sexta-feira, novembro 07, 2025

A Basílica do Latrão e o santuário de Deus

Reflexões baseadas em:

Ezequiel 47,1-2.8-9.12; 1 Coríntios 3,9c-11.16-17; João 2,13-22


Desde muito cedo aprendemos que Deus está em todo lugar e vive em nós, pois nosso corpo é seu templo. Mas também, desde muito cedo aprendemos que devemos nos encontrar com outras pessoas num templo ao qual, popularmente chamamos de igreja, comunidade, matriz, paróquia, catedral…, por ser esse é o local de encontro com Deus. Da mesma forma, desde muito cedo ouvimos pessoas dizendo: “não vou à igreja porque rezo em casa” ou “pra que ir à igreja se Deus está em todo lugar?”

Em qual dessas afirmações devemos acreditar?

O que nossa fé nos ensina?

Nossa fé, que nasce da Bíblia, dos ensinamentos da Igreja, da tradição eclesial e também familiar, nos assegura que Deus nos acompanha em todos os lugares em que estamos. Nossa fé, orientada pela Igreja, que se baseia na Palavra de Deus, nos diz que devemos nos reunir regularmente com outras pessoas que professam a mesma fé. E essa reunião acontece num local determinado que é um templo da nossa Igreja.

É nesse templo que as pessoas demonstram e afirmam ao mundo que alimentam a mesma fé. E essa confissão de fé, muito mais do que com palavras, é expressa com a presença, com o comparecimento, com o comprometimento. E assim, nesse encontro, movido pela fé comum, as pessoas que se encontram dizem umas para as outras e para o mundo, que: alimentam a mesma fé, são impulsionadas pela mesma esperança, comungam dos mesmos princípios, aprovam os mesmos comportamentos, compartilham a mesma certeza de fé e sabem que Deus está com elas e nelas. E isso porque Deus vive em cada pessoa.

Esse é o sentido da reunião periódica que, em nosso caso do catolicismo, ocorre no domingo, o Dia do Senhor. Nessa reunião de oração, as pessoas, que são templos de Deus reúnem-se num templo para celebrarem a presença do Senhor.

Considerando tudo isso é que nos perguntamos qual o significado da festa litúrgica da “Dedicação da Basílica do Latrão”? Uma catedral que se origina no século IV, que passou por reformas, foi destruída e reerguida e finalmente, em 1724, foi consagrada pelo Papa Bento XIII.

Como Catedral de Roma, a Basílica do Latrão representa todos os demais templos do mundo e, ao mesmo tempo, todos os cristãos. Ou seja, é dessa basílica que emanam os rios e as águas do cristianismo, levando a fertilidade da fé, a fim de fertilizar o mundo: alimentando a fé dos crentes e animando ao mesmo tempo que falando de esperança para os que não creem, conforme podemos ler na profecia de Ezequiel (47,1-2.8-9.12).

Dela emana a fé, como os rios da profecia. A fé cristã, como o rio, permite que as pessoas plantem as sementes para gerar árvores de vida. E “Seus frutos servirão de alimento e suas folhas serão remédio” (Ez 47,12), a fim de curar as dores do mundo.

Por que desse templo emana o rio de vida? Porque esse templo representa o próprio Senhor da vida. O templo que irmana todos os que alimentam a fé comum naquele que é maior do que o templo, como o afirma o próprio Senhor, nas palavras de João (2,13-22).

E ele é maior do que o templo porque ele é o Templo vivo. Não um templo erguido por mãos humanas mas o Templo vivo que é o próprio Filho de Deus.

Por esse motivo, porque as pessoas olham apenas para o templo de pedra é que muitas vezes têm dificuldade de reconhecer o Templo vivo que vive nas pessoas. Da mesma forma que os judeus não entenderam quando lhes falou que reergueria o Templo em três dias.

Eles profanavam o templo de pedra, que é casa de oração e ponto de encontro para os crentes. Desrespeitavam a casa, desrespeitavam a tradição de fé do seu povo e desrespeitavam ao próprio Senhor que aceitava o louvor, no templo construído. Contra isso Jesus se irrita e por esse motivo expulsa os mercadores da fé; e daí nasce a afirmação de Jesus: “Destruí, este Templo, e em três dias o levantarei. Os judeus disseram:’Quarenta e seis anos foram precisos para a construção deste santuário e tu o levantarás em três dias?’ Mas Jesus estava falando do Templo do seu corpo.” (Jo 2,19-21).

Nessa perspectiva entendemos as palavras de Paulo. Também o apóstolo não se refere ao templo como casa de oração, mas ao templo que é o corpo da pessoa humana (1Cor 3,9c-11.16-17). O apóstolo é categórico ao afirmar que cada pessoa é um edifício de Deus. Mas, o apóstolo ensina, esse edifício que somos cada um de nós, tem a mesma base, o mesmo alicerce, o mesmo ponto de sustentação, que é Jesus Cristo.

O apóstolo vai além, dizendo que estão errados os que tentarem colocar outro alicerce. “ninguém pode colocar outro alicerce diferente do que está aí, já colocado: Jesus Cristo” (1Cor 3,11). E por qual motivo não se pode colocar outro fundamento? Porque em Jesus nos tornamos morada do Espírito (1Cor 3,12).

Daí a importância e necessidade do respeito ao ser humano. Quem ama a Deus, e sabe da importância de se reunir para celebrar a mesma fé no templo de pedra, também precisa saber que todos os que ali se encontram – e os de fora também – são moradas do Espírito.

Por isso é mentiroso aquele que diz amar a Deus e não ama ao irmão; por isso é mentiroso quem diz que ama o Espírito, mas não ama seu templo que é a pessoa humana. “Se alguém destruir o santuário de Deus, Deus o destruirá, pois o santuário de Deus é santo, e vós sois esse santuário” (1Cor 3,17). Disso o apóstolo não abre mão e por isso insiste em que não se coloque outro alicerce, ou seja, Jesus, o Cristo que vive em nós, por isso nos reunimos para celebrar a mesma fé, no mesmo templo, pois todos somos santuários de Deus.






sexta-feira, setembro 12, 2025

Exaltação da Cruz – A serpente mortal e o Cristo da cruz

Reflexões a partir de:

Números 21,4b-9; Filipenses 2,6-11; João 3,13-17.




Quem lê a bíblia com honestidade percebe que ela desmistifica muitas afirmações equivocadas ou tendenciosas. E ler a bíblia com honestidade significa lê-la a partir de seu contexto e da intenção do autor inspirado por Deus.

Quando o mundo católico festeja a Exaltação da Cruz, alguns podem ver idolatria nisso. Outros podem dizer que estamos distorcendo a fé, enaltecendo o símbolo do suplício de Jesus.

Muito diferente disso é o sentido da festa a Exaltação da Cruz.

Para entendê-la é necessário observar a teologia que o Autor Sagrado imprimiu em seu texto.

Embora, neste momento, a liturgia não esteja utilizando a perícope do Gênesis em que a serpente é expulsa do paraíso, para bem entendermos a pequena passagem do livro dos Números (21,4b-9) precisamos ter presente aquela simbologia da serpente.

Da mesma forma, para bem entendermos o discurso do evangelista João (3,13-17), no qual Jesus afirma ter vindo ao mundo para salvar, precisamos ter presente o texto de Números. Além disso, para entendermos a belíssima descrição que o apóstolo Paulo faz de Jesus (Fl 2,6-11), precisamos ter presente não só o primeiro capítulo do evangelho de João como os demais textos sobre a atuação de Jesus e, entre eles, este em que ele afirma ter descido e que será levantado.

Isso posto, indaguemo-nos: o cristão pode ao não usar imagens em sua casa ou em seu templo, como sinais de algo muito superior, algo para o que a imagem remete e do que ela é só um pequeno lembrete?

Se olharmos apenas a letra do mandamento divino, “Não farás imagens…”, a resposta é NÃO. Se considerarmos os textos aqui mencionados, a resposta é: DEPENDE da situação. Depende do que desejamos com aquilo que fazemos.

Se estacionamos no gesto, no símbolo ou na imagem, significa que estamos precisando repensar nossa postura. Buscar mais entendimento. Amadurecer nossa fé. Olhar para além das aparências. Levantar o véu para ver o que está por trás das palavras.

Precisamos fazer isso para entendermos o significado da festa da exaltação da cruz. Não se olha para a cruz, porque ela é uma cruz, mas porque foi nela que Cristo nos redimiu. Não se olha para a cruz, como um amuleto, que muitos ostentam como adereço, mas como o fardo que cada um de nós deposita sobre os ombros do Senhor, no caminho do calvário. Não se olha para a cruz como um sinal de castigo ou punição exemplar, (era esse o objetivo nos tempos antigos), mas porque foi essa uma condição e caminho assumido por Jesus a fim de demonstrar ser ele o Cristo.

Com isso, podemos olhar para a narrativa do livro dos Números. Aqui está escrito que “o povo começou a impacientar-se, e se pôs a falar contra Deus e contra Moisés” (Nm 21,4-5). Em razão dessas reclamações morria quando atacado por inimigos venenosos, as serpentes do deserto (que também devem ser vista como símbolo). Porém, dando-se conta de seu pecado, o povo pede a intercessão de Moisés a quem Deus atende, dizendo: faça “uma serpente de bronze e coloca-a como sinal sobre uma haste; aquele que for mordido e olhar para ela viverá" (Nm 21,8).

Lá no livro do Gênesis, ao reprimir o casal infrator que queria “ser como Deus”, o Criador afirma a inimizade entre seus descendentes. Aqui, em Números, essa inimizade está explicita. Qual é, então o gesto redentor de Deus? Construir um sinal: uma serpente de bronze. Para quê? Para que as pessoas, ao serem atacadas pelo inimigo, olhem para o sinal e se recordem da grandeza de Deus. Percebam que o animal maldito foi transformado em símbolo da salvação tanto no deserto como em nosso cotidiano. Entretanto, não é o símbolo, serpente, que salva, mas o próprio Deus. Não é a cruz, condenação dos malditos, que salva, mas é mediante a cruz que Jesus se entrega por nós! É Deus que nos salva pela cruz!

