sexta-feira, novembro 24, 2023

Cristo Rei: o Filho do Homem em sua glória

Reflexões baseadas em: Ez 34,11-12.15-17; 1Cor 15,20-26.28; Mt 25,31-46)







No dia em que a Igreja celebra “Jesus Cristo: Rei do Universo”, ela pode nos dizer muita coisa e nos orientar em relação aos nossos comportamentos. Ela nos diz que Deus cuida dos seus; e nos orienta a respeito às nossas atitudes em relação às outras pessoas.

Além deste ser o último domingo do ano litúrgico, as leituras que a Igreja nos propõe para a reflexão, são um forte convite: ou estamos do lado de Deus ou estamos sem Ele. Não há meio termo. Mas o estar ou não com Deus, não depende do Senhor, mas das nossas opções. Isso fica muito claro nas palavras de Ezequiel (Ez 34,11-12.15-17). E mais nítida ainda é a afirmação de Jesus (Mt 25,31-46). As palavras do Senhor não poderiam ser mais claras: “todas as vezes que fizestes isto a um dos menores dos meus irmãos, foi a mim que o fizestes” (Mt 25,40).

O profeta mostra a disposição de Deus em cuidar de nós, seu rebanho. Ele afirma: “Eu mesmo vou procurar minhas ovelhas e tomar conta delas”. E por que o Senhor faz isso? Por que vai cuidar de suas ovelhas? Porque os pastores, aqueles que deveriam cuidar do rebanho, as dispersou; os maus pastores deixaram que as ovelhas se perdessem. E quando as ovelhas estavam perdidas o Senhor veio pessoalmente para resgatar o rebanho. Isso no-lo afirma o profeta e o demonstra Jesus Cristo com sua paixão e ressurreição.

Para socorrer as ovelhas extraviadas, feridas, enfraquecidas e doentes (Ez 34,16), o Senhor se coloca como pastor zeloso, cuidadoso, e pronto a fazer justiça (Ez 34,17). Em meio a essa situação catastrófica para com o rebanho, o Senhor, proprietário do rebanho, do curral e das pastagens… vem em defesa das suas ovelhas, mal cuidadas por aqueles que as deviam proteger. E o cuidado do Senhor, não será como a dos pastores irresponsáveis e negligentes. O cuidado do Senhor é feito em sintonia com o direito: contra os pastores negligentes e opressores exerce sua justiça; e, para completar, separa as ovelhas e dos bodes (Ez 34,17).

E em defesa dos marginalizados e sofredores, excluídos e desprezados, Jesus se coloca como Juiz. E assume essa postura não só porque é o Senhor, Filho de Deus feito homem, mas porque é o Rei e soberano do universo (Mt 25,31).

A pergunta que nos colocamos, neste ponto é: por que um Deus tão compassivo e disposto ao perdão assume sua majestade e se coloca como juiz definitivo? Ou, dizendo de outra forma: Por que o Senhor, em sua vinda gloriosa, separará ovelhas e cabritos?

A primeira resposta é a afirmação de que a convivência com os maus pastores corrompeu o rebanho. Por causa dos maus pastores muitos se afastaram da proposta inicial, apresentada ainda no livro do Gênesis: Tudo que Deus fez é muito bom; como tudo é bom e bem feito, deu aos seres humanos uma só missão: Crescer!

A segunda resposta diz respeito a cada um de nós e vale para todos os tempos. Trata-se das nossas atitudes. Noutras palavra: não é o Senhor que fará a separação, mas aquilo que tivermos realizado é que mostrará a nossa essência.

Assentado sobre seu trono de glória, Jesus, o pastor eterno, chamará a todos. Ovelhas e bodes; bons e maus. “Todos os povos da terra serão reunidos diante dele” (Mt25,32). Então é que fará a seleção. Então é que apresentará sua lista com os critérios seletivos. Então cada um olhará para aquilo que tiver realizado ao longo de sua vida, como quem olha em um espelho. Nesse momento cada um de nós olhará o espelho de sua vida...

E, então, nos veremos como somos.

E, então, não é o Senhor quem julga, mas cada um de nós é que nos aproximaremos do Senhor, em função das nossas obras; ou nos afastaremos dele, envergonhados por tudo que tivermos realizado ao longo de nossa vida.

Os atos dos nossos pais do Gênesis inseriram no mundo o germe da maldade, nos ensina Paulo (1 Cor 15,20-26.28). Mas pelos méritos de Jesus, tivemos nova oportunidade. Mas continuamos livres… podemos ou não, aderir ao projeto de Deus! A escolha é nossa!

E essa nova oportunidade, selada com o sangue na Cruz, é a face do espelho diante do qual nos colocaremos para nos olharmos em plenitude.

Esse espelho nos mostra que não é o Rei do Universo que nos julga, mas as nossas atitudes cotidianas é que nos aproximam ou mostram que nunca aderimos ao projeto de Reino. O juiz definitivo, portanto, não é o Senhor, mas nós mesmos ao percebermos se cumprimos ou não as exigências, os critérios do Reino.

O senhor está de braços abertos para nos acolher. O reflexo das nossas obras nos impulsionará para retribuirmos ao abraço definitivo; ou nos obrigará a nos afastarmos, curtindo uma eternidade de vergonha e remorsos por não termos feito aquilo que poderia sanar a dor dos menores irmãos do Senhor.

O senhor, Rei do Universo, quer a todos em seu reino… mas nem todos estão dispostos a aderir ao seu projeto…

Neri de Paula Carneiro.

Mestre em educação, filósofo, teólogo, historiador

Outros escritos do autor:


sexta-feira, novembro 17, 2023

Os talentos

Reflexão baseada em: Provérbios 31,10-13.19-20.30-31; 1Tessalonicenses5,1-6; Mateus 25,14-30




O que nos vem à cabeça quando ouvimos ou falamos ou lemos a palavra talento?

Parece que a maioria de nós pensa em uma determinada habilidade para realizar algo: fulano tem talento para a música; aquele menino tem talento para contar piada. Aquela menina é uma dançarina talentosa… Ou seja, ao mencionarmos talento, estamos nos referindo a uma qualidade; uma característica que tem a ver com algo valoroso. Um valor humano!

E o que nos vem a cabeça quando lemos, nos textos bíblicos, a palavra talento?

Parece que nos vem a cabeça a ideia de moeda, pagamento, recompensa, retribuição… Parece que nos lembramos mais de aspectos econômicos do que de habilidades. Parece que tem algo a ver com valor, sim, mas valor econômico.

Voltemos à questão: o que, exatamente, significa o talento bíblico? Essa é a questão que nos é apresentada por Mateus (Mt 25,14-30), no trecho conhecido como parábola dos talentos. Também o livro dos Provérbios apresenta as características de uma mulher virtuosa (Pr. 31,10-13.19-20.30-31), ou “talentosa” (Pr. 31,10). Até mesmo Paulo, na carta aos Tessalonicenses (1 Ts 5,1-6), chama a atenção para uma virtude, um talento, uma habilidade, que a comunidade deve preservar: a vigilância (1 Ts 5,6)

Então voltemos à questão: o que é o talento, na bíblia?

Não se trata, nem de uma moeda nem de uma virtude ou habilidade. Trata-se de uma unidade de medida de volume. Popularmente chamaríamos de peso. E, mais especificamente, o talento, correspondia ao volume que podia variar entre aproximadamente 30 a 40 quilos, dependendo do lugar e da época. Parece que no tempo de Jesus correspondia a um volume entre 25 a 30 quilos.

Poderíamos dizer, portanto, que na parábola narrada por Mateus os servos receberam, respectivamente (Mt 25,15): o primeiro, cinco talentos correspondendo a aproximadamente 150 quilos dos bens do seu patrão; o outro recebeu dois talentos, que correspondia a aproximadamente 60 quilos dos bens do patrão. E o terceiro recebeu um talento que correspondia a aproximadamente 30 quilos dos bens do patrão.

Esses bens tanto podiam ser em ouro como em prata – ou outro bem. Mas como os dois primeiros aplicaram os talentos e ao retornar o patrão repreende ao terceiro por não ter aplicado nem depositado no banco (Mt 25,27), isso nos leva a supor ou a imaginar que eram moedas de ouro ou prata. O primeiro transformou os cinco em dez; o segundo transformou os dois em quatro. E o terceiro escondeu o tesouro (afinal, trinta quilos de prata/ouro é um tesouro, é um valor alto)…

Agora, convenhamos: será que Jesus estava querendo falar a respeito de riquezas, de ouro e prata? Ou ele queria chamar nossa atenção para algo muito mais valoroso?

Com certeza não estava interessado em ouro ou prata, mas nas posturas, nos comportamentos, nas atitudes. Usa a metáfora, uma parábolas, para chamar nossa atenção em relação a uma postura muito mais importante: ser capaz de agir e não de se esconder. Importa ser capaz de realizar as obras da construção do reino e não se omitir, como o servo que escondeu o tesouro.

Isso nos é demonstrado na descrição da mulher ideal. Notemos que as virtudes elogiadas, em primeiro lugar não são os dotes domésticos, mas o fato de ser merecedora de confiança (Pr 31,11) e promotora da felicidade (Pr 31,12). Suas mãos são elogiadas, por executarem algumas tarefas (Pr 31,13.19), mas sua principal virtude é a generosidade para com o necessitado (Pr 31,20) e sua fé no Senhor (Pr 31,30).

Paulo reforça a importância da postura voltada não para os valores econômicos, mas para aqueles que podem conduzir à vida. O apóstolo não diz que os bens materiais são imprestáveis ou que sua posse é condenável. Afirma que a base da confiança não são os bens, mas a vigilância. Não basta ter tudo e acreditar que isso trará “paz e segurança” (1 Ts 5,3). A verdadeira segurança não se deposita nos bancos, mas está depositada na confiança para com o Senhor. O acúmulo dos bens, ao invés de produzir confiança e agradecimento ao Senhor, leva a acomodação e à displicência. O verdadeiro valor se manifesta na vigilância. “Portanto, não durmamos, como os outros, mas vigiemos e sejamos sóbrios” (1Ts 5,6).

E isso nos traz de volta à narrativa de Mateus. O discurso tem, sim, uma base econômica, mas a parábola, como é de sua natureza, leva para algo que está além; a parábola é uma comparação que arremete àquilo que realmente importa: fazer com que o servo (o cristão) que é fiel, ou seja, aquele que faz de sua vida uma ação transformadora para mais, possa participar das alegrias do Senhor: “Parabéns, servo bom e fiel! Como te mostraste fiel na administração de tão pouco, eu te confiarei muito mais. Vem participar da alegria do teu senhor!” (Mt 25,21.23).

Em compensação, aquele que se diz cristão, mas não faz nenhuma ação transformadora, em sua vida nem na sociedade, esse é o servo “mau e preguiçoso” (Mt 25,26). Esse merece ser descartado pois escolheu esconder sua capacidade de transformar (Mt 25,30).

E a nós, cabe nos perguntarmos: qual tem sido nossa ação? Como temos nos comportado? Qual servo nós somos? O que temos feito com nossos talentos?




Neri de Paula Carneiro

Mestre em educação, filósofo, teólogo, historiador

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quinta-feira, novembro 09, 2023

O noivo está chegando

Reflexões baseadas em: Sb 6,12-16; 1 Ts 4,13-18; Mt 25,1-13)




No meio da noite, um grito: “O Noivo está chegando!”

Não se preocupe, este não é um conto de suspense: é Mateus (Mt 25,1-13) narrando uma das parábolas de Jesus. Portanto não é um grito de medo, suspense ou terror, mas um alerta e convite para iniciar a recepção daquele que, na cultura judaica, é o centro da cerimônia. Junto com esse grito de alerta está o convite para atender ao apelo da Sabedoria (Sb 6,12-16).

A pergunta que agora se faz é: qual o significado dessa parábola, narrada por Mateus?

No livro da Sabedoria está a primeira dica: mostra algumas características da Sabedoria que, em várias passagens da Bíblia, pode ser identificada com o Espírito Santo. A primeira característica é a afirmação de que a “Sabedoria é luminosa” (Sb 6,12). Essa luz permite que ela seja contemplada e encontrada pelos que a procuram. Ela mostra-se àqueles que a desejam (Sb 6,13). Mas atenção ao detalhe: Ela não só se mostra como também “sai à procura dos que dela são dignos” (Sb 6,16).

Isso implica dizer que a Sabedoria, dom do Espírito, é compartilhada por Deus com quem a procura, mas essa busca implica na dignidade, ou seja, no merecimento.

Isso implica dizer, também, que muitos a buscam, mas são indignos dela. Esses podem até praticar atos inteligentes, ter posturas que aparentam sabedoria, mas não passam de atos interesseiros. Não se trata de sabedoria, mas de esperteza. Aqueles golpes maravilhosos efetuados pelos malandros; aquelas artimanhas e emaranhados de falcatruas dos políticos… aparentam sabedoria, mas demonstram apenas a esperteza, a capacidade de enganar. A esperteza não é uma face da sabedoria e sim uma demonstração da capacidade para enganar os outros. Isso não é divino, pelo contrário: é diabólico. É o diabo quem instrui os enganadores, malandros, mentirosos...

Cada um dos políticos que enganam o povo com belos discursos ou cada golpe dos espertalhões de plantão, não evidenciam uma expressão da sabedoria, mas uma demonstração de sua face diabólica. A esperteza é diabólica, porque não pensa no crescimento coletivo. E, por ser individualista, busca apenas a vantagem pessoal; a sabedoria é divina, porque se preocupa não com o indivíduo mas com a coletividade. A sabedoria busca a satisfação e felicidade de todos.

A sabedoria está representada pelas cinco acompanhantes do cortejo nupcial, que levaram não só as lamparinas acesas, mas também o óleo para reabastecê-las ao longo da festa (Mt 25,4). A esperteza são as cinco acompanhantes que somente levaram as tochas acesas, sem o combustível para abastecimento (Mt 25,2). A esperteza malandra aparece em sua tentativa de se dar bem e tirar proveito da sabedoria das outras, tentando ludibriá-las: “Dá, nos um pouco do seu óleo” (Mt 25,8).

Mas a sabedoria, orienta e corrige a malandragem: “Não podemos fazer isso porque, se o fizermos ficaremos todas desabastecidas e a festa perderá o brilho.” A sabedoria mostra o caminho da honestidade e sensatez: “Da mesma forma que nós fomos ao mercado e compramos, vão vocês também. Comprem o que lhes falta e todos teremos o suficiente” (Mt 25,9).

Só a sabedoria pode se contrapor aos espertalhões. Só a sabedoria pode construir a justiça e a equidade. Só a sabedoria pode desbancar os espertalhões e aproveitadores.

Aqui está um significado da parábola: Jesus mostra que as acompanhantes descuidadas, aproveitadores, não se deram bem; ao terem seu golpe desmascarado, foram obrigadas a buscar, por conta própria, a solução de sua deficiência: “vão vocês mesmas comprar o que lhes falta”. E, por estarem despreparadas; por terem tentado se aproveitar das outras; por terem deixado pra depois; por terem ido às compras fora de hora; por não estarem comprometidas com a festa… as cinco não entraram na festa de Jesus (Mt 25,12). Colheram o resultado de sua ação.

Nessa perspectiva, também podemos entender a carta de Paulo aos tessalonicenses (1 Ts 4,13-18). Nem na vida nem na morte o cristão pode se esquivar à fazer justiça. Nem na vida nem na morte há privilégios ou privilegiados. O que há é postura comprometida com a equidade e com a ordem estabelecida pelo Senhor.

E, de Jesus, ouvimos o conselho: “Vigiai, pois não sabeis o dia, nem a hora” (Mt 25,13). São necessárias a vigilância e a sabedoria. É a sabedoria que determina o grau de vigilância e o comprometimento com a chegada do Noivo, convidando a todos para a festa no céu, para a qual Jesu nos convida.

O Noivo concede a liberdade para que as pessoas não se preparem, para a festa. E, nesse caso, até tolera e aceita que se tente sanar a deficiência. Mas para isso tem que haver honestidade e não tentativa de se aproveitar do outro.

Todos são convidados para a festa. Só não temos a informação sobre o momento em que ela vai começar. Por isso, é necessária a sabedoria, sem apelar para a postura aproveitadora; por isso é necessário ver o que temos para contribuir e não só quer tirar vantagem.

É a sabedoria que vem de Deus, que é dom do Espírito… e que nos permite, quando soar o grito, acompanhar o Noivo, que é o próprio Jesus em seu regresso.

O grito vai soar, resta saber como estamos cuidando de nossas lâmpadas. Com sabedoria ou com esperteza? Quando menos esperarmos ouviremos o grito: “O noivo está chegando!”




Neri de Paula Carneiro

Mestre em educação, filósofo, teólogo, historiador

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quinta-feira, novembro 02, 2023

Finados: o sentido da morte é a vida!

(Reflexões baseadas em: João 6,37-40; Jó (19,1.23-27; Rm 5,5-11)




Na celebração do dia de Finados podemos lembrar o que Raul Seixas cantou no último verso de sua música “Caminhos”: “O caminho da vida é a morte”. Com isso, certamente, querendo nos dizer que ao ser vivo, neste mundo, não há outra alternativa: vive por um período, que pode ser curto ou longo, mas invariavelmente termina no encontro com a morte, companheira do fim da vida.

Num escrito sobre filosofia, tempos atrás, dizíamos que o sentido da vida é a morte. E, antes disso, em nosso livro, “Filosofia dos muros” mencionamos uma frase, pichada no muro de um cemitério, em Londrina: “Caminhe pela vida e encontre seu objetivo: a morte”.

Como você pode ter percebido, nestes dois parágrafos mencionamos: finados e cemitério; e por quatro vezes a palavra morte. Assim sendo: se o “caminho da vida”, o sentido da vida e o objetivo da vida encontram-se na morte, podemos nos perguntar: Qual o sentido da morte?

Aparentemente, na música de Raul Seixas e no muro do cemitério, a palavra morte está associada à ideia de término. E até a denominação de “dia de finados” está associada à ideia de fim. Finado é aquele que finalizou. Chegou ao ponto final. Terminou. Assim, o dia de finados, é o dia dos mortos, entendendo a morte como ponto final. É o dia em que se celebra os que chegaram ao final de suas vidas; aquele cuja vida terminou. Essa, de fato, é uma das faces do dia de finados.

Mas se atentarmos para a liturgia do dia de finados, ou dos “fiéis defuntos”, como a Igreja denomina este dia, notaremos que se pode desenvolver outra compreensão a respeito deste dia. Quando prestamos atenção aos textos bíblicos que a Igreja nos propõe para refletirmos sobre o “dia de finados”, notaremos que não se celebra a morte como um fim, mas como preparação para uma vida plena. Ou seja, a morte é uma porta de entrada!

No livro de Jó (19,1.23-27) a tônica é a Esperança. Por que Jó tem esperança? Ele responde: “Porque meu redentor está vivo”. E completa dizendo que no final o redentor “se levantará sobre o pó!” (Jó, 19,23-24). E conclui, sobre seu momento final: “Eu mesmo o verei, meus olhos o contemplarão” (Jó 19,27). Isso implica dizer que, haverá, sim o processo da morte, mas esse processo não é o fim. Não é o ponto final. É, no máximo, uma vírgula, para levar adiante o discurso da vida. A morte é a ponte que liga esta vida àquela preparada por Deus.

Seguindo adiante, na carta de Paulo aos romanos (Rm 5,5-11) a tônica da esperança se mantém. Escrevendo à comunidade de Roma o apóstolo afirma que “a esperança não decepciona” (Rm 5,5). E por que a esperança não decepciona? Porque ela procede da própria vida de Cristo. É a vida, morte e ressurreição de Cristo que nos fazem ter esperança. A morte de Jesus, portanto é, além de sinal de esperança, certeza da reconciliação com o Pai. Em nossa vida cotidiana, frequentemente nos afastamos de Deus, mesmo assim Ele nos oferece a reconciliação pois “fomos reconciliados com Ele pela morte de seu Filho, quanto mais agora, estando já reconciliados, seremos salvos por sua vida” (Rm 5,10). Essa, portanto é a nossa esperança: em nossas limitações podermos contar com o suporte do sangue derramado pelo Senhor, mostrando-nos que a morte não é definitiva, pois do sangue derramado nasce a vida nova na ressurreição, abrindo e mostrando-nos o caminho.

Outra indicação da transitoriedade da morte são as palavras do próprio Jesus, narradas por João (6,37-40). Jesus afirma ter vindo cumprir a vontade do Pai: resgatar a todos. “Todo aquele que o Pai me dá, virá a mim, e quem vem a mim eu não lançarei fora” (Jo 6,37). Jesus, cumprindo a vontade do Pai, é canal e caminho seguro para chegar ao Pai: “E esta é a vontade daquele que me enviou: que eu não perca nenhum daqueles que ele me deu, mas os ressuscite no último dia” (Jo 6,40). Ressurgindo da morte Jesus, nos dá sua certeza: a nós também ressuscitará.

Então o que celebramos no dia de finados, na celebração dos “fiéis defuntos”? Não celebramos a morte, mas a vida. Celebramos a certeza da vitória da vida sobre a morte. Celebramos a certeza de que, a vida presente tem prazo de validade, mas a vida que nos espera é eterna.

Além disso, também podemos celebrar nossa esperança. Não uma esperança que lança tudo para um depois indefinido, mas aquela que nos faz caminhar, que nos impulsiona. Aquela esperança que nos lança em frente na construção dos nossos projetos e no projeto definitivo junto ao Pai.

Mais ainda. Celebrar o dia de finados implica em fazer um exame de vida. E a preocupação de nossas reflexões não deveria ser com a morte, mas com a vida. A morte é certa, mas o que conta é a vida que levamos para o momento de nossa morte. Portanto não deveríamos nos preocupar com a morte ou em saber “qual será a forma de minha morte?” (como contou Raul Seixas) mas nos indagar “como estou conduzindo esta vida que me levará a uma morte?”. Depois de minha morte viverei com Deus ou sem ele?

Justamente por esse motivo a Igreja nos propõe a celebração de Todos os Santos ligada ao dia de finados. Ao celebrar todos os santos somos convidados a rever nossa vida construindo nossa santidade para, ao chegar o nosso dia de finado não caiamos no ponto final. A proposta é que em nosso dia final, tenhamos uma vida santa para entregar ao Pai.

Assim sendo, o caminho da vida, sim, é a morte; o sentido da vida, é a morte; o objetivo da vida é a morte… mas o objetivo da morte é a vida!




Neri de Paula Carneiro

Mestre em educação, filósofo, teólogo, historiador

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quarta-feira, novembro 01, 2023

Todos os Santos no sangue do Cordeiro

(Apocalipse 7, 2-4.9-14; 1 Pd 1,14-15; 1 João 3,1-4; Mateus 5,1-12a)




Por que um santo é santo? O que faz um santo ser santo?

Possivelmente seja essa a grande pergunta para a qual todos queremos uma resposta, quando celebramos o dia de Todos os Santos. E, se celebramos “Todos os Santos”, também nos perguntamos por que alguns são santos e outros não? O que diferencia um santo das demais pessoas? Ele passa a ser santo quando a Igreja o denomina ou é santo durante sua vida terrena?

Podemos iniciar compreendendo o significado da palavra “santo”. Além de significar “algo sagrado”, a palavra “santo” tem a conotação de algo ou alguém escolhido por Deus. Como se pode ver na primeira carta de São Pedro aos “eleitos conforme a presciência de Deus Pai e pela santificação do Espírito, para obedecerem a Jesus Cristo” (1 Pd 1,1). Esses “eleitos” sãos os escolhidos por Deus para formar uma “nação santa”, cono diz o apóstolo: “Vós sois a gente escolhida, o sacerdócio régio, a nação santa, o povo que ele adquiriu, a fim de que proclameis os grandes feitos daquele que vos chamou das trevas para sua luz maravilhosa.” (1 Pd 2,9).

Mas a santidade não é via de mão única. Não basta a escolha divina. Tem que ter uma resposta humana. Essa é a orientação que podemos ler na primeira carta de Pedro: “Como filhos obedientes, não moldeis a vossa vida de acordo com as paixões de antigamente, do tempo de vossa ignorância. Antes, como é santo aquele que vos chamou, tornai-vos santos, também vós, em todo vosso proceder.” (1 Pd 1,14-15). A santidade, portanto, tem a ver com as posturas, com os comportamentos do dia a dia.

Há, portanto, um chamado divino, uma escolha divina e ao ser humano, cabe dar uma resposta. Resposta que se expressa na manutenção de uma vida exemplar; cabe viver num processo de purificação e “praticar um amor fraterno sem fingimento. Amai-vos, pois, uns aos outros, de coração e com ardor”(1 Pd 1,22), orienta Pedro. Sem atos de amor ao outro, não há santidade.

A proposta à santidade vem de Deus, mas a resposta é postura humana, como ensina João, em sua primeira carta (1 Jo. 3,1-3). É necessário, da parte humana, aderir àquele que deu seu sangue purificador: “Todo o que espera nele, purifica-se a si mesmo, como também ele é puro.” (1 Jo 3,3).

A afirmação da importância da adesão, da fé, da esperança, da confiança em Jesus Cristo, pode ser lida em outro escrito joanino. No livro do Apocalipse (7, 2-4.9-14). Aí encontramos os eleitos, aqueles que aderiram ao chamado. Eles formam “uma multidão imensa de gente de todas as nações, tribos, povos e línguas, e que ninguém podia contar. Estavam em pé diante do trono e do Cordeiro; trajavam vestes brancas e traziam palmas na mão” (Ap 7,9).

E João explica o porquê dessa multidão trajar vestes brancas: isso ocorre porque eles enfrentaram e superaram a “grande tribulação”. A fé, sendo expressa em atos, tem consequências. Essas consequências manifestam-se nas tribulações da vida cotidiana. Por isso, João afirma que, ao enfrentarem, ao passarem e ao superarem, as tribulações, aqueles que formam essa multidão “lavaram e alvejaram as suas roupas no sangue do Cordeiro". (Ap 7,14).

E quem faz parte dessa multidão? Quem nos dá essa resposta é Mateus (Mt 5,1-12a), dizendo que a multidão de eleitos é formada pelos “bem aventurados”: os pobres, os aflitos, os mansos, os que desejam justiça, os misericordiosos, os de coração puro, os promotores da paz, aqueles que são perseguidos por serem justos, aqueles que são injuriados e perseguidos por causa de sua prática cristã. Todos esses são bem aventurados, são os santos, são os eleitos… são os que deram uma resposta ao chamado de Deus. Podemos até dizer mais. Os santos não são aqueles que passam a vida rezando, mas os que fazem de sua vida uma oração constante; são os que colocam sua vida a serviço dos irmãos; são os que não se calam nem se intimidam diante dos podere e poderosos que oprimem ao povo… são esses, todos, os santos porque se distinguem dos demais ao se fazerem agentes do bem contra as cruzadas do mal!

É claro que a Igreja, só para nos evidenciar alguns modelos de virtude, escolhe entre seus santos do cotidiano, alguns para nos servirem como modelos. E a esses santos dedica-lhes um dia específico. Entretanto, a celebração de todos os santos não se destina à exaltação daqueles que já mereceram o destaque dos altares. A celebração de todos os santos é dedicada aos santos do cotidiano.

No dia de todos os santos a Igreja nos convida a prestar homenagem a esses que fazem de sua vida um cotidiano de resposta ao apelo divino. Todos os batizados, são convidados a fazer isso: ser santo em seu dia a dia. Se aceitarmos a proposta, o mundo pode vir a ser melhor: será o mundo de todos os santos. Pois os santos não são santos porque fazem milagres, ou coisas extraordinárias, mas porque fazem sua vida ser extraordinária por fazer de sua vida um serviço em favor do Reino.




Neri de Paula Carneiro.

Mestre em educação, filósofo, teólogo, historiador

Outros escritos do autor:


Sagrada Família: para se cumprir!

Reflexões baseadas em: Eclo 3,3-7.14-17a; Cl 3,12-21; Mt 2,13-15.19-23 Todos os que, de alguma forma, tiveram contato com os ensinamentos d...