sábado, julho 31, 2021

Alimento que se perde ou que permanece?

Reflexão a partir de: Ex 16,2-4.12-15; Ef 4,17.20-24; Jo 6,24-35




O que nos faz aderir ou recusar uma ideia ou um projeto social, religioso, político…? Por que defendemos isto ou aquilo e condenamos outras tantas coisas?

A resposta não poderia ser outra: nossos interesses! Aderimos ou recusamos algo se esse algo satisfaz, ou não, nossos interesses.

Podemos observar isso em nosso cotidiano e na vida das pessoas com as quais convivemos. Buscamos aquilo que nos interessa e recusamos o que não nos agrada, que foge ou que vai contra nossos interesses. Mas isso não ocorre somente entre nós. Também percebemos isso entre os filhos de Israel, no livro do Êxodo (Ex 16,2-4.12-15), da mesma forma que nas palavras de Jesus, narradas por João (Jo 6,24-35).

Em síntese: São os interesses que movem o mundo. E se quisermos emprestar as palavras de Jesus, podemos dizer que “onde está o teu tesouro, aí está o teu coração!” (Mt 6,21)

Mas se os interesses movem o mundo e as ações das pessoas, como entender as atitudes dos filhos de Israel? Compreensível que estivessem insatisfeitos com a servidão egípcia. Seu interesse, portanto, era a libertação. E por isso clamaram ao Senhor que os libertou. Mas agora livres, no deserto, estão insatisfeitos! Reclamam da alimentação e sentem saudades do que deixaram no Egito! E, novamente, clamam ao Senhor, no seu “murmurar contra Moisés e Aarão, no deserto” (Ex 16,2).

Algo semelhante percebemos nas palavras de Jesus, ao interpelar as pessoas que o procuravam. “Em verdade, em verdade, eu vos digo: estais me procurando não porque vistes sinais, mas porque comestes pão e ficastes satisfeitos” (Jo 6,26).

Com isso Jesus afirma que a cena da multiplicação dos pães não foi só um sinal-milagre, mas uma ação social; ao mesmo tempo mostra qual grupo social o procura: os mais pobres; aqueles que nada possuem para comer; aqueles que seguem Jesus porque ele age estimulando as pessoas a se envolvam no processo da partilha. Ou seja, o milagre de Jesus não foi gerar pão, a partir do nada, mas consistiu em criar as condições para a partilha do que já existia entre as pessoas. E hoje a situação é a mesma: Já existe alimento, para todos, e com sobras. Não falta alimento, o que falta é partilha.

Temos, então a seguinte situação: o fenômeno da partilha decorre da boa vontade ou dos interesses das pessoas. Ela pode ocorrer se as pessoas desenvolverem esse interesse: se estiverem interessadas em ser solidárias. Diante disso Jesus interpela quem o procura, chamando a atenção para uma correção de rumos. Primeiro mostra que a partilha é fundamental; que é um sinal do Reino; além disso diferencia aqueles que são seus seguidores (os que sabem partilhar) e aqueles que dificultam a prosperidade de Reino e acumulam de forma excessiva. Por isso a verdade desta afirmação: o que falta para muitos é o que sobra entre alguns.

Só que Jesus dá um passo a mais. Mostra que, na ótica do Reino, o ponto de chegada não é o pão cotidiano, mas o Reino daí a importância de aderir àquilo que conduz à vida eterna. Demonstra que o acesso ao reino e a vida eterna passam pela partilha, mas a partilha é caminho ou um meio para se chagar ao Pai. A partilha é sinal de que houve compreensão dos caminhos do Reino. “Esforçai-vos não pelo alimento que se perde, mas pelo alimento que permanece até a vida eterna, e que o Filho do homem vos dará” (Jo 6,27).

Os interlocutores de Jesus entenderam seu apelo e pediram: “Senhor, dá-nos sempre desse pão” (Jo 6,34). E Jesus esclarece, afirmando que ele é o pão eterno. Mostra também, com o gesto da partilha, que o pão eterno, aquele que alimenta para a vida definitiva, nasce e se desenvolve na mesma proporção em que ocorre partilha. Quanto mais cresce a sociedade sem excluídos, mais próximos estamos do Reino definitivo. Jesus explica o motivo: “Eu sou o pão da vida. Quem vem a mim não terá mais fome e quem crê em mim nunca mais terá sede” (Jo 6,35).