E quem é esse Deus que salva? E salva até aquele pecador que reclama contra Deus, e depois de se arrepender, pede perdão!

Esse Deus é aquele apresentado por Paulo. Aquele que “existindo em condição divina, não fez do ser igual a Deus uma usurpação, mas ele esvaziou-se a si mesmo, assumindo a condição de escravo e tornando-se igual aos homens. Encontrado com aspecto humano, humilhou-se a si mesmo, fazendo-se obediente até a morte, e morte de cruz” (Fl 2,6-8). Ou seja, assumiu a morte reservada aos malditos porque nos quer abençoar em seu amor. Por ter se esvaziado da divindade, fazendo-se humano e condenado à cruz, “Deus o exaltou”, não como ostentação, não como vingança, não como demonstração de poder, mas como convite a que todos dobrem seus joelhos. Dobrem-se e o reconheçam e assim “toda língua proclame: Jesus Cristo é o Senhor’” (Fl 2,11).

Com isso, somos convidados a ouvir o próprio Jesus afirmando: da mesma forma que no deserto, quem olhava para a imagem da serpente de bonze ficava livre do veneno do inimigo, agora, quem olha para a cruz e nela reconhece em Jesus, o Cristo, esse tem “a vida eterna”.

Da mesma forma que no Gênesis, Deus não mandou a serpente para ser sinal de perdição, mas para cobrar fidelidade, também no deserto Deus não mandou a serpente para matar os blasfemos, mas para cobrar arrependimento. Da mesma forma que Deus não concedeu ao Filho o esvaziamento da divindade, encarnando-se como homem, apenas como um capricho divino, mas o fez para bem manifestar-se. Da mesma forma Deus não permitiu que Jesus assumisse a cruz como a punição de um maldito, mas o fez “para que todos aqueles que nele crerem tenham a vida eterna”.

Em Jesus, a cruz foi assumida, não mais como desgraça, mas como chave para o céu. Por isso o convite, olhar para a cruz para e nela ver o cristo salvador, como no deserto se olhava para a serpente para manter a vida… só que agora, vida eterna.




Neri de Paula Carneiro.

Mestre em educação, filósofo, teólogo, historiador

Outros escritos do autor:

Filosofia, História, Religião: https://www.webartigos.com/index.php/autores/npcarneiro;

Literatura: https://www.recantodasletras.com.br/autores/neripcarneiro;

E.Books: https://www.calameo.com/accounts/7438195.

quarta-feira, setembro 03, 2025

ORAÇÃO DO COMPROMISSO

Senhor, Pai, Filho e Espírito de Vida,

agradeço pelo mundo que nos destes:

um presente e um lar para crescermos construindo teu Reino.

Ensina-me a te reconhecer no rosto do irmão;

Ensina-me servir a quem precisa, pois nele tu estás;

Ensina-me a partilhar os bens, como teu Filho ensinou;

Ensina-me e entender que a singeleza do amor são dons do teu Espírito;

Ensina-me a ter um coração puro para ver no outro a tua imagem;

Ensina-me que a ação solidária é o caminho mais curto para o mandamento do amor;

Ensina-me a ler tua mensagem, nas páginas da criação;

Ensina-me a buscar a luz da tua Palavra para iluminar onde vivo, meu trabalho e o mundo;

Trindade Santa, que minha oração não fique só em palavras, que ela seja sementes que tu semeias através dos meus atos.

Amém!

sexta-feira, agosto 22, 2025

À mesa do Senhor

Reflexões a partir de:

Isaías 66,18-21; Hebreus 12,5-7.11-13; Lc 13,22-30.




Em tempos de correria e refeições apressadas…

Em tempos nos quais não se tem tempo de sentar-se à mesa…

Em tempos em que o sentar-se à mesa, com a família, parece coisa de outros tempos…

Em tempos assim somos chamados a ouvir Jesus afirmando (Lc 13,22-30) que alguns não poderão participar da mesa do Senhor.

Em tempos assim, quem são os excluídos da mesa do Senhor?

Porém, antes de nos ocuparmos com aqueles que serão excluídos no fim dos tempos, olhemos a situação a partir de outro ponto de vista: Quem são os incluídos, ainda nestes nossos tempos?

A lista é longa.

Desde as primeiras palavras da Bíblia, o Senhor da Criação vem mostrando quem está incluído. Deus quer ser conhecido e se dá a conhecer. Para isso envia seus mensageiros. Entre eles estão os profetas. E Isaías é um deles (66,18-21), um dos que transmitem o recado divino.

A partir da palavra de Isaías , ficamos sabendo que Deus decidiu enviar mensageiros para “terras distantes”. Ele quer falar, quer ser conhecido, quer convidar aqueles que “ainda não ouviram falar em mim e não viram minha glória” (Is 66,19). Com isso Deus indica que não exclui.

E o profeta não deixa dúvidas: o Senhor quer incluir aqueles que, aparentemente, não faziam parte da mesa. No convite transmitido pelo profeta está claro: há um povo escolhido para uma missão, para levar a mensagem. Mas isso não exclui os outros, pois a mensagem é de inclusão; o convite é para incluir os destinatários da mensagem e não só os mensageiros!

Note-se, portanto, que todos são convidados. Da mesma forma que os “filhos de Israel”, todos os povos “levarão sua oferenda em vasos purificados para a casa do Senhor” (Is 66,20).

Ou seja, não há um povo escolhido, de forma que outros sejam excluídos. O Senhor é o Deus de todos os povos! Todos estão incluídos em seu convite. E isso vale para todos os tempos. Nós, hoje, também somos convidados. Também fomos incluídos na lista dos convidados. E a resposta ao convite não são as palavras, mas a própria vida, pois o convite tem o carimbo da eternidade.

É neste ponto que entra a outra situação acenada em Hebreus (Hb 12,5-7.11-13), falando sobre a modalidade educativa da ação de Deus. Trata-se de uma ação que se assemelha à atitude dos pais em relação aos filhos.

Com que finalidade?

Mostrar como devem comportar-se os filhos de Deus, convidados a sentar-se à mesa do Reino, junto a Deus. Esse processo educativo estende-se ao longo de todas páginas bíblicas. E o resultado que o Senhor deseja é um só: manter-se numa atitude de quem busca a superação das dificuldades, aprendendo com elas. Aquele que compreende as lições de Deus são capazes de produzir frutos “de paz e de justiça para aqueles que nela foram exercitados” (Hb 12,11).

Aqueles que são convidados a sentar-se à mesa do Senhor também recebem apoio para se reerguer constantemente; são apoiados para se manter com as mãos firmes a fim de construir dias melhores; joelhos fortes para não cair no desânimo ao longo da missão; pés incansáveis na caminhada em direção ao irmão, ajudando-o a fim de que também se mantenha nos caminhos do Senhor: “firmai as mãos cansadas e os joelhos enfraquecidos; acertai os passos dos vossos pés, para que não se extravie o que é manco, mas antes seja curado” (Hb 12.13).

Mas qual é a porta para a mesa do senhor; qual o caminho que nos leva a participar da mesa na casa do Pai? Qual é o caminho da inclusão, no plano do Pai e na comunhão dos irmãos?

A resposta nos vem da voz de Jesus. Não é um caminho de facilidades; não é um projeto de regalias; não é uma avenida de flores… pelo contrário, ensina-nos o Senhor, participar da mesa do Reino, na casa do Pai, exige seguir a orientação de Jesus: "Fazei todo esforço possível para entrar pela porta estreita. Porque eu vos digo que muitos tentarão entrar e não conseguirão” (Lc 13,24).

Mas por que Jesus fala em dificuldades, em “porta estreita”, se o projeto de Deus é a salvação de todos? É convidar a todos para sentarem-se à sua mesa?

A questão é que as dificuldades fazem parte do caminho. E são o parâmetro para saber quem está assumindo e acolhendo o convite para a mesa do Senhor. É na dificuldade que se prova a fé. É na passagem pela via estreita, pela estrada das dificuldades, pela porta das dores que se demonstra a confiança no Senhor.

No dia a dia da segurança e tranquilidade, quando se tem mesa farta e conforto poucas vezes se tem tempo para Deus. A tendência é o afastamento do Senhor e dos irmãos. A fartura não impede, mas dificulta o contato com Deus, gera postura de exclusão do outro, pois o desejo de acumular pode converte-se em mais uma divindade.

Porém quando ocorrem as dificuldades, muitos gritam pedindo ajuda de Deus. A presença da dificuldade pode abrir dois caminhos. Em um se busca: a superação, a força divina para ir em frente, a mão de Deus como amparo, a luz de Deus iluminando os caminhos e esperança. Por outro lado, a dificuldade pode levar ao desespero que nasce da falta de confiança no Senhor. Por isso as portas e os caminhos se estreitam, é que as dificuldades oferecem boa oportunidade de participar da mesa do Senhor.

O convite de Jesus, para sentar-se à mesa do Senhor passa pela porta estreita porque, embora o convite seja para todos, a fartura do mundo ou o desespero das dores podem converter-se em distrações e desvios.

O convite é universal: “virão homens do oriente e do ocidente, do norte e do sul, e tomarão lugar à mesa no Reino de Deus”. E todos são incluídos porque aceitam o convite. Mas também existem os excluídos, aqueles que não encontram tempo para Deus, que vive no irmão.
 
Neri de Paula Carneiro.

Mestre em educação, filósofo, teólogo, historiador

Outros escritos do autor:

Filosofia, História, Religião: https://www.webartigos.com/index.php/autores/npcarneiro;

Literatura: https://www.recantodasletras.com.br/autores/neripcarneiro;

E.Books: https://www.calameo.com/accounts/7438195.

sexta-feira, agosto 01, 2025

O apocalipse não é

O apocalipse não é o que as pessoas falam. Não é o que dele pensam!

O Livro do Apocalipse não diz o que dizem que ele diz: não descreve o fim do mundo!

