quarta-feira, março 29, 2023

Domingo de Ramos: Morte de cruz!





(Reflexões baseadas em: Mateus 21,1-11; Isaías 50,4-7; Filipenses 2,6-11; Mateus 26,14-27,66)




Domingo de Ramos: O que essa celebração tem a nos ensinar?

Todos os anos celebramos esse episódio da vida de Jesus. O que aprendemos com isso?

Na maioria das vezes nos concentramos nos ramos efervescendo pelas ruas durante a passagem de Jesus (Mateus 21,1-11). Algumas vezes nos detemos na cena dos discípulos buscando o burrinho, de forma meio sorrateira, como se fosse algo a ser feito às escondidas.

Raramente paramos para analisar a postura das pessoas que aclamaram Jesus entrando em Jerusalém, montado num jumento, tendo os ramos e roupas como tapete pelas ruas.

Que queria essa multidão? Por que essa multidão, logo em seguida, não o defendeu, quando foi preso, acusado de conspiração política e executado como um rei, acusado de querer usurpar o trono? “Eis que o teu rei vem a ti, manso e montado num jumento”(Mt 21,5).

Sim! É isso mesmo! Preso político! Jesus não foi condenado por sua pregação religiosa, mas porque anunciava um reino em que ele é o Rei do Amor. Mas, como o amor incomoda as estruturas do mal, foi preso, torturado e executado.

Jesus foi executado porque viveu o que ensinava. E o que ensinava dizia respeito ao seu Reino. Jesus viveu como o anunciou Isaías (50,4-7), ou seja, viveu como servidor. Um rei que fez exatamente o oposto do que faziam os monarcas – e ainda fazem os mandatários de todos os tempos: viveu para servir. E ensinou seus seguidores a fazerem o mesmo. “O Senhor Deus deu-me língua adestrada, para que eu saiba dizer palavras de conforto à pessoa abatida; ele me desperta cada manhã e me excita o ouvido, para prestar atenção como um discípulo” (Is 50,4).

Jesus foi executado, mas antes foi perseguido (Mateus 26,14-27,66). Perseguido porque mostrava o caminho do inconformismo com as religiosidades alienantes. Perseguido pelos que cobravam as ofertas e sacrifícios e dízimos… para erguer belos e visto templos, onde os pobres não tinham espaço. Perseguido pelas lideranças políticas que preferiam as vantagens pessoais concedidas pelo império invasor, anulando os valores e cultura nacionais.

Jesus foi perseguido e executado. E foi executado porque alguns discípulos não entenderam o que estava acontecendo: Judas o traiu. “O que me dareis se vos entregar Jesus?” (Mt 26,14). Alguns discípulos fugiram. “Então todos os discípulos, abandonando Jesus, fugiram” (Mt 26,56). Pedro o negou que o conhecia “Mas ele negou diante de todos: ‘Não sei o que tu estás dizendo’” (Mt 26,70). O monarca preferiu a omissão do que fazer Justiça. “Lavou as mãos diante da multidão” (Mt 27,24). E a multidão, manipulada pelas autoridades gritou “Crucifica-o!” (Mt 27,22)

Jesus foi perseguido e executado porque, aquela mesma multidão que o havia acolhido com ramos e aclamação de “Hosana”, foi corrompida pelos corruptores e, instigada pelos líderes interesseiros. pediu sua morte. “Os sumos sacerdotes e os anciãos convenceram as multidões para que pedissem Barrabás e que fizessem Jesus morrer” (Mt 27,20). Como ainda hoje ocorre, as multidões são marionetes nas mãos dos interesses dos grandes, mesmo contra as necessidades dos que sofrem, suas próprias necessidades. O povo, ainda hoje, é manipulado pelos donos do poder que desejam concentrar mais dinheiro e poder.

Talvez este seja um ponto importante a observarmos, na celebração do Domingo de Ramos: a multidão. A ação das pessoas no anonimato da multidão… Certamente muitos daqueles que aclamaram Jesus, na entrada em Jerusalém, haviam recebido uma graça, uma cura, uma palavra amiga… o perdão! Mas agora, logo após a bela acolhida, na multidão, manipulada pelos interesses dos senhores do poder, gritavam: “Crucifica-o!”

