sexta-feira, 30 de julho de 2021

Comestes e ficastes satisfeitos

Reflexão a partir de: Ex 16,2-4.12-15; Ef 4,17.20-24; Jo 6,24-35

O que nos faz aderir ou recusar uma ideia ou um projeto social, religioso, político…? Por que defendemos isto ou aquilo e condenamos outras tantas coisas? A resposta não poderia ser outra: nossos interesses! Aderimos ou recusamos algo se aquilo satisfaz, ou não, nossos interesses.

Podemos observar isso em nosso cotidiano e na vida das pessoas com as quais convivemos. Buscamos aquilo que nos interessa e recusamos o que não nos agrada, que foge ou que vai contra nossos interesses. Mas isso não ocorre somente entre nós. Também percebemos isso entre os filhos de Israel, no livro do Êxodo (Ex 16,2-4.12-15), da mesma forma que nas palavras de Jesus, narradas por João (Jo 6,24-35).

Em síntese: São os interesses que movem o mundo. E se quisermos emprestar as palavras de Jesus, podemos dizer que “onde está o teu tesouro, aí está o teu coração!” (Mt 6,21)

Mas se os interesses movem o mundo e as ações das pessoas, como entender as atitudes dos filhos de Israel? Compreensível que estivessem insatisfeitos com a servidão egípcia. Seu interesse, portanto, era a libertação. E por isso clamaram ao Senhor que os libertou. Mas agora livres, no deserto, estão insatisfeitos! Reclamam da alimentação e sentem saudades do que deixaram no Egito! E, novamente, clamam ao Senhor, ao “murmurar contra Moisés e Aarão, no deserto” (Ex 16,2).

Algo semelhante percebemos nas palavras de Jesus, ao interpelar as pessoas que o procuravam. “Em verdade, em verdade, eu vos digo: estais me procurando não porque vistes sinais, mas porque comestes pão e ficastes satisfeitos” (Jo 6,26).

Com isso Jesus afirma que a cena da multiplicação dos pães não foi um sinal-milagre, mas uma ação social; ao mesmo tempo mostra qual grupo social o procura: os mais pobres; aqueles que nada possuem para comer; aqueles que seguem Jesus porque ele age estimulando as pessoas a se envolvam no processo da partilha. Ou seja, o milagre de Jesus, não foi, a partir do nada, gerar pão, mas criar as condições para a partilha do que já existe entre as pessoas. Já existe alimento, para todos, e com sobras. O que falta é partilha e não o alimento.

Temos, então a seguinte situação: o fenômeno da partilha decorre da boa vontade ou dos interesses das pessoas. Ela pode ocorrer se as pessoas desenvolverem esse interesse. Diante disso Jesus interpela quem o procura, chamando a atenção para uma correção de rumos. Primeiro mostra que a partilha é fundamental; que é um sinal do Reino; além disso diferencia aqueles que são seus seguidores (os que sabem partilhar) e aqueles que dificultam a prosperidade de Reino e acumulam de forma excessiva. Por isso a afirmação: o que falta para muitos é o que sobra entre alguns.

Só que Jesus dá um passo a mais. Mostra que, na ótica do Reino, o importante não é o pão cotidiano, mas aquilo que conduz à vida eterna. Demonstra que o acesso ao reino e a vida eterna passam pela partilha, mas a partilha é caminho ou um meio para se chagar ao Pai. A partilha é sinal de que houve compreensão dos caminhos do Reino. “Esforçai-vos não pelo alimento que se perde, mas pelo alimento que permanece até a vida eterna, e que o Filho do homem vos dará” (Jo 6,27).

Os interlocutores de Jesus entenderam seu apelo e pediram: “Senhor, dá-nos sempre desse pão” (Jo 6,34). E Jesus esclarece, afirmando que ele é o pão eterno. Mostra também, com o gesto da partilha, que o pão eterno, aquele que alimenta para a vida definitiva, nasce e se desenvolve na mesma proporção em que ocorre partilha. Quanto mais cresce a sociedade sem excluídos, mais próximos estamos do Reino definitivo. Jesus explica o motivo: “Eu sou o pão da vida. Quem vem a mim não terá mais fome e quem crê em mim nunca mais terá sede” (Jo 6,35).

E se isso vale para a multidão que procurava por Jesus, a fim de ser saciada, vale também para os filhos de Israel, reclamando no deserto.

E para nós, talvez aqui esteja a grande lição: é necessário reclamar contra a situação na qual se está sofrendo, pois nosso interesse é a felicidade. Mas, também é necessário o esforço pessoal e social, para superar essa situação. Quando as forças pessoais e do grupo são insuficientes, a ajuda não vem da lamentação, mas da confiança no Senhor.

Daí a necessidade de nos lembrarmos: Deus não fará por nós aquilo para o quê nos deu forças de realizar. Dessa forma podemos entender a afirmação de Paulo aos Efésios, dizendo ser necessário renunciar à existência passada e concentrarmo-nos num novo centro de interesses. “Despojai-vos do homem velho, que se corrompe sob o efeito das paixões enganadoras, e renovai o vosso espírito e a vossa mentalidade. Revesti o homem novo, criado à imagem de Deus, em verdadeira justiça e santidade” (Ef 4,22-24).

Neri de Paula Carneiro

Outros escritos do autor:

Filosofia, História, Religião: https://www.webartigos.com/index.php/autores/npcarneiro;

Literatura: https://www.recantodasletras.com.br/autores/neripcarneiro.

quinta-feira, 22 de julho de 2021

Para que nada se perca - O povo passa fome

 (Baseado em: 2Rs 4,42-44; Ef 4,1-6;  Jo 6,1-15.)
Aconteceu em 1980, em Teresina. Na época, o papa João Paulo II – hoje santo – viu uma faixa, em meio à multidão: “Santo Padre, o povo passa fome”. No mesmo instante rezou: “Pai nosso, o povo passa fome”. Mas não era só comida, o povo também desejava acesso a direitos sociais, políticos… o povo queria sair da situação de pobreza. Por isso apelou ao papa: o líder religioso, talvez, pudesse ajudar nas questões sociais, em favor dos necessitados.

Alguns séculos antes de Cristo, as pessoas sofriam com as dificuldades, em meio à pobreza (2Rs 4,42-44). Houve fome na região, diz o livro dos Reis. Foi assim que, ao ver uma pequena multidão à sua frente, “Eliseu, o homem de Deus”, ensinou o caminho da partilha: vinte pães alimentaram as cem pessoas.

Entre estes dois episódios encontramos outro personagem e seu gesto revolucionário. Trata-se de Jesus de Nazaré, (Jo 6,1-15) alimentando a multidão. Aqui, entretanto, é possível que alguém diga: para Jesus foi fácil dar alimento a “aproximadamente cinco mil homens”.

Não foi, e digo o porquê. Também para não cometermos uma injustiça contra Jesus ou Eliseu, nesta lição de partilha. Temos que dizer, com todas as letras da palavra santa: Não foi Jesus quem deu o alimento! O mesmo vale para o livro dos Reis, narrando o gesto de Eliseu. A partilha ocorreu porque alguém ofereceu o que tinha. E isso muitos séculos antes de Marx falar em partilha.

Um grupo estava passando necessidade e chegou “um homem de Baal-Salisa, trazendo em seu alforje para Eliseu, o homem de Deus, pães dos primeiros frutos da terra: eram vinte pães de cevada e trigo novo” (2Rs 4,42). Quem acompanhava Eliseu até argumentou: isso é muito pouco para cem pessoas. Mas o “homem de Deus” não deu ouvido para a postura negacionista. Simplesmente mandou que tudo fosse distribuído. Eliseu disse apenas: “Dá ao povo para que coma; pois assim diz o Senhor: ‘Comerão e ainda sobrará’” (2Rs 4,43). Como se vê Eliseu apenas organizou e direcionou a postura socialista do homem de Baal-Salisa. Todos comeram e “ainda sobrou, conforme a Palavra do Senhor” (2Rs 4,44).

