quarta-feira, dezembro 30, 2020

Santa Mãe de Deus: guardava e meditava em seu coração

(Reflexões a partir de: Números 6,22-27; Gálatas 4,4-7; Lucas 2,16-21)


Uma semana após o Natal estamos celebrando o primeiro encontro de Jesus com alguém que não eram seus pais: os pastores (Lc 2,16-21). Gente pobre! Tanto que passavam a noite ao lado de seu rebanho. E de junto do rebanho foi que correram visitar o recém-nascido, anunciado pelo anjo.

E, no local indicado pelo anjo, o que encontraram? Um casal com seu filho recém-nascido. Aqueles que também não estavam no tumulto da cidade. Os pastores foram às pressas a Belém e encontraram Maria e José, e o recém-nascido, deitado na manjedoura.” (Lc 2,16).

E assim, ao ouvirmos a mensagem do anjo e vermos o deslocamento dos pastores em direção à gruta de Belém, nos colocamos em contato com a personagem que é o centro desta celebração: Maria, a Santa Mãe de Deus. Aquela que entregou Deus à humanidade permitindo que a humanidade fosse entregue a Deus.

Evidentemente que o centro da fé cristã e de toda celebração é Jesus Cristo. Mas neste dia, ao celebrarmos o supremo sacrifício de Jesus, temos os olhos voltados para sua mãe.

Celebramos Maria porque ela aceitou a primeira missão do cristianismo: ser mãe de Jesus. A maternidade de Maria é sua credencial. É sua demonstração de força e capacidade de cooperação. Sua resposta a um convite divino.

Alguns meses antes, ao ser interpelada pelo anjo, poderia ter dito não. Mas disse sim. Poderia ter feito muitas outras coisas, mas aceitou a missão de mãe, e isso numa circunstância única. Ela assumiu a maternidade ainda não sendo casada o que era um risco: ser rejeitada e ser apedrejada. Mas ela assumiu o risco da maternidade e com a maternidade, assumiu todos os riscos e belezas dessa missão. Ela confiava e sabia que havia encontrado graça diante de Deus. Sabia que Deus não abandona os seus e sabia que José era, também, um homem de Deus.

Ao celebrar a Mãe de Deus, a Igreja quer nos indicar que Deus não abandona seu povo, antes, pelo contrário, oferece uma benção (Nm 6,22-27). Lá no antigo povo, era para que se mantivessem na presença do Senhor. Mediante essa bênção o Senhor se comprometeu a: abençoar, guardar. Ele oferece o brilho de sua face, tem compaixão. Seu olhar que dá a paz (Nm 6,24-26). Para conceder tudo isso o Senhor deseja apenas ser invocado.

Além disso, a Igreja quer nos lembrar que foi mediante a doação de Maria, a Mãe, que Deus se encarnou para nos “resgatar” da escravidão do pecado, nos “adotar” como filhos, nos enviar o Espírito, que nos ensina chamar a Deus de Pai e nos tornar herdeiros do Reino, mediante a ação do Filho encarnado, como nos ensina Paulo, na carta aos Gálatas (4,4-7).

Todo esse processo salvador e libertador somente foi possível porque uma mulher disse sim. Porque uma garotinha mostrou o valor e a capacidade da Mulher. O Filho, manifestou-se ao mundo como Filho, porque foi “nascido de uma mulher” (Gl 4,4). Se é verdade que a mulher se completa na maternidade, Maria se tornou plena ao nos dar Jesus. Por isso a Igreja devota tamanho carinho para com a Mãe. É porque sem a graça materna não teríamos recebido a graça do Filho.

Na maternidade de Maria, o Senhor nos abençoou e guardou; fez sua face brilhar sobre nós, voltou seu rosto para nós a fim de nos dar sua Paz (Nm 6,24-26). Os dons divinos, antes prometidos, se tornaram uma realidade entre nós, mediante a encarnação de Jesus, no Natal. Pelos méritos de Jesus, filho de Maria, a antiga lei foi abolida. E agora, diz Paulo: “Assim já não és mais escravo, mas filho; e se és filho, és também herdeiro; tudo isso, por graça de Deus” (Gl 4,7). E Deus nos entregou tudo isso por meio de Jesus, nascido de uma mulher, Maria.