E aqui está o grande problema da Igreja, nos dias que nos cabe viver: anunciar Jesus, anunciar seu Evangelho, levar adiante sua palavra… tem consequências. Levar adiante a proposta de Jesus de Nazaré implica em assumir uma “Campanha da Fraternidade” de combate à fome. Mas não só com cestas básicas. Trata-se de combater as causas da fome. Trata-se de combater a manipulação que os donos do poder exercem sobre os pobres, esfomeados… a fim de que não cobrem transformações na sociedade

Cobrar transformações sociais, hoje ou no tempo de Jesus, implica abandonar o mundo acomodado, a zona de conforto, o assistencialismo. Cobrar a construção de uma sociedade de paz, justiça, equidade, exige agir como Jesus (Filipenses 2,6-11) que “tinha condição divina” e não se apegou a isso. Ele desceu à condição humana: Não para ser melhor, mas para ser igual. Mais ainda: deixou-se humilhar, deixou-se executar em “morte de cruz”.

Mas Deus o exaltou, como o fará com todos que o seguirem. Deus o exaltou e lhe deu o trono da vida para que possa dar vida a quem com ele se identificar na vida e na morte!







Neri de Paula Carneiro.


Mestre em educação, filósofo, teólogo, historiador


Outros escritos do autor:


Filosofia, História, Religião: https://www.webartigos.com/index.php/autores/npcarneiro;


Literatura:https://www.recantodasletras.com.br/autor.php?id=220242

quarta-feira, março 22, 2023

Quaresma 5 E Jesus chamou...



(Reflexões baseadas em: Jr 31,31-34; Hb 5,7-9; Jo 12,20-33)

Disponível em: https://pensoerepasso.blogspot.com/2021/03/quaresma-5-e-agora-o-julgamento-deste.html







Estamos nos encaminhando para o final da Quaresma. E, se tivermos levado a sério a proposta que a Igreja nos apresenta, durante o tempo quaresmal deveríamos estar fazendo uma revisão de vida com a finalidade de, na Páscoa, ressurgirmos para uma vida nova. Com o objetivo de inaugurarmos um mundo novo. Com o desejo de nos reconduzirmos na direção de um mundo que Deus nos está encarregando de recriar e reconstruir.

Isso nos ajuda a entender a afirmação de Jesus (Jo 12,20-33): “É agora o julgamento deste mundo” (Jo 12,31). Após ter sido julgado o mundo está apto a ser recriado. Isso, também, ajuda a entender o anúncio da promessa do Senhor, nas palavras de Jeremias (Jr 31,31-34): “Virão dias, diz o Senhor, em que concluirei com a casa de Israel e a casa de Judá uma nova aliança” (Jr 31,31). Só é possível uma nova aliança porque a antiga foi superada, seus destinatários não a concluíra; só é possível uma nova aliança porque o mundo foi julgado e preparado para a recriação. E essa recriação pode ser concluída tendo por base a plena obediência de Jesus (Hb 5,7-9), ao Plano do Pai, como nos ensina a carta aos Hebreus. Ou seja, por ser Filho “aprendeu o que significa a obediência a Deus” (Hb 5,8).

O profeta, evidentemente, cumpre seu papel: transmite a mensagem do Senhor. Ele sabe que as pessoas caem nas tentações. Sabe que as pessoas deixam-se levar pelos momentos, sem se preocupar com o depois ou com o além. Mas também sabe que quando as pessoas deixam-se conduzir pelo Senhor, a nova aliança se concretiza e, então, passamos a ser seu povo e Ele nosso Deus. No momento em que efetivamente nos deixarmos conduzir pelo Senhor, Ele nos dirá: “imprimirei minha lei em suas entranhas, e hei de inscrevê-la em seu coração; serei seu Deus e eles serão meu povo” (Jr 31,33). Um novo povo num mundo refeito.

