatamente o oposto do que ocorre na efusão do Espírito, narrada em Atos 2,1-11. Aqui o dom de Deus, mesmo num ambiente de medo permite que os ouvintes compreendam claramente a proposta de Deus. Por isso os ouvintes afirmam: “todos nós os escutamos anunciarem as maravilhas de Deus” (At 2,11).

Esse é o ponto de partida para a afirmação de Paulo (1Cor 12,3-13). Numa afirmação trinitária, mostra os dons do Espírito “em vista do bem comum”. Diz o apóstolo: “Ninguém pode dizer: Jesus é o Senhor a não ser no Espírito Santo. Há diversidade de dons, mas um mesmo é o Espírito. Há diversidade de ministérios, mas um mesmo é o Senhor. Há diferentes atividades, mas um mesmo Deus que realiza todas as coisas em todos. A cada um é dada a manifestação do Espírito em vista do bem comum.” (1Cor 12,3-7).

O mesmo podemos dizer em relação a João (20,19-23) quando nos ensina que é a Trindade de Amor que oferece a paz; é a Trindade de Amor que envia em missão; é a Trindade de Amor que oferece o supremo gesto de amor que se manifesta na graça do perdão: “Recebei o Espírito Santo. A quem perdoardes os pecados” (Jo 20,22-23).

O dia de celebrarmos o Pentecostes, celebramos o Espírito do Deus Trindade. Celebramos o amor do Filho que nos amou ao extremo de nos oferecer sua vida e por isso nos deixou seu Espírito de Vida. No dia de Pentecostes, celebramos os dons do Espírito que se manifestam no supremo dom do amor.




Neri de Paula Carneiro

Mestre em Educação, filósofo, teólogo, historiador

Outros escritos do autor:

Filosofia, História, Religião: https://www.webartigos.com/index.php/autores/npcarneiro;

Literatura: https://www.recantodasletras.com.br/autores/neripcarneiro.




quarta-feira, maio 08, 2024

TEMPO COMUM e o Tempo de Deus




Quando falamos em Tempo do Natal ou Tempo da Páscoa, não nos parecem coisas estranhas. Mas Tempo Comum? O que é isso?

Nada mais do que um dos períodos do Tempo Litúrgico que corresponde à forma como a sabedoria da Igreja organiza a celebração da Eucaristia ao longo de um ano.

Mas, atenção! O Tempo Litúrgico ou o Ano Litúrgico não segue o mesmo encadeamento de dias e semanas e meses como estamos acostumados em nosso dia a dia nas relações sociais e comerciais, ao longo do ano civil.

A Liturgia da Igreja Católica organiza o ano ao redor de dois grandes eventos salvíficos formando dois ciclos celebrativos: o Ciclo de Natal (dentro do qual está o tempo do Natal) e o Ciclo Pascal (dentro do qual se insere o tempo da Páscoa). Esses dois ciclos estão interligados por dois períodos de Tempo Comum, formando os três grandes períodos do Ano Litúrgico.

Em cada período litúrgico a Igreja define uma cor litúrgica apropriada. Para o tempo comum, usa-se o verde. Evidentemente, como ao ongo deste ciclo litúrgico ocorrem várias festas e solenidades, para cada uma delas há uma prescrição específica. Isso não muda a orientação básica de celebrar usando a cor verde, como a nos lembrar que devemos manter acesa a esperança de nunca nos desviarmos dos ensinamentos do Mestre.

Em sua sabedoria a Igreja nos mostra que esses três “momentos” litúrgicos convergem para um único motivo: celebrar a memória de Cristo, o Cordeiro imolado que nasceu, viveu entre nós e deu sua vida para resgatar os fiéis em sua Ressurreição.

Devemos notar, entretanto, que não estamos falando de uma comemoração ou celebração nos moldes das festas pelas quais comemoramos nossas alegrias do dia a dia. Aqui estamos falando, sim, de celebrar a vida, mas fazemos isso por mandato divino, ou seja, foi o próprio Senhor Jesus quem realizou primeiro, mostrando como deveria ser feita a celebração da memória: celebrar não só para recordar, mas para reviver e atualizar. Assim nos fala o próprio Senhor, conforme podemos ler nos evangelhos narrados por Marcos, 14,22-25; por Mateus, Mt 26,26-29 e por Lucas, Lc 22,14-20. E antes deles, o Apóstolo Paulo, orienta a comunidade de Corinto, conforme o ensinamento que recebeu do Senhor:

“De fato, eu recebi pessoalmente do Senhor aquilo que transmiti para vocês. Na noite em que foi entregue, o Senhor Jesus tomou o pão e, depois de dar graças, o partiu e disse: “Isto é o meu corpo que é para vocês; façam isto em memória de mim.” Do mesmo modo, após a Ceia, tomou também o cálice, dizendo: “Este cálice é a Nova Aliança no meu sangue; todas as vezes que vocês beberem dele, façam isso em memória de mim.” Portanto, todas as vezes que vocês comem deste pão e bebem deste cálice, estão anunciando a morte do Senhor, até que ele venha.” (1Cor 11,23-26).

Portanto, a celebração da Eucaristia (a missa) não é apenas uma celebração a mais. Ou uma celebração que se repete dodos os dias. O que fazemos, nos diferentes tempos litúrgicos, é a mesma celebração da memória do Senhor. Por meio dessa memória o motivo da celebração não é só um evento ou fato do passado, mas uma realização atual. O ponto de partida aconteceu, sim, num dado momento histórico, mas é um fato histórico que não se esgotou ao se concluir. Ele torna-se atual todos os dias, por todo o sempre: é um anúncio da morte de Jesus, mas, acima de tudo, uma atualização de sua ressurreição que abre o caminho para nosso mergulho no absoluto de Deus, uno e trino.

Por isso, em sua catequese a Igreja nos ensina a celebrar a encarnação do Senhor, no Ciclo do Natal e sua Páscoa no Ciclo Pascal. E, entre esses dois ciclos, a Igreja inseriu fatos do cotidiano da vida de Jesus de Nazaré, os quais são celebrados ao longo do Tempo Comum.

Isso implica dizer que a vida litúrgica vai além do Natal e da Páscoa. A sabedoria da Igreja, além de celebrar atualizando o sacrifício do Cordeiro imolado, nos apresenta, de forma catequética, os diversos momentos do cotidiano de Jesus. Uma catequese pela qual a Igreja mostra os caminhos por onde passaram os passos e a vida de Jesus de Nazaré. Uma catequese que mostra o Deus Menino, crescendo e ensinando os caminhos do Reino. O Reino que nos é apresentado em sua Páscoa de Redenção. E, principalmente, uma catequese que nos convida a seguir os passos de Jesus, assumindo a missão de anunciar o Reino e ensinar o caminho para a Redenção. Uma porta que se abre quando Jesus de Nazaré abre seus braços na cruz.

Fazendo da liturgia uma longa catequese, a sabedoria da Igreja nos mostra que aos períodos posteriores ao Ciclo do Natal e que vem após o Ciclo da Páscoa intercalam-se as duas partes do Tempo Comum. Justamente com esses dois períodos é que a sabedoria da Igreja nos convida a seguir os passos e contemplar o cotidiano da vida de Jesus de Nazaré.

Então, o que é o Tempo Comum? É o período litúrgico que se segue ao Ciclo do Natal. Inicia-se, numa sequência lógica e cronológica, com o Advento, prossegue com o Natal e tempo do Natal. A sequência das celebrações pós natalinas prolongam-se até a celebração da Epifania e o Batismo do Senhor. Depois desse Ciclo de Natal iniciam-se as primeiras semanas ou os primeiros “domingos do Tempo Comum”.

Essa sequência de “domingos do tempo comum” é interrompida com as celebrações do Ciclo da Páscoa: quaresma, semana santa, Páscoa e os domingos do tempo pascal. Ao final desse ciclo, com a celebração de Pentecostes, reinicia-se o Tempo Comum. Período mais longo e que vai até a celebração do Cristo Rei do Universo, normalmente no final de novembro. O domingo seguinte será o primeiro domingo do advento. Ou seja, começamos o ano litúrgico com o Advento, quando nos preparamos para receber o Deus menino, e o concluímos contemplando Jesus, Rei do Universo.

Os dois períodos do Tempo Comum normalmente é formado por 34 semanas. Ao longo dessas semanas, a sabedoria da Igreja nos apresenta os diversos momentos da vida de Jesus. Nesse processo podemos: acompanhá-lo enquanto anda com os seus discípulos, anunciando o Reino; ouvi-lo pregando os valores do Reino aos discípulos e às multidões; aprender quem são os primeiros destinatários do Reino, acompanhando seus gestos de caridade e dedicação para com os mais necessitados; sofrer com ele quando sua proposta de paz, amor e solidariedade é rejeitada, e isso ocorre porque as pessoas não compreenderam as exigências e a radicalidade do Reino. E ao longo de todo esse processo catequético podemos seguir, com Jesus em sua caminhada em direção a Jerusalém, onde celebrará sua Pascoa.

Além disso, ao longo do Ano Litúrgico, e particularmente do Tempo Comum, também somos convidados a nos preparamos para a nova vinda de Cristo, na consumação da história.