A grandeza do ato de Maria, além de nos dar Jesus, foi permitir que o Pai nos adotasse e, assim, passamos a herdar a possibilidade de entrarmos no reino do Pai, juntamente com Jesus, nosso irmão por adoção divina.

Mas voltemos nossa atenção, novamente, para a cena: Jesus, Maria e José, na gruta entre os animais. Do ponto de vista humano, é uma cena degradante, pois representa uma pobreza extrema. Mas foi nesse meio que o Senhor se fez presente entre nós. E, como ser humano, Maria não mostrava desespero. Com certeza estava preocupada com o destino de sua família, mas nem isso era motivo de aflição. Mesmo com a chegada dos pastores, também eles, pobres: uma demonstração da opção de Deus: não se aliou aos poderosos, mas aos humildes. Nem essa visita inesperada altera a reação da Mãe, pelo contrário não se nota, em Maria, o menor gesto de aflição ou desespero: apenas doação.

O fato é que no centro dessa cena está uma mulher, uma jovem mãe que, em lugar do desespero, da aflição, da preocupação, simplesmente “guardava todos estes fatos e meditava sobre eles em seu coração” (Lc 2,19).

O que essa cena e a postura de Maria nos ensinam? Primeiro: Deus faz opção e não escolhe os ricos para entregar seu Filho; segundo: Deus orienta seus fiéis sobre sua benção; terceiro: Deus nos adota como filhos, ao nos dar Jesus; quarto: a confiança de Maria lhe permite manter-se calma para guardar e meditar sobre os fatos. E, por último, a atitude de Maria se nos impõe como um modelo de vida a partir da confiança na providência divina. Ela sabe, é Deus quem está no controle.


Neri de Paula Carneiro.

Mestre em educação, filósofo, teólogo, historiador

Outros escritos do autor:

Filosofia, História, Religião: https://www.webartigos.com/index.php/autores/npcarneiro;

Literatura: https://www.recantodasletras.com.br/autores/neripcarneiro.

sábado, dezembro 26, 2020

Sagrada família: Esse Menino

(Reflexões baseadas em Eclesiástico 3,3-7.14-17a; Colossenses 3,12-21; Lucas 2,22-40)


Ao celebrarmos o Natal de Nosso Senhor Jesus Cristo celebramos o centro da primeira fase do ano litúrgico que, justamente, corresponde ao Ciclo do Natal. O outro é o Ciclo da Páscoa.

O centro do ciclo natalino é o Natal do Senhor. Mas esse ciclo tem um período de preparação: o advento. E um período posterior, o tempo do natal. Na sequência do Natal, no tempo de Natal a Igreja nos propõe alguns eventos importantes para alimentar e enriquecer nossa fé. E também para nos colocar em sintonia com os personagens, com os acontecimento, com proposta que Deus nos apresenta ao nos entregar seu Filho para ser um de nós.

É isso que celebramos na sequencia do Natal. Depois do dia de Natal, a Igreja nos propõe o modelo de vida da Sagrada Família. A primeira orientação vem do livro do Eclesiástico (3,3-7.14-17 a), no qual encontramos algumas importantes orientações para a relação familiar: necessidade não só de interação, mas também de respeito entre os integrantes da família. A convivência baseada no respeito é uma condição para a vida longa e o atendimento das orações (Eclo. 3,4-7).

Também Paulo, escrevendo aos colossenses (3,12-21), afirma que o norte para a boa convivência é o amor. Só o amor gera perdão e conduz à perfeição (Cl 3,13-14). E o apóstolo dá orientações específicas às esposas, em relação aos maridos; aos maridos, em relação às esposas; aos filhos, em relação aos pais e aos pais, em relação aos filhos (Cl 3,18-21).

Se tivéssemos por base da relação familiar apenas as orientações destas leituras já teríamos o suficiente, pois ambas orientam para o amor e o respeito. E nós o sabemos: havendo amor, também existirá o respeito. O respeito é uma forma pela qual as pessoas manifestam seu amor. Ambos andam juntos e um não ocorre sem o outro. Quem ama respeita e quem respeita o faz porque ama.

Mas na celebração da Sagrada Família temos um ingrediente a mais. Esse elemento nos é apresentado quando Lucas (2,22-40) narra o episódio no qual Maria e José levam Jesus ao templo para cumprir a Lei de Moisés: purificar a mãe e o filho, consagrar o menino e oferecer o sacrifício previsto (Lc 2,22-24). A mensagem é clara: O Filho de Deus submete-se e cumpre a lei de Deus!