O apocalipse não é e não será do jeito que as pessoas pintam ou pensam: não se trata de um evento do futuro, mas uma análise do presente em vista das alegrias vindouras!

Então o que é o apocalipse? Que livro é esse que chamam de Apocalipse? Qual a razão do medo que ronda quando alguém menciona a palavra apocalipse ou o livro do Apocalipse?

Não sei a resposta. Mas sei que não é tudo isso que se diz, envolvendo esse ar de catástrofes e cataclismos e monstros dos horrores… isso sei que não é!

Como não sei a resposta, vou buscá-la.

Como não sei grego nem latim, e muito pouco de português, vou procurar respostas pesquisando tudo isso e a própria Bíblia.

Como sei que existem muitas ideias tortas, e gente querendo entortar ainda mais, vou buscar luzes que me ajudem a tirar o véu da ignorância. Não por mim, pois sei em quem deposito minhas esperanças (2Tm 1,12). Vou buscar as explicações porque, disse Jesus, vão aparecer falsos messias… e muitos eles já estão por aí espalhando discórdia… (Mt 24,24) e são esses que deturpam o apocalipse, querendo disso tirar proveito! “Hão de surgir falsos Messias e falsos profetas, os quais apresentarão sinais e prodígios para enganar, se possível, os eleitos. Quando a vós, porém, ficai atentos. Eu vos predisse tudo” (Mc 13,22-23).

E quando for pesquisar o significado dessa palavra, as pesquisas me dirão que lá em sua origem apocalipse vem de “apocalipsis” que pode ser entendido como ato ou processo de se retirar a cobertura, uma forma de descobrir e mostrar o que até aqui estava encoberto… vou descobrir que, na Bíblia, tem vários textos apocalípticos, tanto no Antigo e no Novo Testamento. E não é para predizer o fim catastrófico do mundo...

E quando for pesquisar, também vou descobrir que, lá nas suas origens, o apocalipse não se refere a nenhum evento espetaculoso. Não se refere a tremor de terra, raios e trovões. Não se refere a “chuva de estrelas”. Não tem nada a ver com essa de produzir medo e terror.

E tem mais, quando eu for pesquisar vou descobrir que todas essas descrições de coisas ameaçadoras, assustadoras, devastadoras… são construções literárias com efeito simbólico para apontar uma outra realidade que, essa sim, é a razão do apocalipse, pois com toda essa simbologia essa linguagem evidencia o que está escondido nos planos de Deus: “eu te bendigo, pai, porque escondeste estas coisas aos sábios…” (Mt 11,25).

E ainda tem mais. Quando eu for pesquisar vou descobrir que Deus não age assim, provocando estardalhaço. Deus não precisa nem depende disso para se dar a conhecer. Deus não faz espetáculos para a plateia nem shows para ficar famoso. Deus não se apresenta assustando ninguém. Quer ser respeitado, amado... mas não temido!

E ainda tem algo a mais a ser acrescentado. Quando eu for pesquisar sobre o apocalipse, sobre a palavra apocalipse, sobre o significado de apocalipse, sobre o livro do Apocalipse, vou descobrir que as ações divinas são diferentes disso tudo que se diz por aí. As ações divinas ocorrem no dia a dia, sem estardalhaço! As ações divinas, assim diz a Bíblia, lá no livro dos Reis (1Rs 19,11-13), não está na tempestade, mas na brisa refrescante, reconfortante… Foi na brisa suave que Elias ouviu a voz de Deus.

O problema é que antes que eu possa continuar minha pesquisa, para saber o significado do apocalipse, alguém vai me interromper, dizendo: “Mas a descrição do apocalipse, narrada no livro do Apocalipse, fala disso!”; “O livro do Apocalipse descreve as catástrofes que acontecerão antes do fim do mundo!”; “Lá no livro do Apocalipse fala sobre monstros e terremotos e catástrofes cósmicas, e monstros…”. E eu respondo que sei disso, mas isso é simbólico! É um jeito codificado de explicar as coisas! E como linguagem codificada, para decifrar e entender, tem que achar a chave de decodificação.

Sou obrigado a interromper minha pesquisa sobre o apocalipse para reafirmar: O Apocalipse não é isso que está descrito e desenhado e narrado e anotado e predito… O apocalipse é uma palavra com a qual os autores transmitem uma mensagem, usando um gênero literário. Na realidade o apocalipse é um gênero literário que se caracteriza justamente por essa linguagem: simbólica, enigmática, descrevendo animais fantásticos e assustadores, números… mas não se destina a assustar! Dá até para dizer que era uma linguagem codificada. E aqueles símbolos e monstros e enigmas e números… cujo significado nos parecem estranhos e complicados, eram códigos conhecidos para os destinatários dos textos apocalípticos. Para eles não tinha nada de estranho. Era coisa do seu cotidiano. Por isso é que, de vez em quando, sai da boca de Jesus ou aparece nos textos apocalípticos expressões como: “quem tem ouvido para ouvir que ouça”; “ouça o que o Espírito diz às Igrejas” (Ap 2-3)(Mt 13,9; Mc 4,23; Lc 8,8). “Aqui é preciso discernimento. Quem é inteligente calcule o número da besta, pois é numero de homem…” (Ap 13,18). Com isso o autor do texto apocalíptico está oferecendo a chave de interpretação, como quem diz: leia com atenção o que estou falando, pois vocês conhecem o código. Vocês sabem, mas os inimigos não sabem. Portanto, tomem cuidado ao decifrar a mensagem. Portanto, não é uma linguagem para assustar, mas para reanimar, não para meter medo, mas para iluminar, indicar caminhos, orientar, incentivar, encorajar!!! Portanto, quem é inteligente…! “Quando, portanto, virdes a abominação da desolação, de que fala o profeta Daniel, instalada no lugar santo – que o leitor entenda!” (Mt 24,15).

Sou obrigado a interromper minha pesquisa para reafirmar que essa linguagem simbólica, própria do gênero literário chamado apocalipse, não foi criada para assustar. Era um jeito de falar, naquele tempo em que o estilo foi criado: tempos difíceis! Era um jeito de falar e isso ajudava as pessoas, encorajava as vítimas! Essas estavam em apuros e dificuldades e sofrendo e sendo perseguidas e com risco de perder a vida… não porque o mundo estava chegando ao fim, mas porque era necessário lançar uma restiazinha de luz e esperança para encarar os perseguidores e inimigos. Se os tempos estavam se mostrando difíceis, o autor do texto apocalíptico apresenta uma alternativa: a superação dos problemas com o empenho de todos e a proteção de Deus. Por isso repete e mostra o prêmio oferecido àqueles que erguerem a cabeça, enfrentarem as dificuldades e passarem pela provação: “ao vencedor darei…” (Ap 2,7.11.17.26; 3,5.12.21). Trata-se, sempre, de uma linguagem de esperança… de encorajamento, de otimismo, de conforto… pois os perseverantes vencem!

Na minha busca pelo sentido e significado do apocalipse, que não foi escrito para assustar, mas para encorajar, encontrei não palavras de medo, mas de encorajamento: “Ele colocou a mão direita sobre mim, assegurando: NÃO TEMAS. EU SOU O PRIMEIRO E O ÚLTIMO, O VIVENTE. ESTIVE MORTO, MAS EIS QUE ESTOU VIVO!” (Ap 1,17)

Na minha busca pelo sentido e significado do apocalipse, pude entender. Estamos diante de uma linguagem simbólica, mas não se trata de um clima de ameaça, para assustar ninguém. Estamos diante de uma linguagem enigmática, mas não se trata de mistério tenebroso, pois a intenção é indicar a direção oposta, com pistas para superação das dificuldades representadas e clocadas pelos donos do poder e das riquezas. Estamos diante de uma linguagem, para nós cheia de mistérios, mas clara e cristalina para os contemporâneos do autor… que pretendia indicar quem e quais eram os perigos e as pistas para a superação… e a superação sempre foi e será Jesus, o Ressuscitado.

Na minha busca encontrei não os medo, mas a coragem. Não a tristeza, mas a perseverança. Não a angústia, mas a esperança. Não que se vá negar as dificuldades cotidianas, mas no texto está a afirmação de uma certeza: as dores são passageiras e a vitória virá. E essa não é uma promessa de algum pregador espertalhão, que promete te livrar disto ou daquilo em troca de grana. Quem promete é o próprio Jesus, o vencedor: “Também vós, agora estais tristes, mas eu vos verei de novo e vosso coração se alegrará e ninguém vos tirará vossa alegria” (Jo 16,22).

Na minha busca pude ouvir as palavras de Jesus, o vencedor: “No mundo tereis tribulações, mas tende coragem, eu venci o mundo!” (Jo 16,33).

Então, agora você entendeu? Entendeu porque o Apocalipse não é uma linguagem de medo? Entendeu porque, o livro do Apocalipse não é uma coleção de descrições de catástrofes assustadoras? Entendeu porque o Apocalipse é um convite não só ao encorajamento, mas principalmente para ouvir as promessas do vencedor? Entendeu que estamos diante não da descrição do fim do mundo, mas de um convite à perseverança que prevalece sobre as dores cotidianas?

Então, sugiro que entendamos de uma vez por todas: o apocalipse não é descrição de dores vindouras, mas promessa de bençãos futuras: “Nunca mais haverá maldição”. As dores cessarão e a luz do cordeiro iluminará a todos, na cidade santa onde “ninguém mais precisará da luz da lâmpada, nem da luz do sol, porque a luz do Senhor Deus brilhará sobre eles” (Ap 22,3.5).

Então, e para isso é necessário um ato de fé, no processo da construção do Reino, haverá sofrimento mas com ele instalado, ninguém mais vai sofrer. Isso é o que afirma o autor do apocalipse (21, 4), dizendo que o próprio Deus será o amparo dos perseverante que superarem as maledicências dos promotores de maldades: “Ele enxugará toda lágrima dos seus olhos, pois nunca mais haverá morte, nem luto nem clamor, e nem dor haverá mais. Sim! As coisas antigas se foram!”
 

