quinta-feira, 31 de agosto de 2023

Em troca da vida

(Jeremias 20,7-9; Romanos 12,1-2; Mateus 16,21-27)




“Que poderá alguém dar em troca de sua vida?” (Mt 16,26) A pergunta de Jesus pode ser um norte para nossa vida. Afinal, o que vale a nossa vida? Qual o preço de uma vida?

A indagação que Jesus está nos propondo é um convite a refletir o sentido da vida. E uma resposta para essa indagação que fundamenta a vida não sai das palavras que podemos proferir, mas do rumo que empreendemos à nossa existência. De uma forma mais poética: o sentido da vida pode ser expresso nos passos que direcionam nosso caminhar.

Essa indagação é tão fundamental para a condução da vida que Paulo, dirigindo-se aos romanos (Rm 12, 1-2), os convida a redimensionar a vida: “eu vos exorto” (Rm 12,1), diz o apóstolo.

Exorta a quê? A fazer da vida uma oferta a Deus: “a vos oferecerdes em sacrifício vivo”. Só lembrando que sacrifício não é um ato ou situação de sofrimento, mas de entrega a Deus. O sacrifício vivo é, portanto, a entrega total a Deus. Trata-se de entregar a vida a Deus!

Por que o apóstolo faz essa exortação? Porque comunidade de Roma não está se comportando em consonância com o plano de Deus, como seria de se esperar dos seguidores do Cristo, como ensinam os livros sagrados e os evangelhos. Por isso a orientação do apóstolo à comunidade que está em Roma – e a nossa também: “Não vos conformeis com o mundo” (Rm 12,2). E aqui vale o mesmo princípio. Se a orientação é para não se conformar com o mundo é porque a comunidade está conformada. Então, em quê consiste esse “conformar”.

Inicialmente pode-se entender como aceitação. Quem está triste por ter perdido algo, ao se conformar, aceita essa perda. Mas, não é essa a orientação do apóstolo. Para Paulo, conformar, deve ser entendido como entrar na forma, no jeito de ser. Assim, “não se conformar com o mundo” significa não deixar que o mundo direcione nossa vida. Conformar-se ao mundo nada mais é do que viver não mais com os valores cristãos, mas com os valores do mundo. E isso não é para acontecer, diz o apóstolo. O cristão não deve deixar-se dominar pelo mundo, mas ser sinal para o mundo; agir para transformar o mundo.

Dessa forma, também, não se conformar, ou seja, não se deixar levar pelos valores do mundo, significa, segundo Paulo, transformar-se e renovar-se. “Transformai-vos, renovando vossa maneira de pensar e de julgar” (Rm 12,2). Mas isso com que finalidade? Com a finalidade de “distinguir o que é da vontade de Deus, isto é, o que é bom” (Rm 12,2). Isso significa que o apóstolo sabe que a comunidade sediada em Roma – e hoje também a nossa comunidade – não está seguindo a vontade de Deus; não está fazendo o que é bom; não está fazendo o que lhe agrada e é perfeito… por não estarem fazendo nada disso é que o apóstolo os exorta – e também a nós – a fazer essas coisas. Se já estivessem fazendo isso, não haveria necessidade dessas orientações. Eis, portanto, um sentido para a vida: encontrar a “vontade de Deus”, realizar “o que é bom”.

A busca pelo sentido da vida e do viver, pode ser notada na vida de Jeremias (20,7-9). O que ocorre com o profeta, seguidamente se dá conosco, frente as dificuldades. A tendência, para quase todos nós, é nos abatermos; fraquejarmos diante das adversidades. É a postura de Jeremias (20,7-9). Num primeiro momento a euforia: “Tu me seduziste, Senhor, e eu me deixei seduzir! Foste mais forte” (Jr 20,7). Mas, em seguida, vem a recaída diante das dificuldades: “A palavra de Deus tornou-se para mim vergonha e gozação” (Jr 20;8) e por esse motivo, diz o profeta, “nunca mais hei de lembrá-lo, não falo mais em seu nome!” (Jr 20,9).

Mas essa postura de afastamento, de descompromisso, não dura muito, pois o fogo da Palavra mobiliza e o profeta reconsidera sua atitude. “Parecia haver um fogo a queimar-me por dentro, fechado nos meus ossos. Tentei aguentar, não fui capaz.” (Jr 20,9). Ele sabe que só no Senhor está a paz e o bem. No Senhor está o sentido da vida.

Por fim, ninguém melhor que Jesus para, não só dizer, mas mostrar o sentido da vida. Ele demonstra que, para entender o sentido da vida, é necessário entender o sentido da dor. Por isso ele deve “ir à Jerusalém e sofrer muito” (Mt 16,21). Só que Pedro ainda não entendeu isso, e se contrapõe ao plano do Mestre. “Deus não permita tal coisa” (Mt 16,22).

Pedro ainda não havia entendido que o sentido da vida é a entrega. Por estranho ou paradoxal que possa parecer, Jesus afirma – e demonstra com sua entrega – que as coisas dos homens não são coisas de Deus (Mt 16,23); que a renúncia de si é condição para o seguimento (Mt 16,24). Mostra que para ocorrer a salvação da vida é necessário entregá-la (Mt 16,25). Mostra que o mundo vale menos que a vida (Mt 16,26) e, finalmente, assegura que a entrada no Reino depende da conduta de cada um. Por isso afirma que em seu retorno glorioso “retribuirá a cada um de acordo com a sua conduta.” (Mt 16,27).

Aqui está o sentido para a pergunta: Que é necessário para ganhar a vida gloriosa? O que se pode “ alguém dar em troca de sua vida?” (Mt 16,26). É necessário dar a vida! A vida gloriosa é o sentido desta vida. E Jesus vai entregar o resultado, ele “retribuirá a cada um de acordo com a sua conduta”.

Neri de Paula Carneiro

Mestre em educação, filósofo, teólogo, historiador

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sexta-feira, 25 de agosto de 2023

Quem sou eu para você?

(Isaías 22,19-23; Romanos 11,33-36; Mateus16,13-20)




O Senhor cobra um posicionamento daqueles que o cercam, que dizem ter fé, que são seus anunciadores, que são seus emissários. Quer um posicionamento daqueles que lhe dirigem suas orações. Daqueles que se dizem cristãos, que frequentam os templos e recitam orações. A todos, o Senhor faz a pergunta decisiva: “quem sou Eu, para você?” É a grande pergunta do Mestre apresentada por Mateus (16,13-20).

Qualquer que seja o questionamento, exige de nós uma resposta. Mesmo que seja o silêncio; ou uma evasiva; ou admitir a incapacidade de responder; ou uma negação... e aqui é o Senhor quem nos interroga. “O que andam falando a meu respeito? E vocês o que dizem?” E resposta é adesão ou rejeição. E isso impõe outra pergunta: “quem é Deus, para mim?”