E o Senhor dirá isso a nós porque o povo de Israel não entendeu a proposta. Deus os escolheu para ser o ponto de partida e difusão das propostas de seu Reino, mas eles pensaram que eram os únicos destinatários da promessa. E falharam duplamente: porque não foram fiéis à aliança e nem difundiram as sementes do Reino. A aliança definitiva e a promessa cumpriu-se em Jesus Cristo. Isso o entendemos quando, ao ser procurado pelos gregos (Jo 12,20) Jesus afirma: “Chegou a hora em que o Filho do Homem vai ser glorificado. Em verdade, em verdade vos digo: Se o grão de trigo que cai na terra não morre, ele continua só um grão de trigo; mas se morre, então produz muito fruto” (Jo 12,23-24). Os frutos de Jesus são as pessoas que se engajam na reconstrução do mundo, preparando a instalação do Reino.

Não é demais reafirmar: a Aliança, anunciada pelo profeta, concretiza-se em Jesus. Por isso ele afirma: pois “chegou a hora”.

Chegou a hora de se concretizar a Aliança definitiva, pois Jesus, mesmo em seu sofrimento, cumpre a vontade do Pai. E, assim, como diz a carta aos Hebreus, “na consumação de sua vida, tornou-se causa de salvação eterna para todos os que lhe obedecem.” (Hb 5,9). A proposta, portanto, é universal.

Chegou a hora da angústia de Jesus, por ter que entregar a vida. Mesmo o Filho de Deus sente a angústia da morte. Entretanto não se recusa a cumprir sua missão “Agora sinto-me angustiado. E que direi? Pai, livra-me desta hora? Mas foi precisamente para esta hora que eu vim.” (Jo12,27). Por isso ele afirma e pede: Pai cumpra-se a tua vontade.

Chegou a hora do julgamento do mundo. Ou seja, nossa vida é o momento definitivo. É o instante da opção: podemos aderir ao projeto de Jesus, à proposta do Reino, e então seremos atraídos até o Senhor (Jo 12,32); ou podemos nos recusar a isso e o anticristo tomará conta de nossa vida, como ocorre constantemente, em cada ação desumana que é praticada pelas pessoas.

Mas também chegou a hora da decisão, pois “Agora o chefe deste mundo vai ser expulso” (Jo 12,31). Essa expulsão não será feita por Jesus, pessoalmente, mas por cada uma das pessoas que aderirem ao projeto de amor e solidariedade; de altruísmo e de vida, desfazendo-se dos projetos que colocam o sistema econômico acima da vida; que colocam os interesses políticos acima das pessoas. Por isso, esta é, também, a hora que que o “chefe deste mundo” vai lutar para atrair e manter um maior número de seguidores, ampliando a divisão e negando o diálogo. Nos dias atuais o anticristo, por meio de fake news, de mentira... produz e amplia atos de divisão entre as pessoas usando um “gabinete” de apoiadores.

Mas, chegou a hora! E Jesus é categórico: é a hora do julgamento deste mundo. Consequentemente, é a hora em que chefe desta mundo será expulso. Do ponto de vista litúrgico isso se dá com a Paixão, Morte e Ressurreição de Jesus. Mas do ponto de vista humano e cristão é com nossa vida que fazemos a opção: ou aderimos ao chefe deste mundo e o ajudamos a piorar todas as coisas; ou aderimos a Jesus e nos empenhamos no processo da recriação, contra esse que nega a vida.

Assumindo uma ou outra postura, “é agora o julgamento deste mundo!” A quem vamos aderir?






Neri de Paula Carneiro.


Mestre em educação, filósofo, teólogo, historiador


Outros escritos do autor:


Filosofia, História, Religião: https://www.webartigos.com/index.php/autores/npcarneiro;


Literatura:https://www.recantodasletras.com.br/autor.php?id=220242

quinta-feira, março 16, 2023

Quaresma 4 - O cego voltou enxergando



(Reflexões baseadas em: 2Cr 36,14-16.19-23; Ef 2,4-10; Jo 3,14-21)

Disponível em: https://pensoerepasso.blogspot.com/2021/03/quaresma-4-luz-veio-ao-mundo.html




As celebrações do período quaresmal nos mostram a grandeza do amor divino. Mas, ao mesmo tempo, mostra que até a paciência de Deus tem limites.