E se isso vale para a multidão que procurava por Jesus, a fim de ser saciada, vale também para os filhos de Israel, reclamando no deserto. E para nós, em nosso cotidiano!

E para nós, talvez aqui esteja a grande lição: é necessário reclamar contra a situação na qual se está sofrendo, pois nosso interesse é a felicidade. Mas, também é necessário o esforço pessoal e social, para superar essa situação. Quando as forças pessoais e do grupo são insuficientes, a ajuda não vem da lamentação; não vem daqueles que se prostram na reclamações; não vem dos que se acomodam na miséria; não vem das promessas politiqueiras em tempo de eleição… a força e as soluções nascem da confiança no Senhor e da organização popular!

Daí a necessidade de nos lembrarmos: Deus não fará por nós aquilo para o quê nos deu forças de realizar. Dessa forma podemos entender a afirmação de Paulo aos Efésios, dizendo ser necessário renunciar à existência passada e concentrarmo-nos num novo centro de interesses. “Despojai-vos do homem velho, que se corrompe sob o efeito das paixões enganadoras, e renovai o vosso espírito e a vossa mentalidade. Revesti o homem novo, criado à imagem de Deus, em verdadeira justiça e santidade” (Ef 4,22-24).

E isso nos leva à indagação que deriva da proposta de Jesus. Isso nos leva a nos indagarmos sobre qual alimento queremos para nortear nossa vida: o que se perde ou o que permanece?



Neri de Paula Carneiro

Mestre em educação, filósofo, teólogo, historiador

Outros escritos do autor:

Filosofia, História, Religião: https://www.webartigos.com/index.php/autores/npcarneiro;

Literatura: https://www.recantodasletras.com.br/autores/neripcarneiro.



quinta-feira, julho 22, 2021

Para que nada se perca - O povo passa fome





Reflexões baseadas em: 2Rs 4,42-44; Ef 4,1-6; Jo 6,1-15




Aconteceu em 1980, em Teresina. Na época, o papa João Paulo II – hoje santo canonizado – viu uma faixa, em meio à multidão: “Santo Padre, o povo passa fome”. No mesmo instante rezou: “Pai nosso, o povo passa fome”. Mas não era só comida, o povo também desejava acesso a direitos sociais, políticos… o povo queria sair da situação de pobreza. Por isso apelou ao papa: o líder religioso, talvez, pudesse ajudar nas questões sociais, em favor dos necessitados.

Alguns séculos antes de Cristo, as pessoas sofriam com as dificuldades, em meio à pobreza (2Rs 4,42-44). Houve fome na região, diz o livro dos Reis. Foi assim que, ao ver uma pequena multidão à sua frente, “Eliseu, o homem de Deus”, ensinou o caminho da partilha: vinte pães alimentaram as cem pessoas.

Entre estes dois episódios encontramos outro personagem e seu gesto revolucionário. Trata-se de Jesus de Nazaré, (Jo 6,1-15) alimentando a multidão. Aqui, entretanto, é possível que alguém diga: para Jesus foi fácil dar alimento a “aproximadamente cinco mil homens”.

Não foi, e digo o porquê. Também para não cometermos uma injustiça contra Jesus ou Eliseu, nesta lição de partilha. Temos que dizer, com todas as letras da palavra santa: Não foi Jesus quem deu o alimento! O mesmo vale para o livro dos Reis, narrando o gesto de Eliseu. A partilha ocorreu porque alguém ofereceu o que tinha. E isso dezenove séculos antes do ateu Karl Marx propor a partilha socialista/comunista.

Um grupo estava passando necessidade e chegou “um homem de Baal-Salisa, trazendo em seu alforje para Eliseu, o homem de Deus, pães dos primeiros frutos da terra: eram vinte pães de cevada e trigo novo” (2Rs 4,42). Quem acompanhava Eliseu até argumentou: isso é muito pouco para cem pessoas. Mas o “homem de Deus” não deu ouvido para a postura negacionista. Simplesmente mandou que tudo fosse distribuído. Eliseu disse apenas: “Dá ao povo para que coma; pois assim diz o Senhor: ‘Comerão e ainda sobrará’” (2Rs 4,43). Como se vê Eliseu apenas organizou e direcionou a postura socialista do homem de Baal-Salisa. Todos comeram e “ainda sobrou, conforme a Palavra do Senhor” (2Rs 4,44). Qual a lição? Onde há partilha não há fome!