Lendo a profecia de Isaías (22,19-23), notamos que o Senhor está descontente com o Sobna, administrador do palácio. Mas por qual motivo? Quem era Deus, para ele?

Ele devia guiar o povo de Deus, mas não estava cumprindo com a missão. E por isso foi substituído por alguém mais dedicado às necessidades do povo. Um novo líder que “será um pai para os habitantes de Jerusalém e para a casa de Judá.” (Is 22,21). Agir em favor do bem do povo é missão de todos, mas de modo especial daquele que está revestidos de autoridade.

Todos os que estão revestidos com alguma autoridade, tem a obrigação, moral e religiosa, de converter esse poder em bem estar para o povo. Caso a autoridade não faça isso, deve ser destituída do poder. Esse foi o exemplo ensinado pelo Senhor, na profecia de Isaías.

Paulo (Rom 11,33-36), acrescenta um novo motivo pelo qual cada um de nós e, principalmente aqueles que são revestidos de autoridade, devemos nos colocar a serviço de todos. O apóstolo nos informa: “tudo é dele, por ele, e para ele” (11,36). Isso significa que, se tudo pertence ao Senhor, não temos direito de profanarmos a obra de Deus: sua criação e as pessoas. A natureza a nós doada, não por nossos méritos, mas pela grandeza da graça do Pai, deve ser reverenciada, pois dependemos dela; as pessoas, nossos semelhantes, merecem de nós aquilo que nós gostaríamos de receber deles! Ao Senhor, “a glória para sempre”, mas como glorificá-lo se agredimos sua criação Portanto, se tudo pertence ao Senhor, quem somos nós para agredirmos sua obra? Com que direito concentramos poderes e riquezas enquanto milhares de pessoa passam fome e outras dificuldades?

Não é diferente a indagação de Jesus: “Quem dizem os homens ser o Filho do Homem?” (Mt 16,13). E os discípulos respondem: “Alguns dizem que é João Batista; outros que é Elias; outros ainda, que é Jeremias ou algum dos profetas.” (Mt 16,14). Ou seja, as pessoas, mesmo aqueles que estão próximas, ainda não conhecem o Senhor.

Evidentemente Jesus sabe quem é, o que se propõe e qual sua proposta para as pessoas. Entretanto deseja uma resposta decisiva das pessoas. Por isso a outra indagação é para quem o segue, para quem se acha próximo: “E vós, quem dizeis que eu sou?” (Mt 16,15).

E assim voltamos à indagação inicial: “quem é Deus, para mim?”

Evidentemente respondemos: É meu salvador! É a razão de meu existir! É a luz da minha vida! É um guia em minha vida! Deus é tudo para mim!… e muito mais. Entretanto, a pergunta é outra, não é sobre o que digo, mas sobre o que faço: quem é Deus, para mim, não em meu discurso, em minhas palavras, mas em minha vida e ações?

A verdadeira resposta não nasce nem se apresenta em palavras de um belo discurso… Tudo que se possa dizer, pode ser apenas para cumprir com as convenções, para manter as aparências, para satisfazer as ambiguidades de cada um. Pode ser uma resposta para que o outro veja… e não para engajar na solidariedade transformadora…. A verdadeira resposta, não está nas palavras, mas nos comportamentos. A resposta está nas atitudes.

Foram as atitudes de Pedro e não as palavras: “tu és o Messias, o Filho do Deus vivo” (Mt 16,16), que lhe renderam o poder das chaves (Mt 16,19); exatamente como ocorreu com Eliacim, na profecia de Isaías 22,22). Ou seja, aquele que reconhece Jesus, recebe, também uma autoridade… e uma missão: ser ponte!

Resta, talvez, uma última indagação: por que Jesus pede segredo em relação àquilo que Pedro revelou? “Jesus, então, ordenou aos discípulos que não dissessem a ninguém que ele era o Messias.” (Mt 16,20).

Uma possível resposta, que também depende de nossa postura, é que Jesus continua fazendo a pergunta a cada pessoa. E espera de cada um a sua resposta pessoal e existencial e não aquela que já foi dada por outros. Uma resposta que vai além das palavras e que se manifesta nas atitudes: “E vós, quem dizeis que eu sou?”


Neri de Paula Carneiro

Mestre em educação, filósofo, teólogo, historiador

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quinta-feira, 17 de agosto de 2023

Assunção de Nossa Senhora: Realizou-se a salvação

(Apocalipse 11,19a; 12,1.3-6a.10ab; 1Coríntios 15,20-27a; Lucas 1,39-56)




A celebração da Assunção de Nossa Senhora faz da liturgia de hoje uma solenidade da esperança. De alcançar o Reino, sim, mas também de viver com dignidade aqui e agora.

O livro do apocalipse mostra isso (11,19a;12,1-6a.10ab). As dificuldades, simbolizadas no do dragão ameaçando a mulher grávida (Ap 12,1) são superadas com o nascimento da criança. A vida nova, o Filho de Deus, além de uma promessa, é também uma esperança. Por isso, Deus arrebata a criança para junto de si. É a esperança de vencer as dores do dia a dia.

O poder destrutivo do dragão da maldade, (Ap 12,4) torna-se impotente diante do poder salvífico de Deus. O Filho que veio para guiar a humanidade nasce em segurança. O “filho homem, que veio para governar todas as nações com cetro de ferro” (Ap 12,5) manifesta-se com promessa e sinal de esperança.

A mãe dessa criança também recebendo proteção divina. “A mulher fugiu para o deserto, onde Deus lhe tinha preparado um lugar” (Ap 12,6). O lugar preparado para ela é o seio de Deus. É o que celebramos como Assunção: a mãe sendo levada para junto de Deus.

Com a mãe e Filho protegidos, o anjo protetor pode anunciar: "Agora realizou-se a salvação, a força e a realeza do nosso Deus e o poder do seu Cristo" (Ap 12,10). A mãe e a criança, arrebatados, protegidos pelo poder de Deus indicam o nosso caminho: o convívio com Deus alimentando a esperança superar as dificuldades cotidianas.

A mulher protegida por Deus tem uma dupla representação: primeiro representa a Igreja, o povo de Deus a caminho que se ampara e protege sob a sombra do poder divino; e também representa a mãe de Jesus. E celebramos isso porque acreditamos que suas virtudes lhe conferiram prestígio para ser levada para junto de Deus. E nisso consiste nossa esperança: da mesma forma que Jesus voltou para o Pai, na sua ressurreição, assim também, convidou e levou para junto de si aquela que o carregou no ventre, depois dela cumprir sua jornada terrena. Ela nos antecedeu por seus méritos e pelos méritos da graça divina, como a nos dizer: você também pode! E a esperança consiste justamente nisso: a morte não é o fim; é só um momento de transição desta vida para a vida definitiva junto ao Pai.