Com o papa João Paulo II não houve partilha de pão, mas de consciência de Igreja. Aquela faixa e as palavras do santo padre, em plena ditadura militar, chamaram a atenção do mundo para a situação do Brasil, para as condições de vida do povo, para a miséria provocada pela concentração de rendas. O santo padre, da mesma forma que Eliseu, foi apenas o mediador de uma nova proposta de partilha. Ao afirmar que o povo passa fome, está afirmando que alguns concentraram muito e o que eles têm a mais é o que falta na mesa dos escolhidos de Deus.

Mas, entre João Paulo e Eliseu, está Jesus.

E o que o Homem de Nazaré ensina? O mesmo que ensinou a Eliseu e o papa: o caminho da partilha. Da mesma forma que Eliseu, Jesus nada tinha para distribuir. Sabia o que ia fazer (Jo 6,6), mas ele não tinha alimento para a multidão. Tinha sua palavra salvadora, mas não os pães e peixes. O que tinha, Jesus distribuiu: ensinou a organização para atingir o objetivo: “Fazei sentar as pessoas” (Jo 6,10). Ele valoriza a oferta de quem dá o que tem para servir ao outro: “Está aqui um menino com cinco pães de cevada e dois peixes” (Jo 6,9).

Jesus sabia que as multidões o procuravam para sair das dificuldades e enfermidades. Por isso lhes dava o que queriam e o que precisavam. Jesus os curava. E, em relação à fome, valorizou a fé, que eles já possuíam. E usou dessa fé para evidenciar o caminho da solução para os problemas. Uma solução que depende daquilo que podemos oferecer para o outro. Por isso distribuiu o pão e o peixe que alguém estava oferecendo.

Jesus multiplicou, e continua multiplicando, aquilo que temos para oferecer. Se ofertamos bastante, a multiplicação é maior, mas se apresentamos apenas nossas mesquinharias, essa será nossa recompensa. Mas, acima de tudo, Jesus ensina que, para os problemas sócio-políticos, as soluções também são sócio-políticas. A oração vem como motivação para a luta, para desenvolver consciência de classe e de organização social; ajuda a ter humildade para agradecer. Mas as soluções devem crescer entre nós.

Os negacionistas agem como Felipe: “onde iremos comprar tanto pão?” (Jo 6,5); ou como André: “Nem duzentos mil bastariam para atender a todos” (Jo 6,7). Mas Jesus, que sabe das coisas, diz, simplesmente: “Manda o povo se organizar!” (Jo 6,10). Contra a mesquinharia de alguns, a organização popular é a solução.

Neste ponto somos levados à conclusão, apontada por Paulo (Ef 4,1-6). Ela é simples: se há um só corpo, um só Espírito, um só Senhor, uma só fé e somente um Deus e sabendo que esse que é único ensina o caminho da partilha para um mundo socialista e solidário, então todo aquele que age contra essa proposta divina, não é de Deus! Não vem de Deus!! Não leva a Deus!!!




Neri de Paula Carneiro

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quinta-feira, 15 de julho de 2021

Ovelhas sem pastor

Lobos ferozes. Vorazes. Insaciáveis. Assim podemos descrever a grande maioria dos integrantes de um grupo que subverteu a ordem política da política. E não estou falando nem da esquerda nem da direita. Estou falando da categoria social, como um todo. Desse todo apensas uns poucos não se transformaram em lobos ferozes. Vorazes. Insaciáveis…. Inescrupulosos.

Alguém pode perguntar, baseado em quê você afirma isso?

Nas palavras de Jesus, respondo (Mc 6,30-34). Mas se forem necessários mais argumentos, posso recorrer também às palavras de Jeremias (Jr 23,1-6).

O desavisado pode dizer: As palavras de Jesus, em Marcos e a profecia de Jeremias estão se referindo aos pastores. O que tem isso a ver com a voracidade dos lobos?

Certo, a condenação é feita aos pastores. Mas, os pastores sendo negligentes, qual a consequência para o rebanho?

O rebanho abandonado pelos pastores fica a mercê da ferocidade vorás dos lobos. Por esse motivo a irritação de Jeremias: “Ai dos pastores que deixam perder-se e dispersar-se o rebanho de minha pastagem” (Jr 23,1). Esses pastores afugentaram e dispersaram o rebanho – o povo de Deus. Da mesma forma que olhando o povo abandonado – o rebanho escolhido – Jesus se compadece; ao ver “uma numerosa multidão e teve compaixão, porque eram como ovelhas sem pastor” Mc (6,34).

Abandonado pelos pastores, o povo – rebanho escolhido – tornou-se vítima dos lobos. E quem são os lobos? Todos aqueles que se aproveitam do povo; produzem as dores do povo; enganam ao povo… Todos os lobos sedentos e insaciáveis que, prometem de tudo aos necessitados, esbravejam contra tudo que prejudica ao povo, entretanto, usam disso para se popularizar e, dessa forma, mais enganar ao povo. Um exemplo disso é o corrupto afirmando que vai combater a corrupção.

Ao aceitar ou defender essas distorções o pastor acaba sendo parceiro do lobo. Aliás, torna-se pior do que o lobo, pois em troca de vantagens pessoais induz o rebanho/povo a ser devorado/enganado pelos lobos.

Entre os indivíduos do povo/rebanho não cessam as dificuldades. Para ajudá-los o Senhor institui os pastores (lideres religiosos). Como auxiliares para sanar os problemas, também se criaram as instituições políticas. Ambos a serviço da população. Um a partir da dimensão religiosa e a outra a partir de necessidades sociais. A religião não existe num mundo afastado dos problemas sócio-políticos. A religião faz parte da vida e a vida ocorre em sociedade. Sendo assim, quando a dimensão religiosa abandona o pastoreio, permite que as instituições socio-políticas se transformem em lobos vorazes, cuja ferocidade devora a esperança da população.

Entretanto, se pastores e lobos abandonam ao povo, o Senhor permanece fiel. Jeremias afirma que o Senhor se compromete a reunir um resto de ovelhas que não se perdeu. Esse resto se multiplicará, e será conduzido por bons pastores até que chegue aquele que fará valer a justiça. Esse, “Senhor, nossa Justiça” (Jr 23,3-6) não terá seu nome, nem seus filhos envolvidos em falcatruas, podendo, assim restaurar a esperança, libertando das garras dos lobos e maus pastores.

Contra esses falsos pastores é que Jesus se posiciona ao ver a multidão “como ovelha sem pastor”. Em favor desse povo abandonado é que Ele se compadece. A compaixão do Senhor nãos se deve a um aspecto religioso, mas às suas necessidade concretas de comida, casa, segurança, trabalho, saúde… Jesus sabe que o povo é devoto e orante, mas também sabe que o povo passa fome. E, mais uma vez, sua compaixão tem a ver com essas necessidades básicas.

O povo aderiu a Jesus e seguiu os discípulos não porque os ensinavam a rezar, mas porque foram curados e saciados (a devoção todos já tinham – e hoje, continuam tendo). Jesus e os discípulos eram amados porque supriam necessidades básicas: davam saúde e comida; e com isso alimentavam a esperança de que dias melhores estavam por vir. Além disso condenavam os exploradores do povo: pastores maus e lobos vorazes.

