quarta-feira, março 31, 2021

Quinta Feira Santa - Dei-vos o exemplo

Estamos em plena Semana Santa. Nesta semana, ao mesmo tempo que podemos e devemos refletir as leituras que a Igreja nos propõe, também podemos e devemos refletir o significado destas celebrações que estão no coração da fé cristã. De modo especial, a celebração da Quinta Feira Santa, o dia no qual a Igreja celebra a instituição dos sacramentos da Eucaristia e da Ordem.

A leitura, extraída do livro do Êxodo (Ex 12,1-8.11-14), é uma narrativa da Páscoa judaica. Nela podemos destacar: a) a partilha do cordeiro (Ex 12,4) que não deve ser consumido isoladamente, mas em comunidade. É uma celebração em família, com o direito de convidar a família do vizinho. Esse cordeiro que nos remete a Jesus o Cordeiro de Deus. b) a unção das portas com o sangue do cordeiro (Ex 12,7), indica, ao mesmo tempo, o caminho por onde passará o anjo exterminador e a entrega de Jesus, que verterá sangue na cruz. c) a refeição feita às pressas (Ex 12,11), indicando que não se trata de uma festa, mas de uma celebração em vista de uma missão. Mais uma ligação com a entrega do Senhor, na eucaristia. A comunhão não se destina ao deleite espiritual, mas ao fortalecimento para a caminhada. d) uma festa memorável (12,14), ou seja, algo a se repetir perpetuamente, da mesma forma que celebramos a Eucaristia, indicando a presença do Senhor, na história do povo sofredor, alimentando-o na busca da libertação.

Isso nos permite dizer que a Páscoa Judaica, efetivamente é um anúncio da Páscoa que se concretiza em Jesus Cristo de forma definitiva e universal.

E também nos remete às orientação de Paulo à comunidade de Corinto (1Cor 11,23-26). Um texto muito próprio para este momento litúrgico. O apóstolo narra os passos do Senhor entregando-se na eucaristia. O apóstolo, repete as mesmas palavras de Jesus: “Isto é meu corpo que é dado por vós” (1Cor 11,24). O pão, portanto, passa a ser o próprio corpo do Senhor. E está sendo “dado” na forma de uma oferenda. Mas o detalhe é que não é um sacerdote que oferece o sacrifício, mas Jesus, o próprio Cordeiro, que celebra o ritual oferecendo e entregando-se. A mesma afirmação vale para o vinho: que passa a ser o sangue de Jesus; que passa ser a nova aliança. “Este cálice é a nova aliança, em meu sangue” (1 Cor 11,25). Comer e beber o pão e o vinho/corpo e sangue tem tripla finalidade: proclamar a morte de Jesus; esperar o retorno de Jesus e dar sentido à nossa esperança na medida em que nos alimentamos cotidianamente com seu corpo e sangue.

E, como sempre, Jesus radicaliza. No trecho de João (Jo 13, 1-15), que estamos lendo hoje, é evidente essa radicalização: “tendo amado os seus que estavam no mundo, amou-os até o fim” (Jo 13,1). Mas, neste caso, em que consiste a radicalidade de Jesus? Em oferecer-se para nos dar as chaves de seu Reino, pagando o preço dessa entrega. Sendo o exemplo para os seguidores!

Na ceia, prenúncio da Eucaristia, o Senhor se depara com duas situações: de um lado, ceder a tentação de fugir ao seu propósito, uma vez que já sabia que seria traído por Judas (Jo 13,2). Como tudo estava em suas mãos (Jo 13,3), poderia ter fugido ao martírio. Afinal, quem estava agindo nesse sentido era o gerador de divisões (diabo) (Jo, 13,2) que estava no coração de Judas.

Por outro lado, a opção era assumir a conclusão do Plano. Daí sua decisão: despir-se do manto, tomar a toalha e lavar os pés dos discípulos (Jo 13,4-5). Gesto que caracteriza o sacramento da ordem. Talvez por isso, um gesto, em si mesmo, incompreensível para algumas pessoas, mas pleno de significados: a) o mestre não é superior aos discípulos, apenas tem função diferente; b) o mestre não tira proveito pessoal dos discípulos, mas lhes ensina como se colocar à disposição para servir; c) o mestre ensina a partir de gestos que só serão compreensíveis quando o discípulo se entregar completamente ao plano de doação (Jo 13,7); d) o mestre que serve não perde a dignidade, mas usa seus gestos para ensinar e orientar os discípulos, como fez o Senhor após lavar os pés dos discípulos: “Vós me chamais Mestre e Senhor, e dizeis bem, pois eu o sou. Portanto, se eu, o Senhor e Mestre, vos lavei os pés, também vós deveis lavar os pés uns dos outros. Dei-vos o exemplo, para que façais a mesma coisa que eu fiz” (Jo 13,13-15).

“Dei-vos o exemplo”, afirma o Senhor. Nisso está um dos pontes centrais da missão de Jesus. E a Quinta Feira Santa se caracteriza por nos colocar esse desafio. Não basta dizermos que somos cristãos. Importa assumir a postura de quem pretende dar prosseguimento à missão de fazer o que fez o mestre: oferecer a vida para servir e produzir transformações no mundo.

Aliás essa é uma característica essencial do cristianismo: não é uma religião que tem por objetivo apenas produzir deleite espiritual, para satisfação individual. É sim a religião em função da ação dentro da sociedade. O cristianismo cobra do crente uma profunda inserção na sociedade com a finalidade de transformá-la, extirpando todos os valores contrários à vida. Quem ensina isso? O próprio Senhor: “Dei-vos o exemplo!”

Neri de Paula Carneiro

Outros escritos do autor:

Filosofia, História, Religião: https://www.webartigos.com/index.php/autores/npcarneiro

Literatura: https://www.recantodasletras.com.br/autores/neripcarneiro

sábado, março 27, 2021

Ramos - Esvaziou-se a si mesmo



(Reflexões baseadas em: Mc 14,1-15,47; Is 50,4-7; Fl 2,6-11)
 




Aqueles de nós que levamos a sério o período quaresmal, possivelmente tenhamos acompanhando os passos de Jesus. E se o tivermos acompanhado, certamente teremos, em algum momento, ouvido dele a interpelação: quando você começará seu processo de conversão?

E agora estamos celebrando o domingo de Ramos, com algumas lições para aprender!

Em primeiro lugar, vamos acompanhar o cortejo no qual Jesus é o centro (Mc 14,1-15,47). Começa com uma procissão triunfante. Narra a entrada de Jesus, sendo aclamado em Jerusalém. A segunda parte dessa cena mostra Jesus em Jerusalém, agora cumprindo plenamente sua missão: prisão e morte. E o interessante dessa narrativa da entrada em Jerusalém, prisão e morte, é que ela termina num momento de suspense. A cena do sepultamento. E lá estavam: “Maria Madalena e Maria, mãe de Joset, observavam onde ele era colocado” (Mc 15,47).

Essa interrupção é proposital. É um link para o que acontecerá na celebração da Páscoa, quando veremos que, mesmo tendo sido morto e sepultado, Jesus é maior que a morte, pois as mulheres que o vão procurar encontram o túmulo vazio. E recebem o comunicado: “Ele ressuscitou!” (Mc 16,6). Mas isso será lá na celebração da Páscoa!

Aqui vamos para a segunda lição: a grande notícia do domingo de Ramos vai além.

A primeira notícia é o fato de evidenciar duas posturas da multidão, diante de Jesus. Num primeiro momento o aclamam com ramos e gritos de “Hosana”. Expressão hebraica que se popularizou como uma aclamação de louvor, mas que significa “Salva-nos”. A multidão pede: salvação contra o império dominador e a restauração do reino de Israel. “Bendito seja o reino que vem, o reino de nosso pai Davi!” (Mc 11,10). A segunda postura da multidão aparece quando acompanha Jesus, no seu julgamento e a caminho do calvário. Agora não é mais aclamado como rei. Embora Pilatos o chame de “Rei dos Judeus” (Mc 15,12). Agora a multidão, não lhe pede salvação, mas que Pilatos o condene: “Crucifica-o!” (Mc 15,13-14).

Essas duas posturas nos levam a uma pergunta: De qual grupo nós fazemos parte?

Evidentemente todos respondemos que somos do grupo que aclama e rende louvores a Jesus. Entretanto, nestes tempos conturbados, onde o diálogo é assassinado e o poder se sobrepõe ao amor, uma indagação se impõe: Será que cantaríamos com honestidade aquela canção: “Seu nome é Jesus Cristo e passa fome / E grita pela boca dos famintos / E a gente quando vê passa adiante / Às vezes pra chegar depressa a igreja”?

Além disso, a Campanha da Fraternidade nos interpela: Como anda nossa capacidade de conviver com o diferente?

O domingo de Ramos, por fim nos coloca diante do profeta Isaías (Is 50,4-7) e do apóstolo Paulo (Fl 2,6-11).