Na realidade toda a estrutura da liturgia, ao longo do Ano Litúrgico, está organizada com os olhos voltados para estes dois movimentos e momentos: contemplar o cotidiano e os passos de Jesus, aprendendo com ele a desenvolver em nós os valores do Reino. E, ao mesmo tempo, como continuadores de sua obra, somos convidados a anunciar os valores do Reino, convidar mais pessoas para aderir à sua proposta e, fazendo isso, aguardar sua volta gloriosa. Essa é a dinâmica presente no Tempo Comum.

Na realidade e, como não podia deixar de ser, a caminhada histórica de Jesus de Nazaré teve um começo e um ponto final. Começou com seu Natal Glorioso e terminou com sua Páscoa Redentora. O que a sabedoria da Igreja faz é inserir no contexto litúrgico e ao longo de um ano os constantes convites para que façamos a memória do gesto de Jesus: desde seu nascimento, acompanhando seu cotidiano, seu ensinamento e sua proposta do Reino até coroar-se com a ressurreição, mostrando de como será o destino dos fiéis aos seus passos. E, ao mesmo tempo, essa memória do fato histórico, é uma proposta e anúncio do Reino e do retorno do Senhor, celebrado ao longo do Tempo Litúrgico e em cada celebração eucarística.

A liturgia, portanto, nada mais é do que a apresentação celebrativa dessas duas dimensões: olhar para Jesus de Nazaré e seu cotidiano e, ao mesmo tempo, aguardar seu retorno glorioso. E em ambos a liturgia nos apresenta um só objetivo: seguir os passos de Jesus, realizando o que nos ensinou. E isso desdobra-se em duas atitudes que devemos desenvolver: uma vida de oração, estreitando as relações com o Senhor e, ao mesmo tempo, usando nossa vida, nossos esforços e todos os nossos dons para que o mandamento do amor seja uma realidade; as relações entre as pessoas sejam fraternas; a solidariedade seja o parâmetro da vida. Para que não haja alguns com fortunas incontáveis produzindo milhões de famintos ao redor do mundo… tudo para que, em nosso mundo, sejam verdadeiras as palavrado Mestre: “Eu vim para que todos tenham vida e a tenham em abundância.” (Jo 10,10).

O que ensinou em sua vida humana, nos caminhos da Palestina, torna-se para nós um programa de vida, sintetizado em Mt 25,31-46 e que se expressa em duas frases a respeito de nossas ações. Afirmação da solidariedade: “foi a mim que o fizestes” (Mt 25,40). E negação do ato solidário: “Foi a mim que o deixastes de fazer” (Mt 25,45).

O Ano Litúrgico e especificamente o Tempo Comum, refletem este convite: realizar entre nós o programa de Jesus como quem segue seus passos e como quem espera seu retorno. Mas a proposta é fazer isso, não por medo de Julgamento, e sim por convicção amorosa: amor ao irmão e amor ao Senhor da vida, sabendo que o amor ao Senhor manifesta-se no gesto de amor ao irmão, pois este é o mandamento: amar a Deus e ao irmão (Mt 22,36-39).

A tudo isso nos leva o Tempo Comum: aos ensinamentos de Jesus, apresentados ao longo de sua vida: em suas palavras; em seus gestos; em seu acolhimento ao pecador; em sua postura intransigente de afirmar que o amor é mais importante que a letra da Lei; ao perdoar antes de perguntar “quem é”; em seu abraço carinhoso às crianças, afirmando que delas é o Reino; em sua postura acolhendo a todos, sem discriminação; em seu amor aos pobre e pequeninos… ao ensinar a orar uma oração de partilha, chamando a Deus de Pai. Suas palavras não deixam dúvidas: “toda a Lei e os Profetas dependem destes dois mandamentos” (Mt 22,40).

O Tempo Comum, portanto, é tempo de aprender com Jesus. Aprendizado que nos leva a entender o tempo da Igreja, nosso tempo atual, nosso cotidiano, nossa vida... na perspectiva do Reino: “já” e “ainda não”. O Reino já apresentado, e presente na vida e nos atos amorosos de cada batizado; mas ainda não instalado definitivamente pois os anunciadores do Reino de amor, sofrem com a perseguição dos representantes do antirreino. Já presente, porque a Igreja, e cada um dos fiéis que seguem os passos de Jesus, assumem essa proposta de vida plena e libertadora; mas ainda não porque o Reino só será definitivo com a vitória da vida sobre os sinais de morte, pois “o último inimigo a ser vencido será a morte” (1Cor 15,26).

Além dessa dimensão teológica, é ao longo do Tempo Comum que a Igreja celebra as principais festas do calendário litúrgico: festas dedicadas à Mãe de Jesus; festas dedicadas aos santos e mártires; momentos nos quais celebra pontos fortes da fé eclesial: mês de oração pelas vocações, pelas missões; mês da Bíblia...

Também é ao longo do Tempo Comum que aprendemos um dos principais ensinamentos de Jesus: o seguimento do Senhor se dá em comunidade. Não se concebe vida cristã e eclesial se não for inserida numa comunidade. Quando acompanhamos Jesus, sempre o encontramos ao lado dos discípulos, realizando ações em favor de pessoas: curando e perdoando; enviando os discípulos em grupos para anunciar o Reino... e isso por quê? Porque ninguém constrói o Reino sozinho, mas em comunidade. O Reino não é uma proposta individual, mas para ser vivido em Igreja, procurando seguir os passos de Jesus de Nazaré, o Cristo que nos quer acolher no coração da comunidade que é a Trindade Santa.

Neri de Paula Carneiro.

Mestre em educação, filósofo, teólogo, historiador

Outros escritos do autor:

Filosofia, História, Religião: https://www.webartigos.com/index.php/autores/npcarneiro;

Literatura: https://www.recantodasletras.com.br/autores/neripcarneiro.

quinta-feira, março 21, 2024

CICLO DA PÁSCOA: A vitória da vida.

Disponível em:
https://pensoerepasso.blogspot.com/2024/03/ciclo-da-pascoa-celebrar-vida.html;
https://www.recantodasletras.com.br/artigos-de-religiao-e-teologia/8024813.  


Os ciclos litúrgicos da Igreja têm uma função catequética.
Aliás, essa é a função de toda a Liturgia Católica: ao mesmo tempo que alimenta nossa fé, nos ensina a caminhar nos caminhos do Senhor.
Os ciclos litúrgicos (Ciclo do Natal e Ciclo da Páscoa) pretendem nos ajudar a entender os mistérios da vida, morte e ressurreição de Jesus, ao mesmo tempo que nos convidam a contemplar as ações da Trindade Santa. Eles nos oferecem condições e requisitos para seguirmos os passos de Jesus de Nazaré, sua opção em favor dos marginalizados, ao mesmo tempo que nos conduzem pelos altos e baixos, vitórias e tropeços do povo escolhido para trazer benção para a humanidade (Gn 12,3; 22,18).
Os ciclos litúrgicos, são antecipação e proposta do Pai, ensinada pelo Filho, sob a orientação do Santo Espírito (Jo 14,26). Aprendendo com a Trindade, a Igreja nos ensina, com a Liturgia: a seguir Jesus e compreender seu ensinamento; a conhecer a proposta libertadora do Mestre e entender as implicações do pecado social e pessoal.
Os ciclos litúrgicos, podem despertar em nós uma paixão vital pela proposta daquele Reino anunciado por Jesus: reino de paz, amor, justiça e solidariedade para com os que sofrem. E isso pode acontecer quando estamos abertos à graça divina que atua em nós e quando agimos em favor e defesa dos pequeninos do Reino.

Mas a liturgia vai além da função catequética.
Além da função catequética, e justamente por esse motivo, os ciclos litúrgicos nos convidam a compreender cada período celebrativo como caminho para melhor enxergar o Cristo que almeja ver a todos como “um só rebanho” (Jo 10,16), conforme as palavras dos bispos na Constituição Conciliar Sacrosanctum Concilium (SC). Assim sendo os ciclos litúrgicos nos convidam a celebrar a totalidade do mistério da salvação, realizado por Jesus, o Cristo.
O primeiro convite é para compreender o Ciclo do Natal. Aqui está o ponto de partida para o grande mistério da fé cristã.
No Ciclo do Natal a Igreja quer nos ensinar que Deus vem a nós. Independentemente de nossos méritos ou de nossa condição de pecadores, Deus vem a nós; independentemente de vivermos numa sociedade corroída e corrompida e na qual o valor das coisas se impõem sobre o valor das pessoas, Deus vem a nós.
E por que Ele vem? Para ensinar o caminho do amor. Afinal, Ele é Deus Conosco, o Emanuel (Mt 1,23).  Portanto o Ciclo do Natal corresponde ao gesto divino de vir em socorro da humanidade, como veio socorrer os que clamavam no Egito (Ex 3,7-10).