E justamente no templo é que ocorrem os fatos que iluminam a vida da Sagrada Família: o primeiro já mencionado é o cumprimento das normas da lei; em seguida um encontro com um desconhecido: “Simeão tomou o menino nos braços e bendisse a Deus” (Lc 2,28). Só esse gesto já é suficiente para que os pais do menino percebam que, realmente, estão diante de algo grandioso. Mas a sequência do discurso de Simeão não é menos intrigante para os jovens pais: “meu olhos viram a tua salvação, que preparaste diante de todos os povos: luz para iluminar as nações e glória do teu povo Israel” (Lc 2,30-32).

Enquanto o “pai e a mãe de Jesus estavam admirados com o que diziam a respeito dele” (Lc 2,33), Simeão continua surpreendendo-os. Ele abençoa o casal e indica o destino de Jesus. O justo Simeão, certamente olha nos olhos de Maria, para lhe falar algo muito além do que os pais esperam de seus filhos . Esse menino, diz o ancião (Lc 2,34), vai ser causa de queda e reerguimento. E Jesus de fato foi – e continua sendo – elemento decisivo para a vida: tanto para as pessoas aderirem ao projeto de paz, amor a justiça como para evidenciar a marginalização, a exclusão, a segregação. Ele é sinal de contradição, pois quem adere ao seu projeto não consegue aceitar que irmãos sejam explorados e prejudicados pelos representantes do anticristo que geram todo tipo de maldade em relação às pessoas e à natureza. Jesus também faz com que se manifestem os pensamentos das pessoas, pois não há possibilidade de se dizer que aderiu ao projeto salvífico e continuar praticando atos que prejudicam indivíduos, a sociedade e/ou o mundo. Para qualquer pessoa o desafio é o mesmo: ou adere a Jesus ou o rejeita, não há meio termo. A prática de maldades, grandes ou pequenas, somente demonstram a quem se serve: não a Cristo mas ao anticristo.

Outro elemento importante, no gesto da sagrada família, não é tanto a afirmação da espada a transpassar a alma de Maria (Lc 2,35), mas o gesto da profetisa, Ana. Após louvar a Deus, sai falando a respeito “do menino a todos os que esperavam a libertação de Jerusalém.” (Lc 2, 38).

Qual o alcance de tudo isso?

Por um lado, a afirmação da importância da vida comunitária. José e Maria cumpriam os rituais de sua fé, pois estão inserido numa comunidade de fé. Sua devoção os leva a “cumprirem tudo, conforme a Lei do Senhor” (Lc 2,39). Por outro lado, a atitude da Família de Nazaré os insere num ambiente político: a proposta de libertação. A encarnação, no Natal, insere a Sagrada Família no centro da grande questão política do momento: Jesus não está aí para pregar e propor e direcionar a rebeldia ou a reação violenta, mas suas atitudes demonstram, desde o nascimento qual o lado social em que se insere e onde nasce o cristianismo: nasce entre os pobres no meio de animais; é visitado pelos pastores e no templo os pais fazem a oferta dos pobres.

Esse menino, portanto, veio para afirmar a necessidade de se fazer uma opção. Daí a pergunta que se impõe: de que lado nos posicionamos?

 

Neri de Paula Carneiro.

Mestre em educação, filósofo, teólogo, historiador

Outros escritos do autor:

Filosofia, História, Religião: https://www.webartigos.com/index.php/autores/npcarneiro;

Literatura: https://www.recantodasletras.com.br/autores/neripcarneiro.


quinta-feira, dezembro 24, 2020

NATAL: Ilumina o ser humano

(Reflexões a partir de Isaías 52,7-10; Hebreus 1,1-6; João 1,1-18)


Estamos tão acostumados a celebrar o Natal a partir daquelas belas encenações, normalmente preparadas pelos jovens da comunidade, que quase não nos damos conta de que o Natal não se explica pela gruta, pelos anjos, pelos pastores, pela visita dos três magos… isso faz, parte, mas isso não é o Natal.

