segunda-feira, dezembro 23, 2024

Sagrada Família: para se cumprir!

Reflexões baseadas em:

Eclo 3,3-7.14-17a; Cl 3,12-21; Mt 2,13-15.19-23



Todos os que, de alguma forma, tiveram contato com os ensinamentos da Igreja, pelo menos uma vez ouviram os mandamentos. E um desses mandamentos usa estas palavras, dizendo que o filho deve “honrar pai e mãe”.

Com certeza, muitos de nós já ouvimos a afirmação de que a honra de um pai (e da mãe também!) é ver a honradez do filho.

Portanto, não vai soar estranha a afirmação de que a honra do pai, da mãe e dos filhos é um dom divino. E, se quisermos dizer de outra forma, podemos falar que a família é um dom divino para que todos cresçam diante de Deus e manifestem à sociedade esse crescimento, essa harmonia, essa capacidade de ser para o outro.

A isso nos convidam as leituras de hoje. Essas são as palavras de Mateus Mt 2,13-15.19-23, quando orienta José a cuidar e preservar o bem estar de sua família; é o que orienta Paulo falando à comunidade dos colossenses (Cl 3,12-21); é o antigo, mas atual ensinamento do Eclesiástico (Eclo 3,3-7.14-17a).

Notemos como são sábias as palavras do Eclesiástico: “Quem honra o seu pai, terá alegria com seus próprios filhos; e, no dia em que orar, será atendido” (Eclo 3,6). Trata-se de um processo de interação completo: o filho mantendo a sintonia amorosa com os pais terá, como consequência filhos que lhe trarão alegria. E, essa alegria nascendo do respeito, do amor, da alegria, da entrega… refletem o amor de Deus. Tanto isso é verdade que nosso povo criou a expressão popular: “todo que você faz a alguém, volta pra você”. Quando fazemos o bem, recebemos algo bom, como recompensa. E esse retorno, vem como dom de Deus.

Essa relação amorosa, harmoniosa, interativa e recíproca, reflete a afirmação de Paulo, mostrando como é que se manifesta o amor de Deus: “Vós sois amados por Deus, sois os seus santos eleitos. Por isso, revesti-vos de sincera misericórdia, bondade, humildade, mansidão e paciência, suportando-vos uns aos outros e perdoando-vos mutuamente” (Col 3,12-13). É como se o apóstolo estivesse dizendo: as pessoas transmitem aquilo que têm de mais importante: quem está repleto do amor de Deus transborda em amor, bondade, misericórdia, mansidão, … Porém, e infelizmente, aqueles que não se deixam preencher nem tocar pelo amor de Deus acabam sendo portadores da discórdia, desunião, inveja…

A presença do amor de Deus constrói a comunidade e o seu oposto a destrói. O amor de Deus ajuda a estreitar os laços da família e em sua ausência as famílias se desintegram. O amor de Deus, na vida das pessoas, faz com os indivíduos sejam altruístas e o fechamento ao amor evidencia pessoas egoístas, mesquinhas, vazias, melancólicas, promotoras de discórdias…

Pensando nisso, vale a pena cada um de nós analisarmos nossas atitudes. Perguntando-nos: como agimos em nossa relação com as outras pessoas?

E aqui podemos ter como exemplo a Sagrada Família. Na narrativa de Mateus, assistimos os transtornos e, com certeza, as dificuldades, enfrentadas por José, Maria e Jesus Menino. Mas em nenhum momento vemos uma reação irada de José. Ele não reclama por estar sendo perseguido. Ele apenas e fielmente segue as orientações do anjo. Fugiu para o Egito, para proteger o menino e a família; voltou do Egito para se reinstalar em sua terra; apressadamente mudou os planos para não correr o risco de ser ameaçado pelos herdeiros do perseguidor…

É claro que Mateus justifica toda essa trajetória da Família Sagrada: afirma que assim ocorreu “para se cumprir” (Mt 2,15.26). Entretanto, a trajetória humana dessa família poderia gerar reclamação e irritação, poderia gerar descontentamento pelo desconforto; poderia ocorrer que José dissesse a Maria algo como: “viu o que Deus está nos aprontando?”; ou então: “Tudo isso porque você aceitou a missão de ser mãe de Deus”; ou ainda “não vamos fugir, se o filho é mesmo de Deus, Deus vai cuidar dele!” Mas José não agiu assim uma. Ele era uma pessoa honrada!