A esperança também está na carta de Paulo (1Cor 15,20-26.28). Ele ensina: “Cristo ressuscitou dos mortos como primícias dos que morreram” (1 Cor, 15,20). Ele é o primeiro, para nos mostrar o caminho: que Ele percorreu; por onde levou a mãe e por onde nos levará.

E o apóstolo diz isso como a dizer que a vida no mundo é importante, sem dúvida, mas a morte não é menos importante. Por ela é que se chega ao Pai. O próprio Jesus, para retornar ao Pai, passou pela morte: “Em primeiro lugar, Cristo, como primícias; depois, os que pertencem a Cristo, por ocasião da sua vinda” (1 Cor, 15,23). E, na batalha pela vida, prevalece a esperança expressa na vitória sobre a morte. “O último inimigo a ser destruído é a morte” (1 Cor 15,26). Com a morte da morte haverá plenitude de vida.

E a Igreja coloca Maria, a mãe de Jesus, como modelo da vitória da vida sobre a morte. E a solenidade da Assunção de Nossa Senhora tem essa finalidade: indicar o caminho. Ao passar pelo portal da morte, da mesma forma que a mãe do Senhor, seremos assumidos pela Trindade Santa no reino definitivo. Assim, podemos dizer que a mãe de Jesus é a precursora. Ela foi chamada ao céu para olharmos seu modelo de vida e assim termos setas indicadoras do caminho a percorrer: com dificuldades, mas também com a certeza da vitória.

E qual é o caminho indicado por Maria Assunta ao Céu?

Ele pode ser lido no programa de vida apresentado quando Maria se pôs a serviço de Isabel (1,39-56). Aquela adolescente, prestes a dar a luz, enfrentando suas dificuldades, não exitou em pegar a estrada para ajudar Isabel. A vida em favor do outro: essa é a seta indicativa. Esse é o caminho. Esse é o sentido da vida. Esse é o critério para merecer seu amor que se “estende, de geração em geração, a todos os que o respeitam” (Lc 1,50).

Maria sabia disso de forma plena. E o afirma ao exclamar: “O Poderoso fez por mim maravilhas e Santo é o seu nome!” (Lc 1,49). As maravilhas não são somente em favor da Mãe. Estão, também, à nossa disposição, pois osmos filhos do mesmo “Poderoso”.

Além disso, a esperança se manifesta numa prática de justiça e equidade. O Senhor faz maravilhas, em favor dos que o temem (praticam suas obras) porque “derruba os orgulhosos”; “exalta os humildes”; “sacia os famintos”; “despede os ricos sem nada” (Lc 1,51-53).

Maria é modelo, por suas virtudes; Maria é precursora, por suas ações; Maria é sinal de esperança, porque carregou Jesus no ventre e nos braços; Maria é esperança porque intercedeu em favor dos menos favorecidos. E, nossa fé esperançosa nos ensina que Maria é nossa intercessora, como “advogada nossa”.

Confiamos no Deus Trino e, justamente por isso alimentamos a esperança da intercessão de Maria. Por sua intercessão sabemos que Deus continua nos salvando no poder do Filho que nos ilumina pelo Espírito… e nos apresenta Maria como primeira seguidora do Filho.

Neri de Paula Carneiro

Mestre em educação, filósofo, teólogo, historiador

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quinta-feira, 10 de agosto de 2023

Coragem! Sou eu!

(1Reis 19,9a.11-13a; Romanos 9,1-5; Mateus 14,22-33)



Um convite à confiança. Essa é uma das propostas que hoje Deus nos está fazendo.

Para entendermos melhor vejamos o que está ocorrendo com Elias (1 Rs 19,9a.11-13a): está escondido numa gruta. E com Paulo (Rm 9,1-5)? Confessa uma tristeza por não poder oferecer mais por Jesus. E Pedro (Mt 14,22-33)? Assustado com o vento e as águas. Na caverna, na angústia ou no medo, sobram duas alternativas: o desespero ou a confiança.

Daí a pergunta: Por que essas cenas nos são apresentadas? Da parte de Deus não vem o desespero, apenas o convite à confiança! E continuam as indagações: Como nos posicionamos diante de Deus e de seu convite? Nos escondemos? Lamentamos as dores? Temos medo de submergir nas tempestades da vida? Ou confessamos, com nossa vida e nossos atos: “Verdadeiramente, tu és o Filho de Deus!” (Mt 14,33)?

Não é demais nos perguntarmos o porquê de Elias estar se escondendo, de Paulo estar angustiado e de Pedro estar afundando.

No primeiro livro dos Reis Elias é um dos personagens mais importantes. Ele é perseguido pelo rei, depois de eliminar os falsos profetas. Venceu-os em nome de Deus, mas foi perseguido pela ira do rei e escondeu-se na gruta. Lá o Senhor o encontra, mas não se manifesta nos terríveis fenômenos da natureza: tempestade, terremoto, fogo… a violência nada disso é de Deus e quem é da violência, também não é de Deus. O Senhor não se dá a conhecer no medo ou na insegurança.

No “murmúrio” da “brisa leve” Elias reconheceu a presença de Deus (1 Rs 19,13). Na paz Deus se manifestou e nesse clima de harmonia Elias saiu da gruta. Fugiu daquele que representava a violência e o medo; saiu da gruta na sensação de paz, na confiança. Em nossa sociedade quem levanta a bandeira da Paz e quem esbraveja, com armas nas mãos?

E nós, em que situação reconhecemos o Senhor, para sairmos de nossos esconderijos? Ou, antes disso, o que nos assusta ao ponto de fazer com que entremos no esconderijo? Podemos até ter feito grandes coisas em nome de Deus, como Elias, mas se não tivermos confiança no Senhor, Ele não nós mostrará sua face de amor. Se não confiarmos em sua graça, nós o confundiremos com os fogo, o vento ou o terremoto. O confundiremos com os discursos de ódio e violência, com os discursos pelas armas….

Que acontece com Paulo? Está angustiado. Seus irmãos israelitas não aderiram a Jesus. Eles “pertencem a filiação adotiva, a glória, as alianças, as leis, o culto, as promessas” (Rm 9,4). Entretanto, também aqui, é a confiança é possível reconhecer em Jesus o prometido e anunciado. Mas para isso é necessário um ato de fé. É numa profissão de confiança o apóstolo reconhece que Cristo “está acima de todos”. Ele é o “Deus bendito para sempre” (Rm 9,5).

E nós, reconhecemos o Cristo, o prometido, na pessoa de Jesus de Nazaré? E se reconhecemos, porque ainda não mudamos nossos comportamentos?