O fato é que, na medida em que os pastores fazem mais pelos lobos que pelo povo, seu mau exemplo arrasta ovelhas desprotegidas. E, dessa forma, as ovelhas passam a seguir os lobos que as devoram. Como consequência dos maus pastores unidos aos lobos, o rebanho fica dividido ao ponto de, ovelhas enganadas defenderem seus algozes. Daí a necessidade de se prestar atenção às palavras de Paulo (Ef 2,13-18): olhar para a postura de Jesus, que nunca esteve do lado dos poderosos. Sempre esteve do lado dos fracos, explorados e vítimas da divisão, em busca da unidade.

É necessário, portanto, que as ovelhas sem pastor, se reunifiquem a fim de construir a paz entre as vítimas, erguendo uma barreira contra os lobos. É, necessário, portanto, reaprender com Jesus que teve compaixão da multidão de ovelhas sem pastor. É necessário seguir Jesus que “começou, pois, a ensinar-lhes muitas coisas” (Mc 6,34), entre elas, como se libertar das garras dos maus pastores!




Neri de Paula Carneiro

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quinta-feira, 8 de julho de 2021

Vai profetizar!

Gosto muito da franqueza do profeta Amós.Principalmente no trecho abordado neste décimo quinto domingo do tempo comum (Am 7,12-15). Trecho no qual o profeta afirma estar agindo por mandato divino.

Ele nos ensina que muitos daqueles que dizem estar falando em nome de Deus, na realidade defendem um tirano ou algum usurpador da Palavra de Deus. Aqui, neste trecho, trata-se do sacerdote Amasias, entretanto, nos dias atuais, são muitos os que tentam calar a profecia dizendo que “a Igreja não deve se meter em politica”.

Mas a hipocrisia não para nisso, pois estes só a condenam quando a Igreja denuncia suas mazelas, malandragens e malversação das coisas públicas. Quando algum traidor da Palavra de Deus os apoia, não dizem que a Igreja está fora de seu oficio.

Algo semelhante podemos ver nas palavras de Paulo(Ef 1,3-14). Também o apóstolo insiste na escolha divina. E o interessante é que, enquanto Amós afirma que o chamado divino tem a ver com a denúncia das estruturas apodrecidas e geradoras de sofrimento, por seu lado, Paulo insiste nos objetivos para os quais somos escolhidos. Em Cristo, Deus nos escolheu “antes da fundação do mundo, para que sejamos santos”; “para sermos seus filhos adotivos”; “para o louvor da sua glória”(Ef. 1,4-6).

Com isso somos levados à seguinte indagação: Se somos adotados para a santidade, como diz Paulo, qual o caminho a ser percorrido para atingir esse objetivo? Tanto o apóstolo como o profeta sugerem a resposta: ser agente do anúncio da mensagem divina e da denúncia das estruturas corrompidas e que impedem a plenitude da vida.

E quem nos diz isso é ninguém menos do que Jesus de Nazaré (Mc 6,7-13). Não diz, exatamente com palavras, mas ao indicar as ações que os discípulos devem executar: expulsar demônios e curar os enfermos. Com essa finalidade convocou os discípulos e “começou a enviá-los dois a dois, dando-lhes poder sobre os espíritos impuros” (Mc 6,7).

Em seu tempo, e Jesus bem o sabia, muitas doenças e sofrimentos e dificuldades pelas quais passavam as pessoas, eram vistas como coisas demoníacas. E essa demonização do sofrimento provocava um mal viver. Portanto, encarregar os discípulos de expulsar os demônios era a mesma coisa que promover a cura. E promover a cura era reintroduzir as pessoas ao convívio social. E não são poucas as vezes em que Jesus cura e manda a pessoa curada se reintegrar ao seu grupo familiar… social… passando antes pelo templo a fim de que os sacerdotes reconhecessem a cura. E isso era promoção da vida.

Nem Jesus nem seus discípulos se deliciavam com o sofrimento; não desdenhavam as dores; não menosprezavam quem os procurava em busca de alento… pelo contrário, demonstravam empatia e compaixão. A todos acolhiam e ofereciam o conforto da cura. Para a dor ofereciam acalento, pois a vida de cada um era vista como coisa sagrada: dom de Deus.

Por outro lado, Jesus mostrava sua Ira Santa e indignação contra aqueles que não se dedicavam à promoção da vida. Principalmente aqueles que tinham dever de o fazer, em razão de seu ofício, como os sacerdotes… e as demais lideranças políticas. Contra esses e todas as autoridades, que eram  representantes das forças demoníacas, foi que Jesus enviou seus discípulos. Contra todos os que se haviam apropriado da Palavra de Deus e a usavam contra os pequeninos....

Contra essas injustiças e posturas maldosas é que Deus escolhe algumas pessoas. Como Amós, um vaqueiro e cultivador de figos. A ele Deus incumbiu de profetizar, anunciando uma ruína iminente. Se aqueles que comandam a nação, não se converterem em favor dos fracos, toda a nação sofrerá. Não por castigo divino, mas por irresponsabilidade dos dirigentes. E o profeta anuncia, não a morte dos que promovem a maldade, mas sua ruína: sua esposa se prostituirá; seu filho será assassinado. Deus, como ninguém mais, sabe que maus políticos causam a dor da população e a ruína da nação. Contra isso Deus chamou o profeta. E o mandou profetizar!

Mas, por outro lado, se houver conversão, ensina a sabedoria paulina: aqueles que promovem a vida, e que colocaram “sua esperança em Cristo”; aqueles que colocarem em prática a “palavra da verdade”, esses poderão ser “marcados com o selo do Espírito prometido, o Espírito Santo, que é o penhor da nossa herança para a redenção do povo que ele adquiriu, para o louvor da sua glória” (Ef 1,11-14).

E assim a denúncia do profeta e o anúncio do apóstolo se encontram na ordem dada pelo Senhor: Vai profetizar!


Neri de Paula Carneiro

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sexta-feira, 2 de julho de 2021

Pedro e Paulo - “O Senhor enviou o seu anjo”

Na solenidade de São Pedro e São Paulo somos convidados a nos espelharmos não em uma mas na postura de duas das pedras sobre as quais Jesus instituiu a Igreja.

Não importa a denominação, importa que se a Igreja é cristã, não pode menosprezar estes dois personagens. Pedro porque, em diferentes oportunidades foi o principal personagem a contracenar com Jesus, nas andanças, nas conversas, nas orações, na explosão de entusiasmo ou, com a espada na mão, apressando-se na defesa do Senhor. Paulo porque, como poucos, difundiu as palavras do mestre ao qual nem chegou a conhecer em vida. Ambos com a mesma e única paixão: Jesus de Nazaré, morto por suas ideias e ideais de amor; ressuscitado porque é o enviado do Pai.

Nos Atos dos Apóstolos(12,1-11) vemos encontramos Pedro acorrentado. Preso e em risco de ser executado, por ser adepto e defender e difundir a mensagem de um criminoso, o Cristo crucificado. Mas ai também vemos como Jesus age em defesa dos seus. Simplesmente os liberta e os coloca a caminhar.

Na segunda carta a Timóteo (2Tm 4,6-8.17-18) é Paulo quem dá o testemunho não somente de sua confiança no Cristo libertador, como também dos efeitos de sua pregação. Afinal foi Jesus, ao conceder o Espírito santificador, que possibilitou que “a mensagem fosse anunciada por mim integralmente, e ouvida por todas as nações” (2Tm 4,17). Podemos dizer, sem sombra de dúvidas, que se hoje somos seguidores de Jesus, devemos isso a Paulo, que levou a mensagem cristã, para os pontos mais distantes. E, dessa forma, a palavra de Jesus chegou a nós.