José assumiu a missão e a levou a cabo do começo ao fim; Maria assumiu uma tarefa e a cumpriu plenamente. O casal sagrado aceitou o desafio, sofreu as consequências, mas quem disse que a vida é fácil?

Por essas e outras tantas é que celebramos a Sagrada Família: poderia ter feito diferente, mas essa família cumpriu com seu papel de nos dar o Salvador.

Neri de Paula Carneiro

Mestre em educação, filósofo, teólogo, historiador

Outros escritos do autor:

Filosofia, História, Religião: https://www.webartigos.com/index.php/autores/npcarneiro;

Literatura: https://www.recantodasletras.com.br/autor.php?id=220242

quinta-feira, dezembro 05, 2024

Imaculada Conceição: A mulher que tu me deste

Reflexões baseadas em: Gn 3,9-15.20; Ef 1,3-6.11-12; Lc 1,26-38





Na celebração da Imaculada Conceição, a Igreja nos propõe algumas leituras intrigantes e instigantes, como esta de Gênesis (Gn 3,9-15.20), sobre a conduta de Adão, Eva e a Serpente enquanto viviam no paraíso.

Outro texto que também nos interpela é o discurso de Paulo, escrevendo à comunidade de Éfeso (Ef 1,3-6.11-12). Um trecho no qual o apóstolo mostra a intensidade do amor de Deus.

Por quê essas passagens chamam nossa atenção?

Por que, se na narrativa de Gênesis contemplamos a ação humana transgredindo a norma divina, por seu lado Paulo mostra a gratuidade da ação divina vindo ao encontro da humanidade. Contraposta à transgressão humana, nas origens, vemos a gratuidade do amor divino chamando-nos à santidade, como afirma Paulo: Deus “nos escolheu, antes da fundação do mundo, para que sejamos santos e irrepreensíveis sob o seu olhar, no amor” (Ef 1,4).

Assim temos, de um lado, a conduta dos três personagens do Gênesis e de outro a proposta de Paulo; de um lado a rebeldia/desobediência para com Deus e seus preceitos e do outro o apóstolo mostrando que o Deus trindade nos ama, pois o Pai “nos abençoou com toda a bênção do seu Espírito em virtude de nossa união com Cristo, no céu” (Ef 1,3).

Outro detalhe se evidencia na narrativa do mito da criação. O homem, a mulher e a serpente transgridem a ordem divina, mas nenhum deles assume a responsabilidade de seu ato: o homem não nega seu ato, mas afirma que o praticou, primeiro por causa de Deus e depois por influência da mulher. Atribui a Deus a causa do seu ato, como quem diz: “Deus, você é o responsável pelo meu erro. Comi a fruta por causa da “mulher que TU me deste” (Gn 3,12). Em sua defesa, o homem argumenta nestes termos: “Uma vez que eu comi o fruto proibido por causa da mulher e quem colocou a mulher do meu lado foste tu, então tu és o culpado pelo meu erro”. E vai adiante, dizendo: “ela que me ofereceu, não fui eu quem pediu”.

Ou seja, o infrator não nega o ato, mas foge da responsabilidade culpabilizando a outros. O mesmo fez a mulher: confessa que se deixou levar pelo ardil da serpente: “A serpente enganou-me e eu comi” (Gn 3,13). Ambos se esquecem de que são livres para dizer não! Da mesma forma que foram livres para dizer si!