É claro que o amor de Deus pela humanidade é infinitamente maior do que sua ira, mas isso não significa que, como um pai bondoso, ele não estabeleça algumas condições a serem seguidas pelas pessoas. Não como punição, mas como medida corretiva. Se é verdade que toda ação tem uma reação, todas as nossas atitudes têm consequências.

No segundo livro das crônicas (2Cr 36,14-16.19-23) podemos ver uma demonstração disso: a denúncia dos pecados, uma vez que “todos os chefes dos sacerdotes e o povo multiplicaram suas infidelidades” (2Cr 36,14). Devido a isso Deus chama a atenção dos infiéis, cobrando mudança nos comportamentos “o Senhor Deus de seus pais, dirigia-lhes frequentemente a palavra por meio de seus mensageiros, admoestando-os com solicitude todos os dias, porque tinha compaixão do seu povo” (2Cr 36,15). Como se vê, é a compaixão que move a ação divina.

Porém, como os infiéis não mudavam as atitudes concretizou-se a lição ensinada pelo Senhor: “O furor do Senhor se levantou contra o seu povo e não houve mais remédio. Os inimigos incendiaram a casa de Deus e deitaram abaixo os muros de Jerusalém” (2 Cr 36,18-19). E, após os anos de punição, acontece a restauração, pelas mão de Ciro, um rei estrangeiro (para mostrar que o amor de Deus não tem fronteiras, vai além de um povo). E o rei decreta: “O Senhor, Deus do céu, deu-me todos os reinos da terra, e encarregou-me de lhe construir um templo em Jerusalém, que está no país de Judá. Quem dentre vós todos, pertence ao seu povo? Que o Senhor, seu Deus, esteja com ele, e que se ponha a caminho” (2 Cr 36,23). E assim voltaram os exilados, redimidos, prontos para recomeçar uma nova sociedade que deveria ser gerida pela caridade!

Deus é amoroso. É supremo amor. É pleno em misericórdia… e isso quem nos ensina é Paulo, escrevendo aos Efésios (Ef 2,4-10). O apóstolo afirma expressamente: “Deus é rico em misericórdia. Por causa do grande amor com que nos amou, quando estávamos mortos por causa das nossas faltas, ele nos deu a vida com Cristo” (Ef 2,4-5). Deus é, também, justo, pois oferece oportunidade para que o pecador se converta… Deus quer a vida e quer que a defendamos acima de tudo, em favor de todos.

O fato é que por seu amor é justo e misericordioso. Da mesma forma que um pai, estabelece limites para o filho rebelde não se destrua e possa rever seus comportamentos. É necessário que as pessoas tomem consciência de que estão cometendo faltas contra a bondade divina, contra a vida humana e da natureza. Ocorrendo essa consciência de defesa, manutenção e restauração da vida, Deus concede a graça do perdão. O apóstolo é claro ao dizer que “é pela graça que sois salvos, mediante a fé. E isso não vem de vós; é dom de Deus!” (Ef 2,9).

O dom da graça, entretanto, é consequência do bem que realizamos. “Obras boas, que Deus preparou de antemão para que nós as praticássemos” (Ef 2,10). A graça é dom de Deus, mas exige o comprometimento humano! Sem o nosso comprometimento individual, pessoal e definitivo, não tem como a graça agir em nós.

Isso é o que ensina Jesus, na conversa com Nicodemos (Jo 3,14-21). Deus age esperando nossa resposta. Uma resposta que consiste num ato de fé; um ato de fé que conduz à vida eterna: “todos os que nele crerem tenham a vida eterna” (Jo 3,15). A vida terrena, portanto, é o passaporte para a vida eterna. As atitudes neste mundo passageiro abrem as portas para o Reino definitivo

E Jesus insiste na afirmação central dirigida a todos que desejam segui-lo. “Deus não enviou o seu Filho ao mundo para condenar o mundo, mas para que o mundo seja salvo por ele” (Jo 3,17). Feita essa afirmação, Jesus se apresenta como divisor de águas.

É a partir da fé em Jesus, da adesão ao seu projeto que se dá a divisão: “Quem nele crê, não é condenado, mas quem não crê, já está condenado” (Jo 3,18).