Entretanto, o Ciclo do Natal pede continuidade. O que ocorre depois do nascimento? A resposta vai além dos dois períodos de Tempo Comum, no qual celebramos o cotidiano de Jesus de Nazaré.
O segundo convite é para nos lembrar que a continuidade do Ciclo do Natal se concretiza e tem sem complemento no Ciclo da Páscoa. Este, da mesma forma que no Ciclo do Natal, tem um período de preparação:  o Tempo da Quaresma; um período central: a Semana Santa e a celebração da ressurreição ou seja a belíssima celebração da Vigília Pascal; e um período posterior: o Tempo Pascal.

Mas nem sempre foi assim.
Os primeiros cristãos celebravam a Páscoa em cada domingo. Era a celebração da ressurreição do Senhor. Quase cem anos depois foi introduzido o costume de celebrar anualmente o dia da Ressurreição, a Páscoa com ênfase na Vigília Pascal.
Por volta do século IV começou-se a fazer quarenta dias de preparação para a Páscoa. Assim foi introduzida a Quaresma: quarenta dias de preparação penitencial para toda a comunidade e especialmente para os catecúmenos receberem o batismo na celebração da Vigília Pascal.
Com o transcorrer dos séculos a fé popular levou a Igreja a entender que outros momentos da vida de Jesus eram importantes momentos litúrgicos: a entrada de Jesus em Jerusalém virou Domingo de Ramos; depois foi introduzido o tríduo da Paixão: a morte do Senhor na sexta feira, o sepultamento no sábado e a solenidade da ressurreição, no domingo. Também ocorreu que a celebração da última refeição ganhou os contornos de serviço ao outro na simbologia do lava-pés. E, em tudo isso, a Eucaristia sempre foi o ponto central.
Além disso, a cerimônia do despojamento do altar é associada ao Cristo desnudo que entregou sua vida pela salvação e a serviço aos necessitados. É o ato de Jesus entregando sua vida como sacrifício de resgate. Ele entregou suas vestes para afirmar que não havia se apegado a nada deste mundo, pois tudo estava oferecendo pela vida do seu rebanho (Jo 10,14-18).
O fato é que, ao longo dos séculos, multiplicaram-se celebrações vinculadas e ao redor da Páscoa. Valorizaram-se diferentes aspectos e momentos da vida de Jesus e, ao mesmo tempo, isso fez com que se dissolvesse a importância e centralidade do Mistério Pascal.

Visando restaurar a força e centralidade Pascal ,na primeira metade do Século XX ganhou força o movimento de renovação litúrgica. Esses novos ventos, soprados pelo Espírito, guiou os padres conciliares a ouvir a voz dos mosteiros que buscavam inspiração nos ensinamentos patrísticos. A renovação da Liturgia e da Igreja, portanto, mais do que renovar é uma volta às origens. Renovar, no espirito do Concílio Vaticano II, é beber na fonte dos Pais da Igreja.
Graças a esse movimento de renovação – ou de retorno às origens – os bispos conciliares, recolocaram a centralidade do Mistério Pascal na vida da Igreja e da Liturgia. O Concílio, portanto, veio nos recordar que é na liturgia que se atualiza o mistério da fé e se perpetua o anúncio da paixão, morte e ressurreição de Jesus.
Então, como entender a Quaresma? Como tempo de preparação que nos leva ao centro do Ciclo Pascal e ao Tríduo: Sexta feira Santa, Sábado Santo e a celebração da Ressurreição.

A Sexta Feira Santa, ajuda-nos a rememorar todos os acontecimentos pelos quais as autoridades religiosas dos judeus conduziram a prisão, forçam o julgamento e a condenação de Jesus, culminando com sua execução na Cruz.
Com a celebração da Paixão, a Igreja nos mostra como, do ponto de vista humano, os adversários de Jesus manipularam o povo para condenar o Senhor. Mas, ao mesmo tempo, mostra que, de fato, Jesus continua sendo o Senhor da história; que Jesus cumpre o plano do Pai; que Ele sofre tudo que o corpo humano pode sofrer e suporta tudo porque quer atrair todos a si (Jo 12,32); que mesmo no sofrimento e na dor da cruz, Jesus não abandona o Pai nem abre mão de seu rebanho, como também não abandonado pelo Pai (Jo 12,28).
E, principalmente, mostra que Jesus não foi preso, mas deixou-se aprisionar; não foi condenado, mas deixou-se condenar; não foi executado, mas morreu em seu corpo humano, para mostrar seu corpo divino e indicar o destino reservado às pessoas que o seguem. Mostra que em tudo está cumprindo os desígnios do Pai (Mt 26,39).

O Sábado Santo, corresponde ao sepultamento do corpo humano do Filho de Deus. Ao longo do dia permanece o clima de compenetração pela morte do Senhor. Nesse dia não há celebração eucarística, mas podem se realizar atos de oração e adoração. É como se este dia fosse um prolongamento da reflexão, da consternação e da dor pela morte do Senhor. O Sábado Santo é o dia do silêncio.
A fé popular chama esse dia de Sábado de Aleluia. Não por negar o clima de recolhimento, mas para afirmar que a vida vence a morte. É no final desse dia é que ocorre a grande celebração da Vigília Pascal ou seja, o Sábado Santo se encerra com a Celebração da vida.
Mesmo sendo destinado ao silêncio e oração o Sábado Santo é um dia de esperança. A fé cristã não se fixa na morte, mas na ressurreição. E o Sábado Santo culmina com a celebração da Vigília e para ela converge toda a liturgia da Igreja. É aqui que se manifesta o sentido de toda a vida e ações de Jesus de Nazaré, daí a indagação de Paulo, afirmando a vitória da vida: “Morte, onde está tua vitória?” (1Cor, 15,55).

É assim que podemos dizer: A celebração da Vigília Pascal completa o sentido da celebração do Natal: o Filho de Deus nasceu para iluminar nossa vida, caminhou entre os homens como ser humano e concluiu sua trajetória humana para voltar ao Pai indicando a todos o sentido da vida e o caminho para a eternidade..
Na Vigília a antiga Páscoa é reinterpretada: o povo que caminhou no deserto estava prefigurando o novo povo de Deus. Os cristãos são resgatados não mais pelo sangue dos bodes aspergido nas portas, mas pelo Sangue Santo do Cordeiro de Deus vertido sob os açoites, das chagas da cabeça coroada de espinhos, dos pés e mãos pregados na cruz e, principalmente, pelo sangue com água jorrando do coração perfurado pela lança.
Mas tudo isso ganha um sentido novo, como o próprio Jesus afirma, ao questionar os caminhantes desolados: “Não era preciso que o Cristo sofresse tudo isso e entrasse em sua glória?” (Lc 24,26). Era preciso que isso se cumprisse para que se cumprisse, também, a promessa da vida eterna, que se realiza na eterna vida do Ressuscitado.

E assim a Igreja celebra a nova Páscoa.
Tão grande e importante evento, não cabe num dia só. Por isso seguem-se mais cinquenta dias de Tempo Pascal. Ou seja, por mais cinco semanas a Igreja celebra os “domingos da Páscoa”, até o dia da Ascensão do Senhor. O Tempo Pascal termina com a celebração do Pentecostes.
No Tempo Pascal a Igreja celebra as diversas aparições do Senhor Ressuscitado. Ao longo desses cinquenta dias Jesus evidencia sua ressurreição, anuncia seu retorno ao Pai, assegura que não abandonará sua Igreja pois continuará lado a lado com os seus até o fim dos tempos (Mt 28,18-20). Anuncia a assistência do Espírito de Sabedoria e intensifica a preparação do tempo da Igreja que se inaugura com o Pentecostes (At 2,1-4).
Esses cinquenta dias de celebração da Páscoa, o Tempo Pascal, é como que um retorno ao costume da Igreja nascente. Ali, depois do batismo efetivado na celebração da Vigília, os catecúmenos recebiam uma catequese “mistagógica”. Ou seja, eram instruídos nos mistérios da fé, aprofundando o sentido do dom que receberam.
Nos dias atuais, o Tempo Pascal nos convida a olhar para o Ressuscitado, reconhecer nele o mesmo Jesus de Nazaré que andou distribuindo amor. Mais do que isso: a Igreja nos convida a sermos imitadores de Jesus, efetivamente dedicando tempo à oração, mas também e principalmente fazendo da vida serviço aos mais necessitados, oferecendo alento como fez o Mestre no caminho de Emaús (Lc 24,13-36).



