Sabemos que a filosofia caracteriza-se pela atitude de busca de conhecimento. Além disso, ela se ocupa em estudar todas as realidades mediante reflexão crítica.
Agora podemos nos perguntar: como surgiu essa preocupação em explicar a realidade? Desde quando existe filosofia? Se filosofia é o processo humano de busca de conhecimentos para chegar à verdade, como foi que isso começou? Qualquer tentativa de explicação é filosofia?
Procurando uma resposta para estas, e outras, indagações veremos a seguir, que a filosofia, como conhecemos hoje, nasceu na Grécia. Mas também é verdade que o ser humano, desde suas origens, ocupou-se em compreender e explicar seu mundo. Todos os povos em todas as épocas fizerem esse processo. Ou seja, a filosofia não é criação dos gregos, mas do ser humano. Os gregos tiveram o mérito de sistematizar esse processo de interpretação da realidade. Mas antes dos gregos os seres humanos já faziam perguntas...
Os mitos
As primeiras tentativas de explicação do mundo, ainda nos primórdios da humanidade, foram os mitos. A partir dos mitos foi que os gregos desenvolveram a filosofia. Mas isso já por volta dos séculos VIII e VII antes de Cristo. Antes dos gregos, entretanto, o ser humano sempre esteve preocupado e ocupado em conhecer e explicar a realidade, pois o conhecimento e a compreensão implicam ter poder sobre ela.
Nos primórdios da humanidade todas as realidades, particularmente a natureza, eram muito mais inquietantes, desafiadoras, assustadoras e complexas para os primeiros homens: tudo era completamente desconhecido. O sentimento era de completa impotência, daí a sensação de medo.
Como o medo gera insegurança e essa sensação dificulta a vida, os seres humanos buscaram alternativas em relação ao desconhecido. Era necessário explicar o mundo para superar o medo. Assim os primeiros seres humanos buscaram, criaram e produziram explicações: os mitos. O mundo começou a ser explicado de forma mítico-religiosa.
Por isso, de forma sintética, podemos dizer que o medo foi cedendo lugar ao mito e à religião. Os diferentes deuses e credos foram criados com essa finalidade: possibilitar a sensação de segurança. O processo de criação de mitos perdurou até o advento da filosofia e da ciência. Mas também é verdade que em nossos tempos de racionalidade ainda não se extinguiram os mitos, pois ainda hoje somos levados a explicar miticamente aquilo para o quê não temos explicações lógico-filosófico-científicas.
A respeito dos mitos, o filósofo alemão F Nietzsche, no livro “Crepúsculo dos ídolos” faz o seguinte comentário: “Reduzir uma coisa desconhecida a outra conhecida alivia, tranquiliza e satisfaz o espírito, proporcionando, além disso, um sentimento de PODER. O desconhecido comporta o perigo, a inquietude, o cuidado – o primeiro instinto leva a suprimir essa situação penosa. Primeiro princípio: uma explicação qualquer é preferível à falta de explicação. Como, na realidade, se trata apenas de se livrar de representações angustiosas, não se olha de tão perto para encontrar os meios de chegar a isso: a primeira representação, pela qual o desconhecido se declara conhecido, faz tão bem que ‘é considerada por verdadeira’.
Para compreendermos melhor a dinâmica dos mitos, é preciso considerar que os primeiros seres humanos viam e conviviam com fenômenos que não entendiam. A primeira reação, sempre, era o medo. Mas, em seguida, sentiam a necessidade de entender os fenômenos, explicar suas causas e seus significados, pois, na maioria das vezes as consequências dos fenômenos eram assustadoras.
Devemos nos lembrar, também, que eles não possuíam os aparatos e os resultados que hoje a ciência oferece. Assim, aparelhado apenas com sua capacidade reflexiva, carregada de medos, os primeiros humanos desenvolveram várias explicações. Criaram mitos e religiões; deuses e demônios. Por isso surgiram tantas e diferentes explicações para as mesmas realidades.
Podemos dizer que todos os povos antigos utilizaram mitos para explicar aquilo que não podiam compreender imediatamente e a respeito de tudo aquilo para o quê não tinham domínio. Essa perspectiva mítica pode ser encontrada entre os vários povos do Oriente, destacando-se os mesopotâmicos e os egípcios (nordeste da África), como também entre as diversas nações indígenas da América pré-colombiana. Em nossa sociedade são mais conhecidos os mitos dos hebreus, descrevendo, na Bíblia, a criação do mundo, da natureza, do ser humano.
Características dos mitos
Nestas alturas você está se perguntando: o que é Mito e como ele se caracteriza?