Que dizer, então de Pedro? Ele que conviveu com Jesus; viu o milagre da partilha; viu o rosto brilhante do Mestre e dele ouviu: “Coragem! Sou eu. Não tenhais medo!” (Mt 14,27). Ele que recebeu o convite para ir ao encontro de Jesus (Mt 14, 29)… teve medo!

A falta de confiança o estava afundando. Num rompente de coragem descera da barca. Mas parece que isso foi mais um gesto de empolgação do que de confiança. A empolgação não é um ato de fé. Na empolgação se fazem coisas boas… mas também coisas ruins...

Em Pedro o ato de fé se expressou no auge do desespero. Somente expressou sua confiança quando sentiu que estava afundando (nas águas e na vida), por isso o desespero. Somente quando “sentiu o vento, ficou com medo e começando a afundar, gritou: 'Senhor, salva-me!'” (Mt 14,30) ...somente nesse momento pode ser salvo. Mas antes teve que ouvir a a recriminação: “Homem fraco na fé, por que duvidaste?” (Mt 14,31).

Como estão navegando as barcas de nossas vidas? Quais são os ventos que estão nos levando para o fundo das águas do mar da vida? Estamos vendo Jesus sobre as águas, ou apenas um fantasma? (Mt 14, 26).

É possível superar as dificuldades. É possível vencer os medos. É possível enfrentar os dissabores e as dúvida e as incertezas… mas isso só será possível quando houver entrega absoluta, para não mais ouvirmos: “por que duvidaste?” Isso é possível se mantivermos a mesma atitude daqueles que estavam no barco; só quando formas capazes de dizer, não só com palavras, mas com o gesto de nossa vida: “Verdadeiramente, tu és o Filho de Deus!”. Aí, então ouviremos de Jesus: Coragem! Sou eu quem te estende a mão!

Neri de Paula Carneiro

Mestre em educação, filósofo, teólogo, historiador

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sexta-feira, 4 de agosto de 2023

Transfiguração: O livro de Deus

(Daniel 7,9-10.13-14; 2Pedro 1,16-19; Mateus 17,1-9)




Por que Jesus se transfigurou (Mateus 17,1-9)? Ele tinha necessidade de se mostrar no esplendor de sua divindade?

Por que se mostrou pleno apenas aos três e não aos doze? Por que pediu sigilo sobre o fato?

Você percebeu que a cena da transfiguração, narrada por Mateus, é bastante parecida com a cena descrita por Daniel (7,9-10.13-14)? O profeta fala a respeito de um ancião recebendo a visita de um “filho de homem”. Notemos que o “filho de homem”, descrito pela visão de Daniel, é servido por “todos os povos, nações e línguas”. Esse “Filho de Homem” recebe “poder, glória e realeza, e todos os povos, nações e línguas o serviam: seu poder é um poder eterno que não lhe será tirado, e seu reino, um reino que não se dissolverá” (Dn 7,14).

Notemos que, na cena da Transfiguração o rosto de Jesus “brilhou como o sol e as suas roupas ficaram brancas como a luz”. E, em seguida, interrompendo o susto de Pedro: “uma nuvem luminosa os cobriu com sua sombra. E da nuvem uma voz dizia: "Este é o meu Filho amado, no qual eu pus todo meu agrado. Escutai-o!" (Mt 17,3.6). Notemos, aqui, que o importante não é o resplendor de Jesus, mas a ordem divina: ESCUTAI-O!

Como podemos notar, ambas as cenas, em Daniel e em Mateus, tem muito em comum. Podemos, por isso, dizer que a profecia de Daniel se confirma na Transfiguração de Jesus. Por isso, também podemos dizer que tanto em Daniel como em Mateus, o Senhor está nos mandando um recado: o tempo está próximo.

Lá em Daniel os livros que estão para serem abertos, representam a vida de cada um: é o Julgamento. Na Transfiguração o Senhor nos faz o alerta: não se distanciar do projeto divino e para isso é necessário saber que Jesus é o Filho amado e deve ser ouvido! E deve ser ouvido porque ele está prestes a abrir os livros das nossas vidas! O que temos em nosso livro?

Mas por que a cena de mistério? Por que Jesus pede sigilo? Por que não se mostrou a todos? Por que desejou se mostrar por inteiro apenas aos três?

Uma resposta, talvez, pode ser essa que vem das palavras de Pedro (2 Pd 1,16-19).

O ar de mistério, ao redor de Jesus, talvez estivesse ocorrendo porque nem todos os que se faziam batizar; nem todos os primeiros cristãos; nem todos aqueles que ouviam as novidades a respeito de Jesus, o Cristo, estavam aderindo à sua proposta. E não aderiam à sua proposta porque, segundo Pedro os incrédulos estavam imaginando que Jesus fosse apenas mais uma lenda! Mais um mito! Mais um charlatão! Mais um daqueles que tiravam proveito enganando e enriquecendo às custas do povo. Por isso, Pedro diz: “Não foi seguindo fábulas habilmente inventadas que vos demos a conhecer o poder e a vinda de nosso Senhor Jesus Cristo, mas sim, por termos sido testemunhas oculares da sua majestade” (2Pd 1,16).

Se Jesus fosse mais uma das tantas lendas ou um desses charlatães que se aproveitam da fé popular, não teria sentido alimentar a fé. E Jesus não queria ser seguido por causa de milagres. Não queria ser seguido porque podia alimentar multidões. Não queria ser seguido porque era popular entre os pobres. Não queria que o seguissem por suas belas palavras!

Ele queria ser seguido, sim! Mas que esse seguimento ocorresse por adesão a um projeto de vida; adesão a um plano traçado pelo Pai para a toda a eternidade. Jesus queria a adesão a uma proposta que fizesse sentido para cada um dos seus seguidores porque esse seguimento implicava em salvação; implicava em ter o nome inscrito no livro da vida; aquele livro que estava para ser aberto e que representava um divisor de águas: o momento da separação entre os que alimentaram a fé com gestos de bem em defesa da vida; e aqueles que espalham sementes de morte.

Mas os boatos estavam dificultando a adesão a esse projeto de vida. Por isso Pedro afirma: Não está falando em nome de fantasias e de mitos enganosos. Ele falava em nome daquele que, efetivamente passara da morte para a vida. Bem do jeito que Daniel havia dito, com sua “visão noturna”. Pedro insiste dizendo que efetivamente Jesus “recebeu honra e glória da parte de Deus Pai, quando do seio da esplêndida glória se fez ouvir aquela voz que dizia: ‘Este é o meu Filho bem-amado, no qual ponho o meu bem-querer’” (1Pd 1,17).

Temos assim o sentido e o porquê da Transfiguração: Jesus quer mostrar que traz a mensagem salvadora e que não é um mito charlatão. Jesus quer adesão pela fé e não com base em boatos ou milagres que alguns usam para se aproveitar. Jesus traz uma boa notícia: proposta de uma vida plena, mas somente para quem tem o nome no livro!