O profeta mostra um personagem que nasceu para falar coisas boas “O Senhor Deus deu-me língua adestrada, para que eu saiba dizer palavras de conforto” (Is 50,4). Mesmo sendo uma “pessoa do bem” esse personagem é agredido, esbofeteado e cuspido (Is 50,6). E, apesar de todo sofrimento, o personagem continua sua missão. Ele sabe que não está só, uma vez que “o Senhor Deus é meu Auxiliador, por isso não me deixei abater o ânimo”

Diante desse trecho da profecia de Isaías, de imediato identificamos esse personagem com Jesus. Mas não seria também um convite para revermos nossas posturas? Como reagimos quando somos mal interpretados ou agredidos por fazermos algo bom? Nunca nos agrediram? Isso significa que convivemos com anjos ou que nunca fizemos algo de bom?

Vamos agora atentar para o que Paulo nos apresenta, de Jesus. Inegavelmente era Deus e convivia com o Pai (Fl 2,6). Mas essa condição divina não o afastou da nossa humanidade. Pelo contrário. O fato de ser Deus foi a causa de se fazer humano: esvaziou-se da condição divina (Fl 2,7); humilhou-se, entregando-se à morte, como um cordeiro, entregue ao sacrifício (Fl 2,7).

Notemos que sua entrega, ou seja, seu “esvaziamento” e sua humilhação, não foram causa de vergonha. Pelo contrário, foram a condição para a exaltação.

Dessa forma é que se apresenta a nós a grande mensagem do domingo de Ramos: Deus se esvaziou de sua divindade para vir ao nosso encontro. E nós, de que vamos abrir mão para mais nos aproximarmos de Deus? Ou ainda precisamos encontrar a Jesus Cristo? Se for esse o caso, lembremo-nos onde podemos encontrá-lo: “Seu nome é Jesus Cristo e está banido / Das rodas sociais e das igrejas / Porque d'Ele fizeram um Rei potente /Enquanto Ele vive como um pobre”.

E tem aquela outra: “as pessoas entram nas igrejas querendo encontrar Jesus no sacrário; mas ele teima em se esconder debaixo do viaduto, nas beiras das calçadas…”

Talvez por isso muitas pessoas estejam sentindo dificuldade para encontrar Jesus. Isso talvez ocorra porque muitas vezes nos esquecemos de que ele se “esvaziou de sua condição divina” para conviver conosco. Plenamente Deus, viveu entre nós como um ser plenamente humano, uma pessoa normal. E fez isso para mostrar como é possível ao ser humano chegar a Deus...




Neri de Paula Carneiro

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sexta-feira, março 26, 2021

Reforma e Contrarreforma

Que a Idade média foi um período de supremacia católica, isso todos já sabemos. Também não é segredo que o movimento renascentista colocou muitos pontos de interrogação sobre as certezas da fé. Mas o que nem todos sabem é que nesse mesmo período medieval e renascentista estavam sendo colocadas as questões que produziriam outra ruptura no cristianismo.

Foi outra ruptura porque a primeira havia sido em 1054, quando Oriente e Ocidente cristãos se separaram.

Os cristãos do oriente estabeleceram sua sede na cidade de Constantinopla. Nascia a Igreja Católica Apostólica Ortodoxa. Do outro lado, na Europa, sediada em Roma, mantinha-se a Igreja Católica Apostólica Romana.

Mas agora, no século XVI, mais especificamente em 1517, um monge se insurge contra as orientações do Papa e pregou uma lista com 95 problemas a serem resolvidos pela Igreja, sob pena de estar deturpando o cristianismo. Esse monge era o beneditino Martinho Lutero (1483-1546).

Com esse fato ganhou força o movimento da reforma. Entretanto, deve-se notar, que “este movimento surgiu com o caráter inicial de buscar a reforma da Igreja, diante de uma série de erros e abusos que aconteciam, sobretudo, no episcopado e no alto clero”. Isso é o que afirma padre Inácio Medeiros, num artigo sobre a história da Igreja, disponível em: https://www.a12.com/redacaoa12/historia-da-igreja/os-precursores-da-reforma-john-wyclif-e-jan-huss.

Sabemos que Lutero não foi o primeiro a mostrar os equívocos da Igreja. Os questionamentos às posturas dos seus chefes vinham de longe.

Há alguns séculos vinham crescendo, por parte dos monarcas que não concordavam com as taxas cobradas pela Igreja nem com o poder político dos papas. Muitos eram os que condenavam a corrupção e o despreparo do clero.

Podemos, também, lembrar de dois personagens, antes de Lutero, que marcaram essa trajetória de insatisfação: John Wycliff (1328-1384) e Jan Huss (1369-1415). Ambos teólogos que, ainda no século XIV, condenavam o luxo e ganância de bispos e do papa. Afirmavam, cada um em sua época e região, que a Igreja deveria ter menos riqueza e mais caridade. Ambos foram perseguidos, excomungados e serviram de inspiração para as obras de Lutero.

No artigo mencionado anteriormente, o Pe Inácio ainda nos informa que “o posicionamento desses três reformadores serviu para embalar alguns conflitos sociais que cresciam no meio dos camponeses entre o século XIV e XVI. As questões religiosas no período passaram a tomar uma conformação de crítica prática, por parte do campesinato, ao poderio econômico, político e militar detido pela aristocracia”.

Ou seja, a Reforma, que tinha uma conotação Religiosa, se alongou pelos lados da economia, da politica e acabou repercutindo as posturas sociais. A situação de pobreza da população fez com que os reformadores se popularizassem ainda mais, pois defendiam causas populares.

Mais dois nomes merecem destaque, neste processo de renovação e arejamento das ideias religiosas. São eles João Calvino (1509-1564) e Henrique VIII.

Enquanto os três primeiros apontavam, como principais problemas da Igreja, seu poder fundamentado na riqueza e a partir disso atacaram outros problemas e posturas doutrinais, Calvino se contrapõe a princípios essenciais do catolicismo, como a questão da predestinação.

Calvino influenciou fortemente o protestantismo francês. A partir de suas ideias nasceu o calvinismo que se espalhou em várias nações na Europa, na Africa e na América.

Por seu lado, o problema de Henrique VIII, rei da Inglaterra, em princípio, não foi religioso. O rei pretendia anular seu casamento para casar-se com outra mulher, mas a Igreja se contrapôs, em nome do princípio da “indissolubilidade” do casamento (o casamento, para a Igreja, é “até que a morte os separe”). Como o papa não aceitou seu propósito, o rei rompeu com a Igreja, confiscou-lhe as terras e criou a Igreja Anglicana, da qual o rei é o chefe supremo.

Evidentemente existiram outros reformadores, cada um com seu grau de contribuição para que se efetivasse uma verdadeira reformulação das e nas posturas da Igreja.

Por outro lado é de se imaginar que, sendo questionada por diversos monges, padres e pensadores, a Igreja reagiria.

E reagiu com o movimento denominado de Contrarreforma.

Inicialmente a reação da Igreja era apenas na forma de perseguição dos opositores. E isso era feito pelo antigo “Tribunal do Santo Oficio”. Atualmente essa instituição da Igreja denomina-se “Congregação para Doutrina da Fé” e trata de ordenar os ensinamentos da Igreja.

Esse Tribunal organizava os interrogatórios e julgamentos daqueles que a Igreja considerava hereges. Esse Julgamento era denominado de “Inquisição”, pois era montado um “inquérito” interrogando os acusados. Quando condenados eram expulsos da Igreja (excomungados) e, em outros casos executados na fogueira.

Ainda na Contrarreforma a Igreja fez algumas inovações. Entre as inovações efetivadas pela Igreja no movimento da Contrarreforma pode-se mencionar: a condenação dos atos e doutrinas de Lutero e Calvino; o reconhecimento de alguns abusos cometidos em nome das indulgências. Uma outra providência que perdura até nossos dias foi a organização dos seminários, para formação dos novos padres.

Reforma e Contrarreforma, na realidade, foram o mecanismo pelo qual as ideias religiosas foram incorporadas num movimento maior de renovação. O mundo, naquele contexto, vivia uma grande transformação em todas as frentes.

Neri de Paula Carneiro

Mestre em educação, filósofo, teólogo, historiador.

Rolim de Moura – RO

quinta-feira, março 25, 2021

FILOSOFIA: NOVOS PASSOS

Ao darmos os primeiros passos no entendimento da filosofia pudemos perceber que existem algumas visões equivocadas a respeito dela. Agora apresenta-se outra pergunta: Se não é filosofia muito do que se diz por aí, então o que é filosofia? Como entendê-la? Talvez nos ajude a entender sua etimologia e sua aplicação à realidade.

Etimologia refere-se à compreensão do significado das palavras. Então, qual a etimologia da palavra filosofia?

Trata-se de um vocábulo grego formada por duas palavras, plenas de significado: “FILO”: que significa algo como amigo, amante, amizade; “SOFIA”: que também tem significado amplo como saber, sábio, conhecimento. E se juntarmos essas palavras teremos algo parecido com: "amigo do saber", "amante da sabedoria" ou "amigo do conhecimento". Vamos assumir que a junção desses dua palavras nos produzam a ideia de “amante do saber”.