Páscoa 1

Viu e acreditou

(Reflexões baseadas em: At 10,34a. 37-43; Cl 3,1-4; Jo 20,1-9)
Disponível em: https://pensoerepasso.blogspot.com/2021/04/pascoa-viu-e-acreditou.html

Será que nós já nos demos conta do que aconteceu nestes dias? Será que, realmente, compreendemos o que ocorreu não só nas celebrações da Semana Santa, mas com aqueles que viveram os eventos que deram origem às nossas celebrações?
A indagação tem sentido, porque uma coisa é celebrarmos a Paixão de Cristo, sua ressurreição, sua Páscoa. Outra coisa é entendermos e assumirmos em nossa vida aqueles acontecimentos, para que eles alimentem nossa fé.
Ocorre que nem sempre celebramos com base na fé. Aliás, creio que podemos dizer que na maioria dos casos, as pessoas “vão na onda”… fazem por que esse é o costume…
Você sabe que isto é verdade: As celebrações da Semana Santa passam pela vida de muitos, mas nem todos celebram a Semana Santa. Você sabe, assim como eu, que as celebrações podem ocorrer porque aprendemos com nossos pais; porque é tradição; porque “todo mundo faz”...  Elas podem representar uma conveniência e convenção social… afinal de contas não fica bem um comportamento diferente do que todo mundo faz… Já pensou uma Páscoa sem comprar e dar presentes? Sem aquelas mensagens de felicitações que compartilhamos, às vezes sem entender direito? Já pensou numa Páscoa sem os coelhinhos e os chocolates?… Já se deu conta de que isso, por vezes ou na maioria das vezes, tem mais a ver com os apelos comerciais do que com celebração da vida que brota da terra na forma de Jesus, o Cristo de Deus mostrando o caminho da ressurreição pascal?
Entretanto, apesar de tudo isso, a celebração da Semana Santa e da Pascoa tem sentido de ser porque nos apresenta um convite para a eternidade.
Sabemos desse convite e o recebemos, porque alimentamos uma fé que nasce das escrituras. No livro dos Atos dos Apóstolos, temos uma prova disso (At 10,34a. 37-43). Pedro comenta o fato e sua origem: “aconteceu em toda a Judeia, a começar pela Galileia” (At 10,37). E o que foi que lá aconteceu? A manifestação da graça divina, na pessoa de Jesus de Nazaré. Ele que foi “ungido por Deus com o Espírito Santo e com poder. Ele andou por toda a parte, fazendo o bem e curando a todos” (At 10,38). E, por ter feito o bem, foi assassinado, pregado na cruz (At 10,39).
Entretanto, essa foi só a face humana e histórica daquilo que fundamenta nossa fé. Isso representa um fato que, por si mesmo, dispensa a fé, pois pode ser comprovado. A sequência dos fatos, isso sim é elemento de fé. Isso realmente representa algo grandioso. Isso merece ser celebrado, pois indica a grandiosidade da proposta que Deus mantém. O que vem depois da cruz é o verdadeiro sentido da fé, pois depois da morte na cruz, Jesus não permaneceu na morte. Depois da cruz “Deus o ressuscitou no terceiro dia, concedendo-lhe manifestar-se” (At 10,40). A ressurreição e suas manifestações, isso sim é objeto de fé. Em quem? No Senhor que realizou essas coisas, nos indicando o que nos espera; e fé no testemunho daqueles que vivenciaram os fatos.
Nossa fé tem por base a certeza do que nos afirmaram aqueles que receberam a missão de divulgar o que Deus fez. E a missão foi confiada pelo próprio Jesus, o Cristo ressuscitado, como nos informa Pedro: “E Jesus nos mandou pregar ao povo e testemunhar que Deus o constituiu juiz dos vivos e dos mortos.” (At 10,42).
A ressurreição de Jesus tem muito mais a nos dizer. E a nos mostrar: o caminho para a eternidade. O caminho foi aberto pela ressurreição de Cristo, mas trilhá-lo depende de nós, dos nossos comportamentos e atitudes. E Paulo, na carta aos colossenses (Cl 3,1-4), insiste nesse ponto. A vida eterna nos é oferecida e está à nossa disposição. Entretanto, precisamos desejá-la e lutar por ela. “Esforçai-vos por alcançar as coisas do alto”, diz Paulo. E insiste: “aspirai às coisas celestes e não às coisas terrestres.” (Cl 3,1-2). É como se o apóstolo dissesse: “de que adianta existir água fresquinha na geladeira, se eu não me dirijo a ela para matar minha sede?”
Para isso acontecer temos que nos espelhar na Páscoa de Jesus. Sua Páscoa não foi somente a passagem, da morte para a vida, mas foi, também sua passagem pela história dos homens. Ele passou pela vida, como qualquer um de nós e, por isso e pelo que realizou nessa passagem – sua Páscoa entre nós – pode viver a Páscoa definitiva, passando da morte para a vida. Quando chegar nossa vez, caso tenhamos trilhados os passos do mestre, passaremos a viver com Ele “revestidos de glória” (Cl 3,4) para sempre.
Nisso reside o sentido da celebração e o motivo de celebrarmos a Páscoa com Jesus: em nossa vida refazermos os passos do Senhor, com a fé de que também trilharemos seus passos na direção da morada definitiva.
É claro que podemos continuar dando e recebendo presentes; comprando e dando chocolate; distribuindo coelhinhos e mensagens otimistas e belas… mas temos que entender: tudo isso tem a ver com o comércio, com convenções sociais… mas só isso não é celebração de Páscoa. É só comércio. A Páscoa tem a ver com reconstrução da vida nos moldes do que fez e ensinou Jesus!
A Páscoa, de Jesus e a nossa com o Cristo ressuscitado, exige o compromisso da fé, conforme a proposta que podemos ler em João 20,1-9. Não basta apenas sermos anunciadores com a angústia da incerteza da Madalena (Jo 20, 1-2): “Tiraram o Senhor do túmulo, e não sabemos onde o puseram”. É necessária, também a postura do discípulo amado que, ao ver a cena, compreende e acredita: “Ele viu, e acreditou. De fato, eles ainda não tinham compreendido a Escritura, segundo a qual ele devia ressuscitar dos mortos” (Jo 20, 8-9) abrindo caminhos para a vida…



Páscoa 2:

Um só coração

(Reflexões baseadas em:  4,32-35; 1Jo 5,1-6; Jo 20,19-31)
Disponível em: https://pensoerepasso.blogspot.com/2021/04/pascoa-2-um-so-coracao.html

Acabamos de celebrar a Páscoa. Por esse motivo a liturgia nos convida a continuar nesse mesmo clima de alegria e compromisso.
Mas esse convite da liturgia, também nos lança um desafio para nossa fé. E trata-se de um desafio porque não se baseia no que dizemos, mas no que fazemos. Não se expressa em palavras, mas em atitudes...afinal, viver em  “um só coração e uma só alma”, não é fácil!
Os Atos dos Apóstolos (4,32-35) nos colocam diante de um desafio para a fé numa experiência comunitária. Aqui nos é apresentado um modelo de comunidade ideal na qual “ninguém passava necessidade” (At 4,34). A base dessa comunidade comunista eram os apóstolos que “davam testemunho da ressurreição do Senhor Jesus” (At 4,33). Um testemunho que tem a solidariedade como pressuposto.
Na primeira carta de são João (5,1-6) o desafio consiste em nos identificarmos com Jesus, o vencedor do mundo, vencedor da morte, promotor da vida e aquele que concede todas as vitórias, uma vez que todas as vitórias tem a fé, como ponto de partida. Nas palavras do apóstolo: “Esta é a vitória que venceu o mundo: a nossa fé” (1Jo 5,4). Vencer na vida não é impossível, desde que a vida e a vitória tenham a fé como fundamento. “Quem é o vencedor do mundo, senão aquele que crê que Jesus é o Filho de Deus?” (1 Jo 5,5).
O evangelho, João (20,19-31) nos apresenta a radicalidade do desafio da fé. A fé de quem viu o ressuscitado é uma proposta para acreditar sem ver. É o próprio Senhor que exige essa radicalidade: “Jesus lhe disse: 'Acreditaste, porque me viste? Bem-aventurados os que creram sem terem visto!'” (Jo 20,29).
E aqui está o desafio: nada mais do que o próprio ato de fé.
A maioria de nós está acostumada e aceitamos aquilo que pode ser facilmente comprovado. Vivemos numa sociedade em que a demonstração, a prova, a evidência...são exigidos como critério de relacionamento. Raramente alguém acredita no que o outro afirma, só porque essa pessoa afirmou. Mesmo que ela seja merecedora de credibilidade permanece o “será?”. Uma das expressões que já esteve na boca da maioria de nós: “sou igual São Tomé: só acredito vendo...”. Essa é uma das frases mais impróprias para quem se confessa cristão.
É verdade que estamos inseridos numa sociedade de aparências, num mundo de falsidades e envolvidos em relações parciais, tendenciosas… por tudo isso é quase natural que não acreditemos. E, aqui está a questão: se não damos crédito ao que nos dizem aqueles com os quais convivemos, como podemos dar crédito a personagens como Jesus e seus apóstolos? E o que é pior, corremos o risco de estarmos frequentando alguma comunidade não porque acreditamos, mas porque assim aprendemos com nossos pais, com os mais velhos; essa participação pode tratar-se de uma ação cultural e não de um ato de fé!
Neste ponto, alguém pode estar se perguntando e perguntando também a mim: mas então, em que consiste a fé, como podemos caracterizar a crença?
Não sou eu que respondo, mas a própria Palavra Santa: a fé é expressão de uma vida e se manifesta como gesto doador de vida. Não é possível alguém dizer que tem fé se ela não se traduz nem se manifesta em gestos concretos. A fé que dizemos ter, precisa ser confrontada com a postura da sociedade ideal, dos Atos. Tem que estar adequada à vida plena manifestada pela Palavra Santa, que foi escrita para gerar fé e vida. “Estes foram escritos para que acrediteis que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus, e para que, crendo, tenhais a vida em seu nome.” (Jo 20,31).
A proposta da comunidade apresentada aos primeiros cristãos e uma exigência feita também a nós: construir uma sociedade na qual tudo seja “distribuído conforme a necessidade de cada um” (At 4,35). Uma afirmação que tem por fundamento ou que se manifesta numa outra: tudo que sobra das minhas necessidades é o que está faltando àqueles que sentem necessidades…; tudo que está em meu poder e que ultrapassa minhas necessidades, não me pertence, mas pertence àqueles que necessitam…
É aqui o ponto em que se comprova a fé: na capacidade de partilhar! Dizia um sábio bispo: “A fé entra pelos ouvidos, chega ao coração. Se atravessar o bolso, é uma fé garantida e manifesta-se numa pessoa desapegada”. E não se trata de nenhum rótulo sócio-político. Trata-se de palavra de Deus. Trata-se de um modelo de sociedade em que a base das relações é ser capaz de ajudar a eliminar a necessidade do outro.
Como se pode ver, a radicalidade da fé é exigente e tem consequências. Ela é revolucionária. Quem, efetivamente, foi tocado por ela, será mais um dos poucos a ajudar na construção da sociedade da paz, pois a estes, constantemente Jesus oferece: “A paz esteja convosco” (Jo 20,19). Entretanto, no mundo da paz não pode haver necessitados. A ausência da paz é evidenciada pela presença de pessoas necessitadas. Enquanto existirem pessoas necessitadas não haverá paz.
Aqui está, portanto, o grande desafio: construir uma sociedade, uma comunidade em que a norma de vida seja “um só coração e uma só alma!”