Com o papa João Paulo II não houve partilha de pão, mas de consciência de Igreja. Aquela faixa e as palavras do santo padre, em plena ditadura militar, chamaram a atenção do mundo para a situação do Brasil, para as condições de vida do povo, para a miséria provocada pela concentração de rendas. O santo padre, da mesma forma que Eliseu, foi apenas o mediador de uma nova proposta de partilha. Ao afirmar que o povo passa fome, está afirmando que alguns concentraram muito e o que eles têm a mais é o que falta na mesa dos que passam fome, os amados de Deus.

Mas, entre João Paulo e Eliseu, está Jesus.

E o que o Homem de Nazaré ensina? O mesmo que ensinou a Eliseu e o papa: o caminho da partilha. Da mesma forma que Eliseu, Jesus nada tinha para distribuir. Sabia o que ia fazer (Jo 6,6), mas ele não tinha alimento para a multidão. Tinha sua palavra salvadora, mas não os pães e peixes. Tinha palavras para a vida eterna, mas não alimento para a barriga. O que tinha, Jesus distribuiu: primeiro ele valorizou a oferta de quem partilhou para servir ao outro: “Está aqui um menino com cinco pães de cevada e dois peixes” (Jo 6,9); em seguida ele ensinou a organização para atingir o objetivo: “Fazei sentar as pessoas” (Jo 6,10).

Jesus sabia que as multidões o procuravam para sair das dificuldades e enfermidades. Por isso lhes dava o que queriam e o que precisavam. Jesus os curava. E, em relação à fome, valorizou a fé, que eles já possuíam. E usou dessa fé para evidenciar o caminho da solução para os problemas. Uma solução que depende daquilo que podemos oferecer para o outro. Por isso ensinou a organização para a partilha do pão e do peixe que alguém estava oferecendo.

Jesus multiplicou, e continua multiplicando, aquilo que temos para oferecer. Se ofertamos bastante, a multiplicação é maior, mas se apresentamos apenas nossas mesquinharias, essa será nossa recompensa. Mas, acima de tudo, Jesus ensina que, para os problemas sócio-políticos, as soluções também são sócio-políticas. A oração vem como motivação para a luta, para desenvolver consciência de classe e de organização social; ajuda a ter humildade para agradecer. Mas as soluções devem crescer entre nós.

Os negacionistas agem como Felipe: “onde iremos comprar tanto pão?” (Jo 6,5); ou como André: “Nem duzentos mil bastariam para atender a todos” (Jo 6,7). Mas Jesus, que sabe das coisas diz, simplesmente: “Manda o povo se organizar!” (Jo 6,10). Contra a mesquinharia de alguns, a organização popular é a solução.

Neste ponto somos levados à conclusão, apontada por Paulo (Ef 4,1-6). Ela é simples: se há um só corpo, um só Espírito, um só Senhor, uma só fé e somente um Deus e sabendo que esse que é único ensina o caminho da partilha para um mundo socialista e solidário, então todo aquele que age contra essa proposta divina, não é de Deus! Não vem de Deus!! Não leva a Deus!!! Pois o Deus, Pai do Senhor Jesus, que nos dá seu Espírito de Amor, é um Deus da Partilha; é um Deus da solidariedade; é um Deus da vida.




Neri de Paula Carneiro

Mestre em Educação, Filósofo, Teólogo, Historiador

Outros escritos do autor:

Filosofia, História, Religião: https://www.webartigos.com/index.php/autores/npcarneiro;

Literatura: https://www.recantodasletras.com.br/autores/neripcarneiro.


quinta-feira, julho 15, 2021

Ovelhas sem pastor

Reflexões baseadas em: Jr 23,1-6; Ef 2,13-18; Mc 6,30-34







Lobos ferozes. Vorazes. Insaciáveis.

Assim podemos descrever a grande maioria dos integrantes de um grupo que subverteu a ordem política da política. E não estou falando nem da esquerda nem da direita. Estou falando de um grande grupo dentro de um grupo social que se dedica à política partidária. Desse grupo apensas uns poucos não se transformaram em lobos ferozes. Vorazes. Insaciáveis…. Inescrupulosos.

Alguém pode perguntar, baseado em quê você afirma isso?

Nas palavras de Jesus, respondo (Mc 6,30-34). Mas se forem necessários mais argumentos, posso recorrer também às palavras de Jeremias (Jr 23,1-6). Paulo também me dá razão (Ef 2,13-18).