OPedro, que vemos nos Atos dos Apóstolos, pode transmitir a impressão que está abatido, como que sentindo a derrota. Ele sabe que será apresentado àqueles que assassinaram Jesus e que, certamente, os mesmos pedirão sua execução. Afinal, Herodes não age diferente dos políticos atuais. Não importa quem é a vítima, o que importa é tirar proveito de sua desgraça. Herodes quer satisfazer os Judeus e, em troca, continuar governando como se tudo estivesse bem. Entretanto, as coisas não estavam bem, pois o povo sofria. O povo passava fome e, como sempre ocorre, somente os ricos tinham enormes vantagens com a situação. Herodes e os mandatários da época uniam-se para sugar ao povo, tal qual ocorre em nossos dias.

Mas Pedro representava as aspirações de libertação, justiça social, uma sociedade sem excluídos. Uma sociedade de respeito e dignidade para todos. Plena de esperança de dias melhores. Por ter sido escolhido pelo Mestre como suporte da Igreja, Pedro sabia que podia contar com a comunidade e, dessa forma, enquanto “era mantido na prisão, a Igreja rezava continuamente a Deus por ele.” (At 12, 5). Por esse motivo, não estava abatido, pelo contrário, sabia que o Senhor não o havia abandonado. E, ao ser libertado, disse com convicção, fé e certeza: "Agora sei, de fato, que o Senhor enviou o seu anjo para me libertar do poder de Herodes e de tudo o que o povo judeu esperava!" (At 12,11). Ele sabia: o Senhor não abandona os seus…

Amesma certeza e segurança ouvimos de Paulo.

Prisioneiro, sabe que a hora de sua execução está próxima: “Quanto a mim, eu já estou para ser derramado em sacrifício; aproxima-se o momento de minha partida” (2Tm 4,6).Mesmo sabendo o destino que o aguarda, não perde o ânimo, nem a esperança e menos ainda a certeza de seu destino final. E externa isso em três afirmações fortes (2Tm 4,17-18): “O Senhor esteve a meu lado e me deu forças”, para suportar as perseguições e continuar o anúncio. “Fui libertado da boca do leão”, pois em mais de uma oportunidade foi aprisionado e correu risco de vida. “O Senhor me libertará de todo mal e me salvará para o seu Reino celeste. A ele a glória, pelos séculos dos séculos! Amém.” Afirma isso exteriorizando uma certeza norteadora da vida de quem sempre se dedicou ao seguimento de Jesus de Nazaré.

“Eu te darei as chaves do Reino dos Céus: tudo o que tu ligares na terra será ligado nos céus; tudo o que tu desligares na terra será desligado nos céus" (Mt 16,19),fala Jesus, explicando a Pedro sua missão. E isso independe da denominação cristã. É mandato divino. Da mesma forma que a respeito de Paulo, diz o Senhor que “este homem é um instrumento que escolhi para levar o meu nome às nações pagãs e aos reis, e também aos israelitas” (At 9,15), pois a missão não é pequena e seu sucesso, iniciou-se com Pedro e Paulo, mas hoje, depende de cada um dos que se fazem chamar de cristãos

Pedro e Paulo, personagens que deram um rosto e um norte às palavras de Jesus: anunciar sempre. Criaram um motivo para ser Igreja: colocar-se a serviço de quem precisa, mesmo contra os interesses dos que se acham donos do mundo.Mostraram a proposta de Jesus, para a inauguração do Reino: dar voz e vez aos marginalizados. E, de fato, “o Senhor enviou o seu anjo” e o anjo nos ensinou a olhar para as duas pedras sobre as quais se assenta a Igreja.
Neri de Paula Carneiro

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sábado, 26 de junho de 2021

“Menina, levanta-te!”

Estamos acostumados a dizer que Deus criou tudo. Entretanto, no livro da Sabedoria (Sb 1,13-15;2,23-24) encontramos outra informação. A morte não é criação divina! O mal não vem de Deus!

Por sua vez, na segunda carta aos coríntios (2Cor 8,7.9.13-15), Paulo nos informa que a generosidade de Jesus é um modelo, ensinando-nos a superar as necessidades com generosidade.

Essas passagens (ou perícopes) nos indicam que, efetivamente, Deus está interessado em nos conceder vida e não morte. Alegria e não sofrimento.

Mas, sendo assim, se Deus não criou a morte, de onde ela vem e porque amedronta tando o ser humano? Qual a origem das dores humanas?

O livro da sabedoria nos informa que todas as criaturas são saudáveis. Deus “criou todas as coisas para existirem” (Sb 1,14), e não para perrecerem. E o ser humano para a imortalidade. Deus fez o ser humano à imagem de sua própria natureza: um ser para a vida. (Sb 1,23)

Confirmando tudo isso, Jesus, de acordo com Marcos (Mc 5,21-43), enfrenta a morte e a enfermidade: cura a mulher enferma e restitui a vida da criança. Ele quer a saúde e a vida!

Na primeira cena, impedindo que continue se esvaindo a vida de uma senhora. Aquela que, movida pela fé, toca as roupas do mestre recebendo um novo fluído de vida: “Tua fé te curou” (Mc 5-34), diz Jesus. Isso para nos dizer que não só as crianças são privilegiadas, mas também aqueles que já estão num estagio maduro de sua vida. Para esses também Deus oferece uma vida melhor.

Essa defesa da vida é reforçada na segunda cena, quando Jesus traz de volta à vida uma criança já morta. O que uma criança significa? Vida! Início e plenitude de vida. Notemos alguns detalhes apresentados por Marcos, sobre a recuperação da menina. Começa com a súplica do pai, pedindo pela filha: “Vem e põe as mãos sobre ela, para que ela sare e viva!” (Mc 5,23). Se a menina estava doente, não era suficiente sarar? O pai quer a recuperação da saúde, sim, mas também quer que a filha participe da vida. Então, que ela sare e viva, e isso é dom de Deus.

E o que faz Jesus? Pega as mãos da criança, como a conduzi-la. E de fato Jesus a conduz da morte para a vida. Ela é reintroduzida na vida: “Menina, levanta-te!” Por que levantar-se? Para se colocar na postura de quem está disposto a caminhar. E ela “começou a andar” na vida nova. Mas, para que a vida não se enfraqueça, Jesus manda que ela seja alimentada, para fortalecer a vida (Mc 5,41-43). A falta de alimento prejudica a vida. A fome que assola a humanidade prejudica a vida.

Milhares de pessoas, adultos e crianças, passando fome ao redor do mundo, não é vontade de Deus; a fome no mundo é produto humano. A pobreza, no mundo, é produto humano. Contra essa situação é que se coloca o discurso de Paulo: primeiro afirmando a necessidade da generosidade. E com isso colocando as bases de uma sociedade comunista, de partilha. Não se trata de tomar de um para dar ao outro. Trata-se, apenas de ter um coração generoso e aberto à partilha: “Não se trata de vos colocar numa situação aflitiva para aliviar os outros; o que se deseja é que haja igualdade. Nas atuais circunstâncias, a vossa fartura supra a penúria deles” (2Cor 8,13-14), ensina o apóstolo.

Como se vê o problema do mundo, não é a fome nem a pobreza, mas o fato de que alguns possuem mais do que o necessário e esse excedente falta à quele que só possui a penúria.

E isso no leva, de volta, ao livro da Sabedoria, informando-nos que Deus fez todas as coisas com saúde e não para a morte. E, mais ainda, “Deus criou o homem para a imortalidade (Sb 2,23). Sendo assim voltamos à indagação inicial: De onde vem a morte e os sofrimentos?