Páscoa 3:

Sereis minhas testemunhas

(Reflexões baseadas em: At 3,13-15.17-19; 1Jo 2,1-5a; Lc 24,35-48)
Disponível em: https://pensoerepasso.blogspot.com/2021/04/sereis-minhas-testemunhas.html

O dia da Páscoa já passou. Mas o ambiente pascal permanece neste terceiro domingo do Tempo da Páscoa. Já se passaram vários dias. Já voltou a normalidade para a maioria das coisas. Já começam a cicatrizar as feridas da dor, da perda, da ausência. Já começa a aparecer a cicatriz...
Mesmo tendo ouvido algumas mulheres anunciando que o corpo não estava no túmulo, a incredulidade permanecia. Mesmo tendo ouvido o mestre por sucessivos dias e o acompanhado por diversos locais, a dificuldade em entender permanecia. Mesmo tendo visto as maravilhas que o Senhor havia realizado… a fé ainda não havia se manifestado!
E, junto com tudo isso… o medo ainda permanecia… Eles o mataram… aqueles que assassinaram o Senhor podem nos perseguir… será que nos matarão também?
Inquietos estavam os corações! Mas oravam! Tranquilidade e paz era o que, realmente, não sentiam! Mas estavam unidos! Queriam ter coragem com as mulheres tiveram! Mas o medo era maior!
E, afinal, quem não ficaria com medo? Quem não pensaria em se esconder e trancar as portas? (Lc 24,35-48) Quem não ficaria receoso de acreditar e não colocaria em dúvida, quando dois companheiros narrassem uma história meio estranha de ter visto o Senhor e ter com ele compartilhado o pão?…
Então dá pra imaginar o susto. Dá pra imaginar o medo. Dá pra imaginar, também, a alegria e a inquietação quando, o Senhor se faz presente saudando: “A paz esteja com vocês!” (Lc 24,36).
A paz era o que mais queriam, mas não seria um fantasma? (Lc 24,37)
Entretanto, aquela voz! Aquelas mãos! Aqueles pés! A voz transmitia a mesma paz! Nas mãos e os pés os mesmos sinais da violência na cruz (Lc 24,39). Mas Ele havia morrido. Eles o haviam visto morrer na cruz! Então como estava ali entre eles? Eles queriam acreditar. Queriam entender. Queriam se alegrar… mas a dúvida e o medo permaneciam…
Foi aí que Ele disse: “São estas as coisas que vos falei quando ainda estava convosco: era preciso que se cumprisse tudo o que está escrito sobre mim na lei de Moisés, nos Profetas e nos Salmos” (Lc 24,44). Não somente falou, mas também: “Abriu a inteligência dos discípulos para entenderem as Escrituras” (Lc 24,45).
Agora sim! Agora ficou tudo claro! Agora a coragem se instalou! Agora o medo cedeu e ganhou força a vontade e a necessidade de anunciar!
E foi o que eles fizeram. Abriram as portas e Pedro falou ao povo: “O Deus de Abraão, de Isaac, de Jacó, o Deus de nossos antepassados glorificou o seu servo Jesus” (At 3,13). E João confirma “Ele é a vítima de expiação pelos nossos pecados, e não só pelos nossos, mas também pelos pecados do mundo inteiro” (1Jo 2,2)
Pedro acusa os acusadores de Jesus. Mostra o que fizeram: Entregaram-no, rejeitaram-no, pediram a morte de santo e a libertação do assassino (At 3,13-14). Mesmo demonstrando o tropeço do povo, Pedro acena para a bondade de Deus demonstrando que esse povo foi manipulado para rejeitar o caminho da paz: “eu sei que vós agistes por ignorância” (At 3,17). E se agiram por ignorância, incitados por outros, são convidados ao arrependimento. Entretanto, aqueles, inclusive em nossos dias, que atentam contra a vida da sociedade, têm o mesmo pecado daqueles que o crucificaram.
Aqueles que o crucificaram continuam agindo, hoje, como agiram lá. Os tempos são outros, mas os gritos mentirosos são os mesmos. Os que continuam assassinando o Senhor são aqueles que, investidos de poder, político ou religioso, poderiam se concentrar em salvar vidas, preservar a saúde… mas permanecem numa disputa mesquinha e em mútuas acusações de irresponsabilidade, quando a irresponsabilidade consiste em ter o poder de melhorar a vida das pessoas e não o fazer. Desde o mais alto posto, politico ou religioso, até as bases nas pequenas comunidades, todos aqueles que não ajudam a defender a vida fazem parte do grupo que continua crucificando Jesus.
Pedro apresenta a proposta salvadora: “Arrependei-vos, portanto, e convertei-vos, para que vossos pecados sejam perdoados” (At 3,19).
E João explica as exigências da fé: “Quem diz: ‘Eu conheço a Deus’, mas não guarda os seus mandamentos, é mentiroso, e a verdade não está nele” (1 Jo 2,4). A condenação da difusão de notícias mentirosas valia naquele mundo em que nascia a Igreja e ainda vale nos dias atuais.
Os apóstolos, assumiram o mandato. Entenderam que Jesus Ressuscitado os orientou e os enviou, dizendo: “Assim está escrito: ‘O Cristo sofrerá e ressuscitará dos mortos ao terceiro dia e, no seu nome, serão anunciados a conversão e o perdão dos pecados a todas as nações, começando por Jerusalém’. Vós sereis testemunhas de tudo isso” (Lc. 24,46-48). Efetivamente os apóstolos entenderam a mensagem e se puseram a anunciar.  Pedro confirma: “e disso nós somos testemunhas”. (At 3,16).
Como a missão ainda está em aberto, cabe a nós a continuação. A nós também é feita a proposta:  “Vós sereis testemunhas de tudo isso”. Testemunho com base na fé. O tamanho da fé é o tamanho do testemunho.



Páscoa 4:

O Bom Pastor e os filhos de Deus

(Reflexões a partir de: At 4,8-12; 1Jo 3,1-2; Jo 10,11-18)
Disponível em: https://pensoerepasso.blogspot.com/2021/04/pascoa-4-o-bom-pastor-e-os-filhos-de.html