O critério de Deus, ou seja a sua justiça, coloca nas mão de cada um de nós a responsabilidade pelos atos praticados. São esses atos que iluminam o caminho humano ou o escurecem. As pessoas aderem à luz divina ou afastam-se dela, num ato de fé ou de incredulidade. E Jesus explica isso da forma muito transparente: “O julgamento é este: a luz veio ao mundo, mas os homens preferiram as trevas à luz, porque suas ações eram más. Quem pratica o mal odeia a luz e não se aproxima da luz, para que suas ações não sejam denunciadas. Mas quem age conforme a verdade aproxima-se da luz, para que se manifeste que suas ações são realizadas em Deus” (Jo 3, 18-21).

E isso nos leva de volta ao ponto inicial: o amor misericordioso de Deus é infinito, mas ele também é infinitamente justo. Concede o perdão e a vida àqueles que o procuram, mas quem não crê e pratica o mal, já está condenado! Não está condenado por Deus, que é amor e perdão, mas pelos seus próprios atos que o afastam de Deus.





Neri de Paula Carneiro.


Mestre em educação, filósofo, teólogo, historiador


Outros escritos do autor:


Filosofia, História, Religião: https://www.webartigos.com/index.php/autores/npcarneiro;


Literatura:https://www.recantodasletras.com.br/autor.php?id=220242

quarta-feira, março 08, 2023

Quaresma 3 Sede de água viva



(Reflexões baseadas em: Ex 20,1-17; 1Cor 1,22-25; Jo 2,13-25)

Disponível em:https://pensoerepasso.blogspot.com/2021/03/quaresma-3-loucura-de-deus.html







Nós já nos acostumamos a nos chamar de louco ou doido: “você é louco, por fazer isso!”. “Isso é coisa de doido! Só você mesmo!” E assim por diante, estamos acostumados a ouvir e usar essa expressão: às vezes elogiando a loucura de alguém que fez algo extraordinário; às vezes condenando a insensatez de alguém!

Loucura, insensatez… expressões que usamos para dizer que não concordamos com aquilo que o outro está pensando, dizendo, fazendo… “Isso é coisa de doido!”

Mas a respeito de Deus, somente usamos expressões edificantes: Santo, eterno, fonte da plena sabedoria, misericordioso, todo poderoso… E nunca ousaríamos dizer que um ato de Deus seja loucura ou insensatez. Se vem de Deus, aceitamos. Mesmo quando, às vezes, não entendemos. Dizemos apenas que isso é divino! só por Deus!

A questão é que, sempre que avaliamos alguma coisa: concordando ou discordando; dizendo que está certo ou errado… sempre usamos nossos valores. Usamos nossos critérios. Falamos a partir do que achamos que é certo ou errado. Mas o que é o certo e o errado? Será que já nos perguntamos o que é que Deus considera certo ou errado? E quando fazemos isso, será que não estamos querendo dizer a Deus o que Ele deveria fazer?

A liturgia do terceiro domingo da quaresma mostra uma dimensão dessa loucura/sabedoria dos homens e de Deus. No livro do Êxodo (20,1-17), podemos visualizar um desses aspectos de loucura, uma vez que estabelecer normas, sobre como deve ser o comportamento das pessoas, como é o caso deste trecho do Êxodo, não é algo agradável. Mas Deus faz isso. Loucura?

Paulo, na primeira carta aos coríntios, (1Cor 1,22-25), é mais específico em mencionar a loucura, pois cultuar um crucificado não é uma situação normal. Pelo contrário: é loucura, é escândalo!

Agora imagine a cena: Jesus, no templo! Ele, com um chicote nas mãos, derrubando tudo e expulsando os negociantes… Isso é mais do que uma doidura qualquer. Uma pessoa normal, diante de algo que desaprova, no máximo fala que aquilo não está certo. Mas Jesus não. Ele faz um tremendo “barraco”. Esse tem que ser internado, pois surtou, disseram!

Mas em tudo isso está a visão ou os critérios ou os valores ou a compreensão humana. Para tentarmos obter uma compreensão ou uma percepção mais exata, Paulo nos dá a dica: “Pois o que é dito loucura de Deus é mais sábio do que os homens, e o que é dito fraqueza de Deus é mais forte do que os homens.” (1Cor 1,25). Ou seja, somos convidados a olhar para os eventos não com os critérios e valores humanos, mas com os olhos de Deus. O que é que Deus está vendo que o motiva a estabelecer as normas expressas no trecho do Êxodo?