O autor do livro da Sabedoria é taxativo: Isso não é coisa de Deus. “Foi por inveja do diabo que a morte entrou no mundo, e experimentam-na os que a ele pertencem” (Sb 2,24). Ou seja, o mal entrou no mundo pelas mãos do ser humano, mas sob orientação do “Pai da Discórdia”.

E todos “os que a ele pertencem” disseminam o mal, as dores, os sofrimentos… a morte. Em cada ato ou palavra que nega ou dificulta a plenitude da vida está uma ação demoníaca. Deus fez o ser humano com capacidade para resolver os problemas que enfrenta. Mas impedir que as soluções se disseminem melhorando a vida de todos, é coisa do anticristo.

Os representantes e disseminadores da maldade, que não é coisa de Deus, tanto estão na política como no mundo dos negócios; tanto estão nas relações familiares como na divulgação de fofocas numa comunidade religiosa. Um político que cria dificuldade para que um medicamento chegue ao enfermo, um marido que maltrata ou atormenta a vida da esposa ou dos filhos, um médico que se preocupa mais com seus honorário que com a vida dos pacientes… e todos aqueles que pensam somente em si e se colocam acima dos outros… são representantes do Pai da Maldade.

A solução e alternativa para tanta maldade está no exemplo de Jesus, que não quis ostentar sua ação na cura da menina. Apenas a tomou pela mão e a convidou: menina, levanta-te!




Neri de Paula Carneiro

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domingo, 20 de junho de 2021

OS PRÉ-SOCRÁTICOS

Nem sempre nos damos conta disso, mas a história e a geografia são importantes luzeiros para nos ajudar a entender fenômenos sociais. E também para nos ajudar a entender o desenvolvimento do saber. Vamos procurar entender o desenvolvimento da filosofia levando isso em consideração.





O Ambiente grego

A realidade humana não é determinada, mas fruto de circunstâncias e atitudes humanas inseridas num ambiente específico. Assim nasceu o que podemos chamar de filosofia grega.

Aquilo que hoje chamamos de Grécia, no início era apenas um conjunto de ilhas e cidades-estado independentes entre si. Por vezes relacionando-se amistosamente outras vezes guerreando entre si. Mas, também mantinham em comum alguns elementos culturais. Um desses traços comuns era a língua e o panteão (conjunto de deuses) mítico

Em função de seu relevo, distingue-se a Grécia continental, a região insular e as colonias gregas. E tanto nas ilhas como no continente desenvolveram-se as cidades-estado; muitas dessas cidades, em virtude da exiguidade territorial formaram colônias no litoral do mar Egeu, e Mediterrâneo o que formava a Magna Grécia.

Essas colônias tiveram importância fundamental no desenvolvimento da filosofia grega. Devido à intensa movimentação comercial desenvolveu-se profunda interação cultural e mútuas influências, formando o mundo grego.

Essa interação cultural possibilitou comparações entre os diferentes grupos envolvidos no processo. E isso gerou a pergunta: Se estamos falando sempre do mesmo mundo e das mesmas realidade, por que tantas respostas diferentes para explicar a mesma realidade? Onde está a verdade?

Aqui, entretanto, cabe uma observação: Embora o período áureo da filosofia tenha se concentrado em Atenas, os primeiros filósofos são originários das colônias. Por exemplo, Tales é da cidade de Mileto, Pitágoras é de Samos, Demócrito é de Abdera, Aristóteles é de Estagira.

Não se pense, entretanto, que as explicações míticas foram abandonadas da noite para ao dia. Pelo contrário. Houve um longo processo de transição pelo qual as explicações míticas foram sendo postas em cheque, enquanto se buscavam novos conhecimentos.





Períodos filosóficos

Atualmente é dada pouca ênfase à periodização da história. Valoriza-se a afirmação de que toda a história é um só encadeamento de fatos. Esse mesmo princípio vale para a filosofia. Mesmo assim, apenas para facilitar a situação temporal, com finalidade puramente ilustrativa, pode-se dizer que a história da filosofia pode ser estudada em seis etapas ou períodos:

Pré-Socráticos: O inicio, nas colônias gregas;

Período Clássico: Atuação de Sócrates, Platão e Aristóteles;

Período Helênico: Depois de Aristóteles até o inicio da Idade Média;

Período Medieval: Toda a Idade Média;

Período Moderno: Do Renascimento até a Revolução Francesa;

Período Contemporâneo: Da Revolução Francesa até nossos dias.

Em seu nascimento, a filosofia grega tinha um objetivo: explicar racional e coerentemente o mundo. Com o transcorrer dos anos esse objetivo foi se aprimorando e novas temáticas foram sendo incorporadas à reflexão filosófica. Hoje podemos estudar a história da filosofia tanto pela sua evolução cronológica como pelas abordagens temáticas.

E mais ainda: a história da filosofia não se faz da mesma forma que a história geral da humanidade. A história da Filosofia é a história de como e porque o pensamento filosófico assumiu determinadas característica, em cada época.

Na realidade a história da filosofia também é um exercício filosófico.





Os filósofos da Natureza

O primeiro grupo de pensadores dos quais temos notícias foram os que realizaram a transição das explicações míticas para a explicação filosófica.

Esses pensadores queriam entender e explicar a mecânica e as origens do mundo. São conhecidos como pré-socráticos ou filósofos da natureza.

Isso significa que se fosse feita uma pergunta sobre o tema central desenvolvido por esses primeiros pensadores veremos que se ocuparam em explicar de que se constitui a natureza, o mundo.

Infelizmente pouco restou de seus estudos, na forma escrita. O que nos restam são fragmentos ou o que dizem deles os que os sucederam. Notemos que aqui já temos uma questão para a história da filosofia: Por que pré-socráticos? Porque filósofos da natureza? Por que os autores se referem a esses pensadores de diferentes formas? Se pouco restou desses escritos, como saber que efetivamente são importantes?

A importância dos pré-socráticos não está no fato de terem dado o pontapé inicial para a filosofia grega, mas porque seus sucessores nos remetem a eles e às suas intuições e descobertas. Aristóteles e Platão frequentemente os mencionam para reforçar suas afirmações.

Nossa experiência cotidiana nos mostra isso: quando precisamos de ajuda buscamos quem tem condições de nos socorrer. Assim também no universo do saber. Daí a referência aos pré-socráticos, uma vez que colocaram questões que ainda hoje são pertinentes.

No livro: “O mundo de Sofia”, J Gaarder, faz o seguinte comentário a respeito da filosofia dos pré-socráticos: “Acima de tudo, procuravam compreender os processos da natureza através da observação da própria natureza. Isso é completamente diferente da explicação do relâmpago e do trovão, do Inverno e da Primavera, por meio da referência aos acontecimentos no mundo dos deuses. Desta forma, a filosofia libertou-se da religião. Podemos afirmar que os filósofos da natureza deram os primeiros passos em direção a um modo de pensar “científico”. Assim, abriram caminho a toda a posterior ciência da natureza .





Por que pré-socráticos?

Essa denominação pode nos conduzir a equivoco, pois não se refere, exclusivamente, a um grupo anterior a Sócrates (470-399aC). Alguns inclusive foram seus contemporâneos, como Leucipo e Demócrito (460-370aC).

Inicialmente pode-se dizer que essa é uma distinção didática. Serve como elemento diferenciador de um grupo de pensadores para outro grupo.

São, também, chamados de pré-socráticos porque dedicam-se a uma temática diferente daquela inaugurada por Sócrates e Platão.