A Transfiguração de Jesus é um anúncio de como podemos ser, quando seguimos seus passos, escrevendo nosso nome no livro de Deus




Neri de Paula Carneiro

Mestre em educação, filósofo, teólogo, historiador

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sexta-feira, 28 de julho de 2023

Dou-te um coração

(Reis 3,5.7-12; Romanos 8,28-30; Mateus 13,44-52)




Deus faz uma oferta a Salomão (1Rs 3,5.7-12) e, por extensão, também a nós. Ele fez sua escolha. Numa situação semelhante, qual será nosso pedido?

Muitos de nós agiríamos como se estivéssemos diante do “gênio da lâmpada”, na história das “Mil e uma noites”, com três pedido. Como o Senhor Deus é muito melhor e mais benevolente que o gênio, oferece uma oportunidade mais ampla: “pede o que desejas” (1 Rs 3,5). Deus não impõe limites!

Numa oportunidade dessa a maioria de nós pediria: dinheiro, saúde, longevidade, um corpinho sarado. Alguns pediriam poder… e, outros, com certeza, a ruína dos inimigos …

Não foi assim com Salomão. Não pensou primeiro em si. Penou em seu povo. Pensou em sua responsabilidade diante desse povo. Pensou no outro.

Ao dizer: “pede o que desejas”, o Senhor diz: pede TUDO. Nisso está o valor da decisão de Salomão. Se podia pedir tudo, o jovem rei nada pede para si, mas em favor dos outros. E recebe um dom para povo. Seria essa uma lição para nossas lideranças políticas?

Em vez de se vangloriar como jovem rei, reconheceu sua inexperiência: “eu não passo de um jovem, que não sabe comandar” (1 Rs 3,7). Sua postura, confessando a pequenez, mostrou sua grandeza. E essa foi a condição de seu pedido: “Dá, pois, a teu servo um coração que escuta para governar teu povo e para discernir entre o bem e o mal”(1 Rs 3,9). “Discernir entre o bem e o mal!”

O tamanho da oferta do Senhor é a medida do coração de quem faz o pedido! Assim, ao dar o que Salomão pediu, um coração compreensivo, o Senhor lhe concede além do desejo: Concede sabedoria, riqueza e glória: “Vou satisfazer o teu pedido; dou-te um coração sábio e inteligente” (1Rs 3,12). E se continuarmos a leitura veremos o alcance dos dons divinos. “E também o que não pediste, eu te dou: riqueza e glória” (1Rs 3,12).

Qual a explicação para a postura de Salomão e para a resposta de Deus?

A explicação nos vem da carta ao Romanos (8,28-30). Paulo, da mesma forma que Salomão, não queria algo para si. Deu-se, completamente, à comunidade. Em vários momentos, nas várias cartas paulinas, podemos ler a afirmação do apóstolo, dizendo que está completamente a serviço do evangelho e, portanto, da comunidade. Em razão desse ministério sabia, como ninguém, que “tudo contribui para o bem daqueles que amam a Deus, daqueles que são chamados para a salvação” (Rm 8,28): Discernir entre o bem e o mal!

O dom de Deus é sempre infinito, cabe a nós acolhê-lo. Quem o acolhe é porque ama a Deus e manifesta esse amor na doação aos outros. E isso implica amor ao próximo, paz, solidariedade, busca por equidade e combate à desigualdade… partilha!

Assim o fez Salomão, pedindo em favor do povo. Assim o fez Paulo, explicando que “aqueles que Deus contemplou com seu amor” são chamados a “serem conformes à imagem de seu Filho, para que este seja o primogênito numa multidão de irmãos” (Rm 8,29). À multidão Deus “chamou”, “tornou justa” e, principalmente, “glorificou” (Rm 8,30).

A proposta divina do chamado, da justificação e da glorificação é como que o destino ou o objetivo da humanidade. A proposta é para todos, mas não são todos que optam por responder ao chamado. Nem todos assumem a tarefa de se tornar justo e, como consequência, receber a glória dos céus. A glória de participar do Reino dos Céus.

Para não restar duvidas Jesus insiste na explicação e no convite-oferta-chamado para o Reino. Querendo que a multidão opte pelo Reino (Mt 13,44-52), apresenta-o: “um tesouro escondido” (Mt 13,44); “uma pérola valiosa” (Mt 13,46); “uma rede lançada ao mar”. O reino é uma proposta de Jesus. Da mesma forma que a Salomão é feita uma proposta (pode pedir) e da parte de Paulo vem o chamado, da parte de Jesus vem o convite para fazer uma escolha. Sabendo o que é o reino, ou sabendo do seu valor, Jesus convida à opção. E diz o que ocorrerá no final do período das escolhas: “Assim acontecerá no fim dos tempos: os anjos virão para separar os homens maus dos que são justos” (Mt 13,49), como o pescador faz com os peixes. Separa os bons dos impróprios. Guarda os bons e joga fora os que não são bons.

Os maus serão descartados. Os bons, já em vida, farão as obras do Senhor, como “discípulos do reino dos céus” (Mt 13,52) e depois merecerão o Reino que é um valor por si mesmo. Mas para merecê-lo o “discípulo do Reino” tem que estar voltado para o outro. Com o coração no outro. Um coração compreensivo. E, então, fazendo para o outro, ouvirá de Deus: “Dou-te um coração sábio”. Em que consiste a sabedoria? Em fazer para o outro o que manda o coração guiado por Deus… Como anda o coração que recebemos de Deus?




Neri de Paula Carneiro

Mestre em educação, filósofo, teólogo, historiador

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quinta-feira, 20 de julho de 2023

Os justos brilharão

(baseado em: Sabedoria 12,13.16-19; Romanos 8,26-27; Mateus 13,24-43)



A contemplação do Reino. Assim podemos entender a proposta que Deus nos faz, hoje.

E quais os critérios para contemplarmos e entendermos esse Reino, proposto pelo Pai, ensinado por Jesus e para o qual nos dirige o Divino Espírito?

Sabemos que é destinado aos justos, aos simples, aos excluídos e a quem tem “fome e sede de justiça”. Outros critérios podemos buscar em Mateus 13, 24-43. Só lembrando que todo o capítulo 13, do evangelho segundo Mateus, é uma coleção de parábolas (histórias de comparações) com as quais Jesus nos apresenta o Reino e os caminhos para alcançá-lo.

Hoje Jesus nos apresenta o Reino por meio de três comparações: “é como um homem que semeou boa semente” (Mt 13,24); é como “uma semente de mostarda” (Mt 13,31) e na terceira comparação Jesus diz que o “O Reino dos Céus é como o fermento” (Mt 13,33).