Em razão de seu ato a serpente foi punida: tornou-se um ser maldito, rastejante e inimigo. Vai ferir e ser ferida, na relação com o ser humano (Gn 3, 14-15). Porém e apesar de toda essa rede de transgressão Paulo chama nossa atenção para um detalhe: o amor de Deus não tem limites e mesmo considerando a transgressão humana; mesmo diante da ingratidão humana, permanece o amor divino. Pode ter se iniciado um processo de perda da graça, devido à fraqueza humana, mas permanece o convite para alimentar a esperança: “fomos predestinados a sermos, para o louvor de sua glória, os que de antemão colocaram a sua esperança em Cristo” (Ef 1,11-12).

Porém, a singularidade da Palavra de Deus nos mostra o passo seguinte. No primeiro ato, a ação do primeiro casal foi causa da decadência; o homem acusa Deus e a mulher pela sua queda; a mulher acusa a serpente, por tê-la enganado; e a serpente recebe a maldição… Mas a ação de Deus não se limita às fraquezas humanas. Por isso resgata o ser humano integral resgatando o protagonismo da mulher. E assim, Maria a mãe de Jesus entra em cena.

E entra em cena para mostrar o que a mulher do Gênesis não conseguiu mostrar. Ou mostrou só uma parte daquilo que é a proposta divina para a mulher.

Deve-se notar, entretanto, que apesar de ter se deixado levar pela trama da serpente, ela não perdeu a sintonia com o Senhor e por isso mereceu o título de “mãe de todos os viventes” (Gn 3,20). Porém Maria está num outro patamar: ela surge em cena sob a sombra do Espírito (Lc 1,35), numa proposta para ser a mãe de Deus (Lc 1,31-32).

O fato é que Maria entra em cena para corrigir o “tropeço” de Eva. Enquanto Eva oferece o fruto proibido, Maria oferece o Filho de Deus. Enquanto Eva perde o paraíso Maria é a “cheia de graça” (Lc 1,28)que vai dar à luz o “filho do Altíssimo”. Enquanto Eva reconhece que foi enganada pela serpente, Maria pondera: “como será isso?” e se coloca à disposição: “eis a serva do Senhor”. Assim temos Eva que se deixou enganar e com sua transgressão disse não a Deus para sim à serpente; por seu lado Maria diz não a possíveis projetos pessoais de uma donzela para dizer sim a Deus: faça-se em mim segundo tua palavra” (Lc 1,38).

É assim que a Igreja olha para a mãe de Jesus. Como aquela que encontrou “graça diante de Deus”; como aquela que é “cheia de graça” ao ponto de conceber e dar à luz; como aquela que tem consciência de sua situação para argumentar “não conheço homem algum”; e, principalmente, como aquela que, consciente das dificuldades a serem superadas, aceita do desafio: “faça-se em mim…!”

No dia em que a Igreja celebra a Imaculada Conceição da Mãe de Jesus, também nos propõe a reflexão sobre esse contraste: os personagens do paraíso o perderam porque preferiram aceitar a proposta da serpente; por seu lado, Maria de fora do Paraíso fez-se mãe daquele que pode nos conduzir de volta a ele. Adão tenta se esquivar de sua responsabilidade, falando que seu erro se deve à “mulher que tu me deste”, culpando ao próprio Criador, que o fez livre; por seu lado, Maria sem maiores pretensões aceita o desafio.

E nós, ao contrário de Adão, podemos dizer que essa “mulher que tu nos deste” é, para nós, o grande modelo para dizer sim a Deus…





Neri de Paula Carneiro

Mestre em Educação, filósofo, teólogo, historiador

Outros escritos do autor:

Filosofia, História, Religião: https://www.webartigos.com/index.php/autores/npcarneiro;

Literatura: https://www.recantodasletras.com.br/autores/neripcarneiro.

segunda-feira, novembro 25, 2024

ADVENTO: Celebrar a esperança.