Os pré socráticos queriam entender os mecanismos da natureza, ao passo que Sócrates voltou-se para a compreensão do ser humano, seus comportamentos em sociedade. Daí que os pré-socráticos também são chamados e filósofos da natureza enquanto Sócrates e seus sucessores são vistos como penadores do período antropológico (ocupam-se com o ser humano)

Outra vez podemos nos valer das palavras de J Gaarder, no livro “O mundo de Sofia”, dizendo que:

“Era comum entre os primeiros filósofos acreditarem que havia um elemento primordial responsável por todas as transformações. A forma como teriam chegado a este pensamento não é clara. Sabemos apenas que ele surgiu da concepção, segundo a qual, teria de haver um elemento primordial, que daria origem a todas as transformações da natureza.

[…]

Podemos constatar que se questionavam sobre a forma como aconteciam certas transformações na natureza. Procuravam descobrir algumas leis naturais eternas. Desejavam compreender os fenômenos da natureza, sem recorrer aos mitos tradicionais.”

Em síntese, podemos dizer que a temática dos filósofos deste período era a natureza, procurando entender como e porque ela apresenta esse e não outro processo; como e porque ocorrem os diferentes fenômenos. Temática esta que permanecerá até o período socrático, quando os temas se voltarão para o homem e a vida em sociedade.





As escolas

A não ser com algumas exceções, não temos mais acesso ao que escreveram os pré-socráticos. Por esse motivo somente os conhecemos porque foram mencionados pelos seus sucessores, que comentaram seus ensinamentos; ou mediante algumas fragmentos do que disseram.

Alguns autores agrupam os vários pensadores desse período a partir de sua localidade de atuação. Esses grupos são chamados de Escolas.

Temos assim uma Escola Jônica, referindo-se aos pensadores que viveram nessa região. Quase todos na cidade de Mileto. Assim temos: Tales de Mileto, Anaximandro de Mileto, Anaxímenes de Mileto, Heráclito de Éfeso.

Outra é a escola Pitagórica ou escola Itálica, de onde vieram alguns de seus representantes: Pitágoras de Samos, Alcmeão de Crotona, Filolau de Crotona e Arquitas de Tarento.

Podemos mencionar, também a Escola Eleata. Alguns de seus representantes: Xenófanes de Colofão, Parmênides de Eléia, Zenão de Eléia e Melissos de Samos.

Fala-se, também, de uma Escola da Pluralidade, com diferentes posturas e direcionamentos de investigação. Entre seus representantes encontramos nomes com: Leucipo e Demócrito de Abdera, Empédocles de Agrigento e Anaxágoras de Clazómena.





Os pré-socráticos: Alguns representantes

Numa visão introdutória é impossível analisar todos os pensadores deste período. Vejamos apenas alguns deles conforme alguns fragmentos transcritos Gerd A. Bornheim, no livro “Os filósofos pré-socráticos”





Tales de Mileto

O que sabemos de Tales vem de Aristóteles e mais alguns pensadores gregos e latinos posteriores. Aristóteles assim se refere a Tales:

“Outros julgavam que a terra repousa sobre a água. Esta é a mais antiga doutrina por nós conhecida e teria sido defendida por Tales de Mileto. A maior parte dos filósofos antigos concebia somente princípios materiais como origem de todas as coisas. (...). Tales, o criador de semelhante filosofia, diz que a água é o princípio de todas as coisas.”

Na matemática é conhecido o Teorema de Tales, que teria sido desenvolvido quando de uma sua visita ao Egito.





Heráclito de Éfeso

Heráclito de Éfeso é talvez um dos mais importantes pré-socráticos. Uma de suas mais impressionantes conclusões é a afirmação do “devir” para dizer que tudo muda.

Partindo disso podemos dizer que em Heráclito repousam as raízes da dialética. Sua intuição do movimento lhe permite isso. “O frio torna-se quente, o quente frio, o úmido seco e o seco úmido”; ou então, num outro fragmento: “tudo se faz por contraste; da luta dos contrários nasce a mais bela harmonia”. Todas as realidades, portanto, estão em guerra constante com seu oposto, para produzir algo diferente. “A guerra é o pai de todas as coisas e de todas o rei; de uns faz deuses, de outros homens; de uns escravos, de outros homens livres”. E talvez a mais famosa de suas afirmações “Não se pode entrar duas vezes no mesmo rio”. E isso porque “para os que entram nos mesmos rios, correm outras águas”.





Parmênides

Da mesma forma que temos poucas informações a respeito da maioria dos pré-socráticos, sobre Parmênides não é diferente, entretanto é possível situá-lo, em plena atividade, por volta do ano 500 aC.

Enquanto Heráclito afirma a constância do movimento, Parmênides afirma a imutabilidade do Ser. Além disso, enquanto seus predecessores escreveram em prosa, Parmênides escreveu em verso. Em seu poema “Sobre a Natureza” podemos ler: “E agora vou falar; e tu, escuta as minhas palavras e guarda-as bem, pois vou dizer-te dos únicos caminhos de investigação cabíveis: o primeiro (diz) que (o ser) é e que o não ser não é; este é o caminho da convicção, pois conduz à verdade. O segundo, que não é, é que o não-ser é necessário; esta via, digo-te é imperscrutável; pois não podes conhecer aquilo que não é – isto é impossível – nem expressá-lo em palavra.”.

Dessa argumentação, brotam dois princípios lógicos: o da identidade e o da não contradição. Afirma a identidade do ser: "Necessário é dizer e pensar que só o ser é; pois o ser é, e o nada, ao contrário, nada é". Os seus princípios lógicos foram, mais tarde, sistematizados por Aristóteles, no seu Órganon.





Pitágoras

Também a respeito de Pitágoras pouco sabemos. Sabe-se que por volta de 540 aC estava no auge de sua produção intelectual e teria nascido na ilha de Samos.

Para a escola pitagórica o princípio das coisas são os Números. Daí as importantes contribuições na matemática e geometria. Exemplo disso é o conhecido teorema, afirmando que a “soma do quadrado dos catetos é igual ao quadrado da hipotenusa”.

O grande problema em se estudar Pitágoras é que dos seus escritos nada sobraram. Portanto possuímos apenas referências indiretas feitas por comentadores posteriores. É o caso, por exemplo, de Aristóteles que usa a expressão “os pitagóricos”, referindo-se à escola ligada ao nome de Pitágoras. E para os pitagóricos o principio de todas as coisas são os números. Diz Aristóteles:

“Os assim chamados pitagóricos, tendo-se dedicado às matemáticas, foram os primeiros a fazê-la progredir. Dominando-as chegaram à convicção de que o princípio das matemáticas é o princípio de todas as coisas.”





Demócrito

Este pensador viveu no período de 460-370 aC, foi contemporâneo de Sócrates. Como vários dos demais pré-socráticos, seus escritos se perderam, tendo sobrado apenas alguns fragmentos. É o mais representativo da escola Atomista e, de acordo com muitos historiadores, foi o criador dessa teoria.

Para os atomistas o mundo é composto de partículas indivisíveis, os átomos, que se misturam ao acaso, dando origem a cada uma das realidades. Na teoria dos atomistas todas as realidades são constituídas a partir dos diferentes átomos que se juntam ou se separam. E assim tudo se constitui de átomos.

Neste ponto podemos indagar: Nos dias atuais, com base nas conclusões da física moderna e nos super microscópios, essa teoria se confirma ou não? Por quê? De que se constituem os átomos, segundo a física moderna? Se é verdade que as elementos internos dos átomos se movimentam ao redor do núcleo, isso significa que no interior dos átomos há espaço vazio?





Em síntese

Partindo de tudo isso podemos dizer que cada um dos pré-socráticos deu sua contribuição para o desenvolvimento humano. Colocou algumas pedras no degrau do saber. Hoje seu pensamento pode nos parecer ultrapassado ou coisa corriqueira. Entretanto, não importa como os vejamos, ultrapassado ou simplórios, o fato é que muito do que temos e sabemos começou a ser ensinado por esses pensadores. Seu mérito é, em tempos remotíssimos, ter dado o pontapé inicial.

sábado, 19 de junho de 2021

Quem é este?

Não se ofenda, quando te pergunto: como você reage diante de uma tempestade? De um perigo iminente? De algo que te ameace ou àqueles de quem você gosta?

Não quero expor tuas fragilidades.

Não estou pensando em ridicularizar os teus medos.

Antes de dar minhas explicações, permita-me mais uma indagação: Você acredita que Jesus é o Cristo, aquele que pode te salvar? Te dar a vida plena?

Não estou duvidando da tua fé

Não estou, nem um pouco, pensando que tua fé pode ser fraca…

Por isso, agora explico o motivo de minhas indagações. Indagações que faço a mim, também!

E digo mais. Estou indagando porque essa é uma das indagações que Jesus fez aos seus discípulos (Mc 4,35-41).São indagações que o Senhor Deus apresentou a Jó (Jó 38,1.8-11). são perguntas nascidas do meio da tempestade.

Eu e você sabemos a resposta das indagações: diante da tempestade, do perigo, das ameaças… nós sentimos medo. Alguns um pouco mais, outros um pouco menos. Alguns deixam transparecer outros disfarçam… mas todos sentimos medo. Todos nos sentimos inseguros. Todos nos sentimos ameaçados quando algo foge ao nosso controlee a incerteza se instala.

A realidade do nossos medos expressa uma outra realidade: nossa falta de confiança. A todos dizemos que somos cristãos, que temos fé, que confiamos no poder absoluto de Deus; dizemos que sabemos do poder de Deus e que sua mão poderosa e salvadora nos envolve e nos protege… tudo isso nós dizemos. Mas, ao mesmo tempo, e apesar de nossaafirmação de confiança, sentimos medo! E o medo é reflexo da insegurança. E a insegurança é uma forma de falta de confiança, de fé.

Não porque não confiamos, mas porque nossa confiança é fraca,nossa fé é frágil. Nossa confiança tem por base nossa compreensão das coisas… mas não compreendemos as coisas com a profundidade da ciência divina. Daí sermos limitados e isso se manifesta em nossos medos.

Em resposta aos nossos medos é que o Senhorfalou a Jó, do meio da tempestade. E, em sua pergunta, está uma afirmação: Mesmo sem verbalizar, Deus está dizendo: “se eu limitei os mares, significa que eu estou no controle de tudo. Portanto confie em mim!” E se Deus pede que confiemos Nele, deveríamos não temer mais nada…. Mas o medo permanece. Permanece porque a promessa divina parece que não se enquadra em nosso cotidiano, como superação dos nossos problemas.

Esquecemos que Deus não disse que não teríamos problemas. Disse que Ele está no controle. Que Ele sabe de nossas limitações…. Mas também sabe de nosso potencial! E não nos permite algo maior do que nossas forças.

Por isso Jesus recrimina os discípulos, questionando sua fé.Neste ponto encontram-se as indagações de Deus Pai e de Jesus: Deus dizendo que está no controle de tudo. E Jesus demonstrando quem, efetivamente tem o poder de a tudo controlar. E demonstra isso controlando o mar e os ventos.

Mas, se a tempestade assustava os discípulos, o domínio sobre ela, demonstrado por Jesus, também assusta aos discípulos que ficam se perguntando: quem é este que controla os elementos da natureza? “Quem é este, a quem até o vento e o mar obedecem?” (Mc 4,41). Constatando a incredulidade, o medo, a incerteza… é que Jesus indaga: “Por que sois tão medrosos? Ainda não tendes fé?” (Mc 4,40). Na indagação de Jesus, está uma afirmação não verbalizada: “Não temam! Eu estou no controle”

Então retomemos a indagação inicial: como você reage diante do perigo? Nossa condição humana, nos aconselha a ter medo. E isso nos leva a agir com prudência. Nossa ação prudente é a melhor forma de manifestarmos, não só nosso medo, mas também a afirmação da nossa confiança no controle divino.

Em síntese, podemos dizer que nossos medos nos acompanham. Mas eles não devem se sobrepor às nossas ações, pois se temos problemas e dificuldades e dores e sofrimentos… também temos a mão de Deus sobre nós, ajudando-nos a superar as adversidades. Dessa forma podemos bem entender a afirmação de Paulo, na segunda carta aos coríntios (2Cor 5,14-17): “Portanto, se alguém está em Cristo, é uma criatura nova. O mundo velho desapareceu. Tudo agora é novo.”

Não precisamos mais indagar: quem é este? Mesmo com uma fé em crescimento, podemos alimentar uma certeza: temos que fazer tudo para superar as adversidades: é Deus quem está no controle.




Neri de Paula Carneiro

Outros escritos do autor:

Filosofia, História, Religião: https://www.webartigos.com/index.php/autores/npcarneiro;

Literatura: https://www.recantodasletras.com.br/autores/neripcarneiro.

sábado, 12 de junho de 2021

As sementes do Reino de Deus

Falando a respeito de um galho de cedro a ser plantado no alto do monte, o profeta Ezequiel (Ez 17, 22-24) está falando sobre o povo de Israel.

Falando à comunidade de Corinto (2Cor 5,6-10), Paulo insiste na importância da confiança proporcionada pela fé.

Falando sobre o Reino de Deus, Jesus (Mc 4,26-34) o apresenta comparando-o com uma semente e com o grão de mostarda. Em ambas as comparações o reino é apresentado como algo que cresce e produz frutos.

Isso nos leva a pensar.

Quê eram os hebreus, antes da opção pelo Senhor? Um pequeno povo. Um grupo quase insignificante. Uns pobre coitados que viviam amedrontados pela ameaça dos vizinhos. Pela insegurança em relação às grandes potências da sua época. Um povo acuado numa estreita faixa de terra quase improdutiva. E, antes disso, um grupo e migrantes sem terra…. E assim por diante, poderíamos enumerar mais algumas características desse grupo de pessoas.

Mas a partir de sua opção pelo Deus libertador, que os ajudou a sair da servidão egípcia… ocorreu um avanço. O povo ganhou personalidade. Enfrentou os problemas, tropeçou e caiu, mas teve motivações para se reerguer. E assim, porquê o povo aceitou o apelo divino, deixando de lado outras divindades, o Senhor se propôs a colocá-lo como exemplo: “Vou plantá-lo sobre o alto monte de Israel. Ele produzirá folhagem, dará frutos e se tornará um cedro majestoso. Debaixo dele pousarão todos os pássaros, à sombra de sua ramagem as aves farão ninhos” (Ez 17,23)

Assim, o povo de Deus passou a ser o povo pelo qual chegou a todas as nações – e também a nós – a proposta salvadora de Jesus Cristo…

E assim, vamos ao encontro de Paulo.

Como um psicólogo, o apóstolo, não só analisa nossas motivações e nossos desesperos; nossos interesses e nossos medos…. E por esse motivo, falando a partir de seu exemplo de vida e de sua confiança no Senhor Ressuscitado, nos convida a também permanecermos na confiança. Isso porque em nosso corpo de peregrinos, por vezes fazemos opções que não são as mais convenientes nem condizentes para nos aproximar do Senhor. Ou seja, vivemos como que divididos. Sabemos o que é melhor para nos levar a Deus, mas nem sempre escolhemos esse caminho. Por isso, mesmo não tendo uma “visão clara” a respeito dos caminhos de Deus, podemos e devemos nos manter no caminho da fé empenhados em “ser agradáveis a ele”.