O desavisado pode dizer: As palavras de Jesus, em Marcos e a profecia de Jeremias estão se referindo aos pastores. O que tem isso a ver com a voracidade dos lobos?

Certo, a condenação é feita aos pastores. Mas, os pastores sendo negligentes, qual a consequência para o rebanho? (E, para que não haja dúvidas, a metáfora refere-se aos dirigentes de qualquer grupo religioso, independente da denominação ou placa devocional!)

O rebanho abandonado pelos pastores fica a mercê da ferocidade voraz dos lobos. Por esse motivo a irritação de Jeremias: “Ai dos pastores que deixam perder-se e dispersar-se o rebanho de minha pastagem” (Jr 23,1). Esses pastores afugentaram e dispersaram o rebanho – o povo de Deus. Da mesma forma que olhando o povo abandonado – o rebanho escolhido – Jesus se compadece; ao ver “uma numerosa multidão e teve compaixão, porque eram como ovelhas sem pastor” Mc (6,34).

Abandonado pelos pastores, o povo – rebanho escolhido – tornou-se vítima dos lobos. E quem são os lobos? Todos aqueles que se aproveitam do povo; produzem as dores do povo; enganam o povo… Todos os lobos sedentos e insaciáveis que, prometem de tudo aos necessitados, esbravejam contra tudo que prejudica ao povo, entretanto, usam disso para se popularizar e, dessa forma, mais enganar ao povo. Um exemplo disso é o corrupto afirmando que vai combater a corrupção!!!

Ao aceitar ou defender essas distorções o pastor acaba sendo parceiro do lobo. Aliás, torna-se pior do que o lobo, pois em troca de vantagens pessoais induz o rebanho/povo a ser devorado/enganado pelos lobos.

Entre os indivíduos do povo/rebanho não cessam as dificuldades. Para ajudá-los o Senhor institui os pastores (lideres religiosos). Como auxiliares para sanar os problemas, também se criam as instituições políticas. Ambos a serviço da população. Uma a partir da dimensão religiosa e a outra a partir de necessidades sociais. A religião não existe num mundo afastado dos problemas sócio-políticos. A religião faz parte da vida e a vida ocorre em sociedade. Sendo assim, quando a dimensão religiosa abandona o pastoreio, permite que as instituições sócio-políticas se transformem em lobos vorazes, cuja ferocidade devora a esperança da população.

Entretanto, se pastores, convertidos em lobos abandonam ao povo, o Senhor permanece fiel. Jeremias afirma que o Senhor se compromete a reunir um resto de ovelhas que não se perdeu. Esse resto se multiplicará, e será conduzido por bons pastores até que chegue aquele que fará valer a justiça. Esse, “Senhor, nossa Justiça” (Jr 23,3-6) não terá seu nome, nem seus filhos envolvidos em falcatruas, podendo, assim restaurar a esperança, libertando das garras dos lobos e maus pastores.

Contra esses falsos pastores é que Jesus se posiciona ao ver a multidão “como ovelha sem pastor”. Em favor desse povo abandonado é que Ele se compadece. E isto tem que ficar bem claro: a compaixão do Senhor nãos se deve a um aspecto religioso, mas às suas necessidade concretas de comida, casa, segurança, trabalho, saúde… Jesus sabe que o povo é devoto e orante; e também sabe que o povo passa fome! E, mais uma vez, sua compaixão tem a ver com essas necessidades básicas.

As pessoas aderiam a Jesus e seguiu os discípulos não porque os ensinavam a rezar, mas porque foram curados e saciados (a devoção todos já tinham – e hoje, continuam tendo). Jesus e os discípulos eram amados porque supriam necessidades básicas: davam saúde e comida; e com isso alimentavam a esperança de que dias melhores estavam por vir. Além disso condenavam os exploradores do povo: pastores maus e lobos vorazes.

O fato é que, na medida em que os pastores fazem mais pelos lobos que pelo povo, seu mau exemplo arrasta ovelhas desprotegidas. E, dessa forma, as ovelhas passam a seguir os lobos que as devoram. Como consequência dos maus pastores unidos aos lobos, o rebanho fica dividido ao ponto de, ovelhas enganadas, defenderem seus algozes. Daí a necessidade de se prestar atenção às palavras de Paulo (Ef 2,13-18): olhar para a postura de Jesus, que nunca esteve do lado dos poderosos. Sempre esteve do lado dos fracos, explorados e vítimas da divisão, em busca da unidade.

É necessário, portanto, que as ovelhas sem pastor, se reunifiquem a fim de construir a paz entre as vítimas, erguendo uma barreira contra os lobos. É, necessário, portanto, reaprender com Jesus que teve compaixão da multidão de ovelhas sem pastor. É necessário seguir Jesus que “começou, pois, a ensinar-lhes muitas coisas” (Mc 6,34), entre elas, como se libertar das garras dos maus pastores!




Neri de Paula Carneiro

Mestre em educação, filósofo, teólogo, historiador

Outros escritos do autor:

Filosofia, História, Religião: https://www.webartigos.com/index.php/autores/npcarneiro;

Literatura: https://www.recantodasletras.com.br/autores/neripcarneiro.

quinta-feira, julho 08, 2021

Vai profetizar!

Reflexões baseadas em: Am 7,12-15; Ef 1,3-14; Mc 6,7-13




Admiro muito da franqueza do profeta Amós. Principalmente neste trecho (Am 7,12-15) no qual afirma estar agindo por mandato divino.

Suas palavras nos ensinam que muitos daqueles que dizem estar falando em nome de Deus, muitas vezes estão defendendo um tirano ou algum usurpador da Palavra de Deus. Aqui ele denuncia os erros do sacerdote Amasias, entretanto, suas palavras valem para os dias atuais. Certamente ele condenaria muitos dos que tentam calar a profecia dizendo que “a Igreja não deve se meter em política”. Não sabem, estes, que uma das características da profecia é, justamente, a atuação política na forma de denúncia contra os monarcas e sacerdotes!

Importante notar que essa postura, recheada de hipocrisia, só condenam a postura da Igreja solidária quando ela denuncia suas mazelas, malandragens e malversação das coisas públicas. Porém, quando algum traidor da Palavra de Deus apoia o armamentismo, condena a solidariedade comprometida, alia-se a agentes do mal... não dizem que a Igreja está fora de seu oficio.

Algo semelhante podemos ver nas palavras de Paulo (Ef 1,3-14). Também o apóstolo insiste na escolha divina. E o interessante é que, enquanto Amós afirma que o chamado divino tem a ver com a denúncia das estruturas apodrecidas e geradoras de sofrimento, por seu lado, Paulo insiste no objetivo para os quais somos escolhidos. Em Cristo, Deus nos escolheu “antes da fundação do mundo, para que sejamos santos”; “para sermos seus filhos adotivos”; “para o louvor da sua glória”(Ef. 1,4-6).

Com isso somos levados à seguinte indagação: Se somos adotados para a santidade, como diz Paulo, qual o caminho a ser percorrido para atingir esse objetivo? Tanto o apóstolo como o profeta sugerem a resposta: ser agente do anúncio da mensagem divina e da denúncia das estruturas corrompidas e que impedem a plenitude da vida.

E quem nos diz isso é ninguém menos do que Jesus de Nazaré (Mc 6,7-13). Não diz, exatamente com palavras, mas ao indicar as ações que os discípulos devem executar: expulsar demônios e curar os enfermos. Com essa finalidade convocou os discípulos e “começou a enviá-los dois a dois, dando-lhes poder sobre os espíritos impuros” (Mc 6,7).

Em seu tempo, e Jesus bem o sabia, muitas doenças e sofrimentos e dificuldades pelas quais passavam as pessoas, eram vistas como coisas demoníacas. E essa demonização do sofrimento provocava um mal viver. Portanto, encarregar os discípulos de expulsar os demônios era a mesma coisa que promover a cura. E promover a cura era reintroduzir as pessoas ao convívio social. E não são poucas as vezes em que Jesus cura e manda a pessoa curada se reintegrar ao seu grupo familiar… social… religioso… passando antes pelo templo a fim de que os sacerdotes reconhecessem a cura. E isso era promoção da vida.

Nem Jesus nem seus discípulos se deliciavam com o sofrimento; não desdenhavam as dores; não menosprezavam quem os procurava em busca de alento… pelo contrário, demonstravam empatia. A todos acolhiam e ofereciam o conforto da cura. Para a dor ofereciam acalento, pois a vida de cada um era vista como coisa sagrada: dom de Deus.