Alguns autores dizem que essa palavra tem sua origem envolvida em lendas. Outros dizem que é atribuída a Pitágoras. Comentando textos de Cicero, Mario B. Sproviero (Disponível em http://www.hottopos.com/notand2/a_palavra.htm;) transcreve a seguinte afirmação, do pensador Romano: “A filosofia remonta, como todos sabem, aos tempos mais antigos, apenas sua denominação é que é recente. Quem, pois, negaria que não só a sabedoria, bem como seu próprio nome, sejam coisas antigas? Este sublime nome junto aos antigos destacava sua aspiração ao conhecimento das coisas humanas e divinas, e das causas de todas as coisas. Assim aqueles sete que os gregos chamaram sophoí e nós, os romanos, reconhecendo-lhes o mérito, chamamos Sapientes… [...] Em seguida todos aqueles que seguindo a estes, dedicavam-se acuradamente à contemplação das coisas, foram considerados e chamados sábios, nome que continuou a usar-se até os tempos de Pitágoras. O doutíssimo discípulo de Platão, Heráclides Pontico, narra que levaram a Fliunte alguém que discorreu douta e extensamente com Leonte, príncipe dos fliúncios. Como seu engenho e eloquência tivessem sido apreciados por Leonte, este perguntou-lhe que arte professasse, ao que ele respondeu que não conhecia nenhuma arte especial, mas que era filósofo”.

O discurso de Cícero, segundo Sproviero, termina com a explicação dada por Pitágoras: “alguns vão em busca de glória enquanto outros de ganho, restando, todavia, alguns poucos que desconsiderando completamente as outras atividades, investigam com afinco a natureza das coisas: estes dizem-se investigadores da sabedoria - quer dizer filósofos - e como é bem mais nobre ser espectador desinteressado, também na vida a investigação e o conhecimento da natureza das coisas estão acima de qualquer outra atividade.”

Dessas palavras de Cicero podemos concluir: A filosofia, muito mais do que uma palavra, é uma atitude. E que atitude seria essa? A atitude da busca e não da posse. É uma atitude de busca que envolve: a) busca de alternativas à acomodação; b) proposição da dúvida sobre as certezas; c) desintegração da crosta das aparências.

A certeza leva à acomodação e juntas impedem a continuação da pesquisa. Pra que continuar buscado se já se sabe a resposta. Pior ainda é a vida das aparências, na qual o saber não é sabedoria, mas fingimento. Essa atitude filosófica acaba se manifestando como um questionamento à sociedade atual em que valem as aparências e as pessoas vivem acomodadas nas suas certezas. Razão pela qual a filosofia acaba sendo mal vista ou, segundo afirma o filósofo alemão Karl Jasper, em seu livro “Introdução ao pensamento filosófico”, seus adversários querem que ela seja apresentada como algo entediante e que deveria desaparecer: “É preciso impedir que os homens se tornem sensatos. Mais vale, portanto, que a filosofia seja vista como algo entediante. Oxalá desaparecessem as cátedras de filosofia. Quanto mais vaidades se ensinem, menos estarão os homens arriscados a se deixar tocar pela luz da filosofia”

Como podemos perceber, até mesmo a partir de sua etimologia a filosofia nos lança um desafio: é necessário ir além, desconfiar das aparências, e das evidências. A verdade pode estar escondida por trás das certezas

Neri de Paula Carneiro

Mestre em Educação, Filósofo, Teólogo, Historiador

Rolim de Moura – RO

segunda-feira, março 22, 2021

Transgredindo a pandemia

Vivemos tempos de isolamento, distanciamento…

Tempos de medo… Um monstro anda solto por aí. Ele é enorme… aliás, não é UM mostro. São milhões... por milimetro quadrado!

Em tempos de isolamento, que pode ser chamado de interpessoal, pois o isolamento social é antigo e reflete a distância entre ricos e pobres; entre brancos e pretos; entre urbanos e rurais; entre quem se alimenta e quem passa fome; entre políticos e suas vítimas… então estamos em tempos de isolamento interpessoal… E nos escondemos em nossas casas para não olharmos na cara do mundo

Em tempos de isolamento, as vontades se impõem. Vontade de sair de casa. Vontade de abraçar. Vontade de beijar. Vontade de transar…. Vontades! Vontade de fazer o que não se pode confessar!

Em tempos de isolamento, os atritos se avolumam: casais brigando e depois se amando. Pais e filhos não se suportando e se agredindo… mas depois... há quem diga que são só sinais dos tempos pois a casa que já foi lar, virou um inferno que expressa os atritos e conflitos entre aqueles que vivem sob o mesmo teto por falta de opções! (Quando não havia isolamento, cada um se escondia em seu grupo… os moradores da mesma casa não precisavam se olhar... e assim o lar parecia doce!)

Em tempos de isolamento, nem as pessoas nem a pandemia ficam, definitivamente, islados!Pois TRANSGREDIR é muito mais divertido!!!

Em tempos de isolamento, até a sugestão de ficar em casa pode gerar reflexão. Quando não produzem o resultado inverso…E às vezes são vontades meio loucas, só para reagir contra a determinação do bom senso.... Afinal, fazer o PROIBIDO é muito mais divertido!!!

Então, se é para transgredir a proibição, vamos fazer o seguinte: se deu vontade de sair por ai, abraçando todo mundo pra dizer que não suporta mais ficar trancado em casa… então corre! Vai lá e abrace a família: o pai tem que reaprender a abraçar os filhos; a mãe tem que reaprender a abraçar o marido, o irmão tem que suportar a irmã e a irmã tem que entender as necessidades do irmão; e os filhos tem que reaprender a respeitar os pais… Temos que transgredir a moda!

Além disso, deu vontade de sair por ai, beijando, pra manifestar afeto, carinho paixão…, então está na hora de beijar a família: o pai, a mãe, o irmão, a irmã, o marido, a esposa…

E também, se deu vontade de sair por aí para transar, também isso dá pra fazer em casa: com a esposa, com o marido… e se não tem nem esposa nem marido, masturbe-se!!!

Mas é necessário ficar em casa que é tempo de pandemia e enquanto as autoridades não assumem seu papel de guardiões da saúde publica, o público pode fazer o que lhe compete: manter o clima de isolamento!!! e até nisso dá pra transgredir

Tá certo que as autoridades estão deixando a desejar, mas também é verdade que as pessoas estão abusando. Tá certo que existem muitos interesses inconfessáveis e segundas intenções por trás de todas as atitudes dos políticos. Há muito dinheiro nas cuecas dos que bradam: Povo!

Eles estão aproveitando pra “ir passando a boiada”

Deu vontade…. Fica em casa! E aproveita pra analisar tudo que te dizem, tudo que compartilham contigo… afinal, tudo está repleto de segundas intenções…

É tempo de pandemia… mas não precisa só ter medo desse vírus monstruoso. Tem que temer o vírus do conformismo. Aquele que não analisa os fatos… pode ser engolido por eles!

E faça um favor pra humanidade… transgrida, pois para transgredir tem que pensar, analisar tirar conclusões……..para conter a boiada!

Neri de Paula Carneiro

Mestre em Educação, Filósofo, teólogo, historiador

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Filosofia, História, Religião: https://www.webartigos.com/index.php/autores/npcarneiro

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sábado, março 20, 2021

Quaresma 5 - É agora o julgamento deste mundo

(Reflexões baseadas em: Jr 31,31-34; Hb 5,7-9; Jo 12,20-33)




Estamos nos encaminhando para o final da Quaresma. E, se tivermos levado a sério a proposta que a Igreja nos apresenta, durante o tempo quaresmal deveríamos estar fazendo uma revisão de vida com a finalidade de, na Páscoa, ressurgirmos para uma vida nova. Com o objetivo de inaugurarmos um mundo novo. Com o desejo de nos reconduzirmos na direção de um mundo que Deus nos está encarregando de recriar e reconstruir.

Isso nos ajuda a entender a afirmação de Jesus (Jo 12,20-33): “É agora o julgamento deste mundo” (Jo 12,31). Após ter sido julgado o mundo está apto a ser recriado. Isso, também, ajuda a entender o anúncio da promessa do Senhor, nas palavras de Jeremias (Jr 31,31-34): “Virão dias, diz o Senhor, em que concluirei com a casa de Israel e a casa de Judá uma nova aliança” (Jr 31,31). Só é possível uma nova aliança porque a antiga foi superada, seus destinatários não a concluíra; só é possível uma nova aliança porque o mundo foi julgado e preparado para a recriação. E essa recriação pode ser concluída tendo por base a plena obediência de Jesus (Hb 5,7-9), ao Plano do Pai, como nos ensina a carta aos Hebreus. Ou seja, por ser Filho “aprendeu o que significa a obediência a Deus” (Hb 5,8).