O caminho para o Senhor, portanto, é uma opção. Entretanto devemos nos lembrar sempre de que “todos nós temos de comparecer às claras perante o tribunal de Cristo, para cada um receber a devida recompensa – prêmio ou castigo – do que tiver feito ao longo de sua vida corporal” (2Cor 5,10). E nem podia ser diferente. A vida que levamos é que vai nos levar à presença ou vai nos afastar do Senhor.

Pensando nisso, em nos ajudar em nossas escolhas foi que Jesus nos apresentou a proposta do Reino: é pequeno em sua apresentação, mas grandioso em seus frutos. É como a semente que cresce sozinha, mas para crescer depende de alguém semeá-la. A nós, peregrinos da fé, cabe a missão de semear as sementes do Reino.

Mesmo que seja uma sementinha pequenina, quase insignificante, como a semente da mostarda. Semeada com fé, regada com boas obras, adubada pelo compromisso de continuar a semeadura… essa sementinha germinará e dará grandes resultados.

A semente do Reino não precisa ser grande. Precisa apenas de nossas mãos, nossas atitudes, nosso empenho… para o processo do plantio. A força da semente, quando plantada por nossas atitudes fundamentadas na fé e na confiança, germinará e produzirá.

Mas ela depende de nós. É o Senhor que faz crescer, como o pequeno galho de cedro, mas depende de nossa atitude para plantá-lo. É o Senhor que faz germinar e frutificar a semente, mas depende de nossa atitude para jogá-la na terra.

O reino vai crescer, com certeza, mas sempre no sistema de parceria: o Senhor fertilizando a terra e nossas atitudes fazendo o plantio…




Neri de Paula Carneiro

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Filosofia, História, Religião: https://www.webartigos.com/index.php/autores/npcarneiro;

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sábado, 5 de junho de 2021

Pecar contra o Espírito Santo

A Igreja é sábia ao organizar os tempos litúrgicos com os quais nos ensina a seguir os passos de Jesus. Ao redor dos eixos principais, Natal e Páscoa, circulam os períodos do Tempo Comum: períodos litúrgicos nos mostram o que podemos chamar de cotidiano da vida de Jesus.

Ao encerrarmos o ciclo pascal retomamos o Tempo Comum. E no décimo domingo somos convidados a refletir a partir de algumas situações bem peculiares. Na leitura do Gênesis (Gn 3,9-15), assistimos à cena em que o homem, a mulher e a serpente são confrontados com seus atos. Depois encontramos Paulo, pregando à comunidade de Corinto (2Cor 4,13-18-5,1), falando da importância da fé como recurso para manter o ânimo e superar as dificuldades. Por fim encontramos Jesus (Mc 3,20-25) definindo os critérios que podem nos aproximar ou nos afastar de Deus.

Como podemos notar, o leque de lições que a Palavra de Deus nos oferece é extenso.

Poderíamos começar com as lições paulinas, afirmando que se as dificuldades sufocam é necessário manter o ânimo. Insiste em afirmar que, mesmo em meio aos dissabores, pode-se colher bons resultados, quando nos deixamos amparar pela fé e confiança no Senhor. É clara a constatação de que na medida em que o corpo perde forças o espírito se fortalece, na medida em que vence as dificuldades. Superar as tribulações, em nome de Jesus, é caminho para glória eterna. “Por isso, não desanimamos. Mesmo se o nosso homem exterior se vai arruinando, o nosso homem interior, pelo contrário, vai-se renovando, dia a dia. Com efeito, o volume insignificante de uma tribulação momentânea acarreta para nós uma glória eterna e incomensurável.” (2Cor 4,16-17). Em nossos dias poderíamos dizer que a fé alimenta o otimismo e quem mantém o otimismo tem melhores condições de se aproximar de Deus.

Também podemos dizer que uma das faces do otimismo, do entusiasmo, e da capacidade de se manter animado está na autenticidade. Essa pode ser uma das lições que podemos aprender do diálogo de Deus com Adão, com a mulher e com a serpente, no paraíso.

O casal do paraíso tinha tudo para o bem viver. Tinha orientações sobre o que fazer e o que evitar. Na realidade a única restrição era evitar comer aquele fruto. Fruto que a maldade das pessoas, juntamente com a palavra “nu”, identificou sexo. E assim comer “da árvore te proibi de comer” virou sexo. Principalmente porque, ao ser interrogado por Deus o homem afirma que “a mulher que puseste junto de mim, me deu da árvore, e eu comi” (Gn 3,11-12) e isso virou sexo.

Esse visão maldosa, além de criminalizar a mulher, que também foi vítima, não percebeu uma mensagem mais importante que uma eventual transgressão sexual.

De fato, a transgressão não teve conotação sexual. Teve com honestidade, com caráter, com autenticidade. Adão virou transgressor não porque comeu da árvore, mas porque não assumiu o que fez e jogou a sua culpa sobre a mulher: “a mulher me deu eu comi”. A mulher virou transgressora não por ter induzido o homem a provar da árvore do discernimento (Gn 3,6), mas porque não assumiu o que fez e jogou a sua culpa sobre a serpente. E Deus puniu a serpente, não por ter seduzido a mulher (Gn 3,5), mas por ter mentido e prometido o que não podia oferecer.

A sexualidade é um dom divino e não fonte do mal. Mas a dissimulação, não assumir o que se faz e culpabilizar a outros é uma transgressão mortal. Deus perdoa as fraquezas humanas, mas não pode perdoar a dissimulação, a falta de autenticidade, a enganação. E não perdoa porque quem afirma ter cometido o erro “porque o outro me induziu a isso”, não está arrependido, não se assume como alguém que erra e tenta transferir sua culpa para outro. Como Deus pode perdoar quem não se arrepende de estar enganando aos outros, fazendo-se de vítima sem assumir seu erro?

E assim chegamos ao discurso de Jesus que se defronta com seus parentes que o consideram louco; com os doutores da lei que o consideram possuído por Belzebu (Mc 3,21-22). Hoje diríamos que Jesus estava sendo vítima de “fake news”.

Com isso podemos entender não só o desabafo de Jesus, por se ver perseguido, mas também sua indignação ao perceber que os líderes do povo em lugar de levar o remédio aos sofredores afirmam que o Médico é o causador da doença. Por isso a afirmação: todos os pecados podem ser perdoados, menos o pecado contra o Espírito Santo. Isso por um motivo cristalino: o Divino Espírito Santo é um espírito da verdade, da autenticidade, da honestidade, da ciência, do amor… e quem não adere, com a própria vida, a esses dons, age contra o Espírito. E isso é imperdoável. Quem pode fazer algo de bom e voluntariamente não o faz, age contra o Espírito. E isso é imperdoável. Quem gera divisão, espalha mentiras, age contra o Espírito. E isso é imperdoável…. Esses não fazem a vontade de Deus e, portanto, não fazem parte da “família” de Jesus.

Aqueles que agem de acordo com o Espírito de amor, de vida, de ciência, de diálogo, de união… agem em sintonia com o Espírito…. Esses são os pais, as mães, os irmãos de Jesus….




Neri de Paula Carneiro

Outros escritos do autor:

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CICLO DA PÁSCOA: A vitória da vida.

Disponível em: https://pensoerepasso.blogspot.com/2024/03/ciclo-da-pascoa-celebrar-vida.html; https://www.recantodasletras.com.br/artigos-de...