1- O tempo da Igreja



O tempo da Igreja, também chamado de Tempo Litúrgico, é diferente do tempo cotidiano em que se insere o dia a dia de nossas vidas. Nossas vidas seguem o curso do ano civil, de janeiro a dezembro. Não é assim o Tempo Litúrgico.

Vamos, portanto, procurar entender um pouquinho mais o Tempo Litúrgico ou o Ano Litúrgico. Tempo esse no qual celebramos os mistérios de nossa fé no cotidiano da Igreja. Um tempo, ao longo de um ano (por isso Ano Litúrgico), no qual podemos acompanhar os passos de Jesus de Nazaré, desde o início, no ventre da mãe, até a ressurreição. Tempo no qual somos convidados a aprender com seu exemplo e a seguir seus passos e, como diz a música tentar “fazer o que Jesus fazia”.

A intenção deste breve comentário é entender melhor o tempo litúrgico do ADVENTO uma vez que é aqui que se inicia o ANO LITÚRGICO.

Estamos, portanto em busca da resposta à pergunta: o que é ou o que significa ADVENTO? Para isso teremos presente o que a Igreja nos ensina: ao celebrar o Advento somos convidados a refletir e a nos perguntar como anda nosso preparação para o Advento Escatológico? E, ao mesmo tempo, somos convidados a refletir sobre a encarnação do Filho de Deus, ou seja, como estamos preparando nosso Advento para o Natal do Senhor?

Feito isso, em seguida, apresentaremos sugestões de homilias ou roteiros para as homilias de cada um dos domingos do Advento, de acordo com as leituras dos anos A, B e C.

Vale lembrar que anos A, B e C referem-se às narrativas do Evangelho de acordo com os textos de Mateus, Marcos e Lucas. Ou seja, nas celebrações da Eucaristia dominical (a missa), no ano A, os trechos do evangelho são selecionados prioritariamente seguindo a narrativa de Mateus. No ano B, a Igreja organiza a liturgia ao redor da narrativa de Marcos e no ano C a Igreja prioriza a narrativa de Lucas.




2- O ano Litúrgico


Quando queremos entender melhor o Advento, precisamos ter presente algumas características da estrutura do Ano Litúrgico.

Vejamos o que nos ensina o Cardeal dom Orani João Tempesta, sobre o Ano Litúrgico:

O ano litúrgico como um todo, dentre os seus tempos litúrgicos, gira em torno de uma única pessoa: Jesus Cristo. O centro do ano litúrgico é a Páscoa e todo o ano litúrgico gira em torno do mistério da paixão, morte e ressurreição de Jesus. (TEMPESTA, 2023)

Ao longo de um ano (que geralmente vai do início de dezembro até final de novembro do ano seguinte) a Igreja nos convida a acompanhar os passos de Jesus de Nazaré. Ou seja, ao longo de um Ano Litúrgico a Igreja nos convida a acompanhar os passos do Nazareno seguindo a narrativa dos textos dos Evangelistas Mateus (ano A), Marcos (ano B) e Lucas (ano C). E isso é feito desde um tempo de preparação, o Advento. Essa preparação culmina com o nascimento de Jesus (o Natal) e as celebrações ligadas ao Natal (o Tempo do Natal).

Esses três momentos a Igreja denomina de Ciclo do Natal. E o ciclo do Natal inicia-se, justamente com o Advento.

A vida pública de Jesus de Nazaré termina com sua morte e ressurreição, é a celebração da Páscoa. Esse período também é organizado em três partes: a preparação, que corresponde à Quaresma. A semana santa centralizada na Páscoa da Ressurreição e um período posterior, ou tempo pascal que termina com a festa da Ascensão do Senhor e o Pentecostes.

Esses três momentos a Igreja denomina de Ciclo da Páscoa.

E o restante do Ano Litúrgico?