Está observando que existe idolatria (Ex 20,3-4); uso indevido do nome de Deus (Ex 20,7); as pessoas não estão dedicando um tempo para Deus (Ex 20,8-11); as pessoas não estão respeitando a família, pois estão adulterando e desonrando os pais (Ex 20,12.14.17); as pessoas estão matando, roubando e mentindo...(Ex 20,13,15,16). Então tem que se estabelecer um limite!

Como sabemos que estão fazendo isso? Porque esses são os preceitos ensinados. E o argumento é simples. As normas surgem para regulamentar as condutas vigentes. Somente afirmamos a necessidade de respeito aos pais, quando percebemos que estão sendo desrespeitados pelos filhos. Deus viu que alguns estavam enriquecendo às custas dos mais pobres… por isso instituiu: não roubar! Numa palavra, Deus viu a bandidagem tomando conta e causando o sofrimento dos mais fracos, por isso estabeleceu as normas, os mandamentos.

Jesus não fez diferente (Jo 2,13-25). Diante do que estava (e ainda está!!!) acontecendo no templo, expula os infratores. E toma essa atitude ao ver a infração ocorrendo….A casa de oração transformada num centro comercial (Jo 2,14)!

Quem de nós já ficou indignado com lideranças das Igrejas (não só no mundo católico) fazendo uma pregação que privilegia mais os tijolos que a instalação do Reino. Com tantos pregadores anunciando curas milagrosas, seria interessante lançarmos um desafio: por que os tantos pregadores de tantas curas milagrosas não deram fim à pandemia do Corona Virus? Sabe por quê? Porque são charlatães da fé. Mas para eles Jesus tem preparado o chicote (Jo 2,15)?

O fato é que, do ponto de vista humano, a proposta do reino é um absurdo, pois exige a prática da justiça e da verdade. Exige solidariedade e não egoísmo; exige fraternidade e não a concentração de rendas e bens e riquezas....

Seguir a proposta de Deus é loucura, pois exige renuncias e opções em favor do outro. Aderir a Jesus Cristo, neste mundo que valoriza as coisas, os bens, a riqueza… não é prova de sensatez. Seguir a Jesus Cristo, neste mundo que não vê e despreza os valores do Reino, é prova de loucura. Seguir a Jesus Cristo implica andar pelos caminhos da partilha, da solidariedade, da cruz. Seguir a Jesus Cristo implica ser derrotado pelo mundo, mas também implica na maior prova de loucura: a certeza da ressurreição!


Neri de Paula Carneiro.

Mestre em educação, filósofo, teólogo, historiador

Outros escritos do autor:


quinta-feira, março 02, 2023

Quaresma 2- Sai da tua terra… não tenha medo!

(Reflexões baseadas em: Gênesis 12,1-4a; 2Timóteo 1,8b-10; Mateus 17,1-9)




No livro do Gênesis (12,1-4a) podemos “ouvir” a orientação que o Senhor Deus dá a Abraão: “Sai da tua terra… deixa tua família…”. Talvez querendo dizer, sai dessa situação em que todos estão acomodados… “e vai para a terra que eu vou te mostrar”.

Estamos acostumados a dizer que esse trecho do Gênesis nos apresenta a “vocação de Abraão”. Mas se atentarmos para as palavras do Senhor, notamos que não se trata bem de um chamado, mas de uma proposta. Algo assim: “Se você topar a parada que vou te propor eu te presenteio com uns lances aí…!!!”

O interessante da história é que Abraão topou a parada! “Abraão partiu como o Senhor lhe havia dito”. Mas qual teria sido o verdadeiro motivo pelo qual Abraão se decidiu partir? O que teria levado o Senhor a fazer essa proposta de peregrinação?