O Natal vai além. Como o demonstram Isaías (52,7-10) e o autor da carta aos Hebreus (1,1-6). O Natal é um período fundamental para a liturgia e uma época propícia para acolhermos a Luz divina. E, consequentemente, para nos iluminarmos não só com bons propósitos, mas renascendo para uma nova vida.

Se quiséssemos comparar o ano litúrgico a um veículo, poderíamos dizer que Natal e Páscoa são os dois conjuntos de pneus que fazem com que o veículo da liturgia trafegue ao longo do ano litúrgico. O Natal são os pneus da frente e a Páscoa são os pneus traseiros. O veículo do ano litúrgico não trafegaria sem que ambos estivessem interligados, um existe em função do outro.

Mas não só o ano litúrgico. O mistério de nossa fé cristã também depende desses dois eventos: a Encarnação, no Natal e a Paixão, na Páscoa. E as duas celebrações nos demonstrando o amor especial que Deus tem para conosco. Tanto que enviou seu Filho (Natal) para nos resgatar com seu sangue na cruz (Páscoa).

Pensando em tudo isso é que celebramos a solenidade do Natal, em um clima de anunciação, como ensina Isaías: “Como são belos sobre as montanhas os pés do mensageiro que anuncia a felicidade, que traz as boas novas e anuncia a libertação”, (Is 52,7). Uma anunciação que tem um dom de presença, uma vez que depois de ter falado pelos profetas, no mento presente Deus nos fala mediante Jesus que faz história ao nosso lado: “Muitas vezes e de diversos modos outrora falou Deus aos nossos pais pelos profetas. Ultimamente nos falou por seu Filho” (Hb, 1,1-2). O Filho que é o próprio Deus Encarnado, Deus conosco, Deus entre nós, Deus com nossa cara...

E se observarmos bem, notaremos que tanto a mensagem de Isaías como a da carta aos Hebreus, nos propõem: um clima de festividade; um clima de anúncio da presença de Deus entre nós; um clima de vitória de Deus; um clima de adoção, pelo qual o Senhor nos assume como filhos.

Mas esse clima festivo, que se concretiza na noite natalina tem, também, um tom de denúncia, como sugere o prólogo de João (1,1-18)

O clima é de festa, sim, pois “O Verbo se fez carne e habitou entre nós, e vimos sua glória, a glória que o Filho único recebe do seu Pai, cheio de graça e de verdade” (Jo 1,14).

Entretanto, apesar desse clima festivo; apesar de temos motivos para festejarmos, pois Deus nos deu um presente que é seu próprio filho, João nos faz um alerta-denúncia. O filho veio a nós, é verdade, mas em muitos casos e situações Ele é rejeitado: “Veio para o que era seu, mas os seus não o receberam” (Jo 1,11). “Como não o recebemos?” dirão alguns. Ocorre que o Senhor, mesmo depois de dois mil anos, continua sendo rejeitado. Principalmente nas festas e comilanças natalinas, pois vamos para a festa de aniversário, mas nos esquecemos do aniversariante!

O evangelista faz outra afirmação: mostra que o mundo é obra do Verbo Encarnado; mostra que Ele, não só estava junto a Deus, desde o princípio, mas que o Verbo/Palavra era Deus e justamente a Palavra de Deus é a origem de tudo que existe (Jo 1,1-30). Ou seja: tudo que existe origina-se em Deus; o que existe nasceu da Palavra de Deus; a Palavra Criadora de Deus é vida e luz para as pessoas (Jo 1,4).

E aqui está mais um problema, denunciado por João: o sentido e significado da luz é resplandecer e iluminar os caminhos, eliminando as trevas. Mas aqueles que andam nas trevas recusam-se a recebê-la e não se deixam envolver pela Luz divina. Eles não compreendem a grandeza da Luz (Jo 1,5). Não percebem o alcance da vida e que a vida é a Luz.

E por não se darem conta disso aqueles que andam nas trevas também não se dão conta da grandeza da afirmação de que “O Verbo se fez carne e habitou entre nós” (Jo 1,14).

Só entendendo isso é que entenderemos o sentido do Natal, que vai além do presépio. Vai além dos magos e pastores e gruta… A encarnação do Verbo/Palavra/Luz tem a força de um gesto que só pode ser divino: o fato de Deus fazer-se uma pessoa humana, a fim de levar todos os humanos a Deus. Mas para isso é necessário seguir os passos e fazer o que Jesus fez e ensinou.