Neri de Paula Carneiro.

Mestre em educação, filósofo, teólogo, historiador

Outros escritos do autor:

Filosofia, História, Religião: https://www.webartigos.com/index.php/autores/npcarneiro;

Literatura: https://www.recantodasletras.com.br/autores/neripcarneiro;

E.Books: https://www.calameo.com/accounts/7438195.

quinta-feira, julho 03, 2025

Os nomes escritos no céu

Reflexões baseadas em: 
Is 66,10-14; Gl 6,14-18; Lc 10,1-12.17-20


 

Alegrai-vos e exultai!

Esse é o grito estimulante do profeta Isaías (Is 66,10-14), oferecendo alento ao seu povo. Mas o que levou o profeta a fazer esse convite?

Ele se dá conta de que “a mão do Senhor se manifestará em favor de seus servos” (Is 66,14).

Na realidade o profeta está falando aos seus concidadãos, no retorno do exílio. Por esse motivo ele refere-se a Jerusalém como o lugar em que se poderá celebrar a paz entre as nações. Esse será o ponto a partir do qual manifesta-se a fonte da paz: “Eis que farei correr para ela a paz como um rio e a glória das nações como torrente transbordante” (Is 66,12). Por isso é que a “mão do Senhor se manifestará”, pois havendo paz, a vida pode florescer.

Tudo isso em relação a Jerusalém e aos repatriados, povo merecedor da atenção do Senhor, pois, naquele momento, é um povo sofredor.

Porém o tempo passou. O povo é outro. A situação mudou… entretanto, a palavra de Deus continua sendo a mesma e atual!

Sendo assim, permanece a indagação: Por qual motivo os servos do Senhor devem extravasar sua alegria?

Agora, a resposta vai além do que disse o profeta. A fonte da paz já não é uma cidade, mas o novo povo. Um povo que também tem motivos para se alegrar e exultar…

Agora a responta nos vem não mais do profeta, mas nas palavras de Paulo (Gl 6,14-18).

Agora é o apóstolo de todas as gentes que apresenta um novo motivo; uma nova fonte de alegria pois os valores são outros. E, principalmente, há um novo povo!

O apóstolo nos informa e orienta ao dizer: nada tem mais valor do que estar com Cristo; o que conta é a nova criatura que nasce no seguimento de Jesus; o que conta é a paz e a misericórdia que se expandem a partir dos que se deixam conduzir pelo Senhor.

Esse ensinamento do apóstolo manifesta-se quando nos diz que “nem a circuncisão, nem a incircuncisão têm valor; o que conta é a criação nova.” (Gl 6,15). Isso porque a glória do ser humano é a “cruz do Senhor nosso, Jesus Cristo”. Nisso reside o sentido da caminhada, da peregrinação humana neste mundo mergulhado nas dores e problemas e dificuldades; em meio à competição desenfreada e desonesta, diante da exploração dos fortes sobre os fracos, dos espertalhões tirando proveito da simplicidade das pessoas de bem… É aí que o apóstolo aponta para um novo e definitivo sentido.

Ele mostra para que não haja dúvidas: o sentido da caminhada não está no caminho, nem no enaltecimento da dor, representada pela cruz, mas em seguir os passos de Jesus (Lc 10,1-12.17-20). E fala isso porque Jesus não parou na cruz! O sentido da peregrinação está na busca pela superação dos sofrimentos, pois ninguém nasceu para sofrer; o sentido está no entendimento de que a cruz não é o objetivo, ela é só um ponto de transição, uma ponte, uma chave, uma porta que se abre para o que vem depois. Por isso o apóstolo mostra o exemplo de Jesus, que não ficou na cruz. Ele a usou, mas não permaneceu nela. Por isso é que a cruz aponta para o que vem depois.

E o que é que vem depois? Vem depois do quê?

Sabendo que a cruz é o símbolo das dores, dos sofrimentos, das doenças, da fome, da miséria, da exploração, do egoísmo, da mentira… sabendo que na cruz estão representadas todas as mazelas humanas Paulo ensina que tudo isso foi superado pela ressurreição do Senhor. Portanto, depois da cruz vem a concretização das promessas de Jesus.

Depois da cruz está o mestre que acolhe os discípulos enviados em missão. Discípulos que voltam radiantes de alegria por terem feito maravilhas. E, mais uma vez, esse não é o objetivo, não é o ponto de chegada. Não é aí o ponto de encontro com o Senhor. Tudo isso é importante, porém o mestre explica que isso é só o começo: “Contudo, não vos alegreis porque os espíritos vos obedecem. Antes, ficai alegres porque vossos nomes estão escritos no céu” (Lc 10,20).

E aqui tem um detalhe importante: nossos nomes não estarão escritos no céu porque sofremos carregando nossas cruzes de cada dia resignadamente. Nosso nome estará lá porque quisemos superar as dores. Não porque rezamos em favor dos que sofrem, mas porque fizemos de nossa vida uma luta constante para que as pessoas não sofram mais. Nosso nome não apareceu no céu de forma milagrosa, mas porque fizemos algo para que os “pequeninos” deixem de ser vítimas de outras pessoas, não passem fome, frio, ou fiquem desalojados… Nosso nome não está escrito no céu apenas porque ficamos tantas e tantas horas rezando e fazendo novenas ou recitando o terço, mas porque motivados pela nossa oração fizemos de nossa vida uma luta constante por uma sociedade sem as desigualdades intransponíveis representadas pelo abismo que separa: de um lado aqueles que concentram o poder e dinheiro e do outro lado os excluídos; de um lado aqueles poucos em cujas mãos se concentram os bens e as riquezas auferidos às custas das multidões que estão do outro lado do abismo e que de seu só têm o trabalho que gera riquezas para outros... Nosso nome está sendo escrito no céu na mesma medida em que nossas orações se converterem em ações em favor de quem precisa.

É assim que o Senhor anotará nossos nomes no céu. Lembremo-nos de que numa outra situação, o mesmo Senhor e mestre ensinou que não é só dizer Senhor, Senhor…! É assim que o Senhor que enviou os setenta e dois discípulos em missão de paz, de cura, de anúncio do Reino, nos escolhe. E será com essas ações que nosso nome será escrito no céu.




Neri de Paula Carneiro.

Mestre em educação, filósofo, teólogo, historiador

Outros escritos do autor:

Filosofia, História, Religião: https://www.webartigos.com/index.php/autores/npcarneiro;

Literatura: https://www.recantodasletras.com.br/autores/neripcarneiro.


quinta-feira, junho 26, 2025

Pedro e Paulo: Tu és o Messias!

Reflexões baseadas em:
Atos dos Apóstolos 12,1-11; 2Timóteo 4,6-8.17-18; Mateus 16,13-19




O que celebramos na solenidade de São Pedro e São Paulo?

Com certeza você dirá que celebramos os dois santos. Mas note que a pergunta esconde uma “pegadinha”!

Os apóstolos Pedro e Paulo são o motivo da celebração. E nós, motivados pelos dois personagens, somos convidados a celebrar o significado de sua ação. Então o que celebramos?

A resposta está no que nos mostram as leituras que Igreja nos propõe. E começa mostrando-nos em Atos do Apóstolos (At 12,1-11). O que vemos aqui?

Vemos a atuação de Pedro, vítima das intrigas dos judeus e de das maquinações de um rei interesseiro e avesso ao povo. Vemos que os poderes constituídos tentam se sobrepor aos interesses do Reino e, para chegar a isso, perseguem aqueles que levam a sério o convite de Jesus, como o fez Pedro. Vemos que a Igreja se une em oração, em favor dos que sofrem, mas que a libertação ocorre quando a vítima se levanta e se põe a caminhar. Vemos isso em Pedro, convidado a sair: seguiu com o anjo sem esperar ser carregado. Vemos, portanto, que Pedro assumiu a caminhada de libertação.

Por fim, Pedro só se deu conta de que o anjo o protegia e guiava quando já tinha feito a caminhada. Só quando já estava livre foi capaz de reconhecer a ação de Deus. Só depois de ter feito a caminhada libertadora foi que se deu conta e percebeu que o “Senhor enviou o seu anjo para me libertar do poder de Herodes e de tudo o que o povo judeu esperava!” Quer dizer: a libertação é dom e graça de Deus, mas quem a realiza somos nós, com o apoio da oração da Igreja. Deus não age por nós; nós é que temos que agir amparados pela oração e pela graça Libertadora.

Na carta de Paulo a Timóteo (2Tm 4,6-8.17-18) o apóstolo mostra ao discípulo como se deve encarar as consequências da opção por Jesus Cristo.

Paulo, um judeu convertido, apaixonado por Jesus Cristo, missionário valoroso e fervoroso, organizador e orientador de comunidades, profundo conhecedor das tradições e dos preceitos do judaísmo, entendeu que a Antiga Aliança findara na atuação de Jesus de Nazaré. E, portanto, as profecias cumpriram-se no jovem galileu. Não havia mais por quê esperar. Tudo estava consumado em Jesus de Nazaré, o Cristo. Por ele e em seu nome, Paulo entendeu que não podia mais esperar e lançou-se na caminhada: comprometeu-se de corpo e alma com a proposta do Reino anunciado por Jesus. Em consequência disso, da mesma forma que ocorrera com Pedro, Paulo também foi perseguido e feito prisioneiro.

Então, novamente, o que celebramos na solenidade de São Pedro e São Paulo?

Ouçamos o que o Espírito nos diz através das leituras. Qual é a cena, em Atos?

Pedro, prisioneiro, é libertado. Mas, antes disso, por que foi aprisionado? Porque o rei, numa estratégia nefasta de sua política interesseira, preferiu uma aparente estabilidade em seu governo. E para isso decidiu agradar um grupinho de religiosos fanáticos. Eis o que lemos em At 4,1-3: “O rei Herodes prendeu alguns membros da Igreja, para torturá-los. Mandou matar à espada Tiago, irmão de João. E, vendo que isso agradava aos judeus, mandou também prender a Pedro. Eram os dias dos Pães ázimos”.