O profeta, evidentemente, cumpre seu papel: transmite a mensagem do Senhor. Ele sabe que as pessoas caem nas tentações. Sabe que as pessoas deixam-se levar pelos momentos, sem se preocupar com o depois ou com o além. Mas também sabe que quando as pessoas deixam-se conduzir pelo Senhor, a nova aliança se concretiza e, então, passamos a ser seu povo e Ele nosso Deus. No momento em que efetivamente nos deixarmos conduzir pelo Senhor, Ele nos dirá: “imprimirei minha lei em suas entranhas, e hei de inscrevê-la em seu coração; serei seu Deus e eles serão meu povo” (Jr 31,33). Um novo povo num mundo refeito.

E o Senhor dirá isso a nós porque o povo de Israel não entendeu a proposta. Deus os escolheu para ser o ponto de partida e difusão das propostas de seu Reino, mas eles pensaram que eram os únicos destinatários da promessa. E falharam duplamente: porque não foram fiéis à aliança e nem difundiram as sementes do Reino. A aliança definitiva e a promessa cumpriu-se em Jesus Cristo. Isso o entendemos quando, ao ser procurado pelos gregos (Jo 12,20) Jesus afirma: “Chegou a hora em que o Filho do Homem vai ser glorificado. Em verdade, em verdade vos digo: Se o grão de trigo que cai na terra não morre, ele continua só um grão de trigo; mas se morre, então produz muito fruto” (Jo 12,23-24). Os frutos de Jesus são as pessoas que se engajam na reconstrução do mundo, preparando a instalação do Reino.

Não é demais reafirmar: a Aliança, anunciada pelo profeta, concretiza-se em Jesus. Por isso ele afirma: pois “chegou a hora”.

Chegou a hora de se concretizar a Aliança definitiva, pois Jesus, mesmo em seu sofrimento, cumpre a vontade do Pai. E, assim, como diz a carta aos Hebreus, “na consumação de sua vida, tornou-se causa de salvação eterna para todos os que lhe obedecem.” (Hb 5,9). A proposta, portanto, é universal.

Chegou a hora da angústia de Jesus, por ter que entregar a vida. Mesmo o Filho de Deus sente a angústia da morte. Entretanto não se recusa a cumprir sua missão “Agora sinto-me angustiado. E que direi? Pai, livra-me desta hora? Mas foi precisamente para esta hora que eu vim.” (Jo12,27). Por isso ele afirma e pede: Pai cumpra-se a tua vontade.

Chegou a hora do julgamento do mundo. Ou seja, nossa vida é o momento definitivo. É o instante da opção: podemos aderir ao projeto de Jesus, à proposta do Reino, e então seremos atraídos até o Senhor (Jo 12,32); ou podemos nos recusar a isso e o anticristo tomará conta de nossa vida, como ocorre constantemente, em cada ação desumana que é praticada pelas pessoas.

Mas também chegou a hora da decisão, pois “Agora o chefe deste mundo vai ser expulso” (Jo 12,31). Essa expulsão não será feita por Jesus, pessoalmente, mas por cada uma das pessoas que aderirem ao projeto de amor e solidariedade; de altruísmo e de vida, desfazendo-se dos projetos que colocam o sistema econômico acima da vida; que colocam os interesses políticos acima das pessoas. Por isso, esta é, também, a hora que que o “chefe deste mundo” vai lutar para atrair e manter um maior número de seguidores, ampliando a divisão e negando o diálogo. Nos dias atuais o anticristo, por meio de fake news, de mentira... produz e amplia atos de divisão entre as pessoas usando um “gabinete” de apoiadores.

Mas, chegou a hora! E Jesus é categórico: é a hora do julgamento deste mundo. Consequentemente, é a hora em que chefe desta mundo será expulso. Do ponto de vista litúrgico isso se dá com a Paixão, Morte e Ressurreição de Jesus. Mas do ponto de vista humano e cristão é com nossa vida que fazemos a opção: ou aderimos ao chefe deste mundo e o ajudamos a piorar todas as coisas; ou aderimos a Jesus e nos empenhamos no processo da recriação, contra esse que nega a vida.

Assumindo uma ou outra postura, “é agora o julgamento deste mundo!” A quem vamos aderir?

Neri de Paula Carneiro

Filósofo, teólogo, historiador, mestre em educação.

Outros textos do autor:

Filosofia, História, Religião: https://www.webartigos.com/index.php/autores/npcarneiro

Literatura: https://www.recantodasletras.com.br/autores/neripcarneiro

segunda-feira, março 15, 2021

NÃO É FILOSOFIA

Quando os professores iniciam uma nova disciplina uma das primeiras coisas que fazem é dizer o que é aquilo que vão lecionar. Trigonometria é…; raiz quadrada é...; genética é...; relevo é...; fato histórico é... Nestes casos parte-se do princípio de que o estudante sabendo o que É aquilo que vai estudar já teria feito um bom começo. Isso não está errado, mas também não se pode dizer que é somente assim que se pode estudar alguma coisa.

Com a filosofia pode ser diferente. Pode-se começar, justamente pelo contrário, entendendo o que não é filosofia. Sem fazer definições, pois toda definição é uma limitação! E uma das características da filosofia é quebrar as limitações, pois elas impedem o avanço; excluem novas oportunidades; matam as inovações. As definições, como estabelecimento de limites, são afirmações parciais uma vez que pretende colocar um ponto final na discussão.

Cabe à filosofia, como processo de busca, duvidar, abrir horizontes, ultrapassar limites, propor novas discussões. À filosofia cabe olhar a partir de outros e novos pontos de vista, pois a realidade vai além daquilo que podemos dizer ou perceber. É necessário fazer filosofia para entendê-la, como diz Manuel Garcia Morente, no livro Fundamentos de Filosofia: “é absolutamente impossível dizer de antemão o que é Filosofia. Não se pode definir Filosofia antes de fazê-la. [...]. Que quer dizer isso? Isso quer dizer que Filosofia, mais do que qualquer outra disciplina, necessita ser vivida”.

Acima de tudo, à filosofia cabe afirmar que a realidade vai além daquilo que podemos ver, dizer ou perceber. Ou seja, ela nos sugere que as aparências podem ser enganosas. As aparências, as evidências, tudo que se manifesta imediatamente, pode nos induzir a equívocos. E isso pode ser superado pela análise filosófica. Saber os caminhos a serem evitados pode ajudar a chegar mais rapidamente ao destino sem se perder no labirinto da imprecisão. Então, o que não é filosofia?

FILOSOFIA DE VIDA

O professor D. Saviani diz que “todos e cada um de nós temos a nossa ‘Filosofia de vida’. Esta se constitui a partir da família, do ambiente em que somos criados”.

Filosofia de vida, portanto tem uma dimensão pessoal e não grupal e social, o que a distingue do senso comum. Sendo assim a “Filosofia de vida” nada mais é do que uma expressão que designa alguma forma específica de viver ou encarar a vida, de conceber o mundo e a existência. Podemos, inclusive, dizer que filosofia de vida é cosmovisão de uma pessoa ou os valores cristalizados na sociedade. Mas isso não é Filosofia!

FRASES E PROVÉRBIOS

Quem de nós nunca usou uma frase feita, um provérbio, um dito popular? E fazemos isso com que finalidade?

Usamos esses saberes populares quando queremos produzir um efeito especial; fazer uma afirmação a partir do senso comum. Quando queremos fazer afirmações genéricas se encaixarem numa situação específica. Entretanto essas frases e provérbios, justamente por serem genéricas, não se constituem filosofia. Mesmo que a frase tenha sido retirada de um texto filosófico ou tenha sido escrita por um filósofo. Até mesmo um livro de Filosofia, por si só, não é Filosofia.

PRONTO E ACABADO

O que dissemos acima nos leva a uma conclusão: o que chamamos de provérbios, frases e filosofia de vida, não são filosofia. Não importa a interpretação que se faça da frase ou do provérbio: eles continuam não sendo Filosofia, uma vez que já estão prontos e acabados.

Pode ocorrer que a partir disso empreendamos um processo de reflexão. De análise e, neste caso, podemos fazer filosofia. Pode ocorrer que desenvolvamos uma análise filosófica desses elementos: provérbios, frases e ditados ou dos saberes das diversas filosofias de vida que se desenvolvem a partir do senso comum. A análise pode ser filosófica, mas a frase, o provérbio... continuarão sendo apenas isso: uma frase ou um provérbio. Pode até possuir um significado profundo, mas isso que já está pronto ainda não é Filosofia!

Neri de Paula Carneiro

Mestre em Educação, Filósofo, Teólogo, Historiador

Rolim de Moura – RO

sábado, março 13, 2021

Quaresma 4 - A Luz veio ao mundo


(Reflexões baseadas em: 2Cr 36,14-16.19-23; Ef 2,4-10; Jo 3,14-21)





As celebrações do período quaresmal nos mostram a grandeza do amor divino. Mas, ao mesmo tempo, mostra que até a paciência de Deus tem limites.