O sentimento de um Pai em relação aos filhos quase sempre é mais facilmente perceptível do que dos filhos em relação ao Pai. Em diferentes oportunidades os filhos questionam e, por vezes, se rebelam em relação a orientações dos pais. Os pais, quase sempre, amam aos filhos de forma paciente procurando entender os motivos dos comportamentos dos filhos. Cabe aos pais, a missão de, além de gerar, também orientar a vida dos filhos. E, de fato, na maioria das vezes a relação pai-filho ocorre de forma amorosa e harmoniosa.
Essa é uma afirmação verdadeira em nossas relações cotidianas e muito mais verdadeira na relação com o Pai celeste. Na liturgia deste quarto domingo da Páscoa a Igreja nos mostra isso de forma muito transparente e nos convida a refletir sobre as atitudes condizentes à vida do cristão.
Na primeira leitura (At 4,8-12) em resposta aos questionamentos que lhes são feitos por terem feito o bem, Pedro explica o porquê de estarem curando o enfermo. Quase que completando a explicação de Pedro, na segunda leitura (1Jo 3,1-2) João afirma nossa filiação divina e as consequências disso. E, no trecho do Evangelho (Jo 10,11-18), Jesus apresenta-se como o Bom Pastor, levando-nos à conclusão de que ao cristão não resta alternativa: o amor do Pai por nós é tão intenso que nossa única opção é procurar fazer o que o Pai nos orienta, mediante a ação do Filho.
Sendo assim, da mesma forma que Pedro, deveríamos poder dizer, em todas as nossas atitudes e em relação a cada um dos nossos atos: isso que estamos realizando “é pelo nome de Jesus Cristo, de Nazaré” (At 4,10). Esse deveria ser nosso comportamento, mas eu nem me atrevo a indagar aos cristãos: tudo que estamos fazemos tem sido realizado em nome de nosso Senhor?
Sei que se perguntasse, muitos de nós, se fossemos dizer a verdade, não poderíamos afirmar que sim. Mas, já que a indagação nos deixaria embaraçados, vamos permitir que a pergunta permaneça em nossa consciência. Como naquela orientação dos moralistas: aquilo que não posso fazer diante das pessoas, também não me é licito fazer sozinho e tudo que posso fazer sozinho não preciso ter receio de dizer ou realizar diante das pessoas.
Noutras palavras: por adoção divina e pelos méritos do sangue de Jesus, recebemos uma dádiva que dos dá o direito “de sermos chamados filhos de Deus! E nós o somos!” (1 Jo 3,1). Isso significa que, sendo filhos de Deus, cabe a nós trilharmos os caminhos do Pai e realizarmos as obras de Jesus. Por que? Porque somos filhos daqueles que nos indica o melhor caminho: “Caríssimos, desde já somos filhos de Deus, mas nem sequer se manifestou o que seremos! Sabemos que, quando Jesus se manifestar, seremos semelhantes a ele, porque o veremos tal como ele é” (1 Jo 3,2).
Deus nos oferece a graça de o contemplarmos, mas cabe a nós optarmos pelo encontro. E a trilha segura para esse encontro é realizarmos as obras que Ele nos ensinou a fazer. Desenvolver nossas atividades “pelo nome de Jesus Cristo, de Nazaré” é optar por aquele que foi rejeitado. “Jesus é a pedra, que vós, os construtores, desprezastes, e que se tornou a pedra angular” (At 4,11).
Talvez por isso tão poucos, dos que se fazem chamar de cristãos, realmente agem como tal. Ou seja, realizar as obras de Jesus, fazer tudo em seu nome … tem consequências: os adversários do Reino costumam perseguir aqueles que se doam em nome do Senhor. Mas, por outro lado, aqueles que seguem os passos do Mestre podem viver com esta certeza: “Em nenhum outro há salvação, pois não existe debaixo do céu outro nome dado aos homens pelo qual possamos ser salvos” (At 4,12).
Isso é o que nos possibilita entender o porquê de Jesus se apresentar como Bom Pastor. Qualquer um pode pastorear o rebanho. Qualquer um pode repetir o nome do Senhor. Qualquer um pode alardear que está fazendo isso e aquilo em nome do Senhor. Qualquer um pode dizer que faz milagres em nome do Senhor … e dizendo isso podem enganar a muitos. Mas se qualquer um desses não mostrarem, por atos no dia a dia, os comportamentos do Bom Pastor… esses podem ser tudo, menos obreiros do Senhor.
Não importa nossa confissão religiosa. Não importam nossas opções políticas. Não importa a quem dedicamos nossas predileções, em relação aos líderes que nos querem representar. Se eles não passarem no teste do Bom Pastor, podem ser representantes do anticristo, mas não são enviados do Senhor. E o teste é simples: os enviados do Pai podem dizer com seus atos: “Eu sou o bom pastor. O bom pastor dá a vida por suas ovelhas.” (Jo 10,11). Aqueles a quem admiramos, são capazes de dar a vida por nós ou só querem nos explorar? Se este for o caso, esse farsante é um “ mercenário, que não é pastor e não é dono das ovelhas, vê o lobo chegar, abandona as ovelhas e foge, e o lobo as ataca e dispersa. Pois ele é apenas um mercenário e não se importa com as ovelhas.” (Jo 10,12).
Somente o Bom Pastor nos ajuda a seguir o caminho seguro para nos reconfortarmos nos braços daquele nos adotou como filhos. Só o bom Pastor nos transforma em filhos de Deus.



Páscoa 5:

A videira e os ramos

(Reflexões baseadas em: At 9,26-31; 1Jo 3,18-24; Jo 15,1-8)
Disponível em: https://pensoerepasso.blogspot.com/2021/05/pascoa-5-videira-e-os-ramos.html

“Eu sou a videira, vocês são os ramos.”
Quem de nós ainda não ouviu, leu ou falou essas palavras, ensinadas por Jesus? (João 15,1-8). O que o Senhor afirmou? Que os galhos de uma planta só sobrevivem se estiverem unidos ao seu tronco. Isso indica uma profunda união que deve haver entre as pessoas e Jesus Cristo. Por quê? Porque essa é uma união que conduz ao Pai.
Além disso, muitos de nós, com certeza, nos recordamos de uma passagem da vida de Paulo, quando perseguia os cristãos. No caminho encontra-se com Jesus e “cai por terra”. Mas o que acontece com o perseguidor depois desse encontro com Jesus ressuscitado? O começo da resposta está nesta narrativa dos Atos dos Apóstolos 9,26-31.
Frequentemente se coloca a questão da diferença entre o que se diz e o que se faz. Neste quinto domingo da Páscoa, a primeira carta de João (1Jo 3,18-24) chama a atenção para essa dicotomia. Afirma que não bastam as palavras, são necessárias ações para explicitar a fé: “não amemos só com palavras e de boca, mas com ações e de verdade!”(1Jo 3,18). As palavras são o pontapé inicial para a relação amorosa que se expressa nas ações amorosas. Para que as palavras amorosas sejam verdadeiras dependem das ações amorosas. Falar é muito fácil, qualquer um pode dizer qualquer coisa… mas demonstrar o dito pela ação amorosa...
O fato é que essas três leituras nos sugerem um ponto em comum: a sintonia com Jesus ressuscitado. Essa sintonia leva a união com o Pai: para se trilhar o caminho da união na comunidade; para expressar um convite para darmos testemunho fidedigno e convincente; para ser uma amostra da união entre a videira-Jesus e seus ramos, que somos nós, os cristãos.
O caso de Paulo é exemplar: inicialmente ele perseguia dos seguidores do Homem de Nazaré. Depois daquele encontro definitivo, passou a ser integrante do grupo que antes perseguia. Essa experiência acabou sendo uma especie de enxerto. Um galho (Paulo) que vivia noutra planta (o judaísmo), desligou-se dessa antiga planta para unir-se ao novo grupo que começava a crescer e produzir. Um grupo que se desenvolveu justamente a partir do momento em que Paulo, enxertado na nova comunidade, foi aceito por ela e começou a pregar a nova fé. “Daí em diante, Saulo permaneceu com eles em Jerusalém e pregava com firmeza em nome do Senhor.” (At 9,28).
A fé era nova, mas seus fundamentos eram os mesmos: a promessa de Deus, desde o início do Antigo Testamento, coroando-se no momento presente. O enxerto é novo, mas as raízes da planta são antigas, firmes e fortes. Raízes que fazem a planta crescer e produzir muito. E Paulo foi um enxerto altamente produtivo, movido pala assistência do Espírito: “A Igreja, porém, vivia em paz em toda a Judeia, Galileia e Samaria. Ela consolidava-se e progredia no temor do Senhor e crescia em número com a ajuda do Espírito Santo.” (At 9,31).
Crescendo, a Igreja passou a sentir necessidade de orientações seguras para os comportamentos dos cristãos. Por isso a intervenção de João. Não bastam palavras. São necessárias ações. Não se trata de falar bonito e ir para casa curtir a vida da forma que achar conveniente. O passo seguinte tem que ser dado: agir em consonância com as palavras. Falou bonito? Então mostre ações no mesmo nível. Tem que mostrar ações bonitas.
A vida do cristão não é uma profissão qualquer. Uma pessoa pode ser um excelente médico ou advogado ou professor. Mas terminado seu trabalho pode voltar pra casa e fazer coisas absurdas, como sabemos que vez por outra acontece. Mas com o cristão não é assim. Com o cristão o falar e o agir tem que andar juntos. “Este é o seu mandamento: que creiamos no nome do seu Filho, Jesus Cristo, e nos amemos uns aos outros, de acordo com o mandamento que ele nos deu.” (1Jo 3,23).
E aqui entram as palavras do mestre. Não bastam palavras bonitas. Se o belo discurso não nasce de um ramo ligado à videira, pode até ser bonito, mas corre o risco de não conduzir ao Agricultor, que é o Pai. E, o que é pior, o ramo não sendo produtivo pode ser podado, excluído. “'Eu sou a videira verdadeira e meu Pai é o agricultor. Todo ramo que em mim não dá fruto ele o corta; e todo ramo que dá fruto, ele o limpa, para que dê mais fruto ainda.” (Jo 15,1-2). E triste é o destino dos ramos podados: “Quem não permanecer em mim, será lançado fora como um ramo e secará. Tais ramos são recolhidos, lançados no fogo e queimados.” (Jo 15,6).
Mas quais são os frutos esperados pelo tronco da Videira? Pelo Agricultor? E pela seiva do Espírito vivificador? Quais são os frutos esperados desses ramos unidos ao tronco?
Os frutos são sempre os mesmos: a plenitude de vida. A defesa da vida. A valorização da vida. A alegria de viver promovendo a vida de quem se aproxima de nós. E esse pode ser um critério para olharmos para as pessoas com as quais convivemos, as pessoas que elegemos, as pessoas que admiramos, as pessoas que se colocam como líderes das nossas comunidades, as pessoas que nos dizem o quê e como agir…. São elas promotoras de vida ou só produzem belos discursos?
Sempre foi necessário, porém atualmente ainda mais, observar os atos dos que fazem belos discursos. Quais são seus frutos? Esses ramos estão ligados a quais troncos?