Esse é o significado da resplandecência do Natal: mostrar a todas as pessoas o caminho para Deus. Podemos até iluminar nossas casas e ruas e lojas com luzes coloridas; podemos até trocar presentes e desejar “feliz natal”; podemos até participar de alguma celebração natalina… Mas o que realmente conta para se concretizar o Natal é a adesão a um projeto transformador da pessoa e da sociedade, para a construção de um mundo feliz… e não só de uma “noite feliz!”

O mundo melhor, os dias melhores os cumprimentos e tudo que fazemos ao redor do dia de Natal só tem sentido na medida em que passamos a fazer as obras daquele que é o próprio significado da festa. Ao fazermos suas obras daremos demonstração de que estamos recebendo o Verbo Encarnado nele cremos e “a todos aqueles que o receberam, aos que creem no seu nome, deu-lhes o poder de se tornarem filhos de Deus” (Jo 1,12). 

 

Neri de Paula Carneiro.

Mestre em educação, filósofo, teólogo, historiador

Outros escritos do autor:

Filosofia, História, Religião: https://www.webartigos.com/index.php/autores/npcarneiro;

Literatura: https://www.recantodasletras.com.br/autores/neripcarneiro.

 

sexta-feira, dezembro 18, 2020

ADVENTO: Faça-se em mim



(Reflexões baseadas em: 2 Sm 7,1-5.8b-12.14a.16; Romanos 16,25-27; Lucas 1,26-38




O que deixa um pai ou uma mãe orgulhosos?

Saber que seu filho é uma pessoa destacada, bem vista, respeitada na sociedade… Saber e poder divulgar o sucesso de seu filho: Isso deixa os pais orgulhosos; e os pais gostam de fazer isso!

Mas Maria não caiu nessa. É diferente sua postura, segundo nos mostra Lucas (Lc. 1,26-38).

A jovem, “Maria de Nazaré” não entrou na onda do anjo que “rasgava” elogios ao seu filho que ainda nem era nascido e que, aliás, ainda não havia sido concebido. O anjo veio lhe pedir autorização para que a “sombra” ou “o poder do Altíssimo” (Lc 1,35) a cobrisse, para que o filho fosse concebido.

Da resposta de Maria dependeu o futuro da humanidade, pois da mesma forma que ela respondeu sim: “faça-se em mim segundo a tua palavra!” (Lc 1, 38), poderia ter dito não. Poderia ter recusado a proposta… e, certamente, Deus, em sua bondade, não a recriminaria. Ele conhece o ser humano. Sabe de quê é capaz, para o mal e para o bem!

Independentemente de sermos católicos ou de qualquer outra denominação cristã, não podemos negar que, apesar de sua pouca idade, Maria demonstrou profunda maturidade: “Faça-se em mim!”

Essa menina de Nazaré (Lc 1,26) teve uma postura exatamente oposta à de Davi (2 Sm 7,1-5.8b-12.14a.16). Ela, profundamente devota ao seu Deus, deu-se o direito de questionar o anjo: “Como se fará isso?” (Lc 1,34). Certamente ela argumentou, dizendo ao anjo: “Você me aparece, falando belas coisas a respeito de meu filho”; dizendo que ele “será grande, será chamado Filho do Altíssimo, e o Senhor Deus lhe dará o trono de nosso pai Davi” (Lc 1,32). E ela conclui seu argumento demonstrando a completa inveracidade da mensagem do anjo: “Como você pode dizer uma coisa dessas se eu nem estou grávida ainda? Aliás, ainda não se consumou meu casamento!”

Exatamente o oposto do que havia feito Davi. Numa atitude soberba o rei estava se comparando a Deus: “Vê: eu resido num palácio de cedro, e a arca de Deus está alojada numa tenda!” (2Sm 7,2). Nessa postura ostentatória engambela até o profeta que lhe dá razão: “Vai e faze tudo o que diz o teu coração, pois o Senhor está contigo”. (2 Sm 7,3).

O fato é que Deus não está na ostentação. Ele vive no meio do povo simples, humilde, empobrecido! Por isso se opôs aos planos do rei!