Logo após o Ciclo do Natal há um breve período de algumas semanas, antes da quaresma, que corresponde ao início do Tempo Comum.

São algumas semanas que se interrompem para a celebração do Ciclo da Páscoa. Logo após as celebrações pascais reinicia-se o Tempo Comum, prolongando-se até o Advento. É a segunda parte do Tempo Comum.

O Tempo Comum é o tempo litúrgico mais extenso, sendo 34 semanas, divididas em duas partes. A primeira parte inicia após a Festa do Batismo do Senhor e vai até a terça-feira de Carnaval. A segunda parte inicia após a festa de Pentecostes. A cor predominante desse tempo é o verde, que simboliza a esperança, a esperança na vinda do reino de Deus. Durante o Tempo Comum, acompanhamos Jesus em sua vida pública e percorrendo Israel até chegar em Jerusalém e ser aclamado como Rei.

O Tempo Comum encerra o ano litúrgico com a Solenidade de Cristo Rei e predomina durante quase todo o ano. Durante o Tempo Comum, vivemos a esperança da chegada do reino de Deus e da segunda vinda de Cristo. Vivemos a expectativa do “já” e “ainda não”, ou seja, construir o Reino de Deus aqui na terra para contemplá-lo de maneira definitiva no céu. (TEMPESTA, 2023)

Se nos ciclos do Natal e da Páscoa celebramos dois momentos fortes da vida de Jesus: sua entrada em nosso mundo, no Natal e seu retorno ao Pai, na Páscoa, ao longo das mais de trinta semanas do Tempo Comum celebramos, acompanhamos e aprendemos as lições que Jesus de Nazaré transmite no cotidiano da sua vida, convivendo com pessoas simples, pobres e enfermas que o buscavam querendo alívio para suas dores e esperança para suas vidas. Esse percurso, com Jesus de Nazaré é feito ao longo de três anos, acompanhando e de acordo com as narrativas de Mateus Marcos e Lucas (anos A, B, C). Em momentos específicos a Igreja também insere narrativas de João.

Ao final do Ano C volta-se ao Ano A, depois o B, e assim se constitui o tempo litúrgico. Quase sempre se representa o ano litúrgico por um círculo no qual se inserem os ciclos de Natal e Páscoa e os dois momentos do tempo comum. Entretanto, e para sermos fiéis ao ensinamento litúrgico, em vez de um círculo, deveríamos usar uma espiral, pois a proposta da liturgia, e de toda a vida da Igreja é que estejamos sempre em processo de crescimento espiritual e essa crescimento pode ser melhor representado por uma espiral litúrgica.

Essa dinâmica não têm apenas a finalidade de nos apresentar as narrativas dos evangelistas ao longo de três anos. Vai além: há nisso, também, uma finalidade catequética, ou seja, apresentar-nos diferentes aspectos da missão de Jesus; mostrar como essa missão é transmitida à Igreja; convocar-nos a assumir a missão uma vez que a Igreja prolonga-se em nossas vidas.

Uma missão que nos convida a, além de levar adiante o ensinamento de Jesus, viver de acordo com seu exemplo, a fim de colaborarmos efetivamente com a instalação do Reino de Deus entre nós. Uma missão que nos convida a colaborar na reestruturação das relações entre as pessoas, seguindo o mandamento do amor. Uma missão que, por ser anunciadora do Reino, procura as causas das dores do povo, buscando eliminá-las, como Jesus fazia. Uma missão que busca as causas das desigualdades que separam as pessoa, passando a afirmar, como ensina Paulo, que “Deus não faz acepção de pessoas” (Rm 2,11).

Na vida de cada pessoa e na vida do mundo a Igreja tem por missão eliminar as causa das divergências… plantando as sementes do Reino e, com isso, colaborar com seu crescimento entre nós, enquanto esperamos o glorioso retorno do Senhor.



3- O Advento celebração da esperança


Iniciemos indagando o que é ou o que significa o Advento?