Páscoa 6:

Isto vos ordeno

(Reflexões baseadas em: At 10,25-26.34-35.44-48; 1Jo 4,7-10; Jo 15,9-17)
Disponível em: https://pensoerepasso.blogspot.com/2021/05/pascoa-6-isto-e-o-que-vos-ordeno.html

Quem é pai ou mãe, sabe disso.
Quem já passou pela experiência da despedida sabe disso.
Mesmo entre amigos, a cena não é muito diferente: na despedida, além das emoções afloradas, ocorrem recomendações e demonstrações de afeto.
Quem vai e quem fica, ouve, de quem vai e de quem fica, palavras como: tome cuidado com isto ou aquilo. Faça isto e não faça aquilo… Volte logo! Chegando lá, liga, manda notícias… e seguem outras recomendações e demonstrações de cuidado.
As leituras que a Igreja nos apresenta, neste sexto domingo da Páscoa trazem um pouco deste tom de recomendações e demonstrações de afeto, em momentos de despedida. Na liturgia de hoje, Jesus dá as últimas orientações aos discípulos, antes de retornar ao Pai, como se verá na celebração da Ascensão.
As primeiras orientações, de hoje, começam com Pedro, nos Atos dos Apóstolos (At 10,25-26.34-35.44-48). Ao visitar a casa de Cornélio confirma e ensina o que Jesus havia dito: a mensagem salvadora é para todos.
Ao entrar na casa de Cornélio encontra um grupo de pessoas ansiosas por receber o ensinamento cristão e o batismo. Pedro relembra as orientações de Jesus e põe em prática os ensinamentos do Mestre, confirmando que: “Deus não faz distinção entre as pessoas. Pelo contrário, ele aceita quem o teme e pratica a justiça, qualquer que seja a nação a que pertença” (At 10,34-35).
Daí sua conclusão: o fato de Deus não fazer distinção entre as pessoas significa que todos devem ser acolhidos como iguais. E nos dias atuais, nossa missão é continuarmos essa obra.
Não fazer distinção entre as pessoas é uma forma de amar, como sugere João, em sua primeira carta (1Jo 4,7-10). Aqui o apóstolo demonstra que o amor é um dom divino. Dá pra dizer mais:  todo e qualquer preconceito e discriminação são sentimentos dos inimigos de Deus. São sentimentos opostos ao amor. Este sim um sentimentos divino com o qual Deus nos presenteou “porque o amor vem de Deus e todo aquele que ama nasceu de Deus e conhece Deus” (1jo 4,7). O amor é dom de Deus porque “não fomos nós que amamos a Deus, mas foi ele que nos amou e enviou o seu Filho como vítima de reparação pelos nossos pecados.” (1Jo 4,10).
Entretanto as orientações definitivas saem da boca do Mestre (Jo 15,9-17) ao ensinar o mandamento supremo. O mandamento do amor. E para isso o ponto de partida, referência e modelo pleno está na relação do Pai com o Filho. O amor de Jesus e do Pai tem a mesma intensidade. E essa mesma intensidade do amor trinitário é a medida do amor de Deus para conosco: “Como meu Pai me amou, assim também eu vos amei” (Jo 15,9).
É claro que sempre temos a opção de renunciar ao amor de Deus, mas se o aceitamos, então temos a obrigação de corresponder e responder ao convite: “Permanecei em meu amor” (Jo 15,9).
E aqui reside a dificuldade para seguir as orientações/ensinamentos do Mestre. Não basta apenas uma relação vertical, afirmando o amor a Deus. Essa relação, de acordo com a palavra de Jesus, somente ocorre se for explicitada e se manifestar em sentido horizontal, em relação às outras pessoas. O amor vertical, em relação a Deus, só tem sentido e pode ser visto como verdadeiro, se tiver um correspondente horizontal, na relação com os outros. Esse é o sentido da cruz redentora.
É necessária a relação com o Pai, sem a menor dúvida. Mas essa relação com o Pai, tem uma condição que é guardar os mandamentos do Mestre: “Se guardardes os meus mandamentos, permanecereis no meu amor, assim como eu guardei os mandamentos do meu Pai e permaneço no seu amor” (Jo 15,10).
Mas qual é o mandamento que Jesus nos orienta a seguir? Trata-se de algo radical. Trata-se do mandamento que define quem é discípulo do Senhor. Trata-se de assumir a radicalidade evangélica. Trata-se de um mandamento que exige compromisso de vida. Trata-se do mandamento do amor: “Este é o meu mandamento: amai-vos uns aos outros, assim como eu vos amei. Ninguém tem amor maior do que aquele que dá sua vida pelos amigos” (Jo 15,12-13).
Dizer que ama a Deus, recitar as mais diferentes orações e preces é fácil. Qualquer um pode fazer. Mas poucos aceitam a prova definitiva de dar a vida pelo outro.
Claro que só saberemos se somos ou não capazes dessa entrega radical quando houver uma situação definitiva. Mas também é verdade que essa pode ser uma prática cotidiana: fazer do seu cotidiano uma dinâmica de entrega. Por isso a necessidade de se afirmar este detalhe, dar a vida não significa ser martirizado; dar a vida é fazer da vida cotidiana espaço e ambiente para relações amorosas, afetuosas, caridosas, solidárias...
Então como saber se estamos ou não no caminho certo? Jesus nos oferece o critério: saber se nossas preces são atendidas. Também nisso ele nos orienta: “fui eu que vos escolhi e vos designei para irdes e para que produzais fruto e o vosso fruto permaneça. O que então pedirdes ao Pai em meu nome, ele vo-lo concederá” (Jo 15,16) Quantas de nossas preces em favor da vida são atendidas? E aqui é importante observar o que recitamos no “Pai Nosso”: “Seja feita a vossa vontade!”
O fato é que a relação para com Deus é um mandamento, mas a relação com os outros é uma ordem. É a palavra definitiva de quem está se despedindo: “Isto é o que vos ordeno: amai-vos uns aos outros” (Jo 15,17).



Ascensão do Senhor

É agora que vais restaurar?

(Reflexões baseadas em: At 1,1-11; Ef 1,17-23; Mc 16,15-20)
Disponível em: https://pensoerepasso.blogspot.com/2021/05/ascensao-do-senhor-e-agora-que-vais.html