Não sendo um Deus de ostentação leva o profeta reformular sua postura e voltar com uma reprimenda ao rei: “Porventura és tu que me construirás uma casa para eu habitar?” (2 Sm 7,5). E o Senhor deve ter dito mais. Deve ter falado ao rei: “ponha-se em seu lugar, garoto! Afinal de contas, quem é você?” E leva o rei a uma revisão de sua história: “Fui eu que te tirei do pastoreio, do meio das ovelhas, para que fosses o chefe do meu povo, Israel.” (2Sm 7,8). E o Senhor conclui a conversa dizendo que Ele, Deus, é quem edifica e não o rei. E, no tempo oportuno, de acordo com a vontade de Deus, nascerá um filho do rei. E Deus afirma que nesse filho “Tua casa e teu reino serão estáveis para sempre” (2 Sm 7,16).

Essa promessa divina se concretiza e se torna definitiva em Jesus Cristo que “reinará para sempre sobre os descendentes de Jacó, e o seu reino não terá fim” (Lc 1,33).

A postura do rei não está adequada ao plano do Senhor. A observação de Davi expressa a vontade humana, não a sintonia com o plano divino.

Essa é a diferença entre a postura de Davi e de Maria: ele quer ostentar poder edificando a casa do Senhor. Por seu lado, questionando o anjo, Maria se coloca nas mãos de Deus: “faça-se em mim de acordo com suas palavras!”

Podemos dizer que esse é o espírito do Avento. Uma proposta de mudança de atitude.

Durante quatro semanas fomos convidados a rever nossas vidas, nossas posturas, nossos projetos… tudo que se adequar ao plano divino de simplicidade, de doação ao outro, de reformulação e reconstrução do mundo e da sociedade… tudo isso está em sintonia com o plano de Deus e adequado ao advento: em sintonia com o sim de Maria e da preparação para a vinda do Senhor. Mas, na medida em que as pessoas se colocam como centro de ostentação, como o fez Davi, estão retardando a implantação do Reino. Por outro lado, aqueles que se dedicam a preparar e ajudar a instalar o Reino, podem dizer, como Paulo (Rm 16,25-27): “Glória seja dada àquele que tem o poder de vos confirmar” (Rm 16,25) na fé, na esperança e no engajamento em favor do outro. Como nos mostrou a Mãe do Senhor.

Então, como o advento é uma proposta de reflexão, de reformulação, de redefinição, de recondução da vida…. Vamos aproveitar este tempo para reformularmos nossas vidas. Agindo assim nós nos afastaremos da postura de Davi e nos aproximarmos da doação mariana. E nós também saberemos dizer: Faça-se em mim de acordo com suas palavra.

Neri de Paula Carneiro.

Mestre em educação, filósofo, teólogo, historiador

Outros escritos do autor:


sábado, dezembro 12, 2020

ADVENTO: O Espírito do Senhor



(Reflexões baseadas em: Isaías 61,1-2a.10-11; 1Tessalonicenses 5,16-24; João 1,6-8.19-28)







“O Espírito do Senhor Deus está sobre mim”, são as primeiras palavras de Isaías (61,1-2a.10-11), na primeira leitura deste terceiro domingo do Advento.

E se atentarmos para a sequência da leitura, veremos a explicação; o porquê da presença do Espírito: a unção, o envio e o tempo da redenção (Is 61,1-2)

A unção, nesse contexto, é uma referência ao caráter messiânico da profecia. Ao receber a unção, recebe-se também a autoridade do Senhor. Por isso o ungido é, também, enviado por Deus para uma missão definitiva: “proclamar o tempo da graça” (Is 61,2a). Ou seja, o ungido recebe a missão de perdoar e salvar. Esse é o motivo da alegria (Is 61,10): em posse do “manto da justiça” o messias (o ungido) “fará germinar a justiça” (Is 61,11). Havendo justiça, existe alegria, pois cessam os sofrimentos.

O “Tempo da Graça” é o tempo do perdão, mas isso só porque é um tempo de justiça. Só é possível o perdão mediante a possibilidade da justiça. Como o Senhor sempre é justo, cabe ao ser humano, se quiser ser perdoado, praticar a justiça, aprendendo e reproduzindo a Justiça do Senhor Justo. A justiça, portanto, é um dom divino a ser praticado e partilhado.