O que isso nos mostra? Um monarca interesseiro querendo agradar e se beneficiar com o apoio de um grupo de fanáticos. Uma parceria que levou Jesus à morte e, depois de um ano do seu assassinato, se volta contra os amigos de Jesus. Pedro e Paulo, prisioneiros e martirizados são a prova disso: o fanatismo religioso e descomprometido com a realidade sofrida do povo aliada a políticos inescrupulosos gera, invariavelmente, perseguições aos que se dedicam à árdua tarefa delegada por Jesus. Que tarefa é essa? fazer ao pequenino o que se gostaria de fazer ao próprio Jesus, para depois ouvi-lo dizer: “Foi a mim que fizestes!”.

Então, o que celebramos na solenidade de São Pedro e São Paulo?

Se bem entendermos os passos dos apóstolos, podemos dizer que ao celebrar São Pedro e São Paulo estamos celebrando, ao mesmo tempo: a atitude de Pedro que se caracteriza pelo ato de por-se a caminho no processo da construção da liberdade. Sabendo que Deus indica o caminho, mas cabe a cada um, em comunidade, fazer a caminhada. A atitude de Paulo, disposto a caminhar na certeza de estar: ajudando na dinâmica do anúncio com suas cartas e sua pregação; contribuindo para que a proposta de Jesus de Nazaré fosse amplamente conhecida, viajando e anunciando; contribuindo para que a Igreja não morresse no isolamento mesquinho do judaísmo rigorista; construindo o caminho para que o cristianismo se universalizasse… Ambos fizeram isso e muito mais sabendo que o preço era a perseguição e o martírio. Ambos realizaram a obra do Senhor com a certeza expressa por Paulo: “O Senhor me libertará de todo mal e me salvará para o seu Reino celeste. A ele a glória, pelos séculos dos séculos!” (2Tm 4,18).

No dia de São Pedro e São Paulo celebramos o mandato divino pelo qual Pedro é enviado a guardar a Igreja para uni-la ao céu, sabendo que a promessa é do próprio Senhor: “Eu te darei as chaves do Reino dos Céus: tudo o que tu ligares na terra será ligado nos céus; tudo o que tu desligares na terra será desligado nos céus” (Mt 16,19). Com essa certeza é que Paulo afirma, na sua caminhada final: “Aproxima-se o momento de minha partida. Combati o bom combate, completei a corrida, guardei a fé. Agora está reservada para mim a coroa da justiça” (2Tm 4,6-8).

E se isso celebramos no dia de São Pedro e São Paulo é porque ambos nos ensinaram a reconhecer o Senhor: “Tu és o Messias!”




Neri de Paula Carneiro.

Mestre em educação, filósofo, teólogo, historiador

Outros escritos do autor:

Filosofia, História, Religião: https://www.webartigos.com/index.php/autores/npcarneiro;

Literatura: https://www.recantodasletras.com.br/autores/neripcarneiro.

quarta-feira, junho 18, 2025

Corpo e Sangue do Senhor – Cinco pães e uma multidão

Reflexão baseada em:

Gn 14,18-20; 1Cor 11,23-26; Lc 9,11b-17



Deus pode fazer milagres? Com certeza, afinal de contas, é Deus. É todo poderoso. É Senhor da vida e criador de tudo. Deus pode fazer milagres, quando e onde quiser…

Mas será que Deus quer fazer aquilo que ele nos encarregou de fazer?

Como assim? você pode perguntar. Não estou entendendo! você pode argumentar.

Reflitamos um pouco.

Por qual motivo existimos num mundo maravilhosamente perfeito e com potencialidade para que façamos e produzamos tudo? Já desenvolvemos ciência e tecnologia que nos permitem a produção daquilo que precisamos para sobreviver. Ainda tropeçamos em algumas coisas, mas nosso esforço, conjugado com o esforço de outros, nos permite edificar maravilhas no mundo maravilhoso que recebemos como presente de Deus. E foi Deus que nos deu essa capacidade para crescer. Portanto, existimos para continuar a obra de Deus e realizar aquilo para o quê somos criados.

Com isso estou dizendo que, em relação ao nosso potencial, que é dom divino, já recebemos o MILAGRE: a inteligência e todas as demais condições para o crescimento.

Com isso estou dizendo que, em relação àquilo que nós podemos fazer, Deus não vai agir, pois já nos fez capazes de realizar.

Com isso estou dizendo que, com certeza, Deus nos vai ajudar naquilo que foge ou que vai além da nossa capacidade. E isso sem a menor dúvida! Pode ter certeza, ele age em nós!

Por que estou dizendo isso? Pare melhor celebrar o dia do Preciosíssimo Corpo e Sangue de Cristo. Ou seja, o dia que celebramos a presença real, plena e verdadeira de Cristo no pão e no vinho consagrados e transubstanciados, deixando de ter apenas a substância de pão e vinho para conter a essência divina. Já não comemos o pão e nem tomamos o vinho, comungamos o corpo e o sangue do Senhor que foi morto e está vivo. O milagre de retomar a vida é confirmado com o milagre da transubstanciação. Isso é milagre! Isso é dom de Deus! Isso é objeto de nossa fé! Isso cremos e convidamos os outros a crer também!

Toda essa conversa só para dizer isso?

Não, isso ainda faz parte do argumento! Do argumento para afirmar que Deus não faz milagres em relação àquilo que nós podemos fazer. Se eu posso fazer, a ação de Deus será fortalecer-me para que eu realize o que tem que ser feito.

Mas que tem isso a ver com a celebração do Corpo e Sangue do Senhor? você pode perguntar.

Em resposta, te pergunto o que lemos, nas leituras que a Igreja nos oferece para esta celebração?

Em Gn 14,18-20 encontramos Abraão sendo abençoado e com a benção do “Deus Altíssimo” foi capaz de produzir e, em resposta e gratidão pela capacidade de produzir, Abraão entregou “o dízimo de tudo”. Ou seja, Abraão não buscou milagres, assumiu sua capacidade, produziu e, agradecido, entregou o dízimo.

Algo semelhante vamos ver nas palavras de Paulo, falando com a comunidade de Corinto (1Cor 11,23-26). Aqui o apóstolo mostra o milagre. E para realizar isso Jesus não precisou da ajuda de ninguém, pois o fez em nosso favor. Sendo Deus com o Pai e o Espírito, ofereceu o dom de si mesmo. Sobre o pão disse: “isto é meu corpo”, sobre o vinho disse ser “a nova aliança em meu nome”. Esse é o compromisso de Deus: alimentar para a vida. Alimentar para aguardar seu retorno. E já não se trata mais de qualquer pão, mas é o pão da esperança, da memória, da presença, da certeza… da proclamação da “morte do Senhor, até que ele venha”.

Este é o pão eucarístico, em agradecimento. Realizado como dom de Deus. O pão produzido pelo ser humano, agora é pão do céu. Sobre a obra humana, pão e vinho, “frutos da terra e do trabalho do homem”, acontece a ação de Deus pela qual nos oferece seu corpo.

Um corpo que, pela sua singeleza não demonstra aquilo que é: Corpo e Sangue do Senhor. Oferecidos não por nossos méritos, mas por graça e dom da vontade de Deus.

Neste ponto você me pergunta: mas afinal o que você quis dizer quando indagou: será que Deus quer fazer aquilo que ele nos encarregou de fazer?

A resposta vem do próprio Jesus. Não estou inventando. Apenas entendendo as palavras de Jesus que, de acordo com Lucas 9,11b-17, “acolheu as multidões, falava-lhes sobre o Reino de Deus e curava todos os que precisavam”. Um Jesus que atende e entende a preocupação dos apóstolos, preocupados com a multidão que, seguramente, está com fome “num lugar deserto”.

Jesus diz: por que eu teria que fazer aquilo que é a função de vocês? Vocês podem fazer isso: “Dai-lhes vós mesmos de comer”. Eles não se recusaram, apenas não entenderam o potencial que ali havia. É então que Jesus orienta: que todos se organizem.

E assim, diante do povo organizado Jesus completou a lição: eu faço a oração e vocês fazem a partilha! Todos saíram satisfeitos e ainda sobrou comida para alimentar muita gente. Todos entenderam que para alimentar a multidão, não precisa de milagre. Todos entenderam é necessário, apenas, que haja partilha. Havendo partilha, aquele que tem com sobra reparte com quem não tem… e sobra alimento.

Para isso não precisa de milagre, é necessário apenas que haja conversão, pois o milagre foi Jesus se dar como pão e vinho. Dar alimento é tarefa nossa.

Neri de Paula Carneiro.

Mestre em educação, filósofo, teólogo, historiador

Outros escritos do autor:

Filosofia, História, Religião: https://www.webartigos.com/index.php/autores/npcarneiro;

Literatura: https://www.recantodasletras.com.br/autores/neripcarneiro.



sábado, abril 19, 2025

PÁSCOA: Viu e acreditou

(Reflexões a partir de: At 10,34a. 37-43; Cl 3,1-4; Jo 20,1-9)




Vamos nos colocar no lugar de Maria Madalena, para celebrar a Páscoa!

Vamos ver nela uma pessoa que tinha não só grande admiração, mas também, certamente, grande amor por Jesus, pois o via falar e fazer coisas maravilhosas...

Vamos imaginar como ela o admirava falando às pessoas, curando suas dores, alentando os aflitos, defendendo os marginalizados, alimentando os famintos e anunciando a possibilidade das pessoas viverem num mundo de amor, amizade, fartura e alegria…

Vamos imaginar como ela se sentia feliz por ter podido desfrutar de sua compaixão e, a parir disso, também ela ter se tornado uma pessoa dedicada a ajudar Jesus em suas necessidade, em suas andanças, em suas pregações, em seu anúncio de uma Boa Notícia: algo que até então as pessoas não tinham se dado conta de que poderia existir e ser construída; uma sociedade na qual a relação entre as pessoas seria uma relação de irmãos...