É claro que o amor de Deus pela humanidade é infinitamente maior do que sua ira, mas isso não significa que, como um pai bondoso, ele não estabeleça algumas condições a serem seguidas pelas pessoas. Não como punição, mas como medida corretiva. Se é verdade que toda ação tem uma reação, todas as nossas atitudes têm consequências.

No segundo livro das crônicas (2Cr 36,14-16.19-23) podemos ver uma demonstração disso: a denúncia dos pecados, uma vez que “todos os chefes dos sacerdotes e o povo multiplicaram suas infidelidades” (2Cr 36,14). Devido a isso Deus chama a atenção dos infiéis, cobrando mudança nos comportamentos “o Senhor Deus de seus pais, dirigia-lhes frequentemente a palavra por meio de seus mensageiros, admoestando-os com solicitude todos os dias, porque tinha compaixão do seu povo” (2Cr 36,15). Como se vê, é a compaixão que move a ação divina.

Porém, como os infiéis não mudavam as atitudes concretizou-se a lição ensinada pelo Senhor: “O furor do Senhor se levantou contra o seu povo e não houve mais remédio. Os inimigos incendiaram a casa de Deus e deitaram abaixo os muros de Jerusalém” (2 Cr 36,18-19). E, após os anos de punição, acontece a restauração, pelas mão de Ciro, um rei estrangeiro (para mostrar que o amor de Deus não tem fronteiras, vai além de um povo). E o rei decreta: “O Senhor, Deus do céu, deu-me todos os reinos da terra, e encarregou-me de lhe construir um templo em Jerusalém, que está no país de Judá. Quem dentre vós todos, pertence ao seu povo? Que o Senhor, seu Deus, esteja com ele, e que se ponha a caminho” (2 Cr 36,23). E assim voltaram os exilados, redimidos, prontos para recomeçar uma nova sociedade que deveria ser gerida pela caridade!

Deus é amoroso. É supremo amor. É pleno em misericórdia… e isso quem nos ensina é Paulo, escrevendo aos Efésios (Ef 2,4-10). O apóstolo afirma expressamente: “Deus é rico em misericórdia. Por causa do grande amor com que nos amou, quando estávamos mortos por causa das nossas faltas, ele nos deu a vida com Cristo” (Ef 2,4-5). Deus é, também, justo, pois oferece oportunidade para que o pecador se converta… Deus quer a vida e quer que a defendamos acima de tudo, em favor de todos.

O fato é que por seu amor é justo e misericordioso. Da mesma forma que um pai, estabelece limites para o filho rebelde não se destrua e possa rever seus comportamentos. É necessário que as pessoas tomem consciência de que estão cometendo faltas contra a bondade divina, contra a vida humana e da natureza. Ocorrendo essa consciência de defesa, manutenção e restauração da vida, Deus concede a graça do perdão. O apóstolo é claro ao dizer que “é pela graça que sois salvos, mediante a fé. E isso não vem de vós; é dom de Deus!” (Ef 2,9).

O dom da graça, entretanto, é consequência do bem que realizamos. “Obras boas, que Deus preparou de antemão para que nós as praticássemos” (Ef 2,10). A graça é dom de Deus, mas exige o comprometimento humano! Sem o nosso comprometimento individual, pessoal e definitivo, não tem como a graça agir em nós.

Isso é o que ensina Jesus, na conversa com Nicodemos (Jo 3,14-21). Deus age esperando nossa resposta. Uma resposta que consiste num ato de fé; um ato de fé que conduz à vida eterna: “todos os que nele crerem tenham a vida eterna” (Jo 3,15). A vida terrena, portanto, é o passaporte para a vida eterna. As atitudes neste mundo passageiro abrem as portas para o Reino definitivo

E Jesus insiste na afirmação central dirigida a todos que desejam segui-lo. “Deus não enviou o seu Filho ao mundo para condenar o mundo, mas para que o mundo seja salvo por ele” (Jo 3,17). Feita essa afirmação, Jesus se apresenta como divisor de águas.

É a partir da fé em Jesus, da adesão ao seu projeto que se dá a divisão: “Quem nele crê, não é condenado, mas quem não crê, já está condenado” (Jo 3,18).

O critério de Deus, ou seja a sua justiça, coloca nas mão de cada um de nós a responsabilidade pelos atos praticados. São esses atos que iluminam o caminho humano ou o escurecem. As pessoas aderem à luz divina ou afastam-se dela, num ato de fé ou de incredulidade. E Jesus explica isso da forma muito transparente: “O julgamento é este: a luz veio ao mundo, mas os homens preferiram as trevas à luz, porque suas ações eram más. Quem pratica o mal odeia a luz e não se aproxima da luz, para que suas ações não sejam denunciadas. Mas quem age conforme a verdade aproxima-se da luz, para que se manifeste que suas ações são realizadas em Deus” (Jo 3, 18-21).

E isso nos leva de volta ao ponto inicial: o amor misericordioso de Deus é infinito, mas ele também é infinitamente justo. Concede o perdão e a vida àqueles que o procuram, mas quem não crê e pratica o mal, já está condenado! Não está condenado por Deus, que é amor e perdão, mas pelos seus próprios atos que o afastam de Deus.

Neri de Paula Carneiro

Outros textos do autor:

Filosofia, História, Religião: https://www.webartigos.com/index.php/autores/npcarneiro

Literatura: https://www.recantodasletras.com.br/autores/neripcarneiro

sexta-feira, março 05, 2021

Quaresma 3 – Loucura de Deus


(Reflexões baseadas em: Ex 20,1-17; 1Cor 1,22-25; Jo 2,13-25)






Nós já nos acostumamos a nos chamar de louco ou doido: “você é louco, por fazer isso!”. “Isso é coisa de doido! Só você mesmo!” E assim por diante, estamos acostumados a ouvir e usar essa expressão: às vezes elogiando a loucura de alguém que fez algo extraordinário; às vezes condenando a insensatez de alguém!

Loucura, insensatez… expressões que usamos para dizer que não concordamos com aquilo que o outro está pensando, dizendo, fazendo… “Isso é coisa de doido!”

Mas a respeito de Deus, somente usamos expressões edificantes: Santo, eterno, fonte da plena sabedoria, misericordioso, todo poderoso… E nunca ousaríamos dizer que um ato de Deus seja loucura ou insensatez. Se vem de Deus, aceitamos. Mesmo quando, às vezes, não entendemos. Dizemos apenas que isso é divino! só por Deus!

A questão é que, sempre que avaliamos alguma coisa: concordando ou discordando; dizendo que está certo ou errado… sempre usamos nossos valores. Usamos nossos critérios. Falamos a partir do que achamos que é certo ou errado. Mas o que é o certo e o errado? Será que já nos perguntamos o que é que Deus considera certo ou errado? E quando fazemos isso, será que não estamos querendo dizer a Deus o que Ele deveria fazer?

A liturgia do terceiro domingo da quaresma mostra uma dimensão dessa loucura/sabedoria dos homens e de Deus. No livro do Êxodo (20,1-17), podemos visualizar um desses aspectos de loucura, uma vez que estabelecer normas, sobre como deve ser o comportamento das pessoas, como é o caso deste trecho do Êxodo, não é algo agradável. Mas Deus faz isso. Loucura?

Paulo, na primeira carta aos coríntios, (1Cor 1,22-25), é mais específico em mencionar a loucura, pois cultuar um crucificado não é uma situação normal. Pelo contrário: é loucura, é escândalo!

Agora imagine a cena: Jesus, no templo! Ele, com um chicote nas mãos, derrubando tudo e expulsando os negociantes… Isso é mais do que uma doidura qualquer. Uma pessoa normal, diante de algo que desaprova, no máximo fala que aquilo não está certo. Mas Jesus não. Ele faz um tremendo “barraco”. Esse tem que ser internado, pois surtou, disseram!

Mas em tudo isso está a visão ou os critérios ou os valores ou a compreensão humana. Para tentarmos obter uma compreensão ou uma percepção mais exata, Paulo nos dá a dica: “Pois o que é dito loucura de Deus é mais sábio do que os homens, e o que é dito fraqueza de Deus é mais forte do que os homens.” (1Cor 1,25). Ou seja, somos convidados a olhar para os eventos não com os critérios e valores humanos, mas com os olhos de Deus. O que é que Deus está vendo que o motiva a estabelecer as normas expressas no trecho do Êxodo?

Está observando que existe idolatria (Ex 20,3-4); uso indevido do nome de Deus (Ex 20,7); as pessoas não estão dedicando um tempo para Deus (Ex 20,8-11); as pessoas não estão respeitando a família, pois estão adulterando e desonrando os pais (Ex 20,12.14.17); as pessoas estão matando, roubando e mentindo...(Ex 20,13,15,16). Então tem que se estabelecer um limite!

Como sabemos que estão fazendo isso? Porque esses são os preceitos ensinados. E o argumento é simples. As normas surgem para regulamentar as condutas vigentes. Somente afirmamos a necessidade de respeito aos pais, quando percebemos que estão sendo desrespeitados pelos filhos. Deus viu que alguns estavam enriquecendo às custas dos mais pobres… por isso instituiu: não roubar! Numa palavra, Deus viu a bandidagem tomando conta e causando o sofrimento dos mais fracos, por isso estabeleceu as normas, os mandamentos.