Uma primeira resposta pode ser: O Advento representa e marca o início do Ano Litúrgico. Ou então, é uma preparação para o Natal.

Entretanto, isso não responde adequadamente à pergunta e leva a questão para outro nível: por que a Igreja inicia o Ano Litúrgico com o Advento? O Advento é preparação apenas para o Natal?

A questão, como se vê, vai muito além do significado da palavra. Literalmente, Advento significa esperança, preparação, tempo de espera e pode ser entendido, também, como chegada. Mas, para a liturgia da Igreja é muito mais.

Algo a mais, por exemplo, é o vínculo entre o Advento e a Esperança. De fato, o Advento envolve a organização litúrgica da Igreja; está associado à alegria do Natal, mas também está associado à expectativa da Parusia. Nossa fé cristã nos ensina a também nos prepararmos para o retorno glorioso do Senhor. Daí a afirmação de que

a liturgia do tempo do advento contém uma autêntica espiritualidade litúrgica, centrada na vinda do Senhor e sua espera; a vinda do Senhor na carne e no fim dos tempos, assim como sua constante presença na Igreja que é prefigurada de modo particular em Maria, virgem, mãe da esperança. (PARANHOS, 2021, grifo no original)

Como se vê, o Advento e a Esperança estão associados porque neste tempo litúrgico celebramos algo que ainda não se concretizou: o “ainda não” do espírito do Natal é o que devemos ao Senhor. Embora a dimensão natalina, referente ao nascimento do Deus Criança já tenha ocorrido, o significado e o alcance desse fato ainda está por acontecer.

O fato de Deus ter vindo ao nosso encontro cobra de nós cristãos o mesmo gesto de ir ao encontro do irmão. Por isso, a dimensão da Esperança. A Igreja ainda alimenta a esperança de que o gesto divino não tenha sido em vão e que os cristãos realizem e ampliem esse gesto de solidariedade, de amor, de altruísmo, de cooperação… de ir ao outro… como Deus veio a nós, encarnando-se em Maria!

Entrando onde ela estava, disse-lhe: “Alegra-te, cheia de graça, o Senhor está contigo!” Ela ficou intrigada com essa palavra e pôs-se a pensar qual seria o significado da saudação. O Anjo, porém, acrescentou: “Não temas, Maria! Encontraste graça junto de Deus. Eis que conceberás no teu seio e darás à luz um filho, e tu o chamarás com o nome de Jesus. Ele será grande, será chamado Filho do Altíssimo, e o Senhor Deus lhe dará o trono de Davi, seu pai.” (Lc 1,28-32)

Concretamente assistimos alguns exageros e, em muitos casos, completa distorção em relação ao Natal. Por exemplo, exageramos nos festejos natalinos: nas luzes, nos presentes, na ceia, nas roupas, nos fogos… mas nem sempre damos a mesma ênfase ao personagem central da festa, que é Jesus, o menino anunciado pelos profetas, esperado pelo povo, e que se manifesta no Natal conforme nos mostram as narrativas dos evangelistas (Mt 2,1-2; Lc 2,1-11).

Esse menino apresenta-se, pobre ente os pobres e marginalizados, para afirmar a importância não do luxo ostensivo, mas da simplicidade do gesto da entrega. Entrega que se inicia no Natal e tem seu ponto máximo na Páscoa… porém esse gesto de doação fica em segundo plano, pois nossa sociedade prefere os festejos ao motivo da festa, uma vez que “o povo pensa que em pacotes compra a paz” como diz a letra daquela música antiga. Por essa e outras, podemos dizer que o Natal é descaracterizado porque o Advento não é celebrado em sua plenitude.

Seríamos muito pobres se reduzíssemos o Advento, simplesmente, a um tempo de preparação para a festa do Natal. O Advento, tempo de espera, é baseado na expectativa do Reino e a nossa atitude básica é acender e renovