sábado, maio 18, 2024

Pentecostes e os dons do Espírito

Atos dos Apóstolos 2,1-11; 1Coríntios 12,3b-7.12-13; João 20,19-23




A celebração do Pentecostes convida-nos a algumas reflexões: sobre o Espírito Santo; sobre os dons do Espírito de Vida e sobre a Trindade Santa.

A respeito do Espírito Santo, temos que levar em conta: Primeiro que o Espírito é uma pessoa da Trindade Santa e não O podemos compreender fora dessa relação. O Espírito é espírito da Trindade e não uma espécie de deus ao lado de Deus, como, por vezes, alguns o tratam. Tentar isolá-lo ou supervalorizá-lo independente da relação com o Pai e o Filho, pode nos levar a uma numa heresia.

Em segundo lugar, os dons do Espírito, embora sejam inúmeros (costumamos elencar apenas sete) resumem-se, como Jesus o demonstrou, em Amar a Deus e amar aos irmãos (Nisso está toda lei e os profetas, ensinou Jesus). Negligenciar isso é negligenciar o próprio Espírito Santo. Por ser amor, por vezes, ao nos referirmos à terceira Pessoa da Trindade o chamamos de Espírito de Amor. Só que esse amor – aliás essa é a característica do amor – não se limita à afirmação: “eu te amo!”. O amor é, não só dinâmico, mas principalmente prestativo, solidário, proativo… Só tem razão de existir na relação com o outro. Caso contrário passa a ser egoísmo.

Em terceiro lugar, e este é um ponto muito controvertido, está o “dom das línguas”. Este também deve ser compreendido na mesma perspectiva: trata-se da linguagem do amor. Essa é universal! Um gesto amoroso é compreendido em qualquer canto do mundo independentemente da língua falada.

Assim, se o princípio maior é o amor; se Deus é amor; se Deus veio a nós porque nos ama, o dom das línguas pode, perfeitamente, ser compreendido como o dom de amor. E o amor se traduz em gestos, em atitudes...

E, evidentemente, não importa se falo usando a língua portuguesa ou alemã; se falo em russo ou francês… o que importa são as atitudes; se meus gestos e minhas atitudes forem amorosas e gerados pelo amor, sempre serei compreendido. Se minhas ações amorosas não forem assim compreendidas, podem estar ocorrendo duas coisas: ou não estou amando suficientemente ou quem recebe meus atos não é de Deus e, por isso, não consegue reconhecer gestos de amor…

Caso as minhas atitudes não estejam pautadas pelo amor, serão atitudes incompreensíveis, pois brotam do egoísmo, da soberba... E se aqueles que olham para meus atos são representantes do anticristo, sempre dirão que agi “com segundas intenções”; caso meus atos conduzam a vida (eu vim para que todos tenham vida em abundância, disse Jesus) podem ser reconhecidos como gestos de amor, que nascem do Deus Trino, iluminados pelo Espirito, como ensinou o Filho. Mas se meus atos, negligenciam a vida, não são amorosos ou, pelo contrário, escarneço a dor alheia, então meus atos nascem não do Deus de amor, mas daquele ser que se opõe a Deus e suas obras e seus obreiros.

Como sabemos, alguns até se apresentam como capazes de balbuciar palavras que ninguém entende, dizendo estar “falando em línguas”. Mas de que adiantam palavras incompreensíveis se as atitudes não transmitirem amor? Pior do que isso, infelizmente em alguns casos, alguns poucos emitem sons incompreensíveis não para comunicar a Deus, mas para falsamente dizer que estão em sintonia com o Espírito. E alguns destes, tentam tirar proveito das pessoas: querendo se sobrepor aos outros, querendo ser reconhecidos pelos demais membros da comunidade; e, o que é pior, querendo extorquir e enganar aqueles que se deixam manipular. Portanto, longe de querer minimizar os dons do Espírito, mas apenas como alerta: se não é uma linguagem compreensível, cuidado! Será que é manifestação divina?

Deus (o Pai, o Filho e o Espírito) é um Deus de puro amor e quer comunicar isso aos seres humanos. E deseja fazer isso para que aprendamos a amar. Portanto não depende de sons incompreensíveis, para se comunicar, pois quando quer usar as pessoas ou nosso processo de comunicação o faz com palavras claras e acessíveis a todos os ouvintes. O melhor e mais claro exemplo disso é a Palavra Santa nas Escrituras Sagradas: desde a narrativa da criação, a história do povo hebreu, os salmos, os profetas… em tudo Deus manifesta-se claramente. E, para ser ainda mais claro, falou-nos por seu Filho, como lemos em Hebreus, 1,1-2: “Muitas vezes e de modos diversos falou Deus, outrora, aos Pais pelos profetas; agora, nestes dias, que são os últimos, falou-nos por meio de seu Filho”.

Notemos que o livro do Gênesis é bastante claro: “Toda a terra tinha uma só linguagem e servia-se das mesmas palavras.” (Gn 11,1). Entretanto o que moveu os ancestrais não foi o amor que “servia-se das mesmas palavras”, mas o gesto oposto ao amor; a vontade de ser grande, famoso; o querer se igual a Deus. Por isso, movidos pela soberba e pelo ser que se opõe a Deus disseram: “façamos para nós uma cidade e uma torre cujo cimo atinja o céu. Assim, ficaremos famosos…” (Gn 11,4).

Exatamente o oposto do que ocorre na efusão do Espírito, narrada em Atos 2,1-11. Aqui o dom de Deus, mesmo num ambiente de medo permite que os ouvintes compreendam claramente a proposta de Deus. Por isso os ouvintes afirmam: “todos nós os escutamos anunciarem as maravilhas de Deus” (At 2,11).

Esse é o ponto de partida para a afirmação de Paulo (1Cor 12,3-13). Numa afirmação trinitária, mostra os dons do Espírito “em vista do bem comum”. Diz o apóstolo: “Ninguém pode dizer: Jesus é o Senhor a não ser no Espírito Santo. Há diversidade de dons, mas um mesmo é o Espírito. Há diversidade de ministérios, mas um mesmo é o Senhor. Há diferentes atividades, mas um mesmo Deus que realiza todas as coisas em todos. A cada um é dada a manifestação do Espírito em vista do bem comum.” (1Cor 12,3-7).

O mesmo podemos dizer em relação a João (20,19-23) quando nos ensina que é a Trindade de Amor que oferece a paz; é a Trindade de Amor que envia em missão; é a Trindade de Amor que oferece o supremo gesto de amor que se manifesta na graça do perdão: “Recebei o Espírito Santo. A quem perdoardes os pecados” (Jo 20,22-23).

O dia de celebrarmos o Pentecostes, celebramos o Espírito do Deus Trindade. Celebramos o amor do Filho que nos amou ao extremo de nos oferecer sua vida e por isso nos deixou seu Espírito de Vida. No dia de Pentecostes, celebramos os dons do Espírito que se manifestam no supremo dom do amor.




Neri de Paula Carneiro

Mestre em Educação, filósofo, teólogo, historiador

Outros escritos do autor:

Filosofia, História, Religião: https://www.webartigos.com/index.php/autores/npcarneiro;

Literatura: https://www.recantodasletras.com.br/autores/neripcarneiro.




quarta-feira, maio 08, 2024

TEMPO COMUM e o Tempo de Deus




Quando falamos em Tempo do Natal ou Tempo da Páscoa, não nos parecem coisas estranhas. Mas Tempo Comum? O que é isso?

Nada mais do que um dos períodos do Tempo Litúrgico que corresponde à forma como a sabedoria da Igreja organiza a celebração da Eucaristia ao longo de um ano.

Mas, atenção! O Tempo Litúrgico ou o Ano Litúrgico não segue o mesmo encadeamento de dias e semanas e meses como estamos acostumados em nosso dia a dia nas relações sociais e comerciais, ao longo do ano civil.

A Liturgia da Igreja Católica organiza o ano ao redor de dois grandes eventos salvíficos formando dois ciclos celebrativos: o Ciclo de Natal (dentro do qual está o tempo do Natal) e o Ciclo Pascal (dentro do qual se insere o tempo da Páscoa). Esses dois ciclos estão interligados por dois períodos de Tempo Comum, formando os três grandes períodos do Ano Litúrgico.

Em cada período litúrgico a Igreja define uma cor litúrgica apropriada. Para o tempo comum, usa-se o verde. Evidentemente, como ao ongo deste ciclo litúrgico ocorrem várias festas e solenidades, para cada uma delas há uma prescrição específica. Isso não muda a orientação básica de celebrar usando a cor verde, como a nos lembrar que devemos manter acesa a esperança de nunca nos desviarmos dos ensinamentos do Mestre.

Em sua sabedoria a Igreja nos mostra que esses três “momentos” litúrgicos convergem para um único motivo: celebrar a memória de Cristo, o Cordeiro imolado que nasceu, viveu entre nós e deu sua vida para resgatar os fiéis em sua Ressurreição.

Devemos notar, entretanto, que não estamos falando de uma comemoração ou celebração nos moldes das festas pelas quais comemoramos nossas alegrias do dia a dia. Aqui estamos falando, sim, de celebrar a vida, mas fazemos isso por mandato divino, ou seja, foi o próprio Senhor Jesus quem realizou primeiro, mostrando como deveria ser feita a celebração da memória: celebrar não só para recordar, mas para reviver e atualizar. Assim nos fala o próprio Senhor, conforme podemos ler nos evangelhos narrados por Marcos, 14,22-25; por Mateus, Mt 26,26-29 e por Lucas, Lc 22,14-20. E antes deles, o Apóstolo Paulo, orienta a comunidade de Corinto, conforme o ensinamento que recebeu do Senhor:

“De fato, eu recebi pessoalmente do Senhor aquilo que transmiti para vocês. Na noite em que foi entregue, o Senhor Jesus tomou o pão e, depois de dar graças, o partiu e disse: “Isto é o meu corpo que é para vocês; façam isto em memória de mim.” Do mesmo modo, após a Ceia, tomou também o cálice, dizendo: “Este cálice é a Nova Aliança no meu sangue; todas as vezes que vocês beberem dele, façam isso em memória de mim.” Portanto, todas as vezes que vocês comem deste pão e bebem deste cálice, estão anunciando a morte do Senhor, até que ele venha.” (1Cor 11,23-26).

Portanto, a celebração da Eucaristia (a missa) não é apenas uma celebração a mais. Ou uma celebração que se repete dodos os dias. O que fazemos, nos diferentes tempos litúrgicos, é a mesma celebração da memória do Senhor. Por meio dessa memória o motivo da celebração não é só um evento ou fato do passado, mas uma realização atual. O ponto de partida aconteceu, sim, num dado momento histórico, mas é um fato histórico que não se esgotou ao se concluir. Ele torna-se atual todos os dias, por todo o sempre: é um anúncio da morte de Jesus, mas, acima de tudo, uma atualização de sua ressurreição que abre o caminho para nosso mergulho no absoluto de Deus, uno e trino.

Por isso, em sua catequese a Igreja nos ensina a celebrar a encarnação do Senhor, no Ciclo do Natal e sua Páscoa no Ciclo Pascal. E, entre esses dois ciclos, a Igreja inseriu fatos do cotidiano da vida de Jesus de Nazaré, os quais são celebrados ao longo do Tempo Comum.

Isso implica dizer que a vida litúrgica vai além do Natal e da Páscoa. A sabedoria da Igreja, além de celebrar atualizando o sacrifício do Cordeiro imolado, nos apresenta, de forma catequética, os diversos momentos do cotidiano de Jesus. Uma catequese pela qual a Igreja mostra os caminhos por onde passaram os passos e a vida de Jesus de Nazaré. Uma catequese que mostra o Deus Menino, crescendo e ensinando os caminhos do Reino. O Reino que nos é apresentado em sua Páscoa de Redenção. E, principalmente, uma catequese que nos convida a seguir os passos de Jesus, assumindo a missão de anunciar o Reino e ensinar o caminho para a Redenção. Uma porta que se abre quando Jesus de Nazaré abre seus braços na cruz.

Fazendo da liturgia uma longa catequese, a sabedoria da Igreja nos mostra que aos períodos posteriores ao Ciclo do Natal e que vem após o Ciclo da Páscoa intercalam-se as duas partes do Tempo Comum. Justamente com esses dois períodos é que a sabedoria da Igreja nos convida a seguir os passos e contemplar o cotidiano da vida de Jesus de Nazaré.

Então, o que é o Tempo Comum? É o período litúrgico que se segue ao Ciclo do Natal. Inicia-se, numa sequência lógica e cronológica, com o Advento, prossegue com o Natal e tempo do Natal. A sequência das celebrações pós natalinas prolongam-se até a celebração da Epifania e o Batismo do Senhor. Depois desse Ciclo de Natal iniciam-se as primeiras semanas ou os primeiros “domingos do Tempo Comum”.

Essa sequência de “domingos do tempo comum” é interrompida com as celebrações do Ciclo da Páscoa: quaresma, semana santa, Páscoa e os domingos do tempo pascal. Ao final desse ciclo, com a celebração de Pentecostes, reinicia-se o Tempo Comum. Período mais longo e que vai até a celebração do Cristo Rei do Universo, normalmente no final de novembro. O domingo seguinte será o primeiro domingo do advento. Ou seja, começamos o ano litúrgico com o Advento, quando nos preparamos para receber o Deus menino, e o concluímos contemplando Jesus, Rei do Universo.

Os dois períodos do Tempo Comum normalmente é formado por 34 semanas. Ao longo dessas semanas, a sabedoria da Igreja nos apresenta os diversos momentos da vida de Jesus. Nesse processo podemos: acompanhá-lo enquanto anda com os seus discípulos, anunciando o Reino; ouvi-lo pregando os valores do Reino aos discípulos e às multidões; aprender quem são os primeiros destinatários do Reino, acompanhando seus gestos de caridade e dedicação para com os mais necessitados; sofrer com ele quando sua proposta de paz, amor e solidariedade é rejeitada, e isso ocorre porque as pessoas não compreenderam as exigências e a radicalidade do Reino. E ao longo de todo esse processo catequético podemos seguir, com Jesus em sua caminhada em direção a Jerusalém, onde celebrará sua Pascoa.

Além disso, ao longo do Ano Litúrgico, e particularmente do Tempo Comum, também somos convidados a nos preparamos para a nova vinda de Cristo, na consumação da história.

Na realidade toda a estrutura da liturgia, ao longo do Ano Litúrgico, está organizada com os olhos voltados para estes dois movimentos e momentos: contemplar o cotidiano e os passos de Jesus, aprendendo com ele a desenvolver em nós os valores do Reino. E, ao mesmo tempo, como continuadores de sua obra, somos convidados a anunciar os valores do Reino, convidar mais pessoas para aderir à sua proposta e, fazendo isso, aguardar sua volta gloriosa. Essa é a dinâmica presente no Tempo Comum.

Na realidade e, como não podia deixar de ser, a caminhada histórica de Jesus de Nazaré teve um começo e um ponto final. Começou com seu Natal Glorioso e terminou com sua Páscoa Redentora. O que a sabedoria da Igreja faz é inserir no contexto litúrgico e ao longo de um ano os constantes convites para que façamos a memória do gesto de Jesus: desde seu nascimento, acompanhando seu cotidiano, seu ensinamento e sua proposta do Reino até coroar-se com a ressurreição, mostrando de como será o destino dos fiéis aos seus passos. E, ao mesmo tempo, essa memória do fato histórico, é uma proposta e anúncio do Reino e do retorno do Senhor, celebrado ao longo do Tempo Litúrgico e em cada celebração eucarística.

A liturgia, portanto, nada mais é do que a apresentação celebrativa dessas duas dimensões: olhar para Jesus de Nazaré e seu cotidiano e, ao mesmo tempo, aguardar seu retorno glorioso. E em ambos a liturgia nos apresenta um só objetivo: seguir os passos de Jesus, realizando o que nos ensinou. E isso desdobra-se em duas atitudes que devemos desenvolver: uma vida de oração, estreitando as relações com o Senhor e, ao mesmo tempo, usando nossa vida, nossos esforços e todos os nossos dons para que o mandamento do amor seja uma realidade; as relações entre as pessoas sejam fraternas; a solidariedade seja o parâmetro da vida. Para que não haja alguns com fortunas incontáveis produzindo milhões de famintos ao redor do mundo… tudo para que, em nosso mundo, sejam verdadeiras as palavrado Mestre: “Eu vim para que todos tenham vida e a tenham em abundância.” (Jo 10,10).

O que ensinou em sua vida humana, nos caminhos da Palestina, torna-se para nós um programa de vida, sintetizado em Mt 25,31-46 e que se expressa em duas frases a respeito de nossas ações. Afirmação da solidariedade: “foi a mim que o fizestes” (Mt 25,40). E negação do ato solidário: “Foi a mim que o deixastes de fazer” (Mt 25,45).

O Ano Litúrgico e especificamente o Tempo Comum, refletem este convite: realizar entre nós o programa de Jesus como quem segue seus passos e como quem espera seu retorno. Mas a proposta é fazer isso, não por medo de Julgamento, e sim por convicção amorosa: amor ao irmão e amor ao Senhor da vida, sabendo que o amor ao Senhor manifesta-se no gesto de amor ao irmão, pois este é o mandamento: amar a Deus e ao irmão (Mt 22,36-39).

A tudo isso nos leva o Tempo Comum: aos ensinamentos de Jesus, apresentados ao longo de sua vida: em suas palavras; em seus gestos; em seu acolhimento ao pecador; em sua postura intransigente de afirmar que o amor é mais importante que a letra da Lei; ao perdoar antes de perguntar “quem é”; em seu abraço carinhoso às crianças, afirmando que delas é o Reino; em sua postura acolhendo a todos, sem discriminação; em seu amor aos pobre e pequeninos… ao ensinar a orar uma oração de partilha, chamando a Deus de Pai. Suas palavras não deixam dúvidas: “toda a Lei e os Profetas dependem destes dois mandamentos” (Mt 22,40).

O Tempo Comum, portanto, é tempo de aprender com Jesus. Aprendizado que nos leva a entender o tempo da Igreja, nosso tempo atual, nosso cotidiano, nossa vida... na perspectiva do Reino: “já” e “ainda não”. O Reino já apresentado, e presente na vida e nos atos amorosos de cada batizado; mas ainda não instalado definitivamente pois os anunciadores do Reino de amor, sofrem com a perseguição dos representantes do antirreino. Já presente, porque a Igreja, e cada um dos fiéis que seguem os passos de Jesus, assumem essa proposta de vida plena e libertadora; mas ainda não porque o Reino só será definitivo com a vitória da vida sobre os sinais de morte, pois “o último inimigo a ser vencido será a morte” (1Cor 15,26).