Uma pista para respondermos a essa indagação vem da carta do apóstolo Paulo a Timóteo (1,8b-10). Orientando ao seu discípulo e amigo, Paulo chama a atenção para a gratuidade dos dons divinos, revelados por Jesus de Nazaré. Aquele que, ao destruir os planos da morte, entregou os planos de vida eterna aos seus seguidores.

Por meio da oferta da vida eterna, diz o apóstolo, Jesus nos mostra que a convocação divina implica em uma oferta à santidade. “Deus nos salvou e nos chamou com uma vocação santa, não devido às nossas obras, mas em virtude do seu desígnio e da sua graça, que nos foi dada em Cristo Jesus desde toda a eternidade” (2 Tm 1,9).

Mas isso diz respeito ao destino final, ao depois da partida. Diz respeito àquilo que existirá na chegada do Reino. Diz respeito à bênção que o Senhor ofereceu a Abraão e, por extensão, oferece a todos nós que aceitarmos a proposta para deixar a comodidade e a convivência com o ambiente em que estamos acostumados… mas não responde ao porquê Deus faz uma promessa a Abraão. E nem nos explica o porquê dele ter aceitado…

Talvez uma resposta nos chegue por meio da atitude dos apóstolos Tiago, João e Pedro, na cena da transfiguração (Mateus 17,1-9).

Mesmo sem entender o que estava ocorrendo. Mesmo sem saber o que estava dizendo. Mesmo com todo o seu “sem jeito” de fazer as coisas Pedro resume bem a sensação de quem está ao lado do Senhor, de onde não deseja sair: “é bom estar aqui!”

Por ser bom estar ao lado do Senhor, os acompanhantes de Jesus disseram que queriam ali permanecer. Mesmo, ainda, sem entender o que estava ocorrendo! Por isso disseram: É bom estar aqui, ao teu lado, pois aqui podemos conviver com a pureza divina. É bom estar aqui, junto com Elias e Moisés, pois aqui tudo é perfeito. É bom estar aqui porque longe da tua presença não há essa luz irradiante. É bom estar aqui porque você é o Filho amado, no qual o Pai colocou todo seu amor….

É bom estar ao lado do Senhor porque longe dele nada é bom!

Por esse motivo Abraão aceitou o convite para se fazer migrante. Ali, entre seus parentes, não estava bom. O convívio familiar era algo bom, mas levava a uma vida estática, sem perspectivas. O convívio familiar tem que ser valorizado, mas ele tem que servir como ponto de apoio para algo maior. Foi isso que Abraão percebeu na proposta que lhe fazia o Senhor: não havia possibilidade de prosperidade social e econômica… nem familiar!

Isso Deus lhe estava mostrando e por esse motivo a proposta: sai da tua terra! Vai para outras terras; busque novas oportunidades. Você vai enfrentar dificuldades, mas vai prosperar: terá terra para plantar e colher, coisa que aqui não existe. Terá uma família numerosa, coisa impossível neste ambiente inóspito do deserto. Terá a benção da terra e da família… e todos aqueles que, como você, fizerem o esforço para construir algo melhor para seus descendentes, para esses você será uma benção, será uma inspiração! Muitos, depois de você deixarão o ambiente que não é o melhor, para buscar “novas terras”, novas oportunidades!

A proposta de Deus, para Abraão, e a aceitação dessa proposta, tinha essa característica dinamizadora. Deixar um ambiente sem perspectivas e buscar algo melhor. Deus sabe e nos ensina, quando tudo está bem, só nos cabe aperfeiçoar. Mas quando a família, a comunidade, a ambiente em que estamos vivendo, está passando por dificuldades… então está na hora de lutar por um mundo melhor. E se a dúvida ou o medo de arriscar nos fizerem cair por terra temos que ouvir não só a proposta de Deus, dizendo sai da tua terra, mas também nos deixarmos tocar por Jesus que, ao nos mostrar sua face de luz nos diz: levante-se! Não tenha medo!




Neri de Paula Carneiro.

Mestre em educação, filósofo, teólogo, historiador

Outros escritos do autor:


Sagrada Família: para se cumprir!

Reflexões baseadas em: Eclo 3,3-7.14-17a; Cl 3,12-21; Mt 2,13-15.19-23 Todos os que, de alguma forma, tiveram contato com os ensinamentos d...