Vamos, agora, imaginar sua dor, sua aflição, sua angústia ao perceber que, apesar de todo bem realizado por seu amado amigo, os chefes políticos e religiosos do seu povo o insultavam, o provocavam, o perseguiam, zombavam de seus feitos e o difamavam com mentiras…

Vamos imaginar sua tristeza ao notar que a proposta de seu amigo Jesus estava agradando aos humildes que o seguiam, mas irritando as autoridades que confabulavam uma forma de anular suas ações e seu amor…

Vamos imaginar o que ela pode ter sentido ao perceber que quanto mais ele falava em amor, paz, solidariedade, partilha… mais os poderosos, os políticos, os líderes religiosos o difamavam e o perseguiam com mentiras…

Vamos nos colocar em seu lugar e imaginar seu desespero ao perceber que até mesmo entre seus discípulos havia aqueles que suspeitavam do mestre; aqueles que queriam tirar vantagem pessoal; aqueles que não entendiam a mensagem de paz e apelavam para a violência; aqueles que juravam amá-lo e defendê-lo, mas com os quais não podia contar na hora do apuro; aqueles que aceitavam sua proposta e gostavam de passar horas em oração ao seu lado, mas não o acompanhavam na pregação do amor solidário, no anúncio do perdão, na proposta de transformar o mundo pelo amor…

Vamos nos colocar em seu lugar e imaginar sua aflição ao ver que tudo que seu amado amigo falava, anunciava e propunha estava em risco de desmoronar, pois o perseguiam e o traiam…

Vamos nos colocar em seu lugar e imaginar como deve ter sofrido quando, junto com as outras mulheres, ficou fiel junto ao seu amado amigo naquela noite em que foi traído, preso e torturado…

Vamos nos colocar em seu lugar e imaginar como ela sofreu ao ver aqueles que se diziam seus amigos apoiando os torturadores e promotores de violência, exatamente o oposto de sua proposta…

Vamos nos colocar em seu lugar e imaginar o que ela sentiu, junto com as outras mulheres fiéis, ao ver seu amado amigo flagelado e humilhado, carregando o sinal de sua condenação forjada…

Vamos nos colocar em seu lugar e imaginar o que ela e as outras mulheres fiéis sentiram ao ver seu amado amigo pendurado na cruz humilhante; o que sentiram ao vê-lo sendo sepultado…

Vamos nos colocar no lugar de Maria Madalena, para celebrar a Páscoa…

Vamos imaginar seu desespero ou talvez, sua esperança quando, no dia seguinte, “foi ao túmulo de Jesus, bem de madrugada, quando ainda estava escuro, e viu que a pedra tinha sido retirada do túmulo” (Jo 20,1)…

Vamos, agora, imaginá-la correndo: num misto de dor, esperança, indignação, vontade de acreditar, incerteza querendo transformar-se em fé…

Vamos, agora, imaginá-la, cansada, aflita, quase sem poder falar, querendo gritar mas com o medo lhe prendendo a voz; com a incerteza doendo feito uma semente de fé querendo crescer em seu peito…

Vamos imaginá-la, diante dos discípulos amedrontados, inseguros, indecisos, também eles angustiados, vendo-a quase sem cor e sem voz, cansada e com medo, desesperada: “Tiraram o Senhor do túmulo, e não sabemos onde o colocaram” (Jo 20,2)…

Vamos imaginar a sequência da cena: ela desabou sobre um banco, fraquejando ou foi adiante em busca de outros discípulos ou correu atrás daqueles que correram para o túmulo vazio?…

Vamos imaginar como ela se lançou em busca do amado amigo para celebrar a Páscoa…

Vamos imaginar como ela se pôs a relembrar suas palavras, seus gestou, seu anúncio, sua promessa de ressurreição…

Vamos imaginar como ela ajudou os discípulos a difundir a notícia, como o fez Pedro: “… e nós somos testemunhas de tudo o que Jesus fez na terra dos judeus e em Jerusalém. Eles o mataram, pregando-o numa cruz. Mas Deus o ressuscitou! (At 10, 39-40)…

Vamos imaginar como ela ajudou a difundir o que Paulo ensinou: “Quando Cristo, vossa vida, aparecer em seu triunfo, então vós aparecereis também com ele, revestidos de glória” (Cl 3,4)…

Vamos nos colocar no lugar de Maria Madalena: ela também viu e acreditou. Então, nós também, a partir deste domingo de Páscoa, vamos sair por aí anunciando: A maldade humana teima em matar Jesus, em nossos dias, mas Deus não abandona os seus e assim como Cristo Ressuscitou, ressuscitaremos!


Neri de Paula Carneiro.

Mestre em educação, filósofo, teólogo, historiador

Outros escritos do autor:

Filosofia, História, Religião: https://www.webartigos.com/index.php/autores/npcarneiro;

Literatura: https://www.recantodasletras.com.br/autores/neripcarneiro.

domingo, fevereiro 16, 2025

15/02/25


Sim, estavam lá!
Vários…! Por convite, em resposta, em proposta...só uma amostra.
Como explicar quem eram? Poetas? Cronistas? Contistas? Romancistas? Cientistas?


Não importa. Era gente da gente, com a gente, contente.  Gente que junta letras, junta palavras, junta frases... Junta ideias! Faz ideias , circula ideias… Uma ideia, muitas ideias…

Escritores?

Talvez isso e sei lá o que mais, pois escritor é quem escreve, mas não só, nem somente.
Aquele de quem se diz poeta, cronista, contista, romancista, cientista só o é porque um dia se pôs a juntar letras, juntar palavras, juntar frases... E juntando, juntou mundos! Juntou ideias! Pra quê? Pra fazer textos, pra contar o que não foi contado... ou recontratar os contos noutros cantos, contente em contar, cantar… alegrar, informar…fazendo pensar, ideias para pensar, como disse o Castro:

“Oh! Bendito o que semeia
Livros... livros à mancheia...
E manda o povo pensar!
O livro, caindo n'alma
É germe – que faz a palma,
É chuva – que faz o mar!”

Talvez semente! Somente semente, simplesmente! Semente de palavras. Semente de sentimentos. Semente de realizações sonhadas, palavras plantadas, palavras germinadas… mas semente!

Quem vai colher?
Talvez não quem plantou e projetou, não pra hoje, não pra si, não pra um. Plantamos…

A colheita pertence ao tempo. “Tempo rei”, tempo cruel, tempo de papel eterno. Tempo mestre.
A colheita será dos que vieram com o tempo...

Isso foi o evento, o encontro?
Sim!
Não...
Foi isso e algo mais: projetos, sonhos, sintonia, perspectivas de difundir, divertir... e, se quiser, também divergir, pois assim se pode convergir.

Neri de Paula Carneiro

sexta-feira, fevereiro 07, 2025

Águas mais profundas

Isaías 6,1-2a.3-8; Primeira Coríntios 15,1-11; Lucas 5,1-11

 
O que Deus pede a nós?

Pode parecer estranha a pergunta, pois somos nós que, constantemente, pedimos coisas a Deus.

Hoje, porém, é Deus quem nos dirige a palavra, fazendo um apelo!

Observe e veja.

O profeta Isaías (6,1-2a.3-8) ouve um apelo. É o Senhor, entre seus serafins, precisando enviar alguém para uma missão. Diante dessa visão o profeta se desespera: “Ai de mim!”; “Vi o Senhor!”; “sou alguém de lábios impuros!”

É claro que algumas pessoas vão ficar impressionadas com a majestade dos anjos, outros com o trono majestoso, alguns vão se impressionar com o manto daquele que está no trono, com o clamor das vozes glorificando-o; vão se assustar com o tremor das portas… Muitos destes, como o profeta, tremerão, com medo!

Mas, essa é uma cena aterrorizante? A presença do Senhor é assustadora? Se a presença do Senhor é assustadora, por que fazemos tudo que fazemos para sermos aceitos em sua morada santa?

Não. Deus não é para ser temido, mas amado! Claro que, daí derivam as consequências: quem ama respeita, quer estar junto; quem ama procura fazer o que agrada ao amado… quem ama sabe que, mesmo cometendo algum deslize, será perdoado… e assim por diante!

Foi o que aconteceu com Isaías. Temia, não tanto por si, apesar dos lábios impuros; temia porque sabia estar vivendo no meio de uma nação impura!

Os puristas vão dizer que o texto não menciona o povo. Só fala do profeta!

Aí é que está o engano. Por qual motivo o Senhor está se lamentando por não ter quem enviar? A quem o profeta se dispõe a ir, depois que abrasa da verdade lhe purificou os lábios? Basta continuarmos a leitura!

O fato é que, mesmo receoso, o profeta se dispõe: “Aqui estou! Envia-me”.

O eco desse envio, aparece em Paulo, falando à comunidade de Corinto (1Cor 15,1-11).

O apóstolo também foi enviado. Naquele encontro, na estrada para Damasco (cf At 9,6.15), Jesus lhe confia uma missão: anunciar a boa nova. E agora, aqui na comunidade de Corinto, está cumprindo a missão recebida do Senhor: anuncia e apresenta e comprova que Jesus foi perseguido e foi assassinado. Mas voltou à vida. Esse é um dado de fé mas, argumenta o apóstolo, caso alguém ainda não creia, deve se informar com tantas pessoas que viram o Senhor depois de ressuscitado.

Da mesma forma que em Isaías, Paulo assume a missão depois de uma situação trágica. Lá Isaías teve a língua curada com uma brasa ardente. Aqui, Paulo teve a vida mudada depois de cair por terra com suas certezas e constatar que durante toda sua vida andara cego. E agora, do chão de suas dúvidas levanta-se para recuperar a visão. Só então enxerga a verdade. E, por ser anunciador da verdade argumenta em seu discurso: em sua pequenez age a graça de Deus. Essa graça faz com que o menor, o que não tem mérito próprio, o perseguidor… cumpra a missão com muitos frutos: apesar de ter sido um perseguidor, ao receber a missão fê-la de forma frutuosa. “É pela graça de Deus que eu sou o que sou. Sua graça para comigo não foi estéril: a prova é que tenho trabalhado mais do que os outros apóstolos - não propriamente eu, mas a graça de Deus comigo” (1Cor 15,10).

