terça-feira, junho 06, 2023

Corpo e Sangue: para a vida do mundo

(Reflexão baseada em: Deuteronômio 8,2-3.14b-16a; 1 Coríntios 10,16-17; João 6,51-58)




Para os irmãos das outras denominações cristãs ou que professam outras crenças, a celebração do Santíssimo Corpo e Sangue de Cristo pode parecer algo de menor importância. Para o cristão católico, entretanto, trata-se de celebrar um dos elementos centrais de sua fé.

A solene festa do Santíssimo Corpo e Sangue do Senhor é uma das poucas que não nasceu com a Igreja primitiva. Ou seja, não vem do período apostólico, mas isso não diminui seu valor.

Trata-se de uma celebração que tem sua história na história da Igreja. Além da fé popular, segundo os registros do Vaticano, a festa tem suas origens nas visões de uma monja, Juliana Cornillon, da Bélgica e em resposta às dúvidas do padre Pedro de Praga. Este durante a celebração da missa, em Bolsena (Itália), em 1263, viu a hóstia ser transformada em carne viva, pingando sangue. Esse sangue manchou as toalhas, o corporal e o sanguíneo (pequenas toalhas usadas na celebração) que estavam sobre o altar durante a celebração eucarística. Sabendo do episódio o Papa Urbano IV solicitou que essas alfaias e a hóstia fossem levadas dali para Orviedo. Essa teria sido a primeira grande procissão do Corpo e Sangue de Cristo.

No ano seguinte, 1264, o Papa lançou o preceito, que seguimos até hoje: celebrar solenemente a devoção ao Santíssimo Corpo e Sangue do Senhor. De acordo com o preceito do documento papal (bula) a festa deve ser celebrada na primeira quinta feira depois da solenidade da Santíssima Trindade, que ocorre no domingo seguinte ao dia de Pentecostes.

Essa celebração, para os católicos é uma das festas mais importantes, pois faz lembrar o alimento do céu dado ao povo, no deserto (Dt. 8,2-3.14b-16a). Alimento que permitiu ao povo manter sua caminhada em busca da terra prometida e que, na compreensão da Igreja atual, lembra nossa caminhada e busca do Reino definitivo.

É uma forma pela qual a Igreja retoma as palavras do apóstolo Paulo (1Cor 10,16-17) lembrando à comunidade de Corinto a importância de participar do mesmo cálice e do mesmo pão uma vez que esse é o meio pelo qual a comunidade comunga com o próprio Senhor, pois “há um só pão, nós todos somos um só corpo, pois todos participamos desse único pão.”

Caso isso não baste, ouçamos as palavras do próprio Senhor Jesus que se apresenta como pão da vida (João 6,51-58). E afirma isso com a autoridade do Filho de Deus, por isso diz claramente “Eu sou o pão vivo descido do céu. Quem comer deste pão viverá eternamente. E o pão que eu darei é a minha carne dada para a vida do mundo”.

Diante da incredulidade dos Judeus, Jesus é ainda mais categórico. E essa afirmação do Senhor, como é Palavra de Deus, tem valor eterno e por isso a Igreja faz questão de relembrar “Quem come a minha carne e bebe o meu sangue tem a vida eterna, e eu o ressuscitarei no último dia. Porque a minha carne é verdadeira comida, e o meu sangue, verdadeira bebida. Quem come a minha carne e bebe o meu sangue permanece em mim e eu nele.” (Jo 6,54-56).

Este é o fundamento para a Igreja celebrar a festa de Corpus Christi. Com isso, quer iluminar a caminhada de fé das pessoas de boa vontade. Abraçar as pessoas que se alimentam de esperança, porque almejam uma vida melhor; que alimentam a fé, pois relembram as palavras sagradas; que alimentam a solidariedade, como o Senhor que deu sua vida “pela vida do mundo”.

E o que é necessário para a “vida do mundo”? Dois elementos são mencionados por Moisés: a água e o Maná. A água para nos lembrar a importância da natureza, pois sem ela não existem condições para a vida humana no planeta. A água que jorrou da pedra, saciou o povo, transformando-se em sinal de esperança e alimenta a vida. Além disso, o maná, um alimento misterioso, como é o mistério do Corpo de Cristo presente na hóstia consagrada: alimento sagrado para uma vida santa. O maná que alimenta mas que não pode ser acumulado, como os dons de Deus que são suficientes mas nunca supérfluos.

Com a experiência no deserto o povo pode entender que “nem só de pão vive o homem, mas de toda a palavra que sai da boca do Senhor” (Dt 8,3). E coroando a caminhada o Senhor se encarnou e se entregou, um presente para os que acreditam, na forma de pão e vinho. Deu-se como presente para lembrar a importância da doação; para convidar as pessoas a realizar um ato de fé; para mostrar a importância de distribuir o pão. E, neste caso, além de distribuir o pão que alimenta o corpo, também o pão que alimenta para a eternidade: “Quem comer deste pão viverá eternamente”.

Água e maná prefiguram o corpo e sangue, na comunhão do Senhor. O corpo e o sangue, abençoados, partidos e comungados, transformados em corpo e sangue de Cristo, formam a unidade que é a Igreja: um só corpo. E entregando-se, Jesus afirma: “Sou o pão vivo”; “quem comer desse pão terá vida eterna”; o pão “é minha carne”; quem não comer esta carne e este sangue não terá vida e quem como e bebe “tem vida eterna”; quem come e bebe será ressuscitado “no último dia”; quem como e bebe, “permanece em mim e eu nele”; quem comer “viverá por causa de mim”.

Mas não se pode perder de vista a afirmação final: o pão (o maná) era um alimento divino, mas “vossos pais comeram e morreram”. Por isso a importância do pão e do vinho, que passam a ser alimento de vida: “minha carne é verdadeira comida e o meu sangue, verdadeira bebida”. O pão e o vinho da comunhão é que dão a vida, pois “aquele que come este pão viverá para sempre.” Este pão e sangue são diferentes daquele do deserto, este é o pão da vida.




Neri de Paula Carneiro

Mestre em educação, filósofo, teólogo, historiador

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