Jesus não fez diferente (Jo 2,13-25). Diante do que estava (e ainda está!!!) acontecendo no templo, expula os infratores. E toma essa atitude ao ver a infração ocorrendo….A casa de oração transformada num centro comercial (Jo 2,14)!

Quem de nós já ficou indignado com lideranças das Igrejas (não só no mundo católico) fazendo uma pregação que privilegia mais os tijolos que a instalação do Reino. Com tantos pregadores anunciando curas milagrosas, seria interessante lançarmos um desafio: por que os tantos pregadores de tantas curas milagrosas não deram fim à pandemia do Corona Virus? Sabe por quê? Porque são charlatães da fé. Mas para eles Jesus tem preparado o chicote (Jo 2,15)?

O fato é que, do ponto de vista humano, a proposta do reino é um absurdo, pois exige a prática da justiça e da verdade. Exige solidariedade e não egoísmo; exige fraternidade e não a concentração de rendas e bens e riquezas....

Seguir a proposta de Deus é loucura, pois exige renuncias e opções em favor do outro. Aderir a Jesus Cristo, neste mundo que valoriza as coisas, os bens, a riqueza… não é prova de sensatez. Seguir a Jesus Cristo, neste mundo que não vê e despreza os valores do Reino, é prova de loucura. Seguir a Jesus Cristo implica andar pelos caminhos da partilha, da solidariedade, da cruz. Seguir a Jesus Cristo implica ser derrotado pelo mundo, mas também implica na maior prova de loucura: a certeza da ressurreição!





Neri de Paula Carneiro

Filósofo, teólogo, historiador, mestre e educação.

Outros textos do autor:

Filosofia, História, Religião: https://www.webartigos.com/index.php/autores/npcarneiro

Literatura: https://www.recantodasletras.com.br/autores/neripcarneiro


sexta-feira, fevereiro 26, 2021

Quaresma 2 – É bom estar aqui



(Reflexões baseadas em: Gn 22,1-2.9a.10-13.15-18; Rm 8,31b-34; Mc 9,2-10)




Se alguém te pedisse uma lista com as coisas mais preciosas que você tem em tua vida. O que encabeçaria a tua lista? O que entraria em primeiro lugar?

Claro que muitos colocariam o dinheiro, a saúde, a família, os pais… os filhos. Certamente dependeria de quem estivesse fazendo o pedido, a circunstância… Mas acredito que na lista de quase todos nós, que temos filhos, eles estariam entre os primeiros itens da lista.

Para Abraão (Gn 22,1-2.9a.10-13.15-18) não foi diferente. Só que Deus não lhe pediu uma lista. O senhor foi mais radical: Pediu que sacrificasse o filho amado. “Oferece-o ali em holocausto sobre um monte que eu te indicar” (Gn 22,2). E não deu mais explicações...

Sabe o que isso significa?

Pegar o filho amado, colocá-lo sobre uma pedra. Dar-lhe uma facada no coração… e depois do filho morto, estendê-lo sobre um monte de lenhas e colocar fogo. Isso é o holocausto: oferecer um sacrifício no qual a vítima é queimada. Isso porque na mentalidade da época, a fumaça daquilo que estava sendo sacrificado chegaria aos deuses…. E, neste caso, Abraão aceitou a proposta de Deus, e estava para sacrificar o filho. Por quê? Porque, para ele, cumprir a vontade de Deus era a coisa mais importante…

Agora, imagine a dor desse pai! Mas também, imagine o tamanho da fé desse homem!

E Abraão estava disposto a fazer. Estava disposto a entregar seu filho a Deus.

Em razão disso Deus lhe fez uma promessa (Notemos que muitos de nós vivemos fazendo promessas a Deus… nós as cumprimos?). O senhor lhe prometeu: a bênção, a descendência e a terra (Gn 22,17). E foi além: o gesto de Abraão, rendeu a benção, não só para seus descendentes, mas também para toda a humanidade: “Por tua descendência serão abençoadas todas as nações da terra, porque me obedeceste”. (Gn 22,18).

E aqui tem um detalhe muito importante: em Abraão passaram a ser abençoadas TODAS as nações da terra e não somente um povo ou um grupo de pessoas!

Mas Deus não parou por aí.

Ele é muito mais audacioso. Mais radical. Afinal, ele é Deus!

Mas antes, diga uma coisa: você seria capaz de fazer o que Abraão fez? Seria capaz de cravar uma faca no coração de seu filho, por amor a Deus?

Pois fique sabendo que Deus é, para a mentalidade moderna, meio doido. Por quê? Porque Ele fez isso com seu Filho! Não cravou uma faca no peito do Filho, mas cravou o Filho numa cruz!

Nós teríamos dificuldade em sacrificar nosso filho por amor a Deus, mas Deus sacrificou seu Filho por amor a nós!!!

Isso nós o sabemos e vamos recordar na liturgia da semana Santa. Mas hoje e aqui é Paulo, escrevendo aos romanos (Rm 8,31-34) que nos fornece esta informação: “Deus que não poupou seu próprio filho, mas o entregou por todos nós” (Rm 8,32). Por que Deus faz isso? É, ainda, Paulo quem explica: Ele o fez porque nos ama e entregar o filho para à morte de cruz foi uma forma de mostrar esse amor, sem deixar dúvidas. “Se Deus é por nós, quem será contra nós?” (Rm 8,31).

Com isso talvez Paulo esteja nos dizendo: as dificuldades podem ser grandes. As adversidades podem ser muitas. Os sofrimentos podem parecer insuportáveis… Mas Deus é nosso amparo… e não nos abandona, como não abandonou Abraão!

Para alimentar essa certeza Jesus se mostra (Mc 9,2-10) em sua totalidade, em seu maior esplendor, em sua essência: Jesus transfigura-se diante dos apóstolos (Mc 9,2). Mostra aquilo que realmente é: plena luz para nos guiar!

A sensação deve ter sido tão intensa que, somente isso explica, os apóstolos não saberem o que fazer ou o que dizer (Mc 8,6). A postura dos apóstolos foi de usufruir ao máximo da experiência (“vamos fazer três tendas”) e de querer agradar a Jesus não só com a tenda, mas externando a sensação de agrado: “é bom estarmos aqui”, diz Pedro (Mc 9,5).

Como os apóstolos não estavam entendendo o que estava se passando, o Pai o explica para não deixar nenhuma dúvida: “Este é o meu Filho amado. Escutai o que ele diz!” (Mc 9,7). Algo semelhante ao que disse a mãe, na festa do casamento: “fazei tudo que ele voz disser!”

Neste tempo quaresmal temos algo importante a aprender. Não só olhando para a figura de Abraão, demonstrando plenitude de fé; não só de Paulo indicando onde encontrar e conseguir amparo para enfrentar as adversidade. Mas principalmente olhando para Jesus que se mostra em sua essência. E fazendo isso nos indica o caminho. E este caminho evidencia uma exigência, anunciada pela Campanha da Fraternidade: o diálogo.

O diálogo pode ser a ponte para nos conduzir no percurso a ser feito. O diálogo nos mostra que o diferente é apenas uma amostra da grandeza de opções que Deus permite como exemplos para chegarmos a ele.

E, se temos tantos caminhos e oportunidades, podemos mais facilmente chegar ao Senhor, para podermos dizer como Pedro: é bom estar aqui!!!



Neri de Paula Carneiro

Outros textos do autor:

Filosofia, História, Religião: https://www.webartigos.com/index.php/autores/npcarneiro

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segunda-feira, fevereiro 22, 2021

PRA FAZER FILOSOFIA

Acredito que devido ao fato de eu ser professor, muitos me fazem muitas perguntas. E entre as muitas coisas que me perguntam, muitas perguntas são sobre o que é filosofia. Perguntam se filosofia é isto ou aquilo?

Claro que tenho que responder. Afinal, pra que servem as perguntas se não para provocar respostas? Mas em resposta, respondo que não sei a resposta! Ou melhor, não sei dar a resposta que eles querem sobre a filosofia ser isto ou aquilo.

Dependendo da inspiração, acrescento, e não é exagero o que digo, que filosofia não é isto nem aquilo; mas dá pra dizer que filosofia é tudo isso. Mas tudo isso sem ser isto ou aquilo!!!

E o interlocutor não deixa passar: Mas tudo isso o quê? E como não é nem isto nem aquilo? E como pode ser isso e aquilo?

Ai me vejo obrigado a explicar: Primeiramente, e pra dizer a verdade, filosofia não é! Ela está menos para presente do indicativo e muito mais para gerúndio: ela vai se construindo...

Não se concebe a filosofia como algo pronto: estátua, feito banheiro de passarinho, numa praça deserta. Cabe mais a afirmação de que ela se parece com a chuva fina que lenta, progressiva e continuamente umidece a terra… aquela chuvinha que, sem que se perceba, ajuda na fertilização da terra estimulando seu potencial de vida, estimulando a vida nova da semente plantada. E nesse processo de umidade e fertilidade vão germinando as sementes das ideias...