Deus faz um apelo a Isaías, e ele atende; Jesus faz um apelo a Paulo, e ele atende.

Jesus também faz um apelo aos pescadores (Lc 5,1-11).

Na verdade faz três pedidos: o primeiro é para que afastem o barco da margem. Para afastar-se da multidão que o seguia? Não. Sobe na barca e afasta-se da margem justamente para que os ouvintes aprendam a importância de abrir mão das seguranças a que se está acostumado. Quem navega nos caminhos de Deus, não pode se apegar às seguranças das margens dos lagos e rios e mares. A segurança está nas palavras do Mestre.

A incerteza e a insegurança das águas leva os pescadores a confiar na palavra do Mestre. E aqui está o segundo apelo de Jesus: lancem as redes. Por que o senhor faz este apelo? Apenas porque quem está estacionado nas margens, não consegue pescar. Só quem se põe a navegar consegue encher as redes. Esse foi o motivo do susto de Pedro.

Simão Pedro não ficou espantado por causa da pesca, mas porque, apesar de ser um pecador, mereceu que o Senhor o procurasse, entrasse em sua barca e lhe concedesse sucesso na pescaria. O sucesso da pescaria no lago foi um símbolo e prenúncio do sucesso que viria depois, quando atenderam ao terceiro pedido de Jesus, dirigido a Simão: “Não tenhas medo! De hoje em diante tu serás pescador de homens” (Lc 5,10).

E como os pescadores aceitaram o apelo do Senhor, abandonaram as bascas, abandonaram aquelas margens e, assim como Isaías, assim como Paulo, puseram-se a seguir Jesus. Lançaram suas redes em águas mais profundas.

Com isso voltamos à indagação inicial: O que Deus está pedindo a cada um de nós?




Neri de Paula Carneiro.

Mestre em educação, filósofo, teólogo, historiador

Outros escritos do autor:

Filosofia, História, Religião: https://www.webartigos.com/index.php/autores/npcarneiro;

Literatura: https://www.recantodasletras.com.br/autores/neripcarneiro.

quinta-feira, janeiro 30, 2025

Apresentação do Senhor: Sinal de contradição

Malaquias 3,1-4; Hebreus 2,14-18; Lucas 2,22-40




Um anjo foi enviado com a finalidade de preparar o caminho, afirma Malaquias (3,1-4). O filho tem a mesma natureza dos pais, afirma o autor de Hebreus (2,14-18). É dessa forma que vamos encontrar Jesus, sendo apresentado no Templo (Lc 2,22-40): José e Maria, cumprindo o ritual, apresentam Filho de Deus que vem para redimir e anunciar o Reino.

Mas não é só isso! Ou, o que isso significa para nós?

Significa que, quando celebramos o Natal, vimos que Deus, de fato envia seu anjo para preparar os caminhos: primeiro para anunciar a vinda do Batista, preparando os caminhos do Senhor; depois para anunciar a vinda do Messias, que do seio de Maria, nasce para estabelecer uma nova aliança. Muito mais radical do que aquela em que o anjo anunciou que Sara conceberia Isaac. A Nova Aliança é mais radical porque não se baseia-se no templo, mas nos marginalizados; não mais num povo que pensava ser único merecedor da graça salvadora, mas nos estrangeiros…

De fato, Deus envia seu anjo…E quem nos fala disso hoje é Malaquias que viveu mais ou menos seis séculos antes do anjo falar com Maria. E suas palavras se cumprem em Jesus.

Hoje, aqui para nós, é ele quem nos fala sobre o anjo que vem preparar os caminhos, como fizera o Batista. Mas o foco do profeta não é o anjo, e sim aquele que vem depois do caminho preparado. Depois da sua ação purificadora...Depois disso é que as oferendas serão agradáveis a Deus. Depois de fazermos a reparação cobrada pelo anjo é que estaremos preparados para aquele que vem...

Mas em que que consiste essa preparação? Como será a purificação?

A resposta nos vem do autor de Hebreus: aprender com a prática de Jesus de Nazaré!

Como assim?

Jesus fez-se um de nós. Isso o sabemos. Acabamos de celebrar o Natal e aprendemos que em Jesus, Deus veio ao nosso encontro. E nisso está o ensinamento de Hebreus: “os filhos têm em comum a carne e o sangue, também Jesus participou da mesma condição” (Hb 2,14). Ou seja, Deus fazendo-se humano, mostrou o motivo de ter se encarnado: oferecer alento aos desalentados; conforto aos abandonados; esperança aos desesperados; vida nova aos agredidos por todo tipo de exploração e angústia: fome, marginalização, exclusão… Por isso Jesus recusou os palácios e o templo. Optou por uma família humilde e conviveu com gente simples. Noutras palavras, deu voz aos sem voz; deu oportunidade de chegar a Deus àqueles que estavam abandonados pelo poder e pela religião elitista. “Pois, afinal, não veio ocupar-se com os anjos, mas com a descendência de Abraão. Por isso devia fazer-se em tudo semelhante aos irmãos, para se tornar um sumo sacerdote misericordioso e digno de confiança nas coisas referentes a Deus, a fim de expiar os pecados do povo” (Hb 2,16-17).

Mas quais são “os pecado do povo”, dos quais Jesus veio nos libertar?

Já o sabemos: esse pecado tem uma dimensão pessoal e se manifesta em nossas ações e omissões que agridem o amor! Como o confessamos no “ato penitencial”! Pedimos perdão por termos pecado: “por pensamento, atos e omissões”. Essa é a dimensão pessoal.

Ocorre que o pecado também tem uma dimensão social: Será que já paramos para contar quantas vezes pensamos mal das pessoas: colegas de trabalho, pessoas da comunidade, nossos pais, mães, filhos, genros, noras, sogros sogras… são tantas as pessoas das quais pensamos mal e, muitas vezes, até desejamos o mal. Pensamentos do mal!

E se não bastasse, além de pensar, nós agimos maldosamente para com as pessoas: nós difamamos e tramamos contra colegas de trabalho, mentimos, tentamos nos sobrepor aos outros…; no mundo dos negócios: “amigo sim, mas negócios à parte!”; tiramos proveito de quem está em dificuldades para nos dar bem nos negócios e assim acumulamos bens e riquezas que não nos pertencem, pois foram conseguidas com roubo, esperteza, malandragem… Atos maldosos.

E, também nos omitimos de socorrer quem precisa; omitimos nossa mão, nossa opinião contra o mal… nos omitimos e não nos engajamos no combate às causas da pobreza, da fome, da exclusão… E achamos que somos melhores que os outros, pois nossas orações são mais fervorosas. Será que ainda não nos demos conta de que exibimos e nos exibimos com terços feito penduricalhos e camisetas de Nossa Senhora… apenas para mostrar nossa piedade! E pensamos que nossas orações são suficientes para salvar o mundo! Nossos atos e omissões!

Realmente, Jesus veio para “expiar os pecados do povo”. E esses “pecados do povo” não está na falta de oração, pois as pessoas rezam; não se limita ao moralismo em relação a tais roupas e comportamentos permissivos, pois o que importa é o coração amoroso; não se limita a dar esmola, pois só isso não contribui para eliminar as causas da pobreza…

Realmente Jesus veio para “expiar os pecados do povo”. Por isso Simeão disse a seu respeito: "Este menino vai ser causa tanto de queda como de reerguimento para muitos em Israel. Ele será um sinal de contradição. Assim serão revelados os pensamentos de muitos corações. (Lc 2,34-35). Vão cair os que não se põem a serviço do amor solidário; vão se reerguer aqueles que desejam aparar as garras do mal, refazendo o mundo com base no amor.

Realmente Jesus veio para “expiar os pecados do povo”. Por isso ele é sinal de contradição: ele não veio para compactuar com quem gera dor e sofrimento; ele veio para a libertação por isso ele é “luz para iluminar as nações”.




Neri de Paula Carneiro.

Mestre em educação, filósofo, teólogo, historiador

Outros escritos do autor:

Filosofia, História, Religião: https://www.webartigos.com/index.php/autores/npcarneiro;

Literatura: https://www.recantodasletras.com.br/autores/neripcarneiro.

segunda-feira, dezembro 23, 2024

Sagrada Família: para se cumprir!

Reflexões baseadas em:

Eclo 3,3-7.14-17a; Cl 3,12-21; Mt 2,13-15.19-23



Todos os que, de alguma forma, tiveram contato com os ensinamentos da Igreja, pelo menos uma vez ouviram os mandamentos. E um desses mandamentos usa estas palavras, dizendo que o filho deve “honrar pai e mãe”.

Com certeza, muitos de nós já ouvimos a afirmação de que a honra de um pai (e da mãe também!) é ver a honradez do filho.

Portanto, não vai soar estranha a afirmação de que a honra do pai, da mãe e dos filhos é um dom divino. E, se quisermos dizer de outra forma, podemos falar que a família é um dom divino para que todos cresçam diante de Deus e manifestem à sociedade esse crescimento, essa harmonia, essa capacidade de ser para o outro.

A isso nos convidam as leituras de hoje. Essas são as palavras de Mateus Mt 2,13-15.19-23, quando orienta José a cuidar e preservar o bem estar de sua família; é o que orienta Paulo falando à comunidade dos colossenses (Cl 3,12-21); é o antigo, mas atual ensinamento do Eclesiástico (Eclo 3,3-7.14-17a).

Notemos como são sábias as palavras do Eclesiástico: “Quem honra o seu pai, terá alegria com seus próprios filhos; e, no dia em que orar, será atendido” (Eclo 3,6). Trata-se de um processo de interação completo: o filho mantendo a sintonia amorosa com os pais terá, como consequência filhos que lhe trarão alegria. E, essa alegria nascendo do respeito, do amor, da alegria, da entrega… refletem o amor de Deus. Tanto isso é verdade que nosso povo criou a expressão popular: “todo que você faz a alguém, volta pra você”. Quando fazemos o bem, recebemos algo bom, como recompensa. E esse retorno, vem como dom de Deus.