Além dessa dimensão teológica, é ao longo do Tempo Comum que a Igreja celebra as principais festas do calendário litúrgico: festas dedicadas à Mãe de Jesus; festas dedicadas aos santos e mártires; momentos nos quais celebra pontos fortes da fé eclesial: mês de oração pelas vocações, pelas missões; mês da Bíblia...

Também é ao longo do Tempo Comum que aprendemos um dos principais ensinamentos de Jesus: o seguimento do Senhor se dá em comunidade. Não se concebe vida cristã e eclesial se não for inserida numa comunidade. Quando acompanhamos Jesus, sempre o encontramos ao lado dos discípulos, realizando ações em favor de pessoas: curando e perdoando; enviando os discípulos em grupos para anunciar o Reino... e isso por quê? Porque ninguém constrói o Reino sozinho, mas em comunidade. O Reino não é uma proposta individual, mas para ser vivido em Igreja, procurando seguir os passos de Jesus de Nazaré, o Cristo que nos quer acolher no coração da comunidade que é a Trindade Santa.

Neri de Paula Carneiro.

Mestre em educação, filósofo, teólogo, historiador

Outros escritos do autor:

Filosofia, História, Religião: https://www.webartigos.com/index.php/autores/npcarneiro;

Literatura: https://www.recantodasletras.com.br/autores/neripcarneiro.

quinta-feira, março 21, 2024

CICLO DA PÁSCOA: A vitória da vida.

Disponível em:
https://pensoerepasso.blogspot.com/2024/03/ciclo-da-pascoa-celebrar-vida.html;
https://www.recantodasletras.com.br/artigos-de-religiao-e-teologia/8024813.  


Os ciclos litúrgicos da Igreja têm uma função catequética.
Aliás, essa é a função de toda a Liturgia Católica: ao mesmo tempo que alimenta nossa fé, nos ensina a caminhar nos caminhos do Senhor.
Os ciclos litúrgicos (Ciclo do Natal e Ciclo da Páscoa) pretendem nos ajudar a entender os mistérios da vida, morte e ressurreição de Jesus, ao mesmo tempo que nos convidam a contemplar as ações da Trindade Santa. Eles nos oferecem condições e requisitos para seguirmos os passos de Jesus de Nazaré, sua opção em favor dos marginalizados, ao mesmo tempo que nos conduzem pelos altos e baixos, vitórias e tropeços do povo escolhido para trazer benção para a humanidade (Gn 12,3; 22,18).
Os ciclos litúrgicos, são antecipação e proposta do Pai, ensinada pelo Filho, sob a orientação do Santo Espírito (Jo 14,26). Aprendendo com a Trindade, a Igreja nos ensina, com a Liturgia: a seguir Jesus e compreender seu ensinamento; a conhecer a proposta libertadora do Mestre e entender as implicações do pecado social e pessoal.
Os ciclos litúrgicos, podem despertar em nós uma paixão vital pela proposta daquele Reino anunciado por Jesus: reino de paz, amor, justiça e solidariedade para com os que sofrem. E isso pode acontecer quando estamos abertos à graça divina que atua em nós e quando agimos em favor e defesa dos pequeninos do Reino.

Mas a liturgia vai além da função catequética.
Além da função catequética, e justamente por esse motivo, os ciclos litúrgicos nos convidam a compreender cada período celebrativo como caminho para melhor enxergar o Cristo que almeja ver a todos como “um só rebanho” (Jo 10,16), conforme as palavras dos bispos na Constituição Conciliar Sacrosanctum Concilium (SC). Assim sendo os ciclos litúrgicos nos convidam a celebrar a totalidade do mistério da salvação, realizado por Jesus, o Cristo.
O primeiro convite é para compreender o Ciclo do Natal. Aqui está o ponto de partida para o grande mistério da fé cristã.
No Ciclo do Natal a Igreja quer nos ensinar que Deus vem a nós. Independentemente de nossos méritos ou de nossa condição de pecadores, Deus vem a nós; independentemente de vivermos numa sociedade corroída e corrompida e na qual o valor das coisas se impõem sobre o valor das pessoas, Deus vem a nós.
E por que Ele vem? Para ensinar o caminho do amor. Afinal, Ele é Deus Conosco, o Emanuel (Mt 1,23).  Portanto o Ciclo do Natal corresponde ao gesto divino de vir em socorro da humanidade, como veio socorrer os que clamavam no Egito (Ex 3,7-10).

Entretanto, o Ciclo do Natal pede continuidade. O que ocorre depois do nascimento? A resposta vai além dos dois períodos de Tempo Comum, no qual celebramos o cotidiano de Jesus de Nazaré.
O segundo convite é para nos lembrar que a continuidade do Ciclo do Natal se concretiza e tem sem complemento no Ciclo da Páscoa. Este, da mesma forma que no Ciclo do Natal, tem um período de preparação:  o Tempo da Quaresma; um período central: a Semana Santa e a celebração da ressurreição ou seja a belíssima celebração da Vigília Pascal; e um período posterior: o Tempo Pascal.

Mas nem sempre foi assim.
Os primeiros cristãos celebravam a Páscoa em cada domingo. Era a celebração da ressurreição do Senhor. Quase cem anos depois foi introduzido o costume de celebrar anualmente o dia da Ressurreição, a Páscoa com ênfase na Vigília Pascal.
Por volta do século IV começou-se a fazer quarenta dias de preparação para a Páscoa. Assim foi introduzida a Quaresma: quarenta dias de preparação penitencial para toda a comunidade e especialmente para os catecúmenos receberem o batismo na celebração da Vigília Pascal.
Com o transcorrer dos séculos a fé popular levou a Igreja a entender que outros momentos da vida de Jesus eram importantes momentos litúrgicos: a entrada de Jesus em Jerusalém virou Domingo de Ramos; depois foi introduzido o tríduo da Paixão: a morte do Senhor na sexta feira, o sepultamento no sábado e a solenidade da ressurreição, no domingo. Também ocorreu que a celebração da última refeição ganhou os contornos de serviço ao outro na simbologia do lava-pés. E, em tudo isso, a Eucaristia sempre foi o ponto central.
Além disso, a cerimônia do despojamento do altar é associada ao Cristo desnudo que entregou sua vida pela salvação e a serviço aos necessitados. É o ato de Jesus entregando sua vida como sacrifício de resgate. Ele entregou suas vestes para afirmar que não havia se apegado a nada deste mundo, pois tudo estava oferecendo pela vida do seu rebanho (Jo 10,14-18).
O fato é que, ao longo dos séculos, multiplicaram-se celebrações vinculadas e ao redor da Páscoa. Valorizaram-se diferentes aspectos e momentos da vida de Jesus e, ao mesmo tempo, isso fez com que se dissolvesse a importância e centralidade do Mistério Pascal.

Visando restaurar a força e centralidade Pascal ,na primeira metade do Século XX ganhou força o movimento de renovação litúrgica. Esses novos ventos, soprados pelo Espírito, guiou os padres conciliares a ouvir a voz dos mosteiros que buscavam inspiração nos ensinamentos patrísticos. A renovação da Liturgia e da Igreja, portanto, mais do que renovar é uma volta às origens. Renovar, no espirito do Concílio Vaticano II, é beber na fonte dos Pais da Igreja.
Graças a esse movimento de renovação – ou de retorno às origens – os bispos conciliares, recolocaram a centralidade do Mistério Pascal na vida da Igreja e da Liturgia. O Concílio, portanto, veio nos recordar que é na liturgia que se atualiza o mistério da fé e se perpetua o anúncio da paixão, morte e ressurreição de Jesus.
Então, como entender a Quaresma? Como tempo de preparação que nos leva ao centro do Ciclo Pascal e ao Tríduo: Sexta feira Santa, Sábado Santo e a celebração da Ressurreição.

A Sexta Feira Santa, ajuda-nos a rememorar todos os acontecimentos pelos quais as autoridades religiosas dos judeus conduziram a prisão, forçam o julgamento e a condenação de Jesus, culminando com sua execução na Cruz.
Com a celebração da Paixão, a Igreja nos mostra como, do ponto de vista humano, os adversários de Jesus manipularam o povo para condenar o Senhor. Mas, ao mesmo tempo, mostra que, de fato, Jesus continua sendo o Senhor da história; que Jesus cumpre o plano do Pai; que Ele sofre tudo que o corpo humano pode sofrer e suporta tudo porque quer atrair todos a si (Jo 12,32); que mesmo no sofrimento e na dor da cruz, Jesus não abandona o Pai nem abre mão de seu rebanho, como também não abandonado pelo Pai (Jo 12,28).
E, principalmente, mostra que Jesus não foi preso, mas deixou-se aprisionar; não foi condenado, mas deixou-se condenar; não foi executado, mas morreu em seu corpo humano, para mostrar seu corpo divino e indicar o destino reservado às pessoas que o seguem. Mostra que em tudo está cumprindo os desígnios do Pai (Mt 26,39).

O Sábado Santo, corresponde ao sepultamento do corpo humano do Filho de Deus. Ao longo do dia permanece o clima de compenetração pela morte do Senhor. Nesse dia não há celebração eucarística, mas podem se realizar atos de oração e adoração. É como se este dia fosse um prolongamento da reflexão, da consternação e da dor pela morte do Senhor. O Sábado Santo é o dia do silêncio.
A fé popular chama esse dia de Sábado de Aleluia. Não por negar o clima de recolhimento, mas para afirmar que a vida vence a morte. É no final desse dia é que ocorre a grande celebração da Vigília Pascal ou seja, o Sábado Santo se encerra com a Celebração da vida.
Mesmo sendo destinado ao silêncio e oração o Sábado Santo é um dia de esperança. A fé cristã não se fixa na morte, mas na ressurreição. E o Sábado Santo culmina com a celebração da Vigília e para ela converge toda a liturgia da Igreja. É aqui que se manifesta o sentido de toda a vida e ações de Jesus de Nazaré, daí a indagação de Paulo, afirmando a vitória da vida: “Morte, onde está tua vitória?” (1Cor, 15,55).

É assim que podemos dizer: A celebração da Vigília Pascal completa o sentido da celebração do Natal: o Filho de Deus nasceu para iluminar nossa vida, caminhou entre os homens como ser humano e concluiu sua trajetória humana para voltar ao Pai indicando a todos o sentido da vida e o caminho para a eternidade..
Na Vigília a antiga Páscoa é reinterpretada: o povo que caminhou no deserto estava prefigurando o novo povo de Deus. Os cristãos são resgatados não mais pelo sangue dos bodes aspergido nas portas, mas pelo Sangue Santo do Cordeiro de Deus vertido sob os açoites, das chagas da cabeça coroada de espinhos, dos pés e mãos pregados na cruz e, principalmente, pelo sangue com água jorrando do coração perfurado pela lança.
Mas tudo isso ganha um sentido novo, como o próprio Jesus afirma, ao questionar os caminhantes desolados: “Não era preciso que o Cristo sofresse tudo isso e entrasse em sua glória?” (Lc 24,26). Era preciso que isso se cumprisse para que se cumprisse, também, a promessa da vida eterna, que se realiza na eterna vida do Ressuscitado.

E assim a Igreja celebra a nova Páscoa.
Tão grande e importante evento, não cabe num dia só. Por isso seguem-se mais cinquenta dias de Tempo Pascal. Ou seja, por mais cinco semanas a Igreja celebra os “domingos da Páscoa”, até o dia da Ascensão do Senhor. O Tempo Pascal termina com a celebração do Pentecostes.
No Tempo Pascal a Igreja celebra as diversas aparições do Senhor Ressuscitado. Ao longo desses cinquenta dias Jesus evidencia sua ressurreição, anuncia seu retorno ao Pai, assegura que não abandonará sua Igreja pois continuará lado a lado com os seus até o fim dos tempos (Mt 28,18-20). Anuncia a assistência do Espírito de Sabedoria e intensifica a preparação do tempo da Igreja que se inaugura com o Pentecostes (At 2,1-4).
Esses cinquenta dias de celebração da Páscoa, o Tempo Pascal, é como que um retorno ao costume da Igreja nascente. Ali, depois do batismo efetivado na celebração da Vigília, os catecúmenos recebiam uma catequese “mistagógica”. Ou seja, eram instruídos nos mistérios da fé, aprofundando o sentido do dom que receberam.
Nos dias atuais, o Tempo Pascal nos convida a olhar para o Ressuscitado, reconhecer nele o mesmo Jesus de Nazaré que andou distribuindo amor. Mais do que isso: a Igreja nos convida a sermos imitadores de Jesus, efetivamente dedicando tempo à oração, mas também e principalmente fazendo da vida serviço aos mais necessitados, oferecendo alento como fez o Mestre no caminho de Emaús (Lc 24,13-36).



Páscoa 1

Viu e acreditou

(Reflexões baseadas em: At 10,34a. 37-43; Cl 3,1-4; Jo 20,1-9)
Disponível em: https://pensoerepasso.blogspot.com/2021/04/pascoa-viu-e-acreditou.html

Será que nós já nos demos conta do que aconteceu nestes dias? Será que, realmente, compreendemos o que ocorreu não só nas celebrações da Semana Santa, mas com aqueles que viveram os eventos que deram origem às nossas celebrações?
A indagação tem sentido, porque uma coisa é celebrarmos a Paixão de Cristo, sua ressurreição, sua Páscoa. Outra coisa é entendermos e assumirmos em nossa vida aqueles acontecimentos, para que eles alimentem nossa fé.
Ocorre que nem sempre celebramos com base na fé. Aliás, creio que podemos dizer que na maioria dos casos, as pessoas “vão na onda”… fazem por que esse é o costume…
Você sabe que isto é verdade: As celebrações da Semana Santa passam pela vida de muitos, mas nem todos celebram a Semana Santa. Você sabe, assim como eu, que as celebrações podem ocorrer porque aprendemos com nossos pais; porque é tradição; porque “todo mundo faz”...  Elas podem representar uma conveniência e convenção social… afinal de contas não fica bem um comportamento diferente do que todo mundo faz… Já pensou uma Páscoa sem comprar e dar presentes? Sem aquelas mensagens de felicitações que compartilhamos, às vezes sem entender direito? Já pensou numa Páscoa sem os coelhinhos e os chocolates?… Já se deu conta de que isso, por vezes ou na maioria das vezes, tem mais a ver com os apelos comerciais do que com celebração da vida que brota da terra na forma de Jesus, o Cristo de Deus mostrando o caminho da ressurreição pascal?
Entretanto, apesar de tudo isso, a celebração da Semana Santa e da Pascoa tem sentido de ser porque nos apresenta um convite para a eternidade.
Sabemos desse convite e o recebemos, porque alimentamos uma fé que nasce das escrituras. No livro dos Atos dos Apóstolos, temos uma prova disso (At 10,34a. 37-43). Pedro comenta o fato e sua origem: “aconteceu em toda a Judeia, a começar pela Galileia” (At 10,37). E o que foi que lá aconteceu? A manifestação da graça divina, na pessoa de Jesus de Nazaré. Ele que foi “ungido por Deus com o Espírito Santo e com poder. Ele andou por toda a parte, fazendo o bem e curando a todos” (At 10,38). E, por ter feito o bem, foi assassinado, pregado na cruz (At 10,39).
Entretanto, essa foi só a face humana e histórica daquilo que fundamenta nossa fé. Isso representa um fato que, por si mesmo, dispensa a fé, pois pode ser comprovado. A sequência dos fatos, isso sim é elemento de fé. Isso realmente representa algo grandioso. Isso merece ser celebrado, pois indica a grandiosidade da proposta que Deus mantém. O que vem depois da cruz é o verdadeiro sentido da fé, pois depois da morte na cruz, Jesus não permaneceu na morte. Depois da cruz “Deus o ressuscitou no terceiro dia, concedendo-lhe manifestar-se” (At 10,40). A ressurreição e suas manifestações, isso sim é objeto de fé. Em quem? No Senhor que realizou essas coisas, nos indicando o que nos espera; e fé no testemunho daqueles que vivenciaram os fatos.
Nossa fé tem por base a certeza do que nos afirmaram aqueles que receberam a missão de divulgar o que Deus fez. E a missão foi confiada pelo próprio Jesus, o Cristo ressuscitado, como nos informa Pedro: “E Jesus nos mandou pregar ao povo e testemunhar que Deus o constituiu juiz dos vivos e dos mortos.” (At 10,42).
A ressurreição de Jesus tem muito mais a nos dizer. E a nos mostrar: o caminho para a eternidade. O caminho foi aberto pela ressurreição de Cristo, mas trilhá-lo depende de nós, dos nossos comportamentos e atitudes. E Paulo, na carta aos colossenses (Cl 3,1-4), insiste nesse ponto. A vida eterna nos é oferecida e está à nossa disposição. Entretanto, precisamos desejá-la e lutar por ela. “Esforçai-vos por alcançar as coisas do alto”, diz Paulo. E insiste: “aspirai às coisas celestes e não às coisas terrestres.” (Cl 3,1-2). É como se o apóstolo dissesse: “de que adianta existir água fresquinha na geladeira, se eu não me dirijo a ela para matar minha sede?”
Para isso acontecer temos que nos espelhar na Páscoa de Jesus. Sua Páscoa não foi somente a passagem, da morte para a vida, mas foi, também sua passagem pela história dos homens. Ele passou pela vida, como qualquer um de nós e, por isso e pelo que realizou nessa passagem – sua Páscoa entre nós – pode viver a Páscoa definitiva, passando da morte para a vida. Quando chegar nossa vez, caso tenhamos trilhados os passos do mestre, passaremos a viver com Ele “revestidos de glória” (Cl 3,4) para sempre.
Nisso reside o sentido da celebração e o motivo de celebrarmos a Páscoa com Jesus: em nossa vida refazermos os passos do Senhor, com a fé de que também trilharemos seus passos na direção da morada definitiva.
É claro que podemos continuar dando e recebendo presentes; comprando e dando chocolate; distribuindo coelhinhos e mensagens otimistas e belas… mas temos que entender: tudo isso tem a ver com o comércio, com convenções sociais… mas só isso não é celebração de Páscoa. É só comércio. A Páscoa tem a ver com reconstrução da vida nos moldes do que fez e ensinou Jesus!
A Páscoa, de Jesus e a nossa com o Cristo ressuscitado, exige o compromisso da fé, conforme a proposta que podemos ler em João 20,1-9. Não basta apenas sermos anunciadores com a angústia da incerteza da Madalena (Jo 20, 1-2): “Tiraram o Senhor do túmulo, e não sabemos onde o puseram”. É necessária, também a postura do discípulo amado que, ao ver a cena, compreende e acredita: “Ele viu, e acreditou. De fato, eles ainda não tinham compreendido a Escritura, segundo a qual ele devia ressuscitar dos mortos” (Jo 20, 8-9) abrindo caminhos para a vida…