Essas três comparações nos dão algumas pistas a respeito do Reino: a primeira pista é a afirmação do Reino: ele “é”. Esse verbo é usado para indicar a existência. Jesus diz que ele “É” porque ele existe; admitamos ou não o Reino é uma realidade. A segunda pista diz respeito a “boa semente”. A boa semente, quando plantada, germina. Isso significa que o Reino, embora existente em si mesmo, ente nós ele precisa germinar, para crescer. E a germinação depende do solo, que somos nós. A terceira pista mostra o dinamismo de crescimento do Reino. Como a semente de mostarda: pequenina, mas em solo fértil cresce e frutifica e dá abrigo. Esse abrigo do reino está disponível a todos. A quarta pista, o fermento, mostra como o Reino pode crescer. Para que isso ocorra, é necessário que a mulher faça a mistura (protagonismo feminino), é o dom da fecundidade, cujo exemplo é Maria

O homem, pode até ser bom semeador, e usar uma boa semente, mas sem a fecundidade feminina não há crescimento. A terra-mãe é fecunda e faz nascer a semente. A semente é boa, e germina. Mas o fermento (que é masculino), pode até ser excelente, mas sem a mistura feita pelo dom fermento, não é eficiente. Não faz crescer. O crescimento do Reino-entre-nós, depende da mistura do fermento na massa. A interação faz o crescimento. O crescimento do Reino não é para indivíduos isolados, mas para a comunidade. É o fermento, misturado pela fecundidade feminina, que faz o Reino crescer na comunidade, semente-do-Reino.

Outra característica, do Reino, encontramos no livro da Sabedoria (12,13.16-19). Destacando, aqui, o fato de que o Reino é o convívio com Deus. Um Deus que fundamenta seu poder na justiça. Notando que a justiça divina não se liga a um principio legal, mas à equidade. Ou seja, cumprir uma lei qualquer, nem sempre é uma ação justa, mas é justo quem domina a “própria força”, quem “julga com clemência”, quem governa “com grande consideração” (Sb 12,18). Assim faz o Senhor, para nos mostrar como agir, pois esse agir leva ao dom da esperança e “o perdão aos pecadores” (Sb 12,19).

Também Paulo (Rm 8,26-27), oferece informações a respeito do Reino. Mesmo sem mencionar o Reino, ao dizer que o "Espírito vem em socorro da nossa fraqueza” e que “é o próprio Espírito que intercede em nosso favor” (Rm 8,26), Paulo está demonstrando que as sementes do Reino se estendem em favor das pessoas, pois é dom do Espírito cuja ação é uma ação do Reino porque “é sempre segundo Deus que o Espírito intercede” (Rm 8,27).

Outra importante característica do Reino é a dimensão trinitária. O Reino é dom do Pai, manifestada pelo Espírito e anunciada pelo Filho. A ação de Jesus de Nazaré, anunciando o Reino, é uma manifestação do Espírito que nos conduz ao Pai. E isso para nos indicar que o Reino de Deus entre nós acontece e se manifesta na vida comunitária. O fermento do reino, é uma mistura comunitária. O reino é uma oferta para todos; é recebido individualmente, mas se manifesta na interação, a exemplo da Trindade Santa.

Por fim, não podemos nos esquecer que diante da proposta do Reino, o ser humano tem que tomar uma decisão: assumir-se como trigo ou como joio.

A opção, a escolha, é de cada um. A proposta de ser trigo é oferecida a todos. Mas alguns preferem ser joio. Ser trigo é aceitar o reino e todas as maravilhas inerentes à presença e convívio com Deus. Ser joio é escolher o afastamento definitivo da convivência com Deus, no Reino que nos foi preparado. Ser trigo é se juntar à comunidade em favor da comunidade. Ser joio é afastar-se comunidade, escolhendo ser queimado no fogo do isolamento (Mt 13,42).

Aqueles que escolhem e acolhem a semente e o fermento do Reino, esses são aqueles que “brilharão como o sol no Reino de seu Pai” (Mt 13, 43)




Neri de Paula Carneiro

Mestre em educação, filósofo, teólogo, historiador

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quinta-feira, 13 de julho de 2023

Sementes de vida

(Baseado em: Isaías 55,10-11; Romanos 8,18-23; Mateus 13,1-23)




As parábolas são lindas comparações, ensinando os caminhos para a vida. Vida nossa de cada dia e a vida na plenitude do convívio com Deus.

Observemos a primeira comparação, feita por Isaías (55,10-11), sobre o poder da palavra de Deus.

A Palavra, como a chuva, vem de Deus. Da mesma forma que a chuva ajuda a semente germinar, a palavra de Deus vem a nós com a finalidade de produzir efeitos. Trata-se de uma palavra poderosa. Ela representa a vontade de Deus. Por isso ela “realizará tudo que for de minha vontade e produzirá os efeitos que pretendi” (Is 55,11).

A palavra de Deus é eficiente, é produtiva, é fecunda, é plena de vida; faz germinar a semente e essa semente produz alimento…. E o alimento produz vida, mantém a vida. O alimento é vida, pois o alimento é dom de Deus. E, na liturgia, o alimento é o próprio Deus que se dá como Eucaristia: Jesus, o Verbo/Palavra de Deus encarnado a nos alimentar.

Paulo (Rm 8,18-23) também lembra o poder da palavra: mostra o sentido da vida e o valor e sentido do sofrimento; ensina que o sofrimento é caminho “da liberdade e da glória dos filhos de Deus” (Rm 8,21).

Alguém poderia dizer: “Se o sofrimento leva à glória eterna, significa que esse Deus maldoso está trocando o sofrimento das pessoas pela sua vida plena”. Não é esse o sentido da dor para Paulo, nem para a Bíblia e nem nos ensinamentos de Jesus. As dores, os sofrimentos, os dissabores da vida, as dificuldades… nada disso é vontade de Deus. Isso decorre das nossas escolhas, é reflexo das limitações da vida, das coisas, da materialidade da criação.

Tanto que Paulo afirma: “toda a criação, até o tempo presente, está gemendo como que em dores de parto. E não somente ela, mas nós também”. E explica o alcance dessas dores: elas existem enquanto estamos “aguardando a adoção filial e a libertação para o nosso corpo” (Rm 8,22-23). Quer dizer: as dores existem porque a criação, embora com o selo da perfeição divina, continua se construindo e, nesse processo, tem limitações. Mas ela está destinada à glória divina, pois se origina do próprio Deus.

Assim sendo, podemos afirmar que Deus não quer nosso sofrimento. Ele quer vida plena. Então, qual o significado das dores neste mundo que chora as dores do parto? A Deus interessa a atitude frente o sofrimento. Ele não se alegra com as dores, mas quer saber como agimos para superá-las. Ele não permite um fardo maior que nossa capacidade de carregar.