A pergunta dos discípulos, no início do livro dos Atos dos Apóstolos (At 1,1-11) mostra bem a limitação humana em compreender as coisas de Deus.
Jesus ressuscitado estava reunido com os discípulos. E enquanto ainda os instruía, em seus últimos momentos antes de voltar para o Pai, pouco antes da partida, um deles lhe pergunta: “Senhor, é agora que vais restaurar o reino em Israel?” (At 1,6)
Paulo, conhecendo as fraquezas humanas, na carta aos efésios (Ef 1,17-23) em tom de oração instrui a comunidade, pedindo o dom do entendimento: “o Pai a quem pertence a glória, vos dê um espírito de sabedoria que vo-lo revele e faça verdadeiramente conhecer.” (Ef 1,17).
Do ponto de vista histórico, a restauração, pretendida pelo discípulo só ocorreu após a Segunda Guerra Mundial, em meados do século XX, por ocasião da criação do atual Estado de Israel. E foi uma ação problemática, pois restaurou a nação ao povo judeu mas, ao mesmo tempo, criou o atual problema e o conflito entre Judeus e Palestinos. Uma restauração meramente humana, carregada e mantida com os problemas humanos...
Mas do ponto de vista do Reino de Deus, a restauração ainda não aconteceu. O povo de Deus continua esperando. E quem é o Povo de Deus? Todo aquele que nele crê!
Por esse motivo as palavras do Senhor continuam válidas: “Não vos cabe saber os tempos e os momentos que o Pai determinou com a sua própria autoridade” (At 1,7). Notemos que na fala de Jesus estão presentes alguns elementos importantes: inicialmente é necessário frisar que a restauração é obra de Deus e, portanto, nenhum ser humano está autorizado a dizer que será hoje ou amanhã. Todos os que fazem essas previsões não falam em nome de Deus. Podem dizer o que quiserem, mas não falam em nome de Deus.
Em segundo lugar, Jesus ensina que seus discípulos serão instruídos pelo Espírito: que descerá, instruirá e fará dos discípulos testemunhas até os confins da terra. “Recebereis o poder do Espírito Santo que descerá sobre vós, para serdes minhas testemunhas em Jerusalém, em toda a Judeia e na Samaria, e até os confins da terra” (At 1,8). E isso implica dizer que nenhuma sociedade ou grupo pode se considerar o povo de Deus; no máximo pode fazer parte dele… se fizer as obras do Senhor!
Podemos, agora, nos perguntar: por que Jesus orienta dessa forma seus discípulos? Porque os quer testemunhas. Porque os quer continuando sua obra. Porque não os quer olhando para o alto sem se colocar a caminho. Não quer oração sem pé no chão. “Por que ficais aqui, parados, olhando para o céu?” (At 1,11). A alternativa a ficar parado olhando para o céu já havia sido dada: ser testemunha “até os confins da terra”. E, para dar testemunho não se pode ficar parado…
Com essa perspectiva é que entendemos o ensinamento/oração de Paulo explicando como o Espírito agirá: dará o conhecimento abrindo os corações dos discípulos para o entendimento. Mas não é só isso: ensinará a ter esperança, mostrará a riqueza da glória celeste, pois o céu é herança de todos os que, com sua vida, derem testemunho do Senhor. Esses, no tempo oportuno, que só o Pai conhece, poderão contemplar Jesus em sua glória definitiva. “Que ele abra o vosso coração à sua luz, para que saibais qual a esperança que o seu chamamento vos dá, qual a riqueza da glória que está na vossa herança com os santos” (Ef 1,18)
Podemos notar, além disso, que em sua súplica Paulo mostra a ação da Trindade, em favor daqueles que assumem o compromisso de dar testemunho: Cristo, o Filho, está voltando ao Pai (por isso celebramos a Ascensão do Senhor). Do céu Pai e o Filho concedem o Espírito do conhecimento àqueles que se comprometem com o Reino.
Tudo isso está fundamentado nas palavras de Jesus (Mc 16, 15-20). É Ele quem faz a afirmação inicial: a missão universal da pregação a todos. “Ide pelo mundo inteiro e anunciai o Evangelho a toda criatura!” (Mc 16,15). Evidentemente, se a mensagem é destinada a todos, ninguém pode ficar de fora, por negligência dos anunciadores, pois a mensagem salvadora é destinada a todos!
Diante da proposta do Senhor, duas alternativas: crer ou não crer. E cada uma delas com consequências definitivas. Ao que crê se oferece o batismo e consequentemente a salvação, pois o batizado passa a ser discípulo e continuador da obra do Senhor; aquele que não crê, não receberá o batismo e a sua descrença o levará à condenação. “Quem crer e for batizado será salvo. Quem não crer será condenado.” (Mc 16,16)
Como podemos ver, não é Deus quem age. A oferta é de Deus, mas a resposta é humana. Deus oferece a graça, oferece a opção. Diante da oferta de Deus faz-se necessária uma opção pessoal que implica em salvação ou condenação.
E assim podemos nos perguntar: quando será a restauração? Evidentemente não sabemos a resposta. O que podemos dizer é que enquanto o Senhor Deus não restaurar este mundo, instalando seu Reino, cabe a nós preparar o caminho com nosso testemunho.



Pentecostes:

Recebam o Espírito Santo

Reflexões baseadas em: At 2,1-11b; 1Cor 12,3b-7.12-13; Jo 20,19-23
Disponível em: https://pensoerepasso.blogspot.com/2021/05/pentecostes-recebam-o-espirito-santo.html

No dia de Pentecostes o cento do discurso, evidentemente, é o Espírito Santo manifestando-se (At 2,1-11), sendo entregue (Jo 20, 19-23) e ensinando a reconhecer Jesus como Senhor (1Cor 12, 3b-7.12-13).
Entretanto, se o Artista principal é o Espírito, a cena é desenhada a partir da atuação de Jesus de Nazaré. E, também, Jesus quem dirige todo o enredo a fim de fazer com que todos reconheçam “as maravilhas de Deus” (At 2,11). Na solenidade de Pentecostes estamos diante do Pai, do Filho e do Espírito santificador. A festa solene é do Espírito, mas é a Trindade que dá o tom e dirige a orquestra.
Isso tudo nos indica que ao celebrarmos o Pentecostes como a grande festa do Espírito Santo, a Igreja nos ensina que, efetivamente, estamos celebrando mais uma manifestação trinitária: os discípulos (de Jesus, o Filho) “Ficaram cheios do Espírito Santo e começaram a falar” (At 2,4) as coisas que levam ao Pai. A plenitude ocorre porque Jesus entrega o Espírito de Amor aos seus discípulos reunidos no momento em que “soprou sobre eles e disse: Recebei o Espírito Santo” (Jo 20,22), com esse gesto lhes transmite uma missão do Pai. Nesse momento entendemos que a fonte inspiradora para toda a cena é o Pai, uma vez que Jesus, ao oferecer a paz, insere os discípulos na missão “Como o Pai me enviou, também eu vos envio” (Jo 20,21).
E os discípulos são enviados para anunciar a proximidade do Reino! O Reino que é oferecido por Deus, mas que precisa ser construído por aqueles que recebem o Espírito da esperança!
Cientes da dimensão trinitária (da Santíssima Trindade), na festa do Espírito, somos levados a observar mais alguns detalhes. E são detalhes importantes que nos indicam o sentido da celebração do dia de Pentecostes.
Notemos que “os discípulos estavam todos reunidos”(At 2,1). Mas o detalhe é que a reunião ocorria com as portas fechadas, pois os discípulos estavam com medo. E o medo se justifica, pois ainda não haviam recebido os dons do Espírito (Jo 20,19). Quando recebem o Espírito de Força, abrem as portas e começam a falar. O dom do anúncio corajoso se concretiza na media em que os discípulos se põem a anunciar as “maravilhas de Deus” aos “devotos de todas as nações do mundo”(At 2,5), pois a proposta divina é universal, destina-se a todas as nações e a todos os povos, pois as “maravilhas de Deus” não têm fronteiras!
Notemos também que Jesus sopra o Espírito de Vida sobre os discípulos oferecendo a paz que vem do Pai: “Como o Pai me enviou, também eu vos envio” (Jo 20,21). A partir disso todos são enviados a todas as nações, pois a missão envolve o mundo inteiro. Por isso a necessidade de falar em outras línguas (At 2,4). E o que vai ser anunciado? A necessidade de se construir o “bem comum” (1Cor 12,7), uma vez que a proposta do Reino não é para indivíduos isolados, mas um presente do Pai para a comunidade.
Além disso, se há “diversidade de dons” e “diversidade de ministérios” (1 Cor 12,4-5) o corpo é um só. É o corpo de Cristo, formando a Igreja, a comunidade dos que fazem opção pelo Deus do Amor. Por isso que Paulo insiste na afirmação de que todos “fomos batizados num único Espírito, para formarmos um único corpo, e todos nós bebemos de um único Espírito” (1Cor 12,13). E, mais uma vez, tudo isso com a finalidade de nos ensinar a produzir nossos frutos “para o bem comum”. Essa edificação do bem para todos é o caminho que leva à paz, oferecida pelo Senhor.
A semente da paz pode até ser plantada a partir de atos individuais, mas a colheita é coletiva. Não há paz se não houver coletividade e ação harmoniosa!
Uma outra dimensão da celebração do Pentecostes está no fato de que o Espírito de Pureza, entregue por Jesus, implica na oferta do perdão. A oferta é para todos. Entretanto, diante da diversidade de ministérios, da diversidade de dons, da necessidade de construir a paz, da exigência do bem comum… surgem aqueles que não se assumem como membros da comunidade. Daí a missão purificadora: “A quem perdoardes os pecados, eles lhes serão perdoados; a quem não os perdoardes, eles lhes serão retidos” (Jo 20,23).
À igreja, e seus ministros ordenados, cabe essa incumbência. Mas também essa é uma missão comunitária e vinculada ao Espírito de Perdão. A proposta é universal, mas sua aceitação é pessoal. Como nem todos aderem à proposta do Reino, esses se excluem da comunhão com a comunidade da Igreja e, portanto, também da convivência com a comunidade trinitária. Daí a missão de explicitar e deixar claro o sinal da adesão ou da rejeição. Ao aderir ao projeto do Reino opta-se, também, pelo perdão. Mas aqueles que se negam a viver em favor do bem comum, se excluem. Daí a necessidade de se explicitar a exclusão.
Entretanto, se o perdão sacramental é atribuição do ministro ordenado, a edificação de uma comunidade amorosa, em que os membros se perdoam mutuamente, também é um dom do Espírito.
Sempre que alguém desejar e se fizer membro do corpo de Cristo, com suas ações em favor do bem comum, terá os pecados perdoados. E para esses o Senhor continua dizendo: receba o Espírito Santo.
Como se vê, na celebração do Pentecostes, a festa solene do Espírito, o que prevalece é a ação da Trindade. E isso se torna um convite e um desafio a que os cristãos edifiquem a comunidade pelos moldes da Trindade...

Neri de Paula Carneiro
Mestre em educação, filósofo, teólogo, historiador.
Outros escritos do autor:
Filosofia, História, Religião: https://www.webartigos.com/index.php/autores/npcarneiro
Literatura: https://www.recantodasletras.com.br/autores/neripcarneiro

Sagrada Família: para se cumprir!

Reflexões baseadas em: Eclo 3,3-7.14-17a; Cl 3,12-21; Mt 2,13-15.19-23 Todos os que, de alguma forma, tiveram contato com os ensinamentos d...