A filosofia não é fruto do corre-corre tresloucado deslocando a capacidade de pensar para a obrigação do fazer… e nessa loucura se faz de tudo, menos pensar! E o processo do pensar é a dinâmica da filosofia. Por isso a filosofia tem a ver com dinamicidade do pensamento.

A filosofia não É, como coisa pronta. Ela se explica na dinâmica porque exige uma postura de movimento. Pedra bruta sendo polida ao longo do tempo pela torrente do fundo do rio. Com a filosofia ocorre aquilo que é típico dos cães farejadores, cheira aqui e ali quase sempre consegue encontrar coisas novas a serem relacionadas com as antigas; com ela se podem relacionar coisas tradicionais fazendo germinar novidades. Com ela os saberes tradicionais, vão se tornando coletivos e viram ciência/sapiência, envolvendo a tudo e a todos, propondo, depois das soluções, novas interrogações!

O processo filosófico é dinâmico, mas não tem a ver com a ideia do movimento pensado pela física, calculando tempo e espaço, embora possa estar na indagação sobre o tempo e o espaço e a energia... Tem a ver com transição constante como foi anunciada e inaugurada por Heráclito (e outros antes dele), dizendo que no mesmo rio não se entra duas vezes… pois tudo flui… “Nada do que foi será, de novo, do jeito que já foi um dia”, disse o poeta.

Por isso não existe filosofia na estagnação da água parada, fétida, nefasta à vida e a saúde; de forma oposta, ela tem o dinamismo de um profundo poço de águas límpidas e refrescantes… como a se oferecer, mas sem se exibir; disponível, sem ser assanhado!

Fazer filosofia exige o parar, mas o parar, para a filosofia, não é estacionar, como a pedra à beira da estrada cujo fim é terminar coberta pela vegetação rasteira; fosse assim ela já teria desaparecido, encoberta pela poeira do tempo, cortina ocultando nas dobras do esquecimento tudo aquilo que não desenvolve uma constante dinâmica para a renovação ou pela sua inovação.

O parar, aqui, como se pode notar, refere-se aos momentos facilitadores da dinamicidade do pensamento inovador. O parar, da filosofia, não é o estacionar do trem, para descarregar no ponto final, mas do metrô, em cada ponto se reabastecendo de novos passageiros. Para-se, não como quem morre, mas como quem renasce a cada dia em novas ideias, com a finalidade de aprender com o que já existe e, ao mesmo tempo, para projetar, propor e incrementar novos conhecimentos que fundamentam novos saberes.

Por isso a filosofia não é, mas está sempre se fazendo e recompondo e refazendo. Não se assemelha ao ponto final do texto, mas aos dois pontos que sugerem proposição de novas perspectivas. E isso pode ser uma das explicações de tantas filosofias, tantas correntes de pensamento. Talvez por isso, antes de se constituir num corpo sistemático, como aprendemos com os gregos, ela caminhava com o ser humano desde as primeiras indagações com as primeiras respostas gerando novos questionamentos. Afinal de contas, será que alguém já tem uma resposta definitiva para algumas das grandes questões da humanidade: de onde vim? Para onde vou? Quem sou eu? O que sou eu?

O fato é que se faz filosofia, mas ela nunca está pronta. E ela se faz sempre no processo de destilação do conhecimento acumulado; no processo da sedimentação dos saberes adquiridos, de forma que todas as informações atuais são lapidadas e se convertem no inebriante diamante da sabedoria que se curva, na reflexão cotidiana, e se faz semente querendo renascer.

Neri de Paula Carneiro

Mestre em Educação, Filósofo, Teólogo, Historiador

Rolim de Moura – RO

domingo, fevereiro 21, 2021

FILOSOFIA: OS PRIMEIROS PASSOS

Pra que filosofia? Ou pra que serve filosofia no meu curso?

É a primeira ou uma das primeiras perguntas que faz o estudante quando vê que tem essa disciplina em sua grade de curso.

Não temos nem pretendemos dar essa resposta! Também não sabemos se existe resposta. Mas tem gente que responde assim: porque ela nos ajuda a pensar; porque quem elaborou a grade do curso entendeu que essa é uma disciplina importante; porque delas derivam quase todas as ciências da atualidade; porque sem a ajuda da filosofia podemos perder algumas particularidades, alguns detalhes da realidade; para desenvolver um raciocínio crítico... e assim por diante!

Todas as respostas têm o seu fundamento. Mas não dá para dizer que elas nos satisfazem. Ou que uma delas seja definitiva. Será que tudo tem que ter alguma utilidade?

Tem que servir para alguma coisa? E se a coisa servir apenas para deixar a gente com dúvidas?

O fato é que, já o dissemos: não temos a resposta. Outro fato é que existem muitas e diversas forma de se falar, de se explicar e de se fazer filosofia. Importa, portanto, encontrar uma forma de falar, estudar e entender filosofia. Não importa se essa é a melhor, mas é uma maneira de desenvolver o processo. Parece que um bom caminho é percorrer a senda do diálogo (dia-logo): ouvir, buscar e dialogar pois o monólogo pode ser contraproducente. E, mais, entender que não se trata de dominar uma forma de se ensinar Filosofia, mas desenvolver um mecanismo que ajude a filosofar.

E, cá entre nós, o que realmente interessa, não são as respostas, mas os processos para o filosofar. Importa buscar caminhos, criar caminhos, testar caminhos e alternativas para o filosofar. Isso significa: estimular a capacidade reflexiva a partir de uma postura de admiração a todas as realidades; posicionar-se deixando de ser indiferente ao mundo capacitando-nos a emitir opiniões; ir além do simples comentário a respeito dos grandes pensadores. Trata-se de partir de nossa realidade temática para encontrar os pensadores.

E essa é a nossa perspectiva para o estudo da filosofia: não só história, nem só de temas (ou problemas), mas tudo isso a partir do cotidiano procurando fazer do estudo da filosofia algo cativante, desafiador e envolvente provocando para a criticidade radical fugindo das aparências enganosas! E isso de forma séria sem ser carrancudo.

Notando apenas de um pequeno detalhe: O filosofar ajuda a impulsionar o mundo, pois o seu ponto de partida é a pergunta que instala a dúvida. A dúvida desinstala a certeza e prepara o intelecto para avançar. Sendo assim, se são as perguntas que movem o mundo, que mundo é esse que gera as perguntas? Afinal, o quê move as perguntas?

Neri de Paula Carneiro

Mestre em educação, Filósofo, teólogo, historiador

Rolim de Moura - RO



sexta-feira, fevereiro 19, 2021

Quaresma 1: Jesus, a nova aliança



(Reflexões baseadas em: Gn 9,8-15; 1Pd 3,18-22; Mc 1,12-15)







Estamos acostumados a afirmação de que a quaresma corresponde aos quarenta dias de preparação para a Páscoa. E não há erro nenhum, nisso. Mas, em que consiste essa preparação? De que outra forma podemos compreender o significado da quaresma? A Igreja nos propõe, no primeiro domingo da quaresma, algumas pistas para refletirmos… e entendermos outros alcances do significado da quaresma.

No livro do Gênesis (Gn 9,8-15), o Senhor estabelece uma aliança para a preservação da vida a qual foi purificada nas águas do dilúvio. Os que sobreviveram ao dilúvio foram aqueles que não tinham se contaminado com a maldade humana. As águas do dilúvio, para eles, foi um processo de purificação. Saíram da arca renovados, com a missão de edificar um mundo melhor.

Na primeira carta de Pedro (1Pd 3,18-22), o apóstolo afirma que as águas do dilúvio se assemelham às do batismo. E este não se destina à limpeza do corpo, mas é um meio de participar da purificação produzida pela Ressurreição de Cristo. E a Ressurreição é um anuncio daquilo que está destinado a todos os que se comprometem com a causa da edificação de um mundo melhor, no qual floresce a Justiça e a Equidade; a Fraternidade e a Solidariedade...

Por sua vez, Marcos (Mc 1,12-15), mostra Jesus vencendo o tentador e anunciando a proximidade do Reino. Mas, para que o Reino se instale, como expressão de um mundo melhor, é necessário conversão ao Evangelho.

Com isso já temos pistas para entender o significado da quaresma, para o cristão. A água do dilúvio e o batismo expressam a sua finalidade: purificar e limpar. O que é, então a quaresma? Um tempo de purificação! Um tempo em que se faz um exame de vida, tendo como critério para o exame, a proposta de Jesus Cristo, estabelecida na Boa Nova do Reino.

Mas podemos dar um passo a mais.