Por outro lado, Jesus mostrava sua Ira Santa e indignação contra aqueles que não se dedicavam à promoção da vida. Principalmente aqueles que tinham dever de o fazer, em razão de seu ofício, como os sacerdotes… e as lideranças políticas. Contra esses e todas as autoridades, que eram verdadeiros representantes das forças demoníacas, foi que Jesus enviou seus discípulos. Contra todos os que se haviam apropriado da Palavra de Deus e a usavam contra os pequeninos.

Contra essas injustiças e posturas maldosas é que Deus escolhe algumas pessoas. Como Amós, um vaqueiro e cultivador de figos. A ele Deus incumbiu de profetizar, anunciando uma ruína iminente. Se aqueles que têm o poder da nação, não se converterem em favor dos fracos, toda a nação sofrerá. Não por castigo divino, mas por irresponsabilidade dos dirigentes. E o profeta anuncia não a morte dos que promovem a maldade, mas sua ruína: sua esposa se prostituirá; seu filho será assassinado. Deus, como ninguém mais, sabe que maus políticos causam a dor da população e a ruína da nação. Contra isso Deus chamou o profeta.

Mas, por outro lado, se houver conversão, ensina a sabedoria de Paulo: aqueles que promovem a vida, e que colocaram “sua esperança em Cristo”; aqueles que colocarem em prática a “palavra da verdade”, esses poderão ser “marcados com o selo do Espírito prometido, o Espírito Santo, que é o penhor da nossa herança para a redenção do povo que ele adquiriu, para o louvor da sua glória” (Ef 1,11-14).

E Jesus dá uma orientação final: “Se em algum lugar não vos receberem,
nem quiserem vos escutar, quando sairdes, sacudi a poeira dos pés, como testemunho contra eles!Então os doze partiram e pregaram que todos se convertessem.” (Mc 6,11-12).

E assim a denúncia do profeta e o anúncio do apóstolo se encontram na ordem dada pelo Senhor: Vai profetizar!




Neri de Paula Carneiro 
Mestre em Educação, filósofo, teólogo, historiador

Outros escritos do autor:

Filosofia, História, Religião: https://www.webartigos.com/index.php/autores/npcarneiro;

Literatura: https://www.recantodasletras.com.br/autores/neripcarneiro.


sexta-feira, julho 02, 2021

Pedro e Paulo - “O Senhor enviou o seu anjo”

(Reflexões baseadas em: At 12,1-11; 2Tm 4,6-8.17-18; Mt 16,13-19)




Na solenidade de São Pedro e São Paulo somos convidados a nos espelharmos na postura não de uma mas de duas das pedras sobre as quais Jesus instituiu a Igreja.

Não importa a denominação: católica ou qualquer das demais Igrejas cristãs. Importa que se a Igreja é cristã, não pode menosprezar ou deixar de considerar estes dois personagens:

Pedro porque, em diferentes oportunidades foi o principal personagem a contracenar com Jesus, nas andanças, nas conversas, nas orações, na explosão de entusiasmo ou, de forma equivocada, com a espada na mão, apressando-se na defesa do Senhor.

Paulo porque, como poucos, difundiu as palavras do mestre ao qual nem chegou a conhecer em vida. Mas não tem como negar que foi por sua iniciativa que o cristianismo avançou para além das fronteiras e se tornou universal.

Ambos com a mesma e única paixão: Jesus de Nazaré, o jovem que foi assassinado porque levou às últimas consequências as ideias e os ideais de amor; o jovem que ousou ouvir, olhar e descer ao nível dos marginalizados; o jovem que foi morto mas ressuscitou confirmando, contra qualquer dúvida que ainda pudesse restar, que ele era o Messias, o enviado do Pai.

Nos Atos dos Apóstolos (12,1-11) vemos encontramos Pedro acorrentado. Está preso e em risco de ser executado por ser adepto e defender e difundir a mensagem de um criminoso: Jesus de Nazaré o crucificado. Numa cena em que também podemos ver como Jesus age em defesa dos seus: Simplesmente os liberta e os coloca a caminhar.

Na segunda carta a Timóteo (2Tm 4,6-8.17-18) é Paulo quem dá o testemunho não somente de sua confiança no Cristo libertador, como também dos efeitos de sua pregação. Afinal foi Jesus que, ao lhe conceder o Espírito santificador, ofereceu as condições para que “a mensagem fosse anunciada por mim integralmente, e ouvida por todas as nações” (2Tm 4,17). Podemos dizer, sem sombra de dúvidas, que se hoje somos uma nação cristã, devemos isso a Paulo, o homem que levou a mensagem de Jesus, aos pontos mais distantes. Graças a isso a palavra de Jesus chegou a nós.