Essa relação amorosa, harmoniosa, interativa e recíproca, reflete a afirmação de Paulo, mostrando como é que se manifesta o amor de Deus: “Vós sois amados por Deus, sois os seus santos eleitos. Por isso, revesti-vos de sincera misericórdia, bondade, humildade, mansidão e paciência, suportando-vos uns aos outros e perdoando-vos mutuamente” (Col 3,12-13). É como se o apóstolo estivesse dizendo: as pessoas transmitem aquilo que têm de mais importante: quem está repleto do amor de Deus transborda em amor, bondade, misericórdia, mansidão, … Porém, e infelizmente, aqueles que não se deixam preencher nem tocar pelo amor de Deus acabam sendo portadores da discórdia, desunião, inveja…

A presença do amor de Deus constrói a comunidade e o seu oposto a destrói. O amor de Deus ajuda a estreitar os laços da família e em sua ausência as famílias se desintegram. O amor de Deus, na vida das pessoas, faz com os indivíduos sejam altruístas e o fechamento ao amor evidencia pessoas egoístas, mesquinhas, vazias, melancólicas, promotoras de discórdias…

Pensando nisso, vale a pena cada um de nós analisarmos nossas atitudes. Perguntando-nos: como agimos em nossa relação com as outras pessoas?

E aqui podemos ter como exemplo a Sagrada Família. Na narrativa de Mateus, assistimos os transtornos e, com certeza, as dificuldades, enfrentadas por José, Maria e Jesus Menino. Mas em nenhum momento vemos uma reação irada de José. Ele não reclama por estar sendo perseguido. Ele apenas e fielmente segue as orientações do anjo. Fugiu para o Egito, para proteger o menino e a família; voltou do Egito para se reinstalar em sua terra; apressadamente mudou os planos para não correr o risco de ser ameaçado pelos herdeiros do perseguidor…

É claro que Mateus justifica toda essa trajetória da Família Sagrada: afirma que assim ocorreu “para se cumprir” (Mt 2,15.26). Entretanto, a trajetória humana dessa família poderia gerar reclamação e irritação, poderia gerar descontentamento pelo desconforto; poderia ocorrer que José dissesse a Maria algo como: “viu o que Deus está nos aprontando?”; ou então: “Tudo isso porque você aceitou a missão de ser mãe de Deus”; ou ainda “não vamos fugir, se o filho é mesmo de Deus, Deus vai cuidar dele!” Mas José não agiu assim! Ele era uma pessoa honrada!

José assumiu a missão e a levou a cabo do começo ao fim; Maria assumiu uma tarefa e a cumpriu plenamente. O casal sagrado aceitou o desafio, sofreu as consequências, mas quem disse que a vida é fácil?

Por essas e outras tantas é que celebramos a Sagrada Família: poderia ter sido feito diferente, mas essa família cumpriu com seu papel de nos dar o Salvador.

Neri de Paula Carneiro

Mestre em educação, filósofo, teólogo, historiador

Outros escritos do autor:

Filosofia, História, Religião: https://www.webartigos.com/index.php/autores/npcarneiro;

Literatura: https://www.recantodasletras.com.br/autor.php?id=220242

quinta-feira, dezembro 05, 2024

Imaculada Conceição: A mulher que tu me deste

Reflexões baseadas em: Gn 3,9-15.20; Ef 1,3-6.11-12; Lc 1,26-38





Na celebração da Imaculada Conceição, a Igreja nos propõe algumas leituras intrigantes e instigantes, como esta de Gênesis (Gn 3,9-15.20), sobre a conduta de Adão, Eva e a Serpente enquanto viviam no paraíso.

Outro texto que também nos interpela é o discurso de Paulo, escrevendo à comunidade de Éfeso (Ef 1,3-6.11-12). Um trecho no qual o apóstolo mostra a intensidade do amor de Deus.

Por quê essas passagens chamam nossa atenção?

Por que, se na narrativa de Gênesis contemplamos a ação humana transgredindo a norma divina, por seu lado Paulo mostra a gratuidade da ação divina vindo ao encontro da humanidade. Contraposta à transgressão humana, nas origens, vemos a gratuidade do amor divino chamando-nos à santidade, como afirma Paulo: Deus “nos escolheu, antes da fundação do mundo, para que sejamos santos e irrepreensíveis sob o seu olhar, no amor” (Ef 1,4).

Assim temos, de um lado, a conduta dos três personagens do Gênesis e de outro a proposta de Paulo; de um lado a rebeldia/desobediência para com Deus e seus preceitos e do outro o apóstolo mostrando que o Deus trindade nos ama, pois o Pai “nos abençoou com toda a bênção do seu Espírito em virtude de nossa união com Cristo, no céu” (Ef 1,3).

Outro detalhe se evidencia na narrativa do mito da criação. O homem, a mulher e a serpente transgridem a ordem divina, mas nenhum deles assume a responsabilidade de seu ato: o homem não nega seu ato, mas afirma que o praticou, primeiro por causa de Deus e depois por influência da mulher. Atribui a Deus a causa do seu ato, como quem diz: “Deus, você é o responsável pelo meu erro. Comi a fruta por causa da “mulher que TU me deste” (Gn 3,12). Em sua defesa, o homem argumenta nestes termos: “Uma vez que eu comi o fruto proibido por causa da mulher e quem colocou a mulher do meu lado foste tu, então tu és o culpado pelo meu erro”. E vai adiante, dizendo: “ela que me ofereceu, não fui eu quem pediu”.

Ou seja, o infrator não nega o ato, mas foge da responsabilidade culpabilizando a outros. O mesmo fez a mulher: confessa que se deixou levar pelo ardil da serpente: “A serpente enganou-me e eu comi” (Gn 3,13). Ambos se esquecem de que são livres para dizer não! Da mesma forma que foram livres para dizer si!

Em razão de seu ato a serpente foi punida: tornou-se um ser maldito, rastejante e inimigo. Vai ferir e ser ferida, na relação com o ser humano (Gn 3, 14-15). Porém e apesar de toda essa rede de transgressão Paulo chama nossa atenção para um detalhe: o amor de Deus não tem limites e mesmo considerando a transgressão humana; mesmo diante da ingratidão humana, permanece o amor divino. Pode ter se iniciado um processo de perda da graça, devido à fraqueza humana, mas permanece o convite para alimentar a esperança: “fomos predestinados a sermos, para o louvor de sua glória, os que de antemão colocaram a sua esperança em Cristo” (Ef 1,11-12).

Porém, a singularidade da Palavra de Deus nos mostra o passo seguinte. No primeiro ato, a ação do primeiro casal foi causa da decadência; o homem acusa Deus e a mulher pela sua queda; a mulher acusa a serpente, por tê-la enganado; e a serpente recebe a maldição… Mas a ação de Deus não se limita às fraquezas humanas. Por isso resgata o ser humano integral resgatando o protagonismo da mulher. E assim, Maria a mãe de Jesus entra em cena.

E entra em cena para mostrar o que a mulher do Gênesis não conseguiu mostrar. Ou mostrou só uma parte daquilo que é a proposta divina para a mulher.

Deve-se notar, entretanto, que apesar de ter se deixado levar pela trama da serpente, ela não perdeu a sintonia com o Senhor e por isso mereceu o título de “mãe de todos os viventes” (Gn 3,20). Porém Maria está num outro patamar: ela surge em cena sob a sombra do Espírito (Lc 1,35), numa proposta para ser a mãe de Deus (Lc 1,31-32).

O fato é que Maria entra em cena para corrigir o “tropeço” de Eva. Enquanto Eva oferece o fruto proibido, Maria oferece o Filho de Deus. Enquanto Eva perde o paraíso Maria é a “cheia de graça” (Lc 1,28)que vai dar à luz o “filho do Altíssimo”. Enquanto Eva reconhece que foi enganada pela serpente, Maria pondera: “como será isso?” e se coloca à disposição: “eis a serva do Senhor”. Assim temos Eva que se deixou enganar e com sua transgressão disse não a Deus para sim à serpente; por seu lado Maria diz não a possíveis projetos pessoais de uma donzela para dizer sim a Deus: faça-se em mim segundo tua palavra” (Lc 1,38).

É assim que a Igreja olha para a mãe de Jesus. Como aquela que encontrou “graça diante de Deus”; como aquela que é “cheia de graça” ao ponto de conceber e dar à luz; como aquela que tem consciência de sua situação para argumentar “não conheço homem algum”; e, principalmente, como aquela que, consciente das dificuldades a serem superadas, aceita do desafio: “faça-se em mim…!”

No dia em que a Igreja celebra a Imaculada Conceição da Mãe de Jesus, também nos propõe a reflexão sobre esse contraste: os personagens do paraíso o perderam porque preferiram aceitar a proposta da serpente; por seu lado, Maria de fora do Paraíso fez-se mãe daquele que pode nos conduzir de volta a ele. Adão tenta se esquivar de sua responsabilidade, falando que seu erro se deve à “mulher que tu me deste”, culpando ao próprio Criador, que o fez livre; por seu lado, Maria sem maiores pretensões aceita o desafio.

E nós, ao contrário de Adão, podemos dizer que essa “mulher que tu nos deste” é, para nós, o grande modelo para dizer sim a Deus…





Neri de Paula Carneiro

Mestre em Educação, filósofo, teólogo, historiador

Outros escritos do autor:

Filosofia, História, Religião: https://www.webartigos.com/index.php/autores/npcarneiro;

Literatura: https://www.recantodasletras.com.br/autores/neripcarneiro.

A Basílica do Latrão e o santuário de Deus

Reflexões baseadas em: Ezequiel 47,1-2.8-9.12; 1 Coríntios 3,9c-11.16-17; João 2,13-22 Desde muito cedo aprendemos que Deus está em todo ...