Páscoa 2:

Um só coração

(Reflexões baseadas em:  4,32-35; 1Jo 5,1-6; Jo 20,19-31)
Disponível em: https://pensoerepasso.blogspot.com/2021/04/pascoa-2-um-so-coracao.html

Acabamos de celebrar a Páscoa. Por esse motivo a liturgia nos convida a continuar nesse mesmo clima de alegria e compromisso.
Mas esse convite da liturgia, também nos lança um desafio para nossa fé. E trata-se de um desafio porque não se baseia no que dizemos, mas no que fazemos. Não se expressa em palavras, mas em atitudes...afinal, viver em  “um só coração e uma só alma”, não é fácil!
Os Atos dos Apóstolos (4,32-35) nos colocam diante de um desafio para a fé numa experiência comunitária. Aqui nos é apresentado um modelo de comunidade ideal na qual “ninguém passava necessidade” (At 4,34). A base dessa comunidade comunista eram os apóstolos que “davam testemunho da ressurreição do Senhor Jesus” (At 4,33). Um testemunho que tem a solidariedade como pressuposto.
Na primeira carta de são João (5,1-6) o desafio consiste em nos identificarmos com Jesus, o vencedor do mundo, vencedor da morte, promotor da vida e aquele que concede todas as vitórias, uma vez que todas as vitórias tem a fé, como ponto de partida. Nas palavras do apóstolo: “Esta é a vitória que venceu o mundo: a nossa fé” (1Jo 5,4). Vencer na vida não é impossível, desde que a vida e a vitória tenham a fé como fundamento. “Quem é o vencedor do mundo, senão aquele que crê que Jesus é o Filho de Deus?” (1 Jo 5,5).
O evangelho, João (20,19-31) nos apresenta a radicalidade do desafio da fé. A fé de quem viu o ressuscitado é uma proposta para acreditar sem ver. É o próprio Senhor que exige essa radicalidade: “Jesus lhe disse: 'Acreditaste, porque me viste? Bem-aventurados os que creram sem terem visto!'” (Jo 20,29).
E aqui está o desafio: nada mais do que o próprio ato de fé.
A maioria de nós está acostumada e aceitamos aquilo que pode ser facilmente comprovado. Vivemos numa sociedade em que a demonstração, a prova, a evidência...são exigidos como critério de relacionamento. Raramente alguém acredita no que o outro afirma, só porque essa pessoa afirmou. Mesmo que ela seja merecedora de credibilidade permanece o “será?”. Uma das expressões que já esteve na boca da maioria de nós: “sou igual São Tomé: só acredito vendo...”. Essa é uma das frases mais impróprias para quem se confessa cristão.
É verdade que estamos inseridos numa sociedade de aparências, num mundo de falsidades e envolvidos em relações parciais, tendenciosas… por tudo isso é quase natural que não acreditemos. E, aqui está a questão: se não damos crédito ao que nos dizem aqueles com os quais convivemos, como podemos dar crédito a personagens como Jesus e seus apóstolos? E o que é pior, corremos o risco de estarmos frequentando alguma comunidade não porque acreditamos, mas porque assim aprendemos com nossos pais, com os mais velhos; essa participação pode tratar-se de uma ação cultural e não de um ato de fé!
Neste ponto, alguém pode estar se perguntando e perguntando também a mim: mas então, em que consiste a fé, como podemos caracterizar a crença?
Não sou eu que respondo, mas a própria Palavra Santa: a fé é expressão de uma vida e se manifesta como gesto doador de vida. Não é possível alguém dizer que tem fé se ela não se traduz nem se manifesta em gestos concretos. A fé que dizemos ter, precisa ser confrontada com a postura da sociedade ideal, dos Atos. Tem que estar adequada à vida plena manifestada pela Palavra Santa, que foi escrita para gerar fé e vida. “Estes foram escritos para que acrediteis que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus, e para que, crendo, tenhais a vida em seu nome.” (Jo 20,31).
A proposta da comunidade apresentada aos primeiros cristãos e uma exigência feita também a nós: construir uma sociedade na qual tudo seja “distribuído conforme a necessidade de cada um” (At 4,35). Uma afirmação que tem por fundamento ou que se manifesta numa outra: tudo que sobra das minhas necessidades é o que está faltando àqueles que sentem necessidades…; tudo que está em meu poder e que ultrapassa minhas necessidades, não me pertence, mas pertence àqueles que necessitam…
É aqui o ponto em que se comprova a fé: na capacidade de partilhar! Dizia um sábio bispo: “A fé entra pelos ouvidos, chega ao coração. Se atravessar o bolso, é uma fé garantida e manifesta-se numa pessoa desapegada”. E não se trata de nenhum rótulo sócio-político. Trata-se de palavra de Deus. Trata-se de um modelo de sociedade em que a base das relações é ser capaz de ajudar a eliminar a necessidade do outro.
Como se pode ver, a radicalidade da fé é exigente e tem consequências. Ela é revolucionária. Quem, efetivamente, foi tocado por ela, será mais um dos poucos a ajudar na construção da sociedade da paz, pois a estes, constantemente Jesus oferece: “A paz esteja convosco” (Jo 20,19). Entretanto, no mundo da paz não pode haver necessitados. A ausência da paz é evidenciada pela presença de pessoas necessitadas. Enquanto existirem pessoas necessitadas não haverá paz.
Aqui está, portanto, o grande desafio: construir uma sociedade, uma comunidade em que a norma de vida seja “um só coração e uma só alma!”



Páscoa 3:

Sereis minhas testemunhas

(Reflexões baseadas em: At 3,13-15.17-19; 1Jo 2,1-5a; Lc 24,35-48)
Disponível em: https://pensoerepasso.blogspot.com/2021/04/sereis-minhas-testemunhas.html

O dia da Páscoa já passou. Mas o ambiente pascal permanece neste terceiro domingo do Tempo da Páscoa. Já se passaram vários dias. Já voltou a normalidade para a maioria das coisas. Já começam a cicatrizar as feridas da dor, da perda, da ausência. Já começa a aparecer a cicatriz...
Mesmo tendo ouvido algumas mulheres anunciando que o corpo não estava no túmulo, a incredulidade permanecia. Mesmo tendo ouvido o mestre por sucessivos dias e o acompanhado por diversos locais, a dificuldade em entender permanecia. Mesmo tendo visto as maravilhas que o Senhor havia realizado… a fé ainda não havia se manifestado!
E, junto com tudo isso… o medo ainda permanecia… Eles o mataram… aqueles que assassinaram o Senhor podem nos perseguir… será que nos matarão também?
Inquietos estavam os corações! Mas oravam! Tranquilidade e paz era o que, realmente, não sentiam! Mas estavam unidos! Queriam ter coragem com as mulheres tiveram! Mas o medo era maior!
E, afinal, quem não ficaria com medo? Quem não pensaria em se esconder e trancar as portas? (Lc 24,35-48) Quem não ficaria receoso de acreditar e não colocaria em dúvida, quando dois companheiros narrassem uma história meio estranha de ter visto o Senhor e ter com ele compartilhado o pão?…
Então dá pra imaginar o susto. Dá pra imaginar o medo. Dá pra imaginar, também, a alegria e a inquietação quando, o Senhor se faz presente saudando: “A paz esteja com vocês!” (Lc 24,36).
A paz era o que mais queriam, mas não seria um fantasma? (Lc 24,37)
Entretanto, aquela voz! Aquelas mãos! Aqueles pés! A voz transmitia a mesma paz! Nas mãos e os pés os mesmos sinais da violência na cruz (Lc 24,39). Mas Ele havia morrido. Eles o haviam visto morrer na cruz! Então como estava ali entre eles? Eles queriam acreditar. Queriam entender. Queriam se alegrar… mas a dúvida e o medo permaneciam…
Foi aí que Ele disse: “São estas as coisas que vos falei quando ainda estava convosco: era preciso que se cumprisse tudo o que está escrito sobre mim na lei de Moisés, nos Profetas e nos Salmos” (Lc 24,44). Não somente falou, mas também: “Abriu a inteligência dos discípulos para entenderem as Escrituras” (Lc 24,45).
Agora sim! Agora ficou tudo claro! Agora a coragem se instalou! Agora o medo cedeu e ganhou força a vontade e a necessidade de anunciar!
E foi o que eles fizeram. Abriram as portas e Pedro falou ao povo: “O Deus de Abraão, de Isaac, de Jacó, o Deus de nossos antepassados glorificou o seu servo Jesus” (At 3,13). E João confirma “Ele é a vítima de expiação pelos nossos pecados, e não só pelos nossos, mas também pelos pecados do mundo inteiro” (1Jo 2,2)
Pedro acusa os acusadores de Jesus. Mostra o que fizeram: Entregaram-no, rejeitaram-no, pediram a morte de santo e a libertação do assassino (At 3,13-14). Mesmo demonstrando o tropeço do povo, Pedro acena para a bondade de Deus demonstrando que esse povo foi manipulado para rejeitar o caminho da paz: “eu sei que vós agistes por ignorância” (At 3,17). E se agiram por ignorância, incitados por outros, são convidados ao arrependimento. Entretanto, aqueles, inclusive em nossos dias, que atentam contra a vida da sociedade, têm o mesmo pecado daqueles que o crucificaram.
Aqueles que o crucificaram continuam agindo, hoje, como agiram lá. Os tempos são outros, mas os gritos mentirosos são os mesmos. Os que continuam assassinando o Senhor são aqueles que, investidos de poder, político ou religioso, poderiam se concentrar em salvar vidas, preservar a saúde… mas permanecem numa disputa mesquinha e em mútuas acusações de irresponsabilidade, quando a irresponsabilidade consiste em ter o poder de melhorar a vida das pessoas e não o fazer. Desde o mais alto posto, politico ou religioso, até as bases nas pequenas comunidades, todos aqueles que não ajudam a defender a vida fazem parte do grupo que continua crucificando Jesus.
Pedro apresenta a proposta salvadora: “Arrependei-vos, portanto, e convertei-vos, para que vossos pecados sejam perdoados” (At 3,19).
E João explica as exigências da fé: “Quem diz: ‘Eu conheço a Deus’, mas não guarda os seus mandamentos, é mentiroso, e a verdade não está nele” (1 Jo 2,4). A condenação da difusão de notícias mentirosas valia naquele mundo em que nascia a Igreja e ainda vale nos dias atuais.
Os apóstolos, assumiram o mandato. Entenderam que Jesus Ressuscitado os orientou e os enviou, dizendo: “Assim está escrito: ‘O Cristo sofrerá e ressuscitará dos mortos ao terceiro dia e, no seu nome, serão anunciados a conversão e o perdão dos pecados a todas as nações, começando por Jerusalém’. Vós sereis testemunhas de tudo isso” (Lc. 24,46-48). Efetivamente os apóstolos entenderam a mensagem e se puseram a anunciar.  Pedro confirma: “e disso nós somos testemunhas”. (At 3,16).
Como a missão ainda está em aberto, cabe a nós a continuação. A nós também é feita a proposta:  “Vós sereis testemunhas de tudo isso”. Testemunho com base na fé. O tamanho da fé é o tamanho do testemunho.



Páscoa 4:

O Bom Pastor e os filhos de Deus

(Reflexões a partir de: At 4,8-12; 1Jo 3,1-2; Jo 10,11-18)
Disponível em: https://pensoerepasso.blogspot.com/2021/04/pascoa-4-o-bom-pastor-e-os-filhos-de.html

O sentimento de um Pai em relação aos filhos quase sempre é mais facilmente perceptível do que dos filhos em relação ao Pai. Em diferentes oportunidades os filhos questionam e, por vezes, se rebelam em relação a orientações dos pais. Os pais, quase sempre, amam aos filhos de forma paciente procurando entender os motivos dos comportamentos dos filhos. Cabe aos pais, a missão de, além de gerar, também orientar a vida dos filhos. E, de fato, na maioria das vezes a relação pai-filho ocorre de forma amorosa e harmoniosa.
Essa é uma afirmação verdadeira em nossas relações cotidianas e muito mais verdadeira na relação com o Pai celeste. Na liturgia deste quarto domingo da Páscoa a Igreja nos mostra isso de forma muito transparente e nos convida a refletir sobre as atitudes condizentes à vida do cristão.
Na primeira leitura (At 4,8-12) em resposta aos questionamentos que lhes são feitos por terem feito o bem, Pedro explica o porquê de estarem curando o enfermo. Quase que completando a explicação de Pedro, na segunda leitura (1Jo 3,1-2) João afirma nossa filiação divina e as consequências disso. E, no trecho do Evangelho (Jo 10,11-18), Jesus apresenta-se como o Bom Pastor, levando-nos à conclusão de que ao cristão não resta alternativa: o amor do Pai por nós é tão intenso que nossa única opção é procurar fazer o que o Pai nos orienta, mediante a ação do Filho.
Sendo assim, da mesma forma que Pedro, deveríamos poder dizer, em todas as nossas atitudes e em relação a cada um dos nossos atos: isso que estamos realizando “é pelo nome de Jesus Cristo, de Nazaré” (At 4,10). Esse deveria ser nosso comportamento, mas eu nem me atrevo a indagar aos cristãos: tudo que estamos fazemos tem sido realizado em nome de nosso Senhor?
Sei que se perguntasse, muitos de nós, se fossemos dizer a verdade, não poderíamos afirmar que sim. Mas, já que a indagação nos deixaria embaraçados, vamos permitir que a pergunta permaneça em nossa consciência. Como naquela orientação dos moralistas: aquilo que não posso fazer diante das pessoas, também não me é licito fazer sozinho e tudo que posso fazer sozinho não preciso ter receio de dizer ou realizar diante das pessoas.
Noutras palavras: por adoção divina e pelos méritos do sangue de Jesus, recebemos uma dádiva que dos dá o direito “de sermos chamados filhos de Deus! E nós o somos!” (1 Jo 3,1). Isso significa que, sendo filhos de Deus, cabe a nós trilharmos os caminhos do Pai e realizarmos as obras de Jesus. Por que? Porque somos filhos daqueles que nos indica o melhor caminho: “Caríssimos, desde já somos filhos de Deus, mas nem sequer se manifestou o que seremos! Sabemos que, quando Jesus se manifestar, seremos semelhantes a ele, porque o veremos tal como ele é” (1 Jo 3,2).
Deus nos oferece a graça de o contemplarmos, mas cabe a nós optarmos pelo encontro. E a trilha segura para esse encontro é realizarmos as obras que Ele nos ensinou a fazer. Desenvolver nossas atividades “pelo nome de Jesus Cristo, de Nazaré” é optar por aquele que foi rejeitado. “Jesus é a pedra, que vós, os construtores, desprezastes, e que se tornou a pedra angular” (At 4,11).
Talvez por isso tão poucos, dos que se fazem chamar de cristãos, realmente agem como tal. Ou seja, realizar as obras de Jesus, fazer tudo em seu nome … tem consequências: os adversários do Reino costumam perseguir aqueles que se doam em nome do Senhor. Mas, por outro lado, aqueles que seguem os passos do Mestre podem viver com esta certeza: “Em nenhum outro há salvação, pois não existe debaixo do céu outro nome dado aos homens pelo qual possamos ser salvos” (At 4,12).
Isso é o que nos possibilita entender o porquê de Jesus se apresentar como Bom Pastor. Qualquer um pode pastorear o rebanho. Qualquer um pode repetir o nome do Senhor. Qualquer um pode alardear que está fazendo isso e aquilo em nome do Senhor. Qualquer um pode dizer que faz milagres em nome do Senhor … e dizendo isso podem enganar a muitos. Mas se qualquer um desses não mostrarem, por atos no dia a dia, os comportamentos do Bom Pastor… esses podem ser tudo, menos obreiros do Senhor.
Não importa nossa confissão religiosa. Não importam nossas opções políticas. Não importa a quem dedicamos nossas predileções, em relação aos líderes que nos querem representar. Se eles não passarem no teste do Bom Pastor, podem ser representantes do anticristo, mas não são enviados do Senhor. E o teste é simples: os enviados do Pai podem dizer com seus atos: “Eu sou o bom pastor. O bom pastor dá a vida por suas ovelhas.” (Jo 10,11). Aqueles a quem admiramos, são capazes de dar a vida por nós ou só querem nos explorar? Se este for o caso, esse farsante é um “ mercenário, que não é pastor e não é dono das ovelhas, vê o lobo chegar, abandona as ovelhas e foge, e o lobo as ataca e dispersa. Pois ele é apenas um mercenário e não se importa com as ovelhas.” (Jo 10,12).
Somente o Bom Pastor nos ajuda a seguir o caminho seguro para nos reconfortarmos nos braços daquele nos adotou como filhos. Só o bom Pastor nos transforma em filhos de Deus.



Páscoa 5:

A videira e os ramos

(Reflexões baseadas em: At 9,26-31; 1Jo 3,18-24; Jo 15,1-8)
Disponível em: https://pensoerepasso.blogspot.com/2021/05/pascoa-5-videira-e-os-ramos.html

“Eu sou a videira, vocês são os ramos.”
Quem de nós ainda não ouviu, leu ou falou essas palavras, ensinadas por Jesus? (João 15,1-8). O que o Senhor afirmou? Que os galhos de uma planta só sobrevivem se estiverem unidos ao seu tronco. Isso indica uma profunda união que deve haver entre as pessoas e Jesus Cristo. Por quê? Porque essa é uma união que conduz ao Pai.
Além disso, muitos de nós, com certeza, nos recordamos de uma passagem da vida de Paulo, quando perseguia os cristãos. No caminho encontra-se com Jesus e “cai por terra”. Mas o que acontece com o perseguidor depois desse encontro com Jesus ressuscitado? O começo da resposta está nesta narrativa dos Atos dos Apóstolos 9,26-31.
Frequentemente se coloca a questão da diferença entre o que se diz e o que se faz. Neste quinto domingo da Páscoa, a primeira carta de João (1Jo 3,18-24) chama a atenção para essa dicotomia. Afirma que não bastam as palavras, são necessárias ações para explicitar a fé: “não amemos só com palavras e de boca, mas com ações e de verdade!”(1Jo 3,18). As palavras são o pontapé inicial para a relação amorosa que se expressa nas ações amorosas. Para que as palavras amorosas sejam verdadeiras dependem das ações amorosas. Falar é muito fácil, qualquer um pode dizer qualquer coisa… mas demonstrar o dito pela ação amorosa...
O fato é que essas três leituras nos sugerem um ponto em comum: a sintonia com Jesus ressuscitado. Essa sintonia leva a união com o Pai: para se trilhar o caminho da união na comunidade; para expressar um convite para darmos testemunho fidedigno e convincente; para ser uma amostra da união entre a videira-Jesus e seus ramos, que somos nós, os cristãos.
O caso de Paulo é exemplar: inicialmente ele perseguia dos seguidores do Homem de Nazaré. Depois daquele encontro definitivo, passou a ser integrante do grupo que antes perseguia. Essa experiência acabou sendo uma especie de enxerto. Um galho (Paulo) que vivia noutra planta (o judaísmo), desligou-se dessa antiga planta para unir-se ao novo grupo que começava a crescer e produzir. Um grupo que se desenvolveu justamente a partir do momento em que Paulo, enxertado na nova comunidade, foi aceito por ela e começou a pregar a nova fé. “Daí em diante, Saulo permaneceu com eles em Jerusalém e pregava com firmeza em nome do Senhor.” (At 9,28).
A fé era nova, mas seus fundamentos eram os mesmos: a promessa de Deus, desde o início do Antigo Testamento, coroando-se no momento presente. O enxerto é novo, mas as raízes da planta são antigas, firmes e fortes. Raízes que fazem a planta crescer e produzir muito. E Paulo foi um enxerto altamente produtivo, movido pala assistência do Espírito: “A Igreja, porém, vivia em paz em toda a Judeia, Galileia e Samaria. Ela consolidava-se e progredia no temor do Senhor e crescia em número com a ajuda do Espírito Santo.” (At 9,31).
Crescendo, a Igreja passou a sentir necessidade de orientações seguras para os comportamentos dos cristãos. Por isso a intervenção de João. Não bastam palavras. São necessárias ações. Não se trata de falar bonito e ir para casa curtir a vida da forma que achar conveniente. O passo seguinte tem que ser dado: agir em consonância com as palavras. Falou bonito? Então mostre ações no mesmo nível. Tem que mostrar ações bonitas.
A vida do cristão não é uma profissão qualquer. Uma pessoa pode ser um excelente médico ou advogado ou professor. Mas terminado seu trabalho pode voltar pra casa e fazer coisas absurdas, como sabemos que vez por outra acontece. Mas com o cristão não é assim. Com o cristão o falar e o agir tem que andar juntos. “Este é o seu mandamento: que creiamos no nome do seu Filho, Jesus Cristo, e nos amemos uns aos outros, de acordo com o mandamento que ele nos deu.” (1Jo 3,23).
E aqui entram as palavras do mestre. Não bastam palavras bonitas. Se o belo discurso não nasce de um ramo ligado à videira, pode até ser bonito, mas corre o risco de não conduzir ao Agricultor, que é o Pai. E, o que é pior, o ramo não sendo produtivo pode ser podado, excluído. “'Eu sou a videira verdadeira e meu Pai é o agricultor. Todo ramo que em mim não dá fruto ele o corta; e todo ramo que dá fruto, ele o limpa, para que dê mais fruto ainda.” (Jo 15,1-2). E triste é o destino dos ramos podados: “Quem não permanecer em mim, será lançado fora como um ramo e secará. Tais ramos são recolhidos, lançados no fogo e queimados.” (Jo 15,6).
Mas quais são os frutos esperados pelo tronco da Videira? Pelo Agricultor? E pela seiva do Espírito vivificador? Quais são os frutos esperados desses ramos unidos ao tronco?
Os frutos são sempre os mesmos: a plenitude de vida. A defesa da vida. A valorização da vida. A alegria de viver promovendo a vida de quem se aproxima de nós. E esse pode ser um critério para olharmos para as pessoas com as quais convivemos, as pessoas que elegemos, as pessoas que admiramos, as pessoas que se colocam como líderes das nossas comunidades, as pessoas que nos dizem o quê e como agir…. São elas promotoras de vida ou só produzem belos discursos?
Sempre foi necessário, porém atualmente ainda mais, observar os atos dos que fazem belos discursos. Quais são seus frutos? Esses ramos estão ligados a quais troncos?



Páscoa 6:

Isto vos ordeno

(Reflexões baseadas em: At 10,25-26.34-35.44-48; 1Jo 4,7-10; Jo 15,9-17)
Disponível em: https://pensoerepasso.blogspot.com/2021/05/pascoa-6-isto-e-o-que-vos-ordeno.html

Quem é pai ou mãe, sabe disso.
Quem já passou pela experiência da despedida sabe disso.
Mesmo entre amigos, a cena não é muito diferente: na despedida, além das emoções afloradas, ocorrem recomendações e demonstrações de afeto.
Quem vai e quem fica, ouve, de quem vai e de quem fica, palavras como: tome cuidado com isto ou aquilo. Faça isto e não faça aquilo… Volte logo! Chegando lá, liga, manda notícias… e seguem outras recomendações e demonstrações de cuidado.
As leituras que a Igreja nos apresenta, neste sexto domingo da Páscoa trazem um pouco deste tom de recomendações e demonstrações de afeto, em momentos de despedida. Na liturgia de hoje, Jesus dá as últimas orientações aos discípulos, antes de retornar ao Pai, como se verá na celebração da Ascensão.
As primeiras orientações, de hoje, começam com Pedro, nos Atos dos Apóstolos (At 10,25-26.34-35.44-48). Ao visitar a casa de Cornélio confirma e ensina o que Jesus havia dito: a mensagem salvadora é para todos.
Ao entrar na casa de Cornélio encontra um grupo de pessoas ansiosas por receber o ensinamento cristão e o batismo. Pedro relembra as orientações de Jesus e põe em prática os ensinamentos do Mestre, confirmando que: “Deus não faz distinção entre as pessoas. Pelo contrário, ele aceita quem o teme e pratica a justiça, qualquer que seja a nação a que pertença” (At 10,34-35).
Daí sua conclusão: o fato de Deus não fazer distinção entre as pessoas significa que todos devem ser acolhidos como iguais. E nos dias atuais, nossa missão é continuarmos essa obra.
Não fazer distinção entre as pessoas é uma forma de amar, como sugere João, em sua primeira carta (1Jo 4,7-10). Aqui o apóstolo demonstra que o amor é um dom divino. Dá pra dizer mais:  todo e qualquer preconceito e discriminação são sentimentos dos inimigos de Deus. São sentimentos opostos ao amor. Este sim um sentimentos divino com o qual Deus nos presenteou “porque o amor vem de Deus e todo aquele que ama nasceu de Deus e conhece Deus” (1jo 4,7). O amor é dom de Deus porque “não fomos nós que amamos a Deus, mas foi ele que nos amou e enviou o seu Filho como vítima de reparação pelos nossos pecados.” (1Jo 4,10).
Entretanto as orientações definitivas saem da boca do Mestre (Jo 15,9-17) ao ensinar o mandamento supremo. O mandamento do amor. E para isso o ponto de partida, referência e modelo pleno está na relação do Pai com o Filho. O amor de Jesus e do Pai tem a mesma intensidade. E essa mesma intensidade do amor trinitário é a medida do amor de Deus para conosco: “Como meu Pai me amou, assim também eu vos amei” (Jo 15,9).
É claro que sempre temos a opção de renunciar ao amor de Deus, mas se o aceitamos, então temos a obrigação de corresponder e responder ao convite: “Permanecei em meu amor” (Jo 15,9).
E aqui reside a dificuldade para seguir as orientações/ensinamentos do Mestre. Não basta apenas uma relação vertical, afirmando o amor a Deus. Essa relação, de acordo com a palavra de Jesus, somente ocorre se for explicitada e se manifestar em sentido horizontal, em relação às outras pessoas. O amor vertical, em relação a Deus, só tem sentido e pode ser visto como verdadeiro, se tiver um correspondente horizontal, na relação com os outros. Esse é o sentido da cruz redentora.
É necessária a relação com o Pai, sem a menor dúvida. Mas essa relação com o Pai, tem uma condição que é guardar os mandamentos do Mestre: “Se guardardes os meus mandamentos, permanecereis no meu amor, assim como eu guardei os mandamentos do meu Pai e permaneço no seu amor” (Jo 15,10).
Mas qual é o mandamento que Jesus nos orienta a seguir? Trata-se de algo radical. Trata-se do mandamento que define quem é discípulo do Senhor. Trata-se de assumir a radicalidade evangélica. Trata-se de um mandamento que exige compromisso de vida. Trata-se do mandamento do amor: “Este é o meu mandamento: amai-vos uns aos outros, assim como eu vos amei. Ninguém tem amor maior do que aquele que dá sua vida pelos amigos” (Jo 15,12-13).
Dizer que ama a Deus, recitar as mais diferentes orações e preces é fácil. Qualquer um pode fazer. Mas poucos aceitam a prova definitiva de dar a vida pelo outro.
Claro que só saberemos se somos ou não capazes dessa entrega radical quando houver uma situação definitiva. Mas também é verdade que essa pode ser uma prática cotidiana: fazer do seu cotidiano uma dinâmica de entrega. Por isso a necessidade de se afirmar este detalhe, dar a vida não significa ser martirizado; dar a vida é fazer da vida cotidiana espaço e ambiente para relações amorosas, afetuosas, caridosas, solidárias...
Então como saber se estamos ou não no caminho certo? Jesus nos oferece o critério: saber se nossas preces são atendidas. Também nisso ele nos orienta: “fui eu que vos escolhi e vos designei para irdes e para que produzais fruto e o vosso fruto permaneça. O que então pedirdes ao Pai em meu nome, ele vo-lo concederá” (Jo 15,16) Quantas de nossas preces em favor da vida são atendidas? E aqui é importante observar o que recitamos no “Pai Nosso”: “Seja feita a vossa vontade!”
O fato é que a relação para com Deus é um mandamento, mas a relação com os outros é uma ordem. É a palavra definitiva de quem está se despedindo: “Isto é o que vos ordeno: amai-vos uns aos outros” (Jo 15,17).



Ascensão do Senhor

É agora que vais restaurar?

(Reflexões baseadas em: At 1,1-11; Ef 1,17-23; Mc 16,15-20)
Disponível em: https://pensoerepasso.blogspot.com/2021/05/ascensao-do-senhor-e-agora-que-vais.html

A pergunta dos discípulos, no início do livro dos Atos dos Apóstolos (At 1,1-11) mostra bem a limitação humana em compreender as coisas de Deus.
Jesus ressuscitado estava reunido com os discípulos. E enquanto ainda os instruía, em seus últimos momentos antes de voltar para o Pai, pouco antes da partida, um deles lhe pergunta: “Senhor, é agora que vais restaurar o reino em Israel?” (At 1,6)
Paulo, conhecendo as fraquezas humanas, na carta aos efésios (Ef 1,17-23) em tom de oração instrui a comunidade, pedindo o dom do entendimento: “o Pai a quem pertence a glória, vos dê um espírito de sabedoria que vo-lo revele e faça verdadeiramente conhecer.” (Ef 1,17).
Do ponto de vista histórico, a restauração, pretendida pelo discípulo só ocorreu após a Segunda Guerra Mundial, em meados do século XX, por ocasião da criação do atual Estado de Israel. E foi uma ação problemática, pois restaurou a nação ao povo judeu mas, ao mesmo tempo, criou o atual problema e o conflito entre Judeus e Palestinos. Uma restauração meramente humana, carregada e mantida com os problemas humanos...
Mas do ponto de vista do Reino de Deus, a restauração ainda não aconteceu. O povo de Deus continua esperando. E quem é o Povo de Deus? Todo aquele que nele crê!
Por esse motivo as palavras do Senhor continuam válidas: “Não vos cabe saber os tempos e os momentos que o Pai determinou com a sua própria autoridade” (At 1,7). Notemos que na fala de Jesus estão presentes alguns elementos importantes: inicialmente é necessário frisar que a restauração é obra de Deus e, portanto, nenhum ser humano está autorizado a dizer que será hoje ou amanhã. Todos os que fazem essas previsões não falam em nome de Deus. Podem dizer o que quiserem, mas não falam em nome de Deus.
Em segundo lugar, Jesus ensina que seus discípulos serão instruídos pelo Espírito: que descerá, instruirá e fará dos discípulos testemunhas até os confins da terra. “Recebereis o poder do Espírito Santo que descerá sobre vós, para serdes minhas testemunhas em Jerusalém, em toda a Judeia e na Samaria, e até os confins da terra” (At 1,8). E isso implica dizer que nenhuma sociedade ou grupo pode se considerar o povo de Deus; no máximo pode fazer parte dele… se fizer as obras do Senhor!
Podemos, agora, nos perguntar: por que Jesus orienta dessa forma seus discípulos? Porque os quer testemunhas. Porque os quer continuando sua obra. Porque não os quer olhando para o alto sem se colocar a caminho. Não quer oração sem pé no chão. “Por que ficais aqui, parados, olhando para o céu?” (At 1,11). A alternativa a ficar parado olhando para o céu já havia sido dada: ser testemunha “até os confins da terra”. E, para dar testemunho não se pode ficar parado…
Com essa perspectiva é que entendemos o ensinamento/oração de Paulo explicando como o Espírito agirá: dará o conhecimento abrindo os corações dos discípulos para o entendimento. Mas não é só isso: ensinará a ter esperança, mostrará a riqueza da glória celeste, pois o céu é herança de todos os que, com sua vida, derem testemunho do Senhor. Esses, no tempo oportuno, que só o Pai conhece, poderão contemplar Jesus em sua glória definitiva. “Que ele abra o vosso coração à sua luz, para que saibais qual a esperança que o seu chamamento vos dá, qual a riqueza da glória que está na vossa herança com os santos” (Ef 1,18)
Podemos notar, além disso, que em sua súplica Paulo mostra a ação da Trindade, em favor daqueles que assumem o compromisso de dar testemunho: Cristo, o Filho, está voltando ao Pai (por isso celebramos a Ascensão do Senhor). Do céu Pai e o Filho concedem o Espírito do conhecimento àqueles que se comprometem com o Reino.
Tudo isso está fundamentado nas palavras de Jesus (Mc 16, 15-20). É Ele quem faz a afirmação inicial: a missão universal da pregação a todos. “Ide pelo mundo inteiro e anunciai o Evangelho a toda criatura!” (Mc 16,15). Evidentemente, se a mensagem é destinada a todos, ninguém pode ficar de fora, por negligência dos anunciadores, pois a mensagem salvadora é destinada a todos!
Diante da proposta do Senhor, duas alternativas: crer ou não crer. E cada uma delas com consequências definitivas. Ao que crê se oferece o batismo e consequentemente a salvação, pois o batizado passa a ser discípulo e continuador da obra do Senhor; aquele que não crê, não receberá o batismo e a sua descrença o levará à condenação. “Quem crer e for batizado será salvo. Quem não crer será condenado.” (Mc 16,16)
Como podemos ver, não é Deus quem age. A oferta é de Deus, mas a resposta é humana. Deus oferece a graça, oferece a opção. Diante da oferta de Deus faz-se necessária uma opção pessoal que implica em salvação ou condenação.
E assim podemos nos perguntar: quando será a restauração? Evidentemente não sabemos a resposta. O que podemos dizer é que enquanto o Senhor Deus não restaurar este mundo, instalando seu Reino, cabe a nós preparar o caminho com nosso testemunho.



Pentecostes:

Recebam o Espírito Santo

Reflexões baseadas em: At 2,1-11b; 1Cor 12,3b-7.12-13; Jo 20,19-23
Disponível em: https://pensoerepasso.blogspot.com/2021/05/pentecostes-recebam-o-espirito-santo.html

No dia de Pentecostes o cento do discurso, evidentemente, é o Espírito Santo manifestando-se (At 2,1-11), sendo entregue (Jo 20, 19-23) e ensinando a reconhecer Jesus como Senhor (1Cor 12, 3b-7.12-13).
Entretanto, se o Artista principal é o Espírito, a cena é desenhada a partir da atuação de Jesus de Nazaré. E, também, Jesus quem dirige todo o enredo a fim de fazer com que todos reconheçam “as maravilhas de Deus” (At 2,11). Na solenidade de Pentecostes estamos diante do Pai, do Filho e do Espírito santificador. A festa solene é do Espírito, mas é a Trindade que dá o tom e dirige a orquestra.
Isso tudo nos indica que ao celebrarmos o Pentecostes como a grande festa do Espírito Santo, a Igreja nos ensina que, efetivamente, estamos celebrando mais uma manifestação trinitária: os discípulos (de Jesus, o Filho) “Ficaram cheios do Espírito Santo e começaram a falar” (At 2,4) as coisas que levam ao Pai. A plenitude ocorre porque Jesus entrega o Espírito de Amor aos seus discípulos reunidos no momento em que “soprou sobre eles e disse: Recebei o Espírito Santo” (Jo 20,22), com esse gesto lhes transmite uma missão do Pai. Nesse momento entendemos que a fonte inspiradora para toda a cena é o Pai, uma vez que Jesus, ao oferecer a paz, insere os discípulos na missão “Como o Pai me enviou, também eu vos envio” (Jo 20,21).
E os discípulos são enviados para anunciar a proximidade do Reino! O Reino que é oferecido por Deus, mas que precisa ser construído por aqueles que recebem o Espírito da esperança!
Cientes da dimensão trinitária (da Santíssima Trindade), na festa do Espírito, somos levados a observar mais alguns detalhes. E são detalhes importantes que nos indicam o sentido da celebração do dia de Pentecostes.
Notemos que “os discípulos estavam todos reunidos”(At 2,1). Mas o detalhe é que a reunião ocorria com as portas fechadas, pois os discípulos estavam com medo. E o medo se justifica, pois ainda não haviam recebido os dons do Espírito (Jo 20,19). Quando recebem o Espírito de Força, abrem as portas e começam a falar. O dom do anúncio corajoso se concretiza na media em que os discípulos se põem a anunciar as “maravilhas de Deus” aos “devotos de todas as nações do mundo”(At 2,5), pois a proposta divina é universal, destina-se a todas as nações e a todos os povos, pois as “maravilhas de Deus” não têm fronteiras!
Notemos também que Jesus sopra o Espírito de Vida sobre os discípulos oferecendo a paz que vem do Pai: “Como o Pai me enviou, também eu vos envio” (Jo 20,21). A partir disso todos são enviados a todas as nações, pois a missão envolve o mundo inteiro. Por isso a necessidade de falar em outras línguas (At 2,4). E o que vai ser anunciado? A necessidade de se construir o “bem comum” (1Cor 12,7), uma vez que a proposta do Reino não é para indivíduos isolados, mas um presente do Pai para a comunidade.
Além disso, se há “diversidade de dons” e “diversidade de ministérios” (1 Cor 12,4-5) o corpo é um só. É o corpo de Cristo, formando a Igreja, a comunidade dos que fazem opção pelo Deus do Amor. Por isso que Paulo insiste na afirmação de que todos “fomos batizados num único Espírito, para formarmos um único corpo, e todos nós bebemos de um único Espírito” (1Cor 12,13). E, mais uma vez, tudo isso com a finalidade de nos ensinar a produzir nossos frutos “para o bem comum”. Essa edificação do bem para todos é o caminho que leva à paz, oferecida pelo Senhor.
A semente da paz pode até ser plantada a partir de atos individuais, mas a colheita é coletiva. Não há paz se não houver coletividade e ação harmoniosa!
Uma outra dimensão da celebração do Pentecostes está no fato de que o Espírito de Pureza, entregue por Jesus, implica na oferta do perdão. A oferta é para todos. Entretanto, diante da diversidade de ministérios, da diversidade de dons, da necessidade de construir a paz, da exigência do bem comum… surgem aqueles que não se assumem como membros da comunidade. Daí a missão purificadora: “A quem perdoardes os pecados, eles lhes serão perdoados; a quem não os perdoardes, eles lhes serão retidos” (Jo 20,23).
À igreja, e seus ministros ordenados, cabe essa incumbência. Mas também essa é uma missão comunitária e vinculada ao Espírito de Perdão. A proposta é universal, mas sua aceitação é pessoal. Como nem todos aderem à proposta do Reino, esses se excluem da comunhão com a comunidade da Igreja e, portanto, também da convivência com a comunidade trinitária. Daí a missão de explicitar e deixar claro o sinal da adesão ou da rejeição. Ao aderir ao projeto do Reino opta-se, também, pelo perdão. Mas aqueles que se negam a viver em favor do bem comum, se excluem. Daí a necessidade de se explicitar a exclusão.
Entretanto, se o perdão sacramental é atribuição do ministro ordenado, a edificação de uma comunidade amorosa, em que os membros se perdoam mutuamente, também é um dom do Espírito.
Sempre que alguém desejar e se fizer membro do corpo de Cristo, com suas ações em favor do bem comum, terá os pecados perdoados. E para esses o Senhor continua dizendo: receba o Espírito Santo.
Como se vê, na celebração do Pentecostes, a festa solene do Espírito, o que prevalece é a ação da Trindade. E isso se torna um convite e um desafio a que os cristãos edifiquem a comunidade pelos moldes da Trindade...

Neri de Paula Carneiro
Mestre em educação, filósofo, teólogo, historiador.
Outros escritos do autor:
Filosofia, História, Religião: https://www.webartigos.com/index.php/autores/npcarneiro
Literatura: https://www.recantodasletras.com.br/autores/neripcarneiro

quarta-feira, janeiro 31, 2024

QUARESMA: Conversão, comunhão, fraternidade


Também disponível em: 

* https://pensoerepasso.blogspot.com/2024/01/quaresma-conversao-comunhao-fraternidade.html;

* https://www.recantodasletras.com.br/artigos-de-religiao-e-teologia/7989613.






Que desejamos para nossa vida: sintonia com Deus e seu projeto ou apenas aproveitar os momentos que temos nesta breve jornada chamada vida?

A resposta depende do sentido que criamos para a vida que carregamos. A qualquer momento podemos assumir uma ou outra perspectiva mas as duas rotas, ao mesmo tempo, não dá. Elas se excluem. Por quê?

Porque o projeto de Deus exige comprometimento com a reconstrução fraterna das relações humanas e com a natureza. Já a vida de prazeres, o “aproveitar a vida”, de modo geral, tende para o egoísmo excludente. Tende para a liberação desenfreadas dos instintos, tende para a exploração sobre as pessoas, recai sobre os recursos da natureza… e isso vai contra o projeto de Deus!

Assim é transcurso da vida humana. E este é um aspecto dessa vida que o tempo da Quaresma nos propõe para refletir. Ou seja: como administramos nossa vida? O que fazemos com a vida que recebemos como um dom? … e que se extinguirá sem que possamos impedir ou prolongar...

A Igreja em sua sabedoria, que brota do Espírito de Amor, sabe como pensa o ser humano. Sabe que os valores “do mundo” são mais convidativos que os valores do Reino. Sabe que poucos de nós usamos parte do nosso tempo para resolver, em nós, essa questão.

Por esse motivo a Igreja instituiu tempos para que façamos amplas revisões de atitudes e comportamentos; ela nos propõe tempos em que nos oferece o que Deus tem de mais precioso: a possibilidade de escolher; a possibilidade de conversão! Para isso a Igreja nos oferece os tempos do Advento e da Quaresma. E por serem ambos tempos penitenciais, a cor litúrgica que se usa é o roxo.



Então o que é a QUARESMA?

Um tempo para revisão de vida.

Um período de aproximadamente quarenta dias, para refazermos nosso projeto de vida.

Uma época propícia para olharmos tudo que Deus nos oferece e tudo que Jesus fez por nós com a finalidade de nos resgatar: de nós mesmos e de tudo aquilo que nos aprisiona.

E, principalmente, a Quaresma é o tempo de preparação para a celebração da Páscoa: a Páscoa de Jesus e a nossa páscoa. A de Jesus, que depois de uma caminhada entre nós, foi entregue, condenado, morto, sepultado… e Ressuscitou para nos abrir as portas da eternidade. E também nossa páscoa, o que implica em reconhecer nossa pequenez, nossos pecados, nossa falta de fé, nossa negligência com os valores do Reino, nossa maldade, nossos atos contra a vida das pessoas e da natureza… e para que, reconhecendo nossa pequenez, nos convertermos.

Nossa páscoa que implica em nos convertemos para realizamos nossa páscoa em Jesus.



Isso significa que a quaresma sempre existiu, na liturgia cristã?

A Igreja, desde muito cedo entendeu a importância do Tríduo Pascal, ou seja, a celebração da Quinta Feira Santa (Jesus se fazendo pão para se dar na Eucaristia), Sexta Feira Santa (Jesus oferecendo sua vida, sua Paixão, para nos resgatar) e Sábado Santo (a suprema festa da Ressurreição, o ponto para o qual se direciona toda a liturgia, inclusive o Natal).

Entretanto foi somente a partir da metade do século IV que se acrescentaram os quarenta dias da quaresma que começa na Quarta Feira de Cinzas e termina na Quarta Feira Santa. Isso com o objetivo da oferecer aos cristãos um tempo mais longo de revisão de vida e preparação para a conversão.

O tempo da quaresma, ou seja, os quarenta dias, está fundamentado e tem suas raízes na Bíblia: quarenta dias de dilúvio; quarenta anos do povo no deserto; quarenta dias de penitência dos ninivitas; quarenta dias para Elias chegar à montanha de Deus. E também Jesus jejuou por quarenta dias… nos quais foi tentado e venceu as tentações…

A simbologia “quarenta”, portanto, é importante na sucessão dos grandes momentos e personagens bíblicos… e sempre teve algo a ver com o processo de conversão. E essa ideia se instalou e se fortaleceu na vida da Igreja.

Tanto assim que ao longo dos séculos a Igreja insiste neste importante momento de purificação. Trata-se, portanto, de um tempo propício para que cada um de nós e toda a comunidade realize um processo de limpeza: pessoal e social. Um processo para purgar os pecados pessoais e, ao mesmo tempo, os pecados sociais que incluem o compromisso de repensar os rumos do mundo, nossa relação com as outras pessoas e com a natureza… que também é obra de Deus e também aguarda a redenção!



No Brasil, a dimensão social vem sendo reforçada com a instituição da CAMPANHA DA FRATERNIDADE.

Da acordo com o que podemos ler no site da CNBB (<https://www.cnbb.org.br/cnbb-60-anos-campanha-da-fraternidade-galeria/.>; <https://campanhas.cnbb.org.br/>) tudo começou em 1962, numa experiência de solidariedade organizada, na diocese de Natal, no Rio Grande do Norte. No ano seguinte mais dezesseis dioceses nordestinas aderiram ao projeto e a partir de 1964 passou a ser uma atividade da CNBB, e vem crescendo sua importância ao longo dos anos.

Desde sua origem a Campanha da Fraternidade teve uma preocupação com a dimensão contemplativa, convidando as pessoas a rever sua vida à luz da proposta de Cristo, com a finalidade de mover os corações para a conversão; mas também esteve sempre presente uma dimensão social. Ou seja, convocar os cristãos a olhar para a realidade circundante e, mediante o desafio da realidade despertar o senso de solidariedade em relação a problemas reais e concretos que afetam a sociedade.

A dimensão social tem, sim, um lado econômico (arrecadar fundos para ações assistenciais), mas a grande preocupação é mobilizar as consciências para que, à luz do evangelho de Cristo, a sociedade se engaje na busca soluções para esses problemas.

Desde sua origem, portanto, a CF se valeu da metodologia do “Ver-Julgar-Agir”. Trata-se de olhar para a realidade social de pobreza e exclusão, tomando consciência de que os males sociais são causados pela sociedade e, portanto, toda a sociedade é convidada a se converter. Analisar os problemas sociais, à luz da prática de Jesus: O que Jesus de Nazaré faria nessa situação específica? Quais as luzes que a Palavra de Deus tem para essa situação específica? Com base na resposta da Bíblia, por-se em movimento para buscar soluções para o problema.

Objetivando aprofundar o espírito fraterno da campanha, sabendo de seu papel na condução da fé engajada, a CNBB assumiu estes três objetivos permanentes para as Campanhas da Fraternidade:

“1 – Despertar o espírito comunitário e cristão no povo de Deus, comprometendo, em particular, os cristãos na busca do bem comum;

2 – Educar para a vida em fraternidade, a partir da justiça e do amor, exigência central do Evangelho;

3 – Renovar a consciência da responsabilidade de todos pela ação da Igreja na evangelização, na promoção humana, em vista de uma sociedade justa e solidária (todos devem evangelizar e todos devem sustentar a ação evangelizadora e libertadora da Igreja)”.



O que nos resta?

Celebrar a quaresma, fazendo-nos mais limpos, deixando-nos quarar pelos quarenta dias de oração, jejum e solidariedade.

Como fazer isso?

Celebrando em cada um dos domingos da quaresma o que a sagrada liturgia da Igreja nos propõe. Respondendo ao apelo que a Campanha da Fraternidade nos lança: ser fraterno nos moldes que Jesus nos ensina. Convertendo nossa vida para, continuar vivendo o espírito da CF e da quaresma, numa vida de constante conversão. Ou seja, oferecendo a Deus nossas preces pedindo que nos conceda a graça da conversão. Oferecendo à sociedade os resultados obtidos dessa graça: a solidariedade e o sentir com o outro, em busca da libertação plena que o Reino nos oferece, já aqui, na medida em que o construímos para a eternidade, pois ainda não o temos plenamente.







Quarta Feira de Cinzas


(Reflexões a partir de : Jl 2,12-18; 2Cor 5,20-6,2; Mt 6,1-6.16-18)

Disponível em: https://pensoerepasso.blogspot.com/2021/02/quarta-feira-de-cinzas.html




Cinzas...

Tudo vira cinza, pó! Nada escapa desse processo de transformação. Inclusive nossas vidas e atitudes e comportamentos e sonhos e esperanças… Tudo vira cinza… e das cinzas podem nascer outros projetos! Como, também, nas cinzas podem estar enterrados os fracassos!

Cinzas… símbolo de vida ou confissão de fracasso? Com que olhos a vemos?

Seja o que for, não há como negar que, em todos os casos, a cinza representa a consumação de um processo de transformação… o que era não é mais e, em seu lugar, no lugar daquilo que era, agora estão as cinzas do que foi… restos doloridos… sementes de esperança!

Essa é a ideia litúrgica envolvida na quarta feira de cinzas.

Podemos visualizar essa perspectiva nas leituras que nos são propostas. Primeiro o profeta Joel (Jl 2, 12-18) falando de um processo de arrependimento e retorno para Deus. Por sua vez Paulo (2Cor 5,20-6,2), escrevendo aos coríntios os alerta, dizendo que chegou o dia da salvação. Jesus também, de acordo com Mateus (Mt 6,1-6.16-18), insiste na importância de uma nova postura, pela qual se valoriza não o exterior, nem as atitudes ostensivas, mas aquilo que é feito na simplicidade, na humildade… no escondido do coração!

Quando lemos os ensinamentos de Joel percebemos que algo diferente paira no ar. Há um certo ar de comportamentos desagradáveis ao Senhor. Tanto que o profeta conclama o povo a suplicar: “Perdoa, Senhor, a teu povo...” (Jl 2,17). E o profeta também informa o que o Senhor deseja: “voltai para mim com todo o vosso coração” (Jl 2,12). O coração simboliza o centro das emoções e afetos. Sendo assim, voltar-se de todo coração significa mudar os comportamentos. E o profeta reforça o apelo do Senhor: “rasgai o coração, e não as vestes” (Jl 2,13). Ou seja, atitudes exteriores, “rasgar” a roupa para demonstrar arrependimento, pode não expressar o verdadeiro arrependimento, que se torna verdadeiro quando se “rasga” o coração.

E nós poderíamos dizer: é necessário queimar as velhas atitudes para que das suas cinzas cresçam comportamentos edificantes, os quais podem conduzir à “justiça de Deus” (2Cor 5,21), de acordo com Paulo.

Essa transformação esperada de cada um e de todos é o caminho para “não receberdes em vão a graça de Deus” (2 Cor 6.1), como diz o apóstolo. Importa, pois valorizar a graça recebida uma vez que “é agora o momento favorável, é agora o dia da salvação” (2 Cor 6,2). Não existe essa de que “amanhã” eu mundo, no “no próximo ano” eu faço isso… O depois pode ser tarde demais!

Como isso é possível? alguém pode perguntar. Como transformar a vida, mudando as atitudes? Jesus dá a resposta: fazer o que é agradável a Deus e não às aparências. É necessário tomar cuidado para “não praticar a vossa justiça na frente dos homens, só para serdes vistos por eles” escreve Mateus (Mt, 6,1).

Quem deseja as coisas do alto, não pode estar preso às coisas de baixo. E aqui cada um de nós pode se interrogar: o que faço é para agradar a Deus ou para que as pessoas vejam? Faço caridade porque aquela pessoa que ajudei está precisando ou para que os amigos, a comunidade, a sociedade… para que as pessoas vejam que sou caridoso?

Não é a ostentação, mas a humildade. Quem faz para ser visto, já recebeu a recompensa; quem faz na simplicidade humilde, será notado por Deus, afirma Jesus: “quando deres esmola, que a tua mão esquerda não saiba o que faz a tua mão direita, (Mt 6,3); “quando tu orares, entra no teu quarto, fecha a porta, e reza ao teu Pai que está oculto” (Mt6 6,6); “quando jejuares, perfuma a cabeça e lava o rosto, para que os homens não vejam que tu estás jejuando, mas somente teu Pai, que está oculto” (6,17-18). Assim procedendo, receberemos a recompensa de Deus: “o teu Pai, que vê o que está escondido, te dará a recompensa” (Mt 6,4.16.18).

Como estamos celebrando a quarta feira de cinzas, a Igreja também nos propõe a restauração do diálogo, como meio de estabelecer a fraternidade e, dessa forma, ampliar entre as pessoas as portas do Reino.

Ocorre que devido à intolerância, de todos os níveis e em todos os níveis, cresce a divisão, a exclusão, a marginalidade. Frutos, todos, da intolerância podem ser vencidos no processo da conversão para a vida comum e pela comunhão de vidas uma vez que havendo comunhão ocorre diálogo, e este, por sua vez facilita para o crescimento do respeito, que faz crescer a fraternidade, que faz germinar a semente da nova vida e nova sociedade.

Das cinzas brota o mundo novo. Por isso a Igreja celebra o sinal de impor cinzas sobre as cabeças, pois a cinza é sinal de transformação. Isso porque nas cinzas, sinal de penitência, conversão e transformação, está a semente do reino. Pois o que agora é cinza, passou pelo fogo purificador. E assim temos todo o período da quaresma para exercitar esse processo de conversão. Para fazer germinar a semente do reino, fertilizada pela conversão, representada pelas cinzas.


 


Quaresma 1: Jesus, a nova aliança




(Reflexões baseadas em: Gn 9,8-15; 1Pd 3,18-22; Mc 1,12-15)

Disponível em: https://pensoerepasso.blogspot.com/2021/02/quaresma-1-jesus-nova-alianca.html




Estamos acostumados a afirmação de que a quaresma corresponde aos quarenta dias de preparação para a Páscoa. E não há erro nenhum, nisso. Mas, em que consiste essa preparação? De que outra forma podemos compreender o significado da quaresma? A Igreja nos propõe, no primeiro domingo da quaresma, algumas pistas para refletirmos… e entendermos outros alcances do significado da quaresma.

No livro do Gênesis (Gn 9,8-15), o Senhor estabelece uma aliança para a preservação da vida a qual foi purificada nas águas do dilúvio. Os que sobreviveram ao dilúvio foram aqueles que não tinham se contaminado com a maldade humana. As águas do dilúvio, para eles, foi um processo de purificação. Saíram da arca renovados, com a missão de edificar um mundo melhor.

Na primeira carta de Pedro (1Pd 3,18-22), o apóstolo afirma que as águas do dilúvio se assemelham às do batismo. E este não se destina à limpeza do corpo, mas é um meio de participar da purificação produzida pela Ressurreição de Cristo. E a Ressurreição é um anuncio daquilo que está destinado a todos os que se comprometem com a causa da edificação de um mundo melhor, no qual floresce a Justiça e a Equidade; a Fraternidade e a Solidariedade...

Por sua vez, Marcos (Mc 1,12-15), mostra Jesus vencendo o tentador e anunciando a proximidade do Reino. Mas, para que o Reino se instale, como expressão de um mundo melhor, é necessário conversão ao Evangelho.