Na dor podemos nos comportar de duas formas: aproveitando a dor para crescer; para nos fortalecer; para aprendermos suas lições, que são doloridas, mas salutares. Sendo assim podemos enfrentar as dores de forma positiva: o problema sempre antecede a solução!

Mas também existem as posturas negativas. Maldizendo e reclamando, sem aprender as lições da dor; sem perceber que a semente precisa germinar para que haja planta nova. O germinar da semente é um aniquilamento. Ela tem que morrer para nascer uma nova planta.

Essa é uma das lições da parábola (13,1-23) das sementes: semeadas pelo mesmo semeador, elas caem em solos diversos. A força da palavra, é a mesma. A força da semente é a mesma. O poder do semeador é o mesmo… a diferença está no solo que recebe a semente, a palavra, a proposta de Deus. A diferença está no tipo de vida que vai nascer: para a plenitude ou para a morte!

Portanto Jesus também está falando sobre o valor da vida e da força da palavra que gera vida; dos problemas a serem superados e da postura a ser adotada diante das dores do dia a dia, ou os problemas de nossa existência. Uma postura é pessimista. Ao pessimista Jesus afirma: “Todo aquele que ouve a palavra do Reino e não a compreende, vem o Maligno e rouba o que foi semeado em seu coração” (Mt 13,19). A outra é otimista. Ao otimista Jesus diz: “A semente que caiu em boa terra é aquele que ouve a palavra e a compreende. Esse produz fruto”(Mt 13, 23).

A semente é a palavra, e vem de Deus, como a chuva. Nós somos os terrenos: alguns pedregosos, outros à beira do caminho, outros repletos de espinhos. Mas também existem os terrenos férteis. Estes são produtivos. Nesse terreno a semente vai morrer (sofrendo) e ressurgirá em frutos de vida nova para a vida eterna.

Os terrenos espinhentos, pedregosos ou à beira do caminho, são as dores. Ao perceber o lado edificante da dor, a semente pode germinar e produzir muito fruto. Esse fruto é a nossa resposta e isso só depende de nós. Pode ser difícil e dolorido, mas é possível tirar lições da dor. Para isso tem que lembrar: A semente e nesses terrenos quem semeia é Jesus. A nós cabe dar a resposta. A nós cabe a postura diante da dor: o desespero que aumenta a dor ou o aprendizado que edifica nossa vida. Assim como a chuva, assim como a semente, assim como as dores do parto: tudo é proposta e esperança de vida para a Vida.




Neri de Paula Carneiro

Mestre em educação, filósofo, teólogo, historiador

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quinta-feira, 6 de julho de 2023

Meu jugo e meu fardo

(Baseado em: Zacarias 9,9-10; Romanos 8,9.11-13; Mateus 11,25-30)




Hoje dois personagens chamam nossa atenção: o profeta Zacarias e o apóstolo Paulo.

Zacarias (9,9-10) chama nossa atenção a respeito de uma ação do Senhor: Uma proposta de paz e desarmamento. Paulo (Rom 8,9.11-13), chama nossa atenção para as posturas a serem assumida na vida: Não segundo as propostas mundanas, mas de acordo com o Espírito.

Tanto Zacarias quanto Paulo fazem propostas para mudanças. Elas devem acontecer no comportamento; nas atitude, nas expectativas… Mudança de vida! Mas, para que essas mudanças ocorram é necessária uma outra, esta indicada por Jesus: fazer-se pequenino!

Na proposta de Zacarias nos lembra os governantes da antiguidade. Uma pessoa que mostra seu poder pelas aparências, pelo esplendor e luxo. Apresenta-se com carros e cavalos e exércitos (Zc 9,10). Preocupa-se apenas em fazer cumprir sua vontade, independentemente de isso ser ou não o melhor para seu povo. Aliás, para o monarca, o povo é o que menos importa.

Não é essa a figura do rei, apresentado por Zacarias. Há uma mudança de perspectiva, pois o rei, apresentado pelo profeta, vem ao encontro; ele é justo e salvador; ele é simples, pois “vem montado num jumento” (Zc 9,9) ao contrário do comportamento dos monarcas que se apresentam montados em belos cavalos e esperando os aplausos.

O rei humilde, apresentado pelo profeta, vem, não para a guerra e conquista, mas para a paz entre as nações. Ele quebra o arco (o rei salvador elimina as armas). Carros e cavalos perderão o valor pois seu objetivo é anunciar a paz. E, havendo paz, as fronteiras deixarão de ter sentido. Por isso, o reino desse rei justo, humilde e salvador, será tão abrangente: de mar a mar e atingirá os “confins da terra” (Zc 9,10). Seu domínio é extenso não poque é poderoso e conquistador, mas porque é justo e vem em nome da paz.

Paulo, cobra mudança de atitude: viver, não de acordo com as vontades carnais, “mas segundo o espírito” (Rm 8,9). Podemos dizer que ele é mais exigente que Zacarias. Propõe radicalidade completa, sem meios termos. Trata-se de fazer uma opção definitiva cujo resultado, pode conduzir à vida (Rm 8,13). Mas recusá-la pode levar à morte!

Então, qual a consequência dessa nova postura, dessa mudança de atitude?

Um redirecionamento na vida, para acolher o espírito de vida. São as atitudes, ou a forma de conduzir o dia a dia, que demonstram a presença do Espírito; que evidenciam nossas opções e posturas. Aquilo que está em nosso espírito e manifesta nossa personalidade.

Não se trata de dizer, mas de fazer. A vida cristã exige eliminar o “procedimento carnal” (Rm 8,13), para viver “segundo o espírito”. E isso implica assumir a postura dos “pequeninos”, como ensina Jesus (Mt 11,25-30), e não da ostentação.

Cabe lembrar que somos devedores de uma dívida “não para com a carne, para vivermos segundo a carne” (Rm 8,12), mas com o Espírito de vida que nos “vivificará” (Rm 8,12). O espírito de vida, está presente naqueles que realizam, em suas vidas, os atos do Espírito: amor, solidariedade, altruísmo… posturas de quem não está em busca da ostentação.

O Espírito de vida e força para superar o espírito carnal, confere forças para superar os desafios, as dificuldades, os problemas, as dores… Tudo que se torna um jugo, ou fardo, pesado, é substituídos por Jesus, que oferece: meu “fardo é leve” (Mt 11,30).

A leveza do fardo, ou do jugo, manifesta-se numa vida de simplicidade, de amizade, de superação dos conflitos… no estar à disposição do outro!

Para que isso isso aconteça é necessário que se quebrem, ou se eliminem, as armas e demais instrumentos de violência; que se acabem com os símbolos de poder e os mecanismos de dominação… é necessário aprender com Jesus! “Aprendei de mim, porque sou manso e humilde de coração” (Mt 11,29).