Os mitos podem ser vistos como as primeiras tentativas que o ser humano fez para explicar os fenômenos: da natureza e humanos; pois eles lhe infundiam medo ou diante dos quais intuía a necessidade de respeito.
Essas explicações, os mitos, podem ser caracterizados como uma explicação em que aparecem elementos religiosos, fantásticos e com caráter explicativo. Nisso eles se diferenciam das lendas que consistem em narrativas culturais e folclóricas.
Uma das narrativas míticas mais antigas explicando as origens do mundo e dos sere humanos é a narrativas das origens, ou o livro do Gênesis, da Bíblia. Os capítulos 1 e 2 desse livro apresentam duas versões da criação. Mostrando que todas as realidades se originam do sopro vital que sai de Deus. Trata-se de uma narrativa harmoniosa em que o ser humano aparece para coroar o mundo criado.
Outra narrativa mítica, ao que tudo indica, mais antiga que a da bíblia, é o poema babilônio Enuma Elish. Nessa narrativa várias divindades disputam o poder, lutam entre si. No final uma delas, Marduque, vence o conflito e sacrifica uma das divindades adversárias para, com seu sangue criar a humanidade.
Esses dois exemplos nos dão uma ideia da força do mito como literatura para explicar uma realidade. No mito bíblico a criação é colocada a serviço da humanidade. Na versão babilônica os seres humanos são criados para aliviar o serviço dos deuses. A narrativa bíblica foi criada como suporte para os hebreus se unificarem como povo. A narrativa babilônica justifica a dominação dos monarcas sobre o povo.
Mito e filosofia
Nestas alturas você deve estar se perguntando: qual é a relação entre mito e filosofia?
Alguns afirmam que o mito dá uma explicação falsa enquanto a filosofia apresenta uma explicação verdadeira, mas essa parece ser uma opinião equivocada. Na realidade tanto a Filosofia como o mito têm a preocupação de explicar. Mas fazem isso com linguagens diferentes; podemos dizer que são dois níveis diferentes de abordagem de uma mesma realidade. Pode-se perguntar, então, o que diferencia essas duas abordagens?
Veja o que Fedro, escritor romano do século I aC, em suas Fábulas, diz a respeito dos mitos: “Devemos atentar para o significado e não para as palavras. A lenda de Ixião em cima de uma roda em movimento é símbolo da Fortuna que sempre se transforma e nunca repousa. Sísifo, contra a montanha, empurra, com suores, a pedra, que do cume rola sempre para baixo, anulando todo o trabalho. Isso representa a infinda miséria do homem. Tântalo, com sede, em meio a um rio, é o avarento ao qual os bens da vida lambem, mas não o envolvem. As criminosas Danaides, que carregam água, eternamente, não logram encher as jarras perfuradas. Eis aí a luxúria que, enquanto algo dá, também esbanja. Tácito, por nove jeiras foi sacrificado, tendo o fígado inchado com acréscimo de sofrimento. Isso revela que quanto mais bens possuir, maior angústia daí advém. Os antigos revestiam a verdade com mitos a fim de ensejar entendimento ao sábio e equívoco ao ignorante.”
Mais próximo de nossos dias Jostein Gaarder, no livro O Mundo de Sofia, diz que os filósofos gregos desenvolveram a filosofia porque constataram que, embora sendo produzidos há muitos milênios, não era possível confiar nos mitos. Diz ele que: “Vemos a filosofia como uma forma completamente diferente de pensar, que nasceu aproximadamente em 600 a.C. na Grécia. Antes disso, as diversas religiões tinham respondido a todas as perguntas do homem. Essas explicações religiosas eram transmitidas de geração para geração por meio dos mitos. Um mito é uma narração sobre os deuses que procura explicar a vida nas suas diversas manifestações. As explicações míticas floresceram durante milênios em todo o mundo. Os filósofos gregos procuraram provar que os homens não podiam confiar nelas. Para compreendermos o pensamento dos primeiros filósofos, temos de compreender igualmente o que significa ter uma concepção mítica do mundo”.
Com base nisso podemos dizer que a explicação mítica caracteriza-se pelo seu caráter subjetivo religioso, fantástico e simbólico. Sua estruturação lógica e argumentação não se fundamentam na veracidade, mas em sua simbologia e no fim a que se destina: dar uma explicação.
Não importa se essa explicação é parcial, limitada ao tempo e às contingências do volume de conhecimento que se tem no momento específico em que ele é criado. O valor da explicação mítica encontra-se na sua própria lógica simbólica, abrindo-se às diversas interpretações.
Aceita-se ou não o mito a partir de seus elementos internos.