E em que consiste a prática da justiça? Na redenção dos cativos. No contexto em que viveu Isaías muitas pessoas eram escravizadas ou aprisionadas por dívidas. Os cativos, portanto, eram os pobres. Não tendo como saldar as dividas o pobre era feito escravo. E o tempo da graça é o tempo da remissão das dívidas, da libertação dos cativos.

Anunciar a justiça, portanto, implicava em colocar um ponto final à situação de escravidão. Era um gesto e um processo de resgate da dignidade humana. A mesma dignidade que vem sendo negada aos pobres da nossa sociedade aos quais são negados vários direitos. Basta olharmos com os olhos de cristão, para percebermos o que efetivamente ocorre ao nosso redor. Quando deixarmos de olhar o mundo, a sociedade e a relação ente as pessoas com os olhos da ganância, poderemos enxergar a degradação das pessoas que vivem na marginalidade, os empobrecidos.

Somente cumprindo essa condição é que se pode ser feliz, como orienta Paulo na primeira carta aos tessalonicenses (1Tes 5,16-24). Permanecer na alegria (1Ts 5,16) é um bom estado para se permanecer na oração e na ação de graças ( 1Ts 5,17-18). Mas isso somente é possível para aqueles que se afastam da maldade (1 Ts, 5,22). Eliminar a maldade é eliminar a degradação humana. A valorização do ser humano é a condição para permanecer “sem mancha alguma para a vinda de nosso Senhor Jesus Cristo” (1 Ts 5,23). A preparação para o Natal, para a vinda do Senhor, como podemos perceber, é um convite à valorização do ser humano.

Alguém poderia perguntar: Onde o ser humano é desrespeitado? Ao se lhe negar amplo acesso à saúde, à moradia, à escola, ao trabalho, ao direito de discordar, ao alimento… quando nós ou nossos governantes valorizamos a ostentação, admitimos leis excludentes ou dizemos que o outro é pobre por preguiça… estamos desrespeitando ou apoiando governos e pessoas que desrespeitam o ser humano. E isso não é divino. Por isso a orientação de Paulo “examinai tudo e guardai o que for bom.” (1 Ts 5,21).

Não é demais ressaltar que a obra do anticristo é mostrar a degradação como algo natural. E quando alguém apoia os geradores da degradação humana e ambiental, está apoiando o anticristo, o adversário de Deus.

Com isso em mente podemos observar a postura de João Batista (João 1,6-8.19-28). Como sobre ele pairava o espírito do Senhor, tinha autoridade “para dar testemunho da luz” (Jo 1,6). Tinha autoridade para se apresentar como a voz que gritava no deserto: “Eu sou a voz que grita no deserto: ‘Aplainai o caminho do Senhor’” (Jo 1,23).

O batista não pretendia atrair as atenções para si, numa atitude soberba de quem deseja aplausos. Pelo contrário, fugia da ostentação e, indagado sobre sua atuação, mostrava não a sua obra, mas apontava para aquele que era a luz, por ele testemunhada (Jo 1,7-8). Por não desejar ser o centro das atenções, mas para indicar o Messias (ungido), dizia não ser digno de estar aos pés daquele a quem viera anunciar: “Eu não mereço desamarrar a correia de suas sandálias” (Jo 1,27). E podia recriminar seus ouvintes: “no meio de vós está aquele que vós não conheceis” (Jo 1,26).

Talvez essa postura do Batista possa ser, também, um critério para examinarmos nossas atitudes e a daqueles pregadores que buscam os holofotes...

Conhecedor da força do Espírito do Senhor, o Batista podia dar testemunho da luz; apontando aquele que daria o Espírito santificador, podia exigir que se aplainassem os seus caminhos; em nome da luz benfazeja, sabia ser uma voz a clamando a presença do Ungido/Messias e, este sim, Senhor de todo poder, envia a todos, anunciando o tempo da redenção…

E Ele está para chegar! E quando chegar quem sabe nos dará o dom de receber os dons do Espírito do Senhor.




Neri de Paula Carneiro.

Mestre em educação, filósofo, teólogo, historiador

Outros escritos do autor:


Sagrada Família: para se cumprir!

Reflexões baseadas em: Eclo 3,3-7.14-17a; Cl 3,12-21; Mt 2,13-15.19-23 Todos os que, de alguma forma, tiveram contato com os ensinamentos d...