E, para isso acontecer, se faz necessário assumir não a dominação, mas a mansidão, a humildade, que não foram reveladas “aos sábios e entendidos”, aos reis, presidentes e governantes..., mas aos que se fazem pequenos. E estes, justamente por não almejarem a grandeza, são capazes de ampliar os domínios da paz e do amor. O amor não nasce do poder, mas da singeleza, da mansidão, da pureza, da solidariedade, da simplicidade...

É para quem assim procede que Jesus dirige suas palavras: “Tomai sobre vós o meu jugo e aprendei de mim, porque sou manso e humilde de coração, e vós encontrareis descanso. Pois o meu jugo é suave e o meu fardo é leve” (Mt 11,29-30). E quando as pessoas puderem assim proceder, se instalará o reino do amor, cujo “domínio se estenderá de um mar a outro mar, e desde o rio até aos confins da terra” (Zc 9,10).

Neri de Paula Carneiro

Mestre em educação, filósofo, teólogo, historiador

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quinta-feira, 29 de junho de 2023

Pedro e Paulo: As chaves do Reino dos Céus

(Baseado em: Atos dos Apóstolos 12,1-11; II Timóteo 4,6-8.17-18; Mateus 16,13-19)




Festa de São Pedro e São Paulo! Aqui tem algo que vai além dos festejos juninos! É que estes dois personagens, podemos dizer, foram “escolhidos a dedo” por Jesus.

O primeiro, Pedro, a pedra que se tornou fundamental para a Igreja. É o homem da iniciativa. Aquele que sem pensar muito sabia, pois era guiado pela fé, que Jesus era muito mais do que só mestre. Ele era “o Messias, o Filho do Deus vivo" (Mt 16,16).

A mando de Herodes Pedro foi preso. Mas não se desesperou. Sabia que outros irmãos foram torturados e mortos (At 12,2). Sabia que podia ser executado depois da festa, mas tranquilamente, “dormia entre dois soldados, preso com duas correntes” (At 12,6).

A serenidade de Pedro contrasta com a reação de muitos de nós. Em uma situação extrema, muitos de nós entraríamos em desespero. Ele permaneceu sereno. Sabia que em razão da oração da Igreja (At 12,5), o Senhor não o abandonaria. E o anjo libertador veio para colocá-lo em pé: “Levanta-te depressa!” (At. 12, 7), Para o revestir: "Coloca o cinto e calça tuas sandálias!" e para clocá-lo a caminho: "Põe tua capa e vem comigo!"( At 12, 8).

Pedro sabia que o Senhor não o abandonaria, mas também sabia que a liberdade não é um milagre. Sabia que esse processo que depende de sua resposta. Deus o liberta, mas ele tem que caminhar. A superação da dificuldade depende, sim da oração e do apoio do Senhor, mas é resultado da ação humana. Deus não realiza milagre contra a ou independentemente da vontade humana, pelo contrário, Ele vem para responder ao esforço humano.

O outro personagem é Paulo. Aquele que, sem medo de não ser modesto, é capaz de afirmar: “Combati o bom combate, completei a corrida, guardei a fé.” (2Tm 4,7).

Paulo deve ter sido um personagem admirável. Entre outras coisas pela sua dedicação apaixonada a Jesus. A julgar pelo vigor dos seus escritos, deve ter sido um pregador brilhante e incansável; certamente cativava pelos seus discursos.

Podemos, inclusive, dizer que, junto com Pedro, Paulo é cofundador da Igreja. Foi missionário. O ardor missionário de Paulo plantou sementes da Igreja ramificada pelo mundo.

Mas Paulo também passou por dificuldades e, nem por isso perdeu a esperança. Pelo contrário, sabia-se amparado pelo Senhor. Tinha certeza de que em suas dores o Senhor: “esteve a meu lado e me deu forças” (2Tm 4,17).

Paulo, também prisioneiro, sabia que estava em risco: “estou para ser derramado em sacrifício; aproxima-se o momento de minha partida” (2Tm 4,6). Mas, não perde o ardor: continua a obra missionária por meio das cartas. Sabe que a vitória sobre as dores está reservada “não somente a mim, mas também a todos que esperam com amor” (2 Tm 4,8).

A mensagem paulina, portanto, além de ser otimista, é uma demonstração de que, apesar das dificuldades, existe a possibilidade da superação. Ele ensina que a superação das dores não é um dom gratuito. Pelo contrário, depende do engajamento, da ação; depende daquilo que nós realizamos. A superação dos sofrimentos é consequência daquilo que fazemos para superá-lo. E, mais uma vez, a graça de Deus vem como resposta ao nosso esforço. Àquele que se esforça, dedica-se à causa do reino, pode dizer, como Paulo que “Agora está reservada para mim a coroa da justiça” (2 Tm 4,8).

Por que é necessário esse engajamento, por parte do cristão? Para ajudar na instalação do reino de paz e justiça. É a ação do cristão que realiza e faz acontecer as transformações necessárias ao mundo corrompido. A ação do cristão não se resume à oração para que o mundo seja melhor. A ação do cristão supõe, ao lado e como consequência da oração, a ação.

Sem a ação do cristão o mundo continuará sem conhecer Jesus e se não o conhecem, dirão, a respeito de Jesus aquilo que disseram os que com Ele conviveram: "Alguns dizem que é João Batista; outros que é Elias; outros ainda, que é Jeremias ou algum dos profetas" (Mt 16,14). Dirão isso e muito mais, sem realmente conhecê-lo.

Ao cristão cabe esse anúncio. Esse esclarecimento. Se o cristão não o disser e não o demonstrar, o mundo continuará sem saber quem é e como realizar as obras de Jesus. As obras de salvação, as obras de transformação. Isso implica dizer que se o cristão não apresentar Jesus ao mundo, o mundo não o conhecerá.

Essa é a função da chave, “dada” a Pedro (Mt 16,19). A “chave do céu” é entregue a Pedro para conduzir a Igreja: os cristãos que reconhecem em Jesus o Messias. Mas não se trata de conhecer, por saber quem é Ele, mas em agir como Ele ensinou. Se o cristão não faz isso é porque ainda não O conhece, mesmo que frequente a casa de oração ou a comunidade.

O poder a chave é da Igreja, do povo de Deus. O povo de Deus, ao realizar as obras do Senhor, liga a terra e o céu. Por isso a afirmação paulina: “não somente a mim, mas também a todos que esperam com amor” (2 Tm 4,8). Por isso, a pergunta de Jesus, continua sendo dirigida a nós: "E vós, quem dizeis que eu sou?"




Neri de Paula Carneiro

Mestre em educação, filósofo, teólogo, historiador

Outros escritos do autor:


CICLO DA PÁSCOA: A vitória da vida.

Disponível em: https://pensoerepasso.blogspot.com/2024/03/ciclo-da-pascoa-celebrar-vida.html; https://www.recantodasletras.com.br/artigos-de...