Por seu lado a explicação da filosofia baseia-se na força dos raciocínios argumentativos, racionais, impessoais. O valor da explicação filosófica fundamenta-se na coerência e na razoabilidade. A filosofia se faz a partir dos argumentos que são aceitos pela sua coerência ou refutados a partir de outros argumentos, também lógicos, coerentes e razoáveis.
Enquanto a verdade mítica vincula-se à sua simbologia, a verdade filosófica fundamenta-se na lógica e coerência dos argumentos.
Do mito à filosofia
A questão é saber como se dá a passagem da era mítica para o tempo da filosofia. Pode-se dizer que todos os povos, em todas as épocas desenvolveram alguma "filosofia" e algum mito, pois todos os povos procuraram, a seu modo, explicar a realidade e o mundo. E se considerarmos que a filosofia pode ser entendida como busca por explicações, isso implica dizer que os mitos são uma espécie de filosofia.
Entretanto o que hoje os livros e as escolas chamam de filosofia ou isso que está presente nas faculdades, nas escolas tanto de ensino fundamental, como médio e superior, desenvolveu-se aproximadamente a partir do século VII aC., no mundo grego. Nesse universo percebeu-se que as explicações míticas eram insuficientes, limitadas e mesmo contraditórias. Num período em que se buscava maior exatidão para o que se dizia, para as relações comerciais e mesmo para as atividades políticas, a afirmação mítica tornou-se insuficiente.
Isso levou os pensadores a buscarem outras explicações que tivessem por base não mais o mito, a religião, o fantástico, mas a observação objetiva dos fenômenos, a classificação das respostas, a comparação de resultados, a racionalidade dos enunciados.
A base, antes religiosa e mítica desloca-se para um plano racional-lógico-argumentativo. Esse processo aconteceu, principalmente, por que os gregos começaram a comparar as culturas dos diferentes povos com a sua: respostas diferentes, de povos diferentes, para os mesmos fenômenos, geraram um ponto de interrogação. Nascia a crítica à resposta mítica. Estava posto o problema do conhecimento.
É evidente que isso não se deu mecanicamente, muito menos “da noite para o dia”, mas ao longo de um processo secular. Ao lado dos mitos foi se desenvolvendo a crítica, os questionamentos, a constatação das limitações dos mitos em relação à necessidade de explicações mais racionais.
Com isso não se pretende dizer que a filosofia nasceu para acabar com o mito, ou que durante o período em que as respostas eram míticas não houvesse filosofia. Em sentido amplo, toda vez que alguém desenvolve alguma reflexão, está "filosofando". Portanto o próprio processo de criação dos mitos era um processo "filosófico". E como filosofia é um processo de crítica constante o "pensar mítico" passou pelo acrisolamento da razão, gerando o "pensar filosófico".
Também não se pode dizer que a filosofia superou o mito, mas que veio como uma alternativa/acréscimo a ele. O gênio humano já não se satisfazia apenas com o mito. Precisava de maior profundidade, coerência e da possibilidade de ampliar os horizontes. E isso não era possível com o mito, pois este trazia uma resposta pronta e, ao mesmo tempo, subjetiva.
Também é verdade que a filosofia não pretendeu acabar com os mitos. E isso porque não existe apenas uma forma de se expressar uma verdade ou um ponto de vista. Assim sendo a "verdade" mítica pode conviver com a filosófica. Também precisa ficar claro que atualmente o leque de manifestações míticas é tão variado como são correntes filosóficas para abordar a mesma realidade.
Resumindo podemos dizer que em um primeiro momento o ser humano explicou seu mundo a partir da subjetividade mítico-religiosa, naquilo que podemos denominar de fase mítica. Quando os mitos começaram a ser insuficientes, desenvolveu-se a filosofia. E isso foi feito pelos gregos.
E nos dias atuais, outro passo foi dado. Além das manifestações míticas do cotidiano e das correntes filosóficas que se desenvolveram, nasceram as ciências como mais uma forma de conhecer e manusear o mundo e os conhecimentos. Hoje vivemos num mundo infotecnovietual, criado pela ciência, mas a filosofia nos mostra que ainda convivemos com mentalidades míticas...
Isso implica dizer que as tentativas e formas de explicações do real ampliam-se, diferenciando-se apenas pelos seus pressupostos. Diversificam-se as explicações porque suas bases se diversificam. E por que isso ocorre? Porque a necessidade de explicação é cada vez maior; e porque se constata que todas as explicações são insuficientes. E essa foi a grande contribuição dos gregos. Ao constatar que as explicações míticas dadas eram insuficientes originou-se a filosofia, em sua concepção lógico-formal.
Neri de Paula Carneiro
Mestre em Educação, filósofo, teólogo, historiador
Rolim de Moura - RO