Com isso já temos pistas para entender o significado da quaresma, para o cristão. A água do dilúvio e o batismo expressam a sua finalidade: purificar e limpar. O que é, então a quaresma? Um tempo de purificação! Um tempo em que se faz um exame de vida, tendo como critério para o exame, a proposta de Jesus Cristo, estabelecida na Boa Nova do Reino.

Mas podemos dar um passo a mais.

Quem é da roça, deve se lembrar que nossas mães e avós não tinham máquina para lavar roupa. O rio era o local para a lavagem das roupas. Então que faziam? Expunham ao sol as roupas ensaboadas, para que o calor ajudasse a “soltar a sujeira”, como dizia minha mãe. Essa era a técnica para “quarar” as roupas. Ou seja, o calor do sol provocava o “quaramento”, a limpeza. Aí, então, ao voltar para as águas, as roupas aquecidas quaravam, isto é, limpavam facilmente: água e calor do sol produzia a limpeza, daquelas roupas grosseiras do serviço da roça.

Esse é o sentido da quaresma: ajudar no processo de “quaramento” de nossas vidas. Nossas mães deixavam as roupas tomando sol por algumas horas. Nossa Igreja nos propõe deixarmos nossas vidas “quarando” durante quarenta dias. Quarenta dias, portanto, é um tempo suficiente para fazermos uma revisão de vida e, aquecidos pelo fogo do Espírito e iluminados pelo Luz do Evangelho de Cristo, nos convertermos desfazendo-nos das atitudes que sujam nossa vida.

Após ter purificado a humanidade, com o dilúvio, o Senhor firmou uma aliança com aqueles que haviam se purificado: “Deus disse: ‘Este é o sinal da aliança que coloco entre mim e vós, e todos os seres vivos que estão convosco, por todas as gerações futuras. Ponho meu arco nas nuvens como sinal de aliança entre mim e a terra’” (Gn 9,12-13).

Mas o verdadeiro sinal da aliança divina foi a ressurreição de Cristo, a quem nos associamos mediante as águas do Batismo que “é um pedido a Deus para obter uma boa consciência, em virtude da ressurreição de Jesus Cristo” (1 Pd 3, 21). E Jesus Cristo é o Sol que aquece nossa vida e sua Ressurreição nos conduz na direção da purificação.

A pergunta que se impõe, agora, é: de quê precisamos nos purificar? Quais as situações que nos contaminaram e que exigem que façamos, no processo quaresmal, uma limpeza em nossas vidas? Quais atitudes precisamos mudar, para efetivarmos nossa adesão à Nova Aliança, que é a própria pessoa de Jesus?

Com certeza a lista não é pequena: nossas omissões diante de um mundo em crise, no qual o ser humano está, cada vez mais, perdendo o valor. Nossas adesões a propostas sociais, políticas e/ou econômicas que não tomam o ser humano como centro, mas o lucro como bandeira. Nossa língua ferindo a integridade dos nossos conhecidos, vizinhos, parentes, colegas de trabalho… enfim, cada vez que nos posicionamos de forma a minimizar o ser humano, estamos nos afastando de Deus, estamos poluindo as relações entre as pessoas, estamos sujando o caminho da vida… disso e muito mais precisamos nos quarar, quaresmar, purificar...

A quaresma é o tempo da purificação. É o período litúrgico em que somos convidados a quararmos nossas vidas. E se todos nós fizermos isso, certamente o mundo vai se tornar um lugar melhor para se viver. Deus está nos propondo essa oportunidade. E Jesus, com sua proposta de nova vida, é a parta para a nova aliança. 



 

 

Quaresma 2 – É bom estar aqui




(Reflexões baseadas em: Gn 22,1-2.9a.10-13.15-18; Rm 8,31b-34; Mc 9,2-10)

Disponível em: https://pensoerepasso.blogspot.com/2021/02/quaresma-2-e-bom-estar-aqui.html




Se alguém te pedisse uma lista com as coisas mais preciosas que você tem em tua vida. O que encabeçaria a tua lista? O que entraria em primeiro lugar?

Claro que muitos colocariam o dinheiro, a saúde, a família, os pais… os filhos. Certamente dependeria de quem estivesse fazendo o pedido, a circunstância… Mas acredito que na lista de quase todos nós, que temos filhos, eles estariam entre os primeiros itens da lista.

Para Abraão (Gn 22,1-2.9a.10-13.15-18) não foi diferente. Só que Deus não lhe pediu uma lista. O senhor foi mais radical: Pediu que sacrificasse o filho amado. “Oferece-o ali em holocausto sobre um monte que eu te indicar” (Gn 22,2). E não deu mais explicações...

Sabe o que isso significa?

Pegar o filho amado, colocá-lo sobre uma pedra. Dar-lhe uma facada no coração… e depois do filho morto, estendê-lo sobre um monte de lenhas e colocar fogo. Isso é o holocausto: oferecer um sacrifício no qual a vítima é queimada. Isso porque na mentalidade da época, a fumaça daquilo que estava sendo sacrificado chegaria aos deuses…. E, neste caso, Abraão aceitou a proposta de Deus, e estava para sacrificar o filho. Por quê? Porque, para ele, cumprir a vontade de Deus era a coisa mais importante…

Agora, imagine a dor desse pai! Mas também, imagine o tamanho da fé desse homem!

E Abraão estava disposto a fazer. Estava disposto a entregar seu filho a Deus.

Em razão disso Deus lhe fez uma promessa (Notemos que muitos de nós vivemos fazendo promessas a Deus… nós as cumprimos?). O senhor lhe prometeu: a bênção, a descendência e a terra (Gn 22,17). E foi além: o gesto de Abraão, rendeu a benção, não só para seus descendentes, mas também para toda a humanidade: “Por tua descendência serão abençoadas todas as nações da terra, porque me obedeceste”. (Gn 22,18).

E aqui tem um detalhe muito importante: em Abraão passaram a ser abençoadas TODAS as nações da terra e não somente um povo ou um grupo de pessoas!

Mas Deus não parou por aí.

Ele é muito mais audacioso. Mais radical. Afinal, ele é Deus!

Mas antes, diga uma coisa: você seria capaz de fazer o que Abraão fez? Seria capaz de cravar uma faca no coração de seu filho, por amor a Deus?

Pois fique sabendo que Deus é, para a mentalidade moderna, meio doido. Por quê? Porque Ele fez isso com seu Filho! Não cravou uma faca no peito do Filho, mas cravou o Filho numa cruz!

Nós teríamos dificuldade em sacrificar nosso filho por amor a Deus, mas Deus sacrificou seu Filho por amor a nós!!!

Isso nós o sabemos e vamos recordar na liturgia da semana Santa. Mas hoje e aqui é Paulo, escrevendo aos romanos (Rm 8,31-34) que nos fornece esta informação: “Deus que não poupou seu próprio filho, mas o entregou por todos nós” (Rm 8,32). Por que Deus faz isso? É, ainda, Paulo quem explica: Ele o fez porque nos ama e entregar o filho para à morte de cruz foi uma forma de mostrar esse amor, sem deixar dúvidas. “Se Deus é por nós, quem será contra nós?” (Rm 8,31).

Com isso talvez Paulo esteja nos dizendo: as dificuldades podem ser grandes. As adversidades podem ser muitas. Os sofrimentos podem parecer insuportáveis… Mas Deus é nosso amparo… e não nos abandona, como não abandonou Abraão!

Para alimentar essa certeza Jesus se mostra (Mc 9,2-10) em sua totalidade, em seu maior esplendor, em sua essência: Jesus transfigura-se diante dos apóstolos (Mc 9,2). Mostra aquilo que realmente é: plena luz para nos guiar!

A sensação deve ter sido tão intensa que, somente isso explica, os apóstolos não saberem o que fazer ou o que dizer (Mc 8,6). A postura dos apóstolos foi de usufruir ao máximo da experiência (“vamos fazer três tendas”) e de querer agradar a Jesus não só com a tenda, mas externando a sensação de agrado: “é bom estarmos aqui”, diz Pedro (Mc 9,5).

Como os apóstolos não estavam entendendo o que estava se passando, o Pai o explica para não deixar nenhuma dúvida: “Este é o meu Filho amado. Escutai o que ele diz!” (Mc 9,7). Algo semelhante ao que disse a mãe, na festa do casamento: “fazei tudo que ele voz disser!”

Neste tempo quaresmal temos algo importante a aprender. Não só olhando para a figura de Abraão, demonstrando plenitude de fé; não só de Paulo indicando onde encontrar e conseguir amparo para enfrentar as adversidade. Mas principalmente olhando para Jesus que se mostra em sua essência. E fazendo isso nos indica o caminho. E este caminho evidencia uma exigência, anunciada pela Campanha da Fraternidade: o diálogo.

O diálogo pode ser a ponte para nos conduzir no percurso a ser feito. O diálogo nos mostra que o diferente é apenas uma amostra da grandeza de opções que Deus permite como exemplos para chegarmos a ele.

E, se temos tantos caminhos e oportunidades, podemos mais facilmente chegar ao Senhor, para podermos dizer como Pedro: é bom estar aqui!!!

 

 

Quaresma 3 – Loucura de Deus




(Reflexões baseadas em: Ex 20,1-17; 1Cor 1,22-25; Jo 2,13-25)

Disponível em: https://pensoerepasso.blogspot.com/2021/03/quaresma-3-loucura-de-deus.html




Nós já nos acostumamos a nos chamar de louco ou doido: “você é louco, por fazer isso!”. “Isso é coisa de doido! Só você mesmo!” E assim por diante, estamos acostumados a ouvir e usar essa expressão: às vezes elogiando a loucura de alguém que fez algo extraordinário; às vezes condenando a insensatez de alguém!

Loucura, insensatez… expressões que usamos para dizer que não concordamos com aquilo que o outro está pensando, dizendo, fazendo… “Isso é coisa de doido!”

Mas a respeito de Deus, somente usamos expressões edificantes: Santo, eterno, fonte da plena sabedoria, misericordioso, todo poderoso… E nunca ousaríamos dizer que um ato de Deus seja loucura ou insensatez. Se vem de Deus, aceitamos. Mesmo quando, às vezes, não entendemos. Dizemos apenas que isso é divino! só por Deus!

A questão é que, sempre que avaliamos alguma coisa: concordando ou discordando; dizendo que está certo ou errado… sempre usamos nossos valores. Usamos nossos critérios. Falamos a partir do que achamos que é certo ou errado. Mas o que é o certo e o errado? Será que já nos perguntamos o que é que Deus considera certo ou errado? E quando fazemos isso, será que não estamos querendo dizer a Deus o que Ele deveria fazer?

A liturgia do terceiro domingo da quaresma mostra uma dimensão dessa loucura/sabedoria dos homens e de Deus. No livro do Êxodo (20,1-17), podemos visualizar um desses aspectos de loucura, uma vez que estabelecer normas, sobre como deve ser o comportamento das pessoas, como é o caso deste trecho do Êxodo, não é algo agradável. Mas Deus faz isso. Loucura?

Paulo, na primeira carta aos coríntios, (1Cor 1,22-25), é mais específico em mencionar a loucura, pois cultuar um crucificado não é uma situação normal. Pelo contrário: é loucura, é escândalo!

Agora imagine a cena: Jesus, no templo! Ele, com um chicote nas mãos, derrubando tudo e expulsando os negociantes… Isso é mais do que uma doidura qualquer. Uma pessoa normal, diante de algo que desaprova, no máximo fala que aquilo não está certo. Mas Jesus não. Ele faz um tremendo “barraco”. Esse tem que ser internado, pois surtou, disseram!

Mas em tudo isso está a visão ou os critérios ou os valores ou a compreensão humana. Para tentarmos obter uma compreensão ou uma percepção mais exata, Paulo nos dá a dica: “Pois o que é dito loucura de Deus é mais sábio do que os homens, e o que é dito fraqueza de Deus é mais forte do que os homens.” (1Cor 1,25). Ou seja, somos convidados a olhar para os eventos não com os critérios e valores humanos, mas com os olhos de Deus. O que é que Deus está vendo que o motiva a estabelecer as normas expressas no trecho do Êxodo?

Está observando que existe idolatria (Ex 20,3-4); uso indevido do nome de Deus (Ex 20,7); as pessoas não estão dedicando um tempo para Deus (Ex 20,8-11); as pessoas não estão respeitando a família, pois estão adulterando e desonrando os pais (Ex 20,12.14.17); as pessoas estão matando, roubando e mentindo...(Ex 20,13,15,16). Então tem que se estabelecer um limite!

Como sabemos que estão fazendo isso? Porque esses são os preceitos ensinados. E o argumento é simples. As normas surgem para regulamentar as condutas vigentes. Somente afirmamos a necessidade de respeito aos pais, quando percebemos que estão sendo desrespeitados pelos filhos. Deus viu que alguns estavam enriquecendo às custas dos mais pobres… por isso instituiu: não roubar! Numa palavra, Deus viu a bandidagem tomando conta e causando o sofrimento dos mais fracos, por isso estabeleceu as normas, os mandamentos.

Jesus não fez diferente (Jo 2,13-25). Diante do que estava (e ainda está!!!) acontecendo no templo, expula os infratores. E toma essa atitude ao ver a infração ocorrendo….A casa de oração transformada num centro comercial (Jo 2,14)!

Quem de nós já ficou indignado com lideranças das Igrejas (não só no mundo católico) fazendo uma pregação que privilegia mais os tijolos que a instalação do Reino. Com tantos pregadores anunciando curas milagrosas, seria interessante lançarmos um desafio: por que os tantos pregadores de tantas curas milagrosas não deram fim à pandemia do Corona Virus? Sabe por quê? Porque são charlatães da fé. Mas para eles Jesus tem preparado o chicote (Jo 2,15)?

O fato é que, do ponto de vista humano, a proposta do reino é um absurdo, pois exige a prática da justiça e da verdade. Exige solidariedade e não egoísmo; exige fraternidade e não a concentração de rendas e bens e riquezas....

Seguir a proposta de Deus é loucura, pois exige renuncias e opções em favor do outro. Aderir a Jesus Cristo, neste mundo que valoriza as coisas, os bens, a riqueza… não é prova de sensatez. Seguir a Jesus Cristo, neste mundo que não vê e despreza os valores do Reino, é prova de loucura. Seguir a Jesus Cristo implica andar pelos caminhos da partilha, da solidariedade, da cruz. Seguir a Jesus Cristo implica ser derrotado pelo mundo, mas também implica na maior prova de loucura: a certeza da ressurreição!

 

 

Quaresma 4- A Luz veio ao mundo




(Reflexões baseadas em: 2Cr 36,14-16.19-23; Ef 2,4-10; Jo 3,14-21)

Disponível em: https://pensoerepasso.blogspot.com/2021/03/quaresma-4-luz-veio-ao-mundo.html



As celebrações do período quaresmal nos mostram a grandeza do amor divino. Mas, ao mesmo tempo, mostra que até a paciência de Deus tem limites.

É claro que o amor de Deus pela humanidade é infinitamente maior do que sua ira, mas isso não significa que, como um pai bondoso, ele não estabeleça algumas condições a serem seguidas pelas pessoas. Não como punição, mas como medida corretiva. Se é verdade que toda ação tem uma reação, todas as nossas atitudes têm consequências.

No segundo livro das crônicas (2Cr 36,14-16.19-23) podemos ver uma demonstração disso: a denúncia dos pecados, uma vez que “todos os chefes dos sacerdotes e o povo multiplicaram suas infidelidades” (2Cr 36,14). Devido a isso Deus chama a atenção dos infiéis, cobrando mudança nos comportamentos “o Senhor Deus de seus pais, dirigia-lhes frequentemente a palavra por meio de seus mensageiros, admoestando-os com solicitude todos os dias, porque tinha compaixão do seu povo” (2Cr 36,15). Como se vê, é a compaixão que move a ação divina.

Porém, como os infiéis não mudavam as atitudes concretizou-se a lição ensinada pelo Senhor: “O furor do Senhor se levantou contra o seu povo e não houve mais remédio. Os inimigos incendiaram a casa de Deus e deitaram abaixo os muros de Jerusalém” (2 Cr 36,18-19). E, após os anos de punição, acontece a restauração, pelas mão de Ciro, um rei estrangeiro (para mostrar que o amor de Deus não tem fronteiras, vai além de um povo). E o rei decreta: “O Senhor, Deus do céu, deu-me todos os reinos da terra, e encarregou-me de lhe construir um templo em Jerusalém, que está no país de Judá. Quem dentre vós todos, pertence ao seu povo? Que o Senhor, seu Deus, esteja com ele, e que se ponha a caminho” (2 Cr 36,23). E assim voltaram os exilados, redimidos, prontos para recomeçar uma nova sociedade que deveria ser gerida pela caridade!

Deus é amoroso. É supremo amor. É pleno em misericórdia… e isso quem nos ensina é Paulo, escrevendo aos Efésios (Ef 2,4-10). O apóstolo afirma expressamente: “Deus é rico em misericórdia. Por causa do grande amor com que nos amou, quando estávamos mortos por causa das nossas faltas, ele nos deu a vida com Cristo” (Ef 2,4-5). Deus é, também, justo, pois oferece oportunidade para que o pecador se converta… Deus quer a vida e quer que a defendamos acima de tudo, em favor de todos.

O fato é que por seu amor é justo e misericordioso. Da mesma forma que um pai, estabelece limites para o filho rebelde não se destrua e possa rever seus comportamentos. É necessário que as pessoas tomem consciência de que estão cometendo faltas contra a bondade divina, contra a vida humana e da natureza. Ocorrendo essa consciência de defesa, manutenção e restauração da vida, Deus concede a graça do perdão. O apóstolo é claro ao dizer que “é pela graça que sois salvos, mediante a fé. E isso não vem de vós; é dom de Deus!” (Ef 2,9).

O dom da graça, entretanto, é consequência do bem que realizamos. “Obras boas, que Deus preparou de antemão para que nós as praticássemos” (Ef 2,10). A graça é dom de Deus, mas exige o comprometimento humano! Sem o nosso comprometimento individual, pessoal e definitivo, não tem como a graça agir em nós.

Isso é o que ensina Jesus, na conversa com Nicodemos (Jo 3,14-21). Deus age esperando nossa resposta. Uma resposta que consiste num ato de fé; um ato de fé que conduz à vida eterna: “todos os que nele crerem tenham a vida eterna” (Jo 3,15). A vida terrena, portanto, é o passaporte para a vida eterna. As atitudes neste mundo passageiro abrem as portas para o Reino definitivo

E Jesus insiste na afirmação central dirigida a todos que desejam segui-lo. “Deus não enviou o seu Filho ao mundo para condenar o mundo, mas para que o mundo seja salvo por ele” (Jo 3,17). Feita essa afirmação, Jesus se apresenta como divisor de águas.