Quem é da roça, deve se lembrar que nossas mães e avós não tinham máquina para lavar roupa. O rio era o local para a lavagem das roupas. Então que faziam? Expunham ao sol as roupas ensaboadas, para que o calor ajudasse a “soltar a sujeira”, como dizia minha mãe. Essa era a técnica para “quarar” as roupas. Ou seja, o calor do sol provocava o “quaramento”, a limpeza. Aí, então, ao voltar para as águas, as roupas aquecidas quaravam, isto é, limpavam facilmente: água e calor do sol produzia a limpeza, daquelas roupas grosseiras do serviço da roça.

Esse é o sentido da quaresma: ajudar no processo de “quaramento” de nossas vidas. Nossas mães deixavam as roupas tomando sol por algumas horas. Nossa Igreja nos propõe deixarmos nossas vidas “quarando” durante quarenta dias. Quarenta dias, portanto, é um tempo suficiente para fazermos uma revisão de vida e, aquecidos pelo fogo do Espírito e iluminados pelo Luz do Evangelho de Cristo, nos convertermos desfazendo-nos das atitudes que sujam nossa vida.

Após ter purificado a humanidade, com o dilúvio, o Senhor firmou uma aliança com aqueles que haviam se purificado: “Deus disse: ‘Este é o sinal da aliança que coloco entre mim e vós, e todos os seres vivos que estão convosco, por todas as gerações futuras. Ponho meu arco nas nuvens como sinal de aliança entre mim e a terra’” (Gn 9,12-13).

Mas o verdadeiro sinal da aliança divina foi a ressurreição de Cristo, a quem nos associamos mediante as águas do Batismo que “é um pedido a Deus para obter uma boa consciência, em virtude da ressurreição de Jesus Cristo” (1 Pd 3, 21). E Jesus Cristo é o Sol que aquece nossa vida e sua Ressurreição nos conduz na direção da purificação.

A pergunta que se impõe, agora, é: de quê precisamos nos purificar? Quais as situações que nos contaminaram e que exigem que façamos, no processo quaresmal, uma limpeza em nossas vidas? Quais atitudes precisamos mudar, para efetivarmos nossa adesão à Nova Aliança, que é a própria pessoa de Jesus?

Com certeza a lista não é pequena: nossas omissões diante de um mundo em crise, no qual o ser humano está, cada vez mais, perdendo o valor. Nossas adesões a propostas sociais, políticas e/ou econômicas que não tomam o ser humano como centro, mas o lucro como bandeira. Nossa língua ferindo a integridade dos nossos conhecidos, vizinhos, parentes, colegas de trabalho… enfim, cada vez que nos posicionamos de forma a minimizar o ser humano, estamos nos afastando de Deus, estamos poluindo as relações entre as pessoas, estamos sujando o caminho da vida… disso e muito mais precisamos nos quarar, quaresmar, purificar...

A quaresma é o tempo da purificação. É o período litúrgico em que somos convidados a quararmos nossas vidas. E se todos nós fizermos isso, certamente o mundo vai se tornar um lugar melhor para se viver. Deus está nos propondo essa oportunidade. E Jesus, com sua proposta de nova vida, é a parta para a nova aliança.




Neri de Paula Carneiro

Outros textos do autor:

Filosofia, História, Religião: https://www.webartigos.com/index.php/autores/npcarneiro

Literatura: https://www.recantodasletras.com.br/autores/neripcarneiro

terça-feira, fevereiro 16, 2021

Quarta feira de cinzas



(Reflexões a partir de : Jl 2,12-18; 2Cor 5,20-6,2; Mt 6,1-6.16-18)







Cinzas...

Tudo vira cinza, pó! Nada escapa desse processo de transformação. Inclusive nossas vidas e atitudes e comportamentos e sonhos e esperanças… Tudo vira cinza… e das cinzas podem nascer outros projetos! Como, também, nas cinzas podem estar enterrados os fracassos!

Cinzas… símbolo de vida ou confissão de fracasso? Com que olhos a vemos?

Seja o que for, não há como negar que, em todos os casos, a cinza representa a consumação de um processo de transformação… o que era não é mais e, em seu lugar, no lugar daquilo que era, agora estão as cinzas do que foi… restos doloridos… sementes de esperança!

Essa é a ideia litúrgica envolvida na quarta feira de cinzas.

Podemos visualizar essa perspectiva nas leituras que nos são propostas. Primeiro o profeta Joel (Jl 2, 12-18) falando de um processo de arrependimento e retorno para Deus. Por sua vez Paulo (2Cor 5,20-6,2), escrevendo aos coríntios os alerta, dizendo que chegou o dia da salvação. Jesus também, de acordo com Mateus (Mt 6,1-6.16-18), insiste na importância de uma nova postura, pela qual se valoriza não o exterior, nem as atitudes ostensivas, mas aquilo que é feito na simplicidade, na humildade… no escondido do coração!

Quando lemos os ensinamentos de Joel percebemos que algo diferente paira no ar. Há um certo ar de comportamentos desagradáveis ao Senhor. Tanto que o profeta conclama o povo a suplicar: “Perdoa, Senhor, a teu povo...” (Jl 2,17). E o profeta também informa o que o Senhor deseja: “voltai para mim com todo o vosso coração” (Jl 2,12). O coração simboliza o centro das emoções e afetos. Sendo assim, voltar-se de todo coração significa mudar os comportamentos. E o profeta reforça o apelo do Senhor: “rasgai o coração, e não as vestes” (Jl 2,13). Ou seja, atitudes exteriores, “rasgar” a roupa para demonstrar arrependimento, pode não expressar o verdadeiro arrependimento, que se torna verdadeiro quando se “rasga” o coração.

E nós poderíamos dizer: é necessário queimar as velhas atitudes para que das suas cinzas cresçam comportamentos edificantes, os quais podem conduzir à “justiça de Deus” (2Cor 5,21), de acordo com Paulo.

Essa transformação esperada de cada um e de todos é o caminho para “não receberdes em vão a graça de Deus” (2 Cor 6.1), como diz o apóstolo. Importa, pois valorizar a graça recebida uma vez que “é agora o momento favorável, é agora o dia da salvação” (2 Cor 6,2). Não existe essa de que “amanhã” eu mundo, no “no próximo ano” eu faço isso… O depois pode ser tarde demais!

Como isso é possível? alguém pode perguntar. Como transformar a vida, mudando as atitudes? Jesus dá a resposta: fazer o que é agradável a Deus e não às aparências. É necessário tomar cuidado para “não praticar a vossa justiça na frente dos homens, só para serdes vistos por eles” escreve Mateus (Mt, 6,1).

Quem deseja as coisas do alto, não pode estar preso às coisas de baixo. E aqui cada um de nós pode se interrogar: o que faço é para agradar a Deus ou para que as pessoas vejam? Faço caridade porque aquela pessoa que ajudei está precisando ou para que os amigos, a comunidade, a sociedade… para que as pessoas vejam que sou caridoso?

Não é a ostentação, mas a humildade. Quem faz para ser visto, já recebeu a recompensa; quem faz na simplicidade humilde, será notado por Deus, afirma Jesus: “quando deres esmola, que a tua mão esquerda não saiba o que faz a tua mão direita, (Mt 6,3); “quando tu orares, entra no teu quarto, fecha a porta, e reza ao teu Pai que está oculto” (Mt6 6,6); “quando jejuares, perfuma a cabeça e lava o rosto, para que os homens não vejam que tu estás jejuando, mas somente teu Pai, que está oculto” (6,17-18). Assim procedendo, receberemos a recompensa de Deus: “o teu Pai, que vê o que está escondido, te dará a recompensa” (Mt 6,4.16.18).

Como estamos celebrando a quarta feira de cinzas, a Igreja também nos propõe a restauração do diálogo, como meio de estabelecer a fraternidade e, dessa forma, ampliar entre as pessoas as portas do Reino.

Ocorre que devido à intolerância, de todos os níveis e em todos os níveis, cresce a divisão, a exclusão, a marginalidade. Frutos, todos, da intolerância podem ser vencidos no processo da conversão para a vida comum e pela comunhão de vidas uma vez que havendo comunhão ocorre diálogo, e este, por sua vez facilita para o crescimento do respeito, que faz crescer a fraternidade, que faz germinar a semente da nova vida e nova sociedade.

Das cinzas brota o mundo novo. Por isso a Igreja celebra o sinal de impor cinzas sobre as cabeças, pois a cinza é sinal de transformação. Isso porque nas cinzas, sinal de penitência, conversão e transformação, está a semente do reino. Pois o que agora é cinza, passou pelo fogo purificador. E assim temos todo o período da quaresma para exercitar esse processo de conversão. Para fazer germinar a semente do reino, fertilizada pela conversão, representada pelas cinzas.




Neri de Paula Carneiro

Filósofo, teólogo, historiador, mestre e educação.

Outros textos do autor:

Filosofia, História, Religião: https://www.webartigos.com/index.php/autores/npcarneiro

Literatura: https://www.recantodasletras.com.br/autores/neripcarneiro

Sagrada Família: para se cumprir!

Reflexões baseadas em: Eclo 3,3-7.14-17a; Cl 3,12-21; Mt 2,13-15.19-23 Todos os que, de alguma forma, tiveram contato com os ensinamentos d...