O Pedro, na cena dos Atos dos Apóstolos, pode transmitir a impressão que está abatido, como que sentindo a derrota. Ele sabe que será apresentado àqueles que assassinaram Jesus e que, certamente, os mesmos pedirão sua execução. Afinal, Herodes não age diferente dos políticos atuais. Não importa quem é a vítima, o que importa é tirar proveito de sua desgraça. Herodes quer satisfazer os Judeus e, em troca, continuar governando como se tudo estivesse bem. Entretanto, as coisas não estavam bem, pois o povo sofria; passava fome e, como sempre ocorre, somente os ricos tinham enormes vantagens com a situação. Herodes e os mandatários da época uniam-se para sugar o sangue do trabalho do povo, exatamente como ocorre em nossos dias.

Pedro representava as aspirações de libertação, justiça social. Uma sociedade sem excluídos. Uma sociedade de respeito e dignidade para todos. Plena de esperança de dias melhores. Por ter sido escolhido pelo Mestre como suporte da Igreja, Pedro sabia que podia contar com a comunidade e, dessa forma, enquanto “era mantido na prisão, a Igreja rezava continuamente a Deus por ele.” (At 12, 5). Por esse motivo, não estava abatido, pelo contrário, sabia que o Senhor não o havia abandonado. E, ao ser libertado, disse com convicção, fé e certeza: "Agora sei, de fato, que o Senhor enviou o seu anjo para me libertar do poder de Herodes e de tudo o que o povo judeu esperava!" (At 12,11). Ele sabia: o Senhor não abandona os seus…

A mesma certeza e segurança ouvimos de Paulo.

Prisioneiro, sabe que a hora de sua execução está próxima: “Quanto a mim, eu já estou para ser derramado em sacrifício; aproxima-se o momento de minha partida” (2Tm 4,6). Mesmo sabendo o destino que o aguarda, não perde o ânimo, nem a esperança e menos ainda a certeza de seu destino final. E externa isso em três afirmações fortes (2Tm 4,17-18): “O Senhor esteve a meu lado e me deu forças”, para suportar as perseguições e continuar o anúncio. “Fui libertado da boca do leão”, pois em mais de uma oportunidade fora aprisionado e correu risco de vida. “O Senhor me libertará de todo mal e me salvará para o seu Reino celeste. A ele a glória, pelos séculos dos séculos! Amém.” Afirma isso exteriorizando uma certeza norteadora da vida de quem se dedicou ao seguimento de Jesus de Nazaré.

“Eu te darei as chaves do Reino dos Céus: tudo o que tu ligares na terra será ligado nos céus; tudo o que tu desligares na terra será desligado nos céus" (Mt 16,19), fala Jesus, explicando a Pedro sua missão. E isso independe da denominação cristã. É mandato divino. Da mesma forma que a respeito de Paulo, diz o Senhor que “este homem é um instrumento que escolhi para levar o meu nome às nações pagãs e aos reis, e também aos israelitas” (At 9,15). Trata-se de uma missão que não é pequena, mas vem tendo sucesso… pois subsiste! E nossa fé nos ensina que seu sucesso, iniciou-se com Pedro e Paulo, mas hoje, depende de cada um dos que se fazem chamar de cristãos.

Pedro e Paulo, personagens que deram um rosto e um norte às palavras de Jesus: anunciar sempre. Criaram um motivo para ser Igreja: colocar-se a serviço de quem precisa, mesmo contra os interesses dos que se acham donos do mundo. Mostraram a proposta de Jesus, para a inauguração do Reino: dar voz e vez aos marginalizados. E, de fato, “o Senhor enviou o seu anjo” e o anjo nos ensinou a olhar para as duas pedras sobre as quais se assenta a Igreja.

Neri de Paula Carneiro

Mestre em educação,Filósofo, teólogo, historiador.

Outros escritos do autor:

Filosofia, História, Religião: https://www.webartigos.com/index.php/autores/npcarneiro;

Literatura: https://www.recantodasletras.com.br/autores/neripcarneiro.


Sagrada Família: para se cumprir!

Reflexões baseadas em: Eclo 3,3-7.14-17a; Cl 3,12-21; Mt 2,13-15.19-23 Todos os que, de alguma forma, tiveram contato com os ensinamentos d...