É a partir da fé em Jesus, da adesão ao seu projeto que se dá a divisão: “Quem nele crê, não é condenado, mas quem não crê, já está condenado” (Jo 3,18).

O critério de Deus, ou seja a sua justiça, coloca nas mão de cada um de nós a responsabilidade pelos atos praticados. São esses atos que iluminam o caminho humano ou o escurecem. As pessoas aderem à luz divina ou afastam-se dela, num ato de fé ou de incredulidade. E Jesus explica isso da forma muito transparente: “O julgamento é este: a luz veio ao mundo, mas os homens preferiram as trevas à luz, porque suas ações eram más. Quem pratica o mal odeia a luz e não se aproxima da luz, para que suas ações não sejam denunciadas. Mas quem age conforme a verdade aproxima-se da luz, para que se manifeste que suas ações são realizadas em Deus” (Jo 3, 18-21).

E isso nos leva de volta ao ponto inicial: o amor misericordioso de Deus é infinito, mas ele também é infinitamente justo. Concede o perdão e a vida àqueles que o procuram, mas quem não crê e pratica o mal, já está condenado! Não está condenado por Deus, que é amor e perdão, mas pelos seus próprios atos que o afastam de Deus.

 

 

 

Quaresma 5 - É agora o julgamento deste mundo




(Reflexões baseadas em: Jr 31,31-34; Hb 5,7-9; Jo 12,20-33)

Disponível em: https://pensoerepasso.blogspot.com/2021/03/quaresma-5-e-agora-o-julgamento-deste.html




Estamos nos encaminhando para o final da Quaresma. E, se tivermos levado a sério a proposta que a Igreja nos apresenta, durante o tempo quaresmal deveríamos estar fazendo uma revisão de vida com a finalidade de, na Páscoa, ressurgirmos para uma vida nova. Com o objetivo de inaugurarmos um mundo novo. Com o desejo de nos reconduzirmos na direção de um mundo que Deus nos está encarregando de recriar e reconstruir.

Isso nos ajuda a entender a afirmação de Jesus (Jo 12,20-33): “É agora o julgamento deste mundo” (Jo 12,31). Após ter sido julgado o mundo está apto a ser recriado. Isso, também, ajuda a entender o anúncio da promessa do Senhor, nas palavras de Jeremias (Jr 31,31-34): “Virão dias, diz o Senhor, em que concluirei com a casa de Israel e a casa de Judá uma nova aliança” (Jr 31,31). Só é possível uma nova aliança porque a antiga foi superada, seus destinatários não a concluíra; só é possível uma nova aliança porque o mundo foi julgado e preparado para a recriação. E essa recriação pode ser concluída tendo por base a plena obediência de Jesus (Hb 5,7-9), ao Plano do Pai, como nos ensina a carta aos Hebreus. Ou seja, por ser Filho “aprendeu o que significa a obediência a Deus” (Hb 5,8).

O profeta, evidentemente, cumpre seu papel: transmite a mensagem do Senhor. Ele sabe que as pessoas caem nas tentações. Sabe que as pessoas deixam-se levar pelos momentos, sem se preocupar com o depois ou com o além. Mas também sabe que quando as pessoas deixam-se conduzir pelo Senhor, a nova aliança se concretiza e, então, passamos a ser seu povo e Ele nosso Deus. No momento em que efetivamente nos deixarmos conduzir pelo Senhor, Ele nos dirá: “imprimirei minha lei em suas entranhas, e hei de inscrevê-la em seu coração; serei seu Deus e eles serão meu povo” (Jr 31,33). Um novo povo num mundo refeito.

E o Senhor dirá isso a nós porque o povo de Israel não entendeu a proposta. Deus os escolheu para ser o ponto de partida e difusão das propostas de seu Reino, mas eles pensaram que eram os únicos destinatários da promessa. E falharam duplamente: porque não foram fiéis à aliança e nem difundiram as sementes do Reino. A aliança definitiva e a promessa cumpriu-se em Jesus Cristo. Isso o entendemos quando, ao ser procurado pelos gregos (Jo 12,20) Jesus afirma: “Chegou a hora em que o Filho do Homem vai ser glorificado. Em verdade, em verdade vos digo: Se o grão de trigo que cai na terra não morre, ele continua só um grão de trigo; mas se morre, então produz muito fruto” (Jo 12,23-24). Os frutos de Jesus são as pessoas que se engajam na reconstrução do mundo, preparando a instalação do Reino.

Não é demais reafirmar: a Aliança, anunciada pelo profeta, concretiza-se em Jesus. Por isso ele afirma: pois “chegou a hora”.

Chegou a hora de se concretizar a Aliança definitiva, pois Jesus, mesmo em seu sofrimento, cumpre a vontade do Pai. E, assim, como diz a carta aos Hebreus, “na consumação de sua vida, tornou-se causa de salvação eterna para todos os que lhe obedecem.” (Hb 5,9). A proposta, portanto, é universal.

Chegou a hora da angústia de Jesus, por ter que entregar a vida. Mesmo o Filho de Deus sente a angústia da morte. Entretanto não se recusa a cumprir sua missão “Agora sinto-me angustiado. E que direi? Pai, livra-me desta hora? Mas foi precisamente para esta hora que eu vim.” (Jo12,27). Por isso ele afirma e pede: Pai cumpra-se a tua vontade.

Chegou a hora do julgamento do mundo. Ou seja, nossa vida é o momento definitivo. É o instante da opção: podemos aderir ao projeto de Jesus, à proposta do Reino, e então seremos atraídos até o Senhor (Jo 12,32); ou podemos nos recusar a isso e o anticristo tomará conta de nossa vida, como ocorre constantemente, em cada ação desumana que é praticada pelas pessoas.

Mas também chegou a hora da decisão, pois “Agora o chefe deste mundo vai ser expulso” (Jo 12,31). Essa expulsão não será feita por Jesus, pessoalmente, mas por cada uma das pessoas que aderirem ao projeto de amor e solidariedade; de altruísmo e de vida, desfazendo-se dos projetos que colocam o sistema econômico acima da vida; que colocam os interesses políticos acima das pessoas. Por isso, esta é, também, a hora que que o “chefe deste mundo” vai lutar para atrair e manter um maior número de seguidores, ampliando a divisão e negando o diálogo. Nos dias atuais o anticristo, por meio de fake news, de mentira... produz e amplia atos de divisão entre as pessoas usando um “gabinete” de apoiadores.

Mas, chegou a hora! E Jesus é categórico: é a hora do julgamento deste mundo. Consequentemente, é a hora em que chefe desta mundo será expulso. Do ponto de vista litúrgico isso se dá com a Paixão, Morte e Ressurreição de Jesus. Mas do ponto de vista humano e cristão é com nossa vida que fazemos a opção: ou aderimos ao chefe deste mundo e o ajudamos a piorar todas as coisas; ou aderimos a Jesus e nos empenhamos no processo da recriação, contra esse que nega a vida.

Assumindo uma ou outra postura, “é agora o julgamento deste mundo!” A quem vamos aderir?




Ramos - Esvaziou-se a si mesmo




(Reflexões baseadas em: Mc 14,1-15,47; Is 50,4-7; Fl 2,6-11)

Disponível em: https://pensoerepasso.blogspot.com/2021/03/ramos-esvaziou-se-si-mesmo.html







Aqueles de nós que levamos a sério o período quaresmal, possivelmente tenhamos acompanhando os passos de Jesus. E se o tivermos acompanhado, certamente teremos, em algum momento, ouvido dele a interpelação: quando você começará seu processo de conversão?

E agora estamos celebrando o domingo de Ramos, com algumas lições para aprender!

Em primeiro lugar, vamos acompanhar o cortejo no qual Jesus é o centro (Mc 14,1-15,47). Começa com uma procissão triunfante. Narra a entrada de Jesus, sendo aclamado em Jerusalém. A segunda parte dessa cena mostra Jesus em Jerusalém, agora cumprindo plenamente sua missão: prisão e morte. E o interessante dessa narrativa da entrada em Jerusalém, prisão e morte, é que ela termina num momento de suspense. A cena do sepultamento. E lá estavam: “Maria Madalena e Maria, mãe de Joset, observavam onde ele era colocado” (Mc 15,47).

Essa interrupção é proposital. É um link para o que acontecerá na celebração da Páscoa, quando veremos que, mesmo tendo sido morto e sepultado, Jesus é maior que a morte, pois as mulheres que o vão procurar encontram o túmulo vazio. E recebem o comunicado: “Ele ressuscitou!” (Mc 16,6). Mas isso será lá na celebração da Páscoa!

Aqui vamos para a segunda lição: a grande notícia do domingo de Ramos vai além.

A primeira notícia é o fato de evidenciar duas posturas da multidão, diante de Jesus. Num primeiro momento o aclamam com ramos e gritos de “Hosana”. Expressão hebraica que se popularizou como uma aclamação de louvor, mas que significa “Salva-nos”. A multidão pede: salvação contra o império dominador e a restauração do reino de Israel. “Bendito seja o reino que vem, o reino de nosso pai Davi!” (Mc 11,10). A segunda postura da multidão aparece quando acompanha Jesus, no seu julgamento e a caminho do calvário. Agora não é mais aclamado como rei. Embora Pilatos o chame de “Rei dos Judeus” (Mc 15,12). Agora a multidão, não lhe pede salvação, mas que Pilatos o condene: “Crucifica-o!” (Mc 15,13-14).

Essas duas posturas nos levam a uma pergunta: De qual grupo nós fazemos parte?

Evidentemente todos respondemos que somos do grupo que aclama e rende louvores a Jesus. Entretanto, nestes tempos conturbados, onde o diálogo é assassinado e o poder se sobrepõe ao amor, uma indagação se impõe: Será que cantaríamos com honestidade aquela canção: “Seu nome é Jesus Cristo e passa fome / E grita pela boca dos famintos / E a gente quando vê passa adiante / Às vezes pra chegar depressa a igreja”?

Além disso, a Campanha da Fraternidade nos interpela: Como anda nossa capacidade de conviver com o diferente?

O domingo de Ramos, por fim nos coloca diante do profeta Isaías (Is 50,4-7) e do apóstolo Paulo (Fl 2,6-11).

O profeta mostra um personagem que nasceu para falar coisas boas “O Senhor Deus deu-me língua adestrada, para que eu saiba dizer palavras de conforto” (Is 50,4). Mesmo sendo uma “pessoa do bem” esse personagem é agredido, esbofeteado e cuspido (Is 50,6). E, apesar de todo sofrimento, o personagem continua sua missão. Ele sabe que não está só, uma vez que “o Senhor Deus é meu Auxiliador, por isso não me deixei abater o ânimo”

Diante desse trecho da profecia de Isaías, de imediato identificamos esse personagem com Jesus. Mas não seria também um convite para revermos nossas posturas? Como reagimos quando somos mal interpretados ou agredidos por fazermos algo bom? Nunca nos agrediram? Isso significa que convivemos com anjos ou que nunca fizemos algo de bom?

Vamos agora atentar para o que Paulo nos apresenta, de Jesus. Inegavelmente era Deus e convivia com o Pai (Fl 2,6). Mas essa condição divina não o afastou da nossa humanidade. Pelo contrário. O fato de ser Deus foi a causa de se fazer humano: esvaziou-se da condição divina (Fl 2,7); humilhou-se, entregando-se à morte, como um cordeiro, entregue ao sacrifício (Fl 2,7).

Notemos que sua entrega, ou seja, seu “esvaziamento” e sua humilhação, não foram causa de vergonha. Pelo contrário, foram a condição para a exaltação.

Dessa forma é que se apresenta a nós a grande mensagem do domingo de Ramos: Deus se esvaziou de sua divindade para vir ao nosso encontro. E nós, de que vamos abrir mão para mais nos aproximarmos de Deus? Ou ainda precisamos encontrar a Jesus Cristo? Se for esse o caso, lembremo-nos onde podemos encontrá-lo: “Seu nome é Jesus Cristo e está banido / Das rodas sociais e das igrejas / Porque d'Ele fizeram um Rei potente /Enquanto Ele vive como um pobre”.

E tem aquela outra: “as pessoas entram nas igrejas querendo encontrar Jesus no sacrário; mas ele teima em se esconder debaixo do viaduto, nas beiras das calçadas…”

Talvez por isso muitas pessoas estejam sentindo dificuldade para encontrar Jesus. Isso talvez ocorra porque muitas vezes nos esquecemos de que ele se “esvaziou de sua condição divina” para conviver conosco. Plenamente Deus, viveu entre nós como um ser plenamente humano, uma pessoa normal. E fez isso para mostrar como é possível ao ser humano chegar a Deus...

 

 

Quinta Feira Santa - Dei-vos o exemplo

(O Lava-pés)




(Reflexões baseadas em: Ex 12,1-8.11-14; 1Cor 11,23-26; Jo 13, 1-15)

https://pensoerepasso.blogspot.com/2021/03/quinta-feira-santa-dei-vos-o-exemplo.html



Estamos em plena Semana Santa. Nesta semana, ao mesmo tempo que podemos e devemos refletir as leituras que a Igreja nos propõe, também podemos e devemos refletir o significado destas celebrações que estão no coração da fé cristã. De modo especial, a celebração da Quinta Feira Santa, o dia no qual a Igreja celebra a instituição dos sacramentos da Eucaristia e da Ordem.

A leitura, extraída do livro do Êxodo (Ex 12,1-8.11-14), é uma narrativa da Páscoa judaica. Nela podemos destacar: a) a partilha do cordeiro (Ex 12,4) que não deve ser consumido isoladamente, mas em comunidade. É uma celebração em família, com o direito de convidar a família do vizinho. Esse cordeiro nos remete a Jesus o Cordeiro de Deus. b) a unção das portas com o sangue do cordeiro (Ex 12,7), indica, ao mesmo tempo, o caminho por onde passará o anjo exterminador e a entrega de Jesus, que verterá sangue na cruz. c) a refeição feita às pressas (Ex 12,11), indicando que não se trata de uma festa, mas de uma celebração em vista de uma missão. Mais uma ligação com a entrega do Senhor, na eucaristia. A comunhão não se destina ao deleite espiritual, mas ao fortalecimento para a caminhada. d) uma festa memorável (12,14), ou seja, algo a se repetir perpetuamente, da mesma forma que celebramos a Eucaristia, indicando a presença do Senhor, na história do povo sofredor, alimentando-o na busca da libertação.

Isso nos permite dizer que a Páscoa Judaica, efetivamente é um anúncio da Páscoa que se concretiza em Jesus Cristo de forma definitiva e universal. Lá era um cordeiro a ser partilhado; aqui o Cristo Cordeiro de Deus se oferece como alimento para a vida pessoal, alimentado a cada um, mas principalmente vida eclesial, alimentando a participação na vida da comunidade.

E também nos remete às orientação de Paulo à comunidade de Corinto (1Cor 11,23-26). Um texto muito próprio para este momento litúrgico. O apóstolo narra os passos do Senhor entregando-se na eucaristia. O apóstolo, repete as mesmas palavras de Jesus: “Isto é meu corpo que é dado por vós” (1Cor 11,24). O pão, portanto, passa a ser o próprio corpo do Senhor. E está sendo “dado” na forma de uma oferenda. Mas o detalhe é que não é um sacerdote que oferece o sacrifício, mas Jesus, o próprio Cordeiro, que celebra o ritual oferecendo e entregando-se. A mesma afirmação vale para o vinho: que passa a ser o sangue de Jesus; que passa ser a nova aliança. “Este cálice é a nova aliança, em meu sangue” (1 Cor 11,25). Comer e beber o pão/corpo e o vinho/sangue tem tripla finalidade: proclamar a morte de Jesus; esperar o retorno de Jesus e dar sentido à nossa esperança na medida em que nos alimentamos cotidianamente com seu corpo e sangue.

E, como sempre, Jesus radicaliza. No trecho de João (Jo 13, 1-15), que estamos lendo hoje, é evidente essa radicalização: “tendo amado os seus que estavam no mundo, amou-os até o fim” (Jo 13,1). Mas, neste caso, em que consiste a radicalidade de Jesus? Em oferecer-se para nos dar as chaves de seu Reino, pagando o preço dessa entrega. Sendo o exemplo para os seguidores!

Na ceia, prenúncio da Eucaristia, o Senhor se depara com duas situações: de um lado, ceder a tentação de fugir ao seu propósito, uma vez que já sabia que seria traído por Judas (Jo 13,2). Como tudo estava em suas mãos (Jo 13,3), poderia ter fugido ao martírio. Afinal, quem estava agindo nesse sentido era o gerador de divisões (diabo) (Jo, 13,2) que estava no coração de Judas. E hoje devemos nos precaver ainda mais em relação a cada pessoa ou grupo que gera divisão… e são muitos!

Por outro lado, a opção era assumir a conclusão do Plano. Daí sua decisão: despir-se do manto, tomar a toalha e lavar os pés dos discípulos (Jo 13,4-5). Gesto que caracteriza o sacramento da ordem. Talvez por isso, um gesto, em si mesmo, incompreensível para algumas pessoas, mas pleno de significados: a) o mestre não é superior aos discípulos, apenas tem função diferente; b) o mestre não tira proveito pessoal dos discípulos, mas lhes ensina como se colocar à disposição para servir; c) o mestre ensina a partir de gestos que só serão compreensíveis quando o discípulo se entregar completamente ao plano de doação, de acordo com o modelo do mestre (Jo 13,7); d) o mestre que serve não perde a dignidade, mas usa seus gestos para ensinar e orientar os discípulos, como fez o Senhor após lavar os pés dos discípulos: “Vós me chamais Mestre e Senhor, e dizeis bem, pois eu o sou. Portanto, se eu, o Senhor e Mestre, vos lavei os pés, também vós deveis lavar os pés uns dos outros. Dei-vos o exemplo, para que façais a mesma coisa que eu fiz” (Jo 13,13-15).

“Dei-vos o exemplo”, afirma o Senhor. Nisso está um dos pontos centrais da missão de Jesus. E a Quinta Feira Santa se caracteriza por nos colocar esse desafio. Não basta dizermos que somos cristãos. Importa assumir a postura de quem pretende dar prosseguimento à missão de fazer o que fez o mestre: oferecer a vida para servir e produzir transformações no mundo.

Aliás essa é uma característica essencial do cristianismo: não é uma religião que tem por objetivo apenas produzir deleite espiritual, para satisfação individual. É sim a religião em função da ação dentro da sociedade. O cristianismo cobra do crente uma profunda inserção na sociedade com a finalidade de transformá-la, extirpando todos os valores contrários à vida. Quem ensina isso? O próprio Senhor: “Dei-vos o exemplo!”

 

 

Sexta feira santa - Será bem sucedido




(Reflexões baseadas em: Is 52,13 – 53,12; Hb 4,14-16; 5,7-9; Jo 18,1 – 19,42)

Disponível em: https://pensoerepasso.blogspot.com/2021/04/sexta-feira-santa.html




A Sexta Feira Santa é um daqueles dias sobre o qual há pouco que falar. O significado desta celebração fala por si mesmo. É um dia propício ao silêncio interior, a fim de nos colocarmos diante do espelho da nossa vida. É um bom momento para reconfigurar nossa vida e nossas ações.

A Sexta Feira Santa é o dia em que se celebra a completa entrega de vida, a completa doação, a maior prova de amor e que traz, como consequência, o maior milagre: o ressurgimento da vida enterrando os domínios da morte; é a vida se dando para a plenitude da existência. E isso tudo para dar sentido à existência humana.

A Sexta Feira Santa nos leva a ler Isaías (Is 52,13 – 53,12) e a descrição do Servo Sofredor, como uma prefiguração das dores de Jesus. As dores do Servo acontecem para resgate de muitos, uma vez que seu sofrimento possibilita a salvação de todos. Ele foi ferido, esmagado, punido...para curar o mundo, diz o profeta (Is 53,5): “Mas ele foi ferido por causa de nossos pecados, esmagado por causa de nossos crimes; a punição a ele imposta era o preço da nossa paz, e suas feridas, o preço da nossa cura.” As dores do servo são o preço do nosso resgate!

A Sexta Feira Santa é, sem a menor dúvida, a celebração da morte. Mas uma morte que produz vida. É a celebração da semente prenhe de vida depositada no útero da terra (Jo 19,42), ventre fértil formado por Deus, renascendo em vida plena. A semente, por si mesma é só semente, mas semeada, enterrada… é promessa de vida. Assim é a Sexta Feira Santa: celebração que fundamenta a fé num porvir de felicidades.

A Sexta Feira Santa é o dia do resgate, conforme as palavras de Isaías (53,12): “Por isso, compartilharei com ele multidões e ele repartirá suas riquezas com os valentes seguidores, pois entregou o corpo à morte, sendo contado como um malfeitor; ele, na verdade, resgatava o pecado de todos e intercedia em favor dos pecadores.” Essa descrição do Servo, se concretiza em Jesus Cristo, na celebração desta Sexta Feira, igual a todas as outras, mas essencialmente diferente, pois aqui, numa cena de morte, se celebra a vida!

A Sexta Feira Santa, de acordo com a carta aos Hebreus (4,14-16; 5,7-9) é um momento decisivo: para Jesus é “ consumação de sua vida”; e para nós é “causa de salvação eterna” (Hb 5,9). É uma celebração sem pompas, sem brilho de adereços. Mas isso porque na simplicidade e singeleza da celebração está o dom da grandeza do gesto salvador.

A Sexta Feira Santa é a memória que fazemos da agonia de Jesus que “dirigiu preces e súplicas, com forte clamor e lágrimas, àquele que era capaz de salvá-lo da morte” (Hb 5,7). E, apesar dessa agonia não deixou de se entregar ao seu propósito, com o objetivo de nos ensinar o caminho: a glória não é dom gratuito, mas uma conquista das lágrimas: chorou a mãe, choraram os amigos, choramos nós… mas essas lágrimas regam a semente da vida ressurgida da morte!

A Sexta Feira Santa é a outra face do Natal. Como qualquer ser humano, Jesus nasceu para morrer, mas como Cristo de Deus, morreu para dar via. Para nos mostrar o caminho da vida. Por participar de nossa humanidade é o único “capaz de se compadecer de nossas fraquezas” (Hb 4,15)

A Sexta Feira Santa, acima de tudo, é o dia em que celebramos a fidelidade de Deus, na forma humana, ao acompanharmos a narrativa de seus últimos passos (Jo 18,1 – 19,42). Uma fidelidade acima de todos os nossos medos e mesquinhez, pois mesmo diante da negação de Pedro (Jo 18, 17.25.27), foi capaz de interceder pela liberdade dos seus: “Se é a mim que procurais, então deixai que estes se retirem” (Jo 18,8).

A Sexta Feira Santa, por ser o dia da entrega definitiva, despojando-se da vida, Jesus nos dá até mesmo sua mãe, que passa a ser nossa mãe. “Depois disse ao discípulo: 'Esta é a tua mãe'. Daquela hora em diante, o discípulo a acolheu consigo.” (Jo 19,27). E, dessa forma, passamos a fazer parte da família de Deus, pois fomos adotados pela mãe de Deus no altar da cruz!

A Sexta Feira Santa, é uma celebração de poucos cantos, de compenetração, de reflexão, de revisão de conduta, de exame de consciência, de entrega… mas é, também, celebração de agradecimento: Jesus de Nazaré, é o Servo Sofredor que se oferece como o Cristo de Deus; celebração de penitência: nas dores de Jesus podemos lavar nossa maldade para alvejar nossa vida convertida a Deus e aos irmãos; celebração do silêncio: depois de passar a noite em oração, Jesus é aprisionado nas cadeias de nossa omissão ao seu Projeto; celebração da tomada de consciência: nossos erros pessoais e sociais continuam sendo grilhões e cravos no corpo de Jesus Cristo pobre e marginalizado em nossa sociedade...

Por fim e por tudo isso, a Sexta Feira Santa nos coloca diante de necessidade de uma tomada de decisão: agirmos como Pedro, negando ao Senhor; ou agirmos como o discípulo amado, acolhendo a mãe, e com ela seu Filho que se dá por nós. É a decisão que nos cobra a celebração da Sexta Feira Santa.

 

 

Vigília Pascal - Ide depressa




(Reflexões baseadas em: Gn 1,1-2,2; Êx 14,15-15,1; Rm 6,3-11; Mc 16,1-7)

Disponível em: https://pensoerepasso.blogspot.com/2021/04/vigilia-pascal-ide-depressa.html



A celebração da Páscoa pode ser feita a partir de diferentes olhares e significados.

Primeiro porque nesta noite de luz, a Igreja nos convida à mais longa lista de leituras. Ao todo são nove leituras: desde o Gênesis até o trecho do Evangelho. É a celebração mais solene e vibrante. Apesar de, do ponto de vista popular, a celebração do Natal envolver mais popularidade, a celebração da Vigília Pascal é aquela que dá sentido ao ano litúrgico; dá sentido à quaresma; dá sentido ao advento e ao Natal. Tudo porque é nesta noite que celebramos a Ressurreição.

Para os hebreus, a Páscoa foi a saída da escravidão para a liberdade. Foi, ao mesmo tempo, um projeto social, político e religioso. Talvez por esse motivo textos do livro do Êxodo, narrando os preparativos para comer o cordeiro e a saída para o deserto; narrando a travessia do Mar Vermelho, continuem motivando as comunidades cristãs a clamarem por libertação. A liturgia da vigília nos apresenta: Êxodo 14,15-15,1

Para Jesus, a Páscoa foi o coroamento de suas pregações e a superação do martírio, das dores e da morte ressignificando a Páscoa hebraica evidenciando não só o amor divino para com seu Filho mas também para mostrar aos cristãos o verdadeiro sentido da vida (Mc 16,1-7). A vida que se encaminha para a morte, tem na Páscoa de Jesus, um significado pleno de ressurreição. Jesus foi o primeiro, para nos indicar o caminho, dizendo-nos com sua vida, paixão e morte, que seu seguidor não terá apenas alegrias, mas que as dores serão superadas pois a cruz é a chave para a ressurreição.

Para a Igreja, a Páscoa é um momento litúrgico que tem na celebração da Paixão do Senhor o ponto de partida para a celebração da vida que teima em ressurgir. Por isso, a Igreja, no Brasil, utiliza a campanha da Fraternidade para dizer aos fiéis que não basta ajoelhar, rezar e voltar para casa como se nada estivesse acontecendo na sociedade. A Igreja nos afirma e cobra de nós que nos convertamos durante a quaresma, nos purifiquemos na Semana Santa e reassumamos novos projetos de sociedade, com justiça, paz e novas relações amorosas entre as pessoas. A Igreja ressurge na Páscoa com o objetivo de ser auxilio para os fiéis interferirem na sociedade a fim de que “todos tenham vida”. Por isso é que ouvimos, de Paulo (Rm 6,4-11), está admoestação: “Pelo batismo na sua morte, fomos sepultados com ele, para que, como Cristo ressuscitou dos mortos pela glória do Pai, assim também nós levemos uma vida nova. 5 Pois, se fomos de certo modo identificados a Jesus Cristo por uma morte semelhante à sua, seremos semelhantes a ele também pela ressurreição” (Rm 6,4-5)

Para os cristãos a Páscoa é a celebração da vida nova em Cristo Ressuscitado e, ao mesmo tempo, a esperança de superação das dores do dia a dia, enquanto se caminha para a morada definitiva. A celebração da Páscoa cristã, não se limita a ouvir e meditar as leituras proferidas durante a celebração. Não se esgota na confraternização familiar… Como membro da Igreja, corpo de Cristo, o cristão é aquele que faz acontecer, em seu dia a dia, em seu ambiente de trabalho, em suas relações familiares e sociais o projeto de vida nova ressuscitada dos túmulos das injustiças produzidas por todos os que continuam matando o Cristo-presente-em-nós. A Páscoa, para o cristãos, é a atualização da ressurreição de Cristo e da missão da Igreja na sociedade, pois o cristão é a face da Igreja na sociedade.

Por tudo isso, quando celebramos a Páscoa estamos mostrando ao mundo que, muito mais do que dizer que cremos na vida superando a morte, nós queremos valorizar a vida a ser edificada ao longo dos dias que antecedem a morte. Estamos querendo dizer que os sistemas de morte que se instalaram na vida das pessoas e na sociedade em que vivemos podem e devem ser superados, com planos de equidade e participação. Sem que isso ocorra, mesmo que façamos belas celebrações continuaremos crucificando Jesus. Por isso é necessária a transformação dos comportamentos, pois Cristo ressuscitou para nos oferecer vida nova!

E, talvez, pelo fato de os cristãos ainda não acreditarem no potencial transformador da mensagem cristã. Talvez, por não vivenciarem a mensagem que dizem acreditar. Talvez, por se aliarem mais aos difusores da morte, a partidos e sistemas que não valorizam a vida… talvez por tudo isso é que acaba prevalecendo a páscoa do mercado. Mas é necessário insistir: aquela do mercado, NÃO É PÁSCOA! É só comércio!

Por esse motivo é que, para o mercado, a páscoa é somente um dia a mais a ser explorado, ao mesmo tempo que se exploram as pessoas.

Então a Páscoa, em seu sentido mais cristão, eclesial, bíblico e em sintonia com Jesus Ressuscitado, ainda está para acontecer em sua plenitude.

A ressurreição de Cristo já aconteceu, mas ainda falta produzirmos sua ressurreição na sociedade. Essa é a nossa missão no mudo: anunciar a vida nova que está por vir. Hoje é a nós que Jesus ressuscitado está enviando, mediante as palavras do anjo às mulheres: “Ide depressa contar aos discípulos que ele ressuscitou dos mortos, e que vai à vossa frente” (Mt 28,7).

Por esse motivo, para dar testemunho da vida ressurgindo da morte, é que as mulheres ouvem estas palavras: "Não vos assusteis! Vós procurais Jesus de Nazaré, que foi crucificado? Ele ressuscitou. Não está aqui. Vede o lugar onde o puseram. Ide, dizei a seus discípulos e a Pedro que ele irá à vossa frente, na Galileia. Lá vós o vereis, como ele mesmo tinha dito." (Mc 16,6-7).




Páscoa - Viu e acreditou




(Reflexões baseadas em: At 10,34a. 37-43; Cl 3,1-4; Jo 20,1-9)

Disponível em: https://pensoerepasso.blogspot.com/2021/04/pascoa-viu-e-acreditou.html



Será que nós já nos demos conta do que aconteceu nestes dias? Será que, realmente, compreendemos o que ocorreu não só nas celebrações da Semana Santa, mas com aqueles que viveram os eventos que deram origem às nossas celebrações?

A indagação tem sentido, porque uma coisa é celebrarmos a Paixão de Cristo, sua ressurreição, sua Páscoa. Outra coisa é entendermos e assumirmos em nossa vida aqueles acontecimentos, para que eles alimentem nossa fé.

Ocorre que nem sempre celebramos com base na fé. Aliás, creio que podemos dizer que na maioria dos casos, as pessoas “vão na onda”… fazem por que esse é o costume…

Você sabe que isto é verdade: As celebrações da Semana Santa passam pela vida de muitos, mas nem todos celebram a Semana Santa. Você sabe, assim como eu, que as celebrações podem ocorrer porque aprendemos com nossos pais; porque é tradição; porque “todo mundo faz”... Elas podem representar uma conveniência e convenção social… afinal de contas não fica bem um comportamento diferente do que todo mundo faz… Já pensou uma Páscoa sem comprar e dar presentes? Sem aquelas mensagens de felicitações que compartilhamos, às vezes sem entender direito? Já pensou numa Páscoa sem os coelhinhos e os chocolates?… Já se deu conta de que isso, por vezes ou na maioria das vezes, tem mais a ver com os apelos comerciais do que com celebração da vida que brota da terra na forma de Jesus, o Cristo de Deus mostrando o caminho da ressurreição pascal?

Entretanto, apesar de tudo isso, a celebração da Semana Santa e da Pascoa tem sentido de ser porque nos apresenta um convite para a eternidade.

Sabemos desse convite e o recebemos, porque alimentamos uma fé que nasce das escrituras. No livro dos Atos dos Apóstolos, temos uma prova disso (At 10,34a. 37-43). Pedro comenta o fato e sua origem: “aconteceu em toda a Judeia, a começar pela Galileia” (At 10,37). E o que foi que lá aconteceu? A manifestação da graça divina, na pessoa de Jesus de Nazaré. Ele que foi “ungido por Deus com o Espírito Santo e com poder. Ele andou por toda a parte, fazendo o bem e curando a todos” (At 10,38). E, por ter feito o bem, foi assassinado, pregado na cruz (At 10,39).

Entretanto, essa foi só a face humana e histórica daquilo que fundamenta nossa fé. Isso representa um fato que, por si mesmo, dispensa a fé, pois pode ser comprovado. A sequência dos fatos, isso sim é elemento de fé. Isso realmente representa algo grandioso. Isso merece ser celebrado, pois indica a grandiosidade da proposta que Deus mantém. O que vem depois da cruz é o verdadeiro sentido da fé, pois depois da morte na cruz, Jesus não permaneceu na morte. Depois da cruz “Deus o ressuscitou no terceiro dia, concedendo-lhe manifestar-se” (At 10,40). A ressurreição e suas manifestações, isso sim é objeto de fé. Em quem? No Senhor que realizou essas coisas, nos indicando o que nos espera; e fé no testemunho daqueles que vivenciaram os fatos.

Nossa fé tem por base a certeza do que nos afirmaram aqueles que receberam a missão de divulgar o que Deus fez. E a missão foi confiada pelo próprio Jesus, o Cristo ressuscitado, como nos informa Pedro: “E Jesus nos mandou pregar ao povo e testemunhar que Deus o constituiu juiz dos vivos e dos mortos.” (At 10,42).

A ressurreição de Jesus tem muito mais a nos dizer. E a nos mostrar: o caminho para a eternidade. O caminho foi aberto pela ressurreição de Cristo, mas trilhá-lo depende de nós, dos nossos comportamentos e atitudes. E Paulo, na carta aos colossenses (Cl 3,1-4), insiste nesse ponto. A vida eterna nos é oferecida e está à nossa disposição. Entretanto, precisamos desejá-la e lutar por ela. “Esforçai-vos por alcançar as coisas do alto”, diz Paulo. E insiste: “aspirai às coisas celestes e não às coisas terrestres.” (Cl 3,1-2). É como se o apóstolo dissesse: “de que adianta existir água fresquinha na geladeira, se eu não me dirijo a ela para matar minha sede?”

Para isso acontecer temos que nos espelhar na Páscoa de Jesus. Sua Páscoa não foi somente a passagem, da morte para a vida, mas foi, também sua passagem pela história dos homens. Ele passou pela vida, como qualquer um de nós e, por isso e pelo que realizou nessa passagem – sua Páscoa entre nós – pode viver a Páscoa definitiva, passando da morte para a vida. Quando chegar nossa vez, caso tenhamos trilhados os passos do mestre, passaremos a viver com Ele “revestidos de glória” (Cl 3,4) para sempre.

Nisso reside o sentido da celebração e o motivo de celebrarmos a Páscoa com Jesus: em nossa vida refazermos os passos do Senhor, com a fé de que também trilharemos seus passos na direção da morada definitiva.

É claro que podemos continuar dando e recebendo presentes; comprando e dando chocolate; distribuindo coelhinhos e mensagens otimistas e belas… mas temos que entender: tudo isso tem a ver com o comércio, com convenções sociais… mas só isso não é celebração de Páscoa. É só comércio. A Páscoa tem a ver com reconstrução da vida nos moldes do que fez e ensinou Jesus!

A Páscoa, de Jesus e a nossa com o Cristo ressuscitado, exige o compromisso da fé, conforme a proposta que podemos ler em João 20,1-9. Não basta apenas sermos anunciadores com a angústia da incerteza da Madalena (Jo 20, 1-2): “Tiraram o Senhor do túmulo, e não sabemos onde o puseram”. É necessária, também a postura do discípulo amado que, ao ver a cena, compreende e acredita: “Ele viu, e acreditou. De fato, eles ainda não tinham compreendido a Escritura, segundo a qual ele devia ressuscitar dos mortos” (Jo 20, 8-9) abrindo caminhos para a vida…




Neri de Paula Carneiro

Filósofo, teólogo, historiador, mestre em educação

Outros escritos do autor:

Filosofia, História, Religião: https://www.webartigos.com/index.php/autores/npcarneiro

Literatura: https://www.recantodasletras.com.br/autores/neripcarneiro

Sagrada Família: para se cumprir!

Reflexões baseadas em: Eclo 3,3-7.14-17a; Cl 3,12-21; Mt 2,13-15.19-23 Todos os que, de alguma forma, tiveram contato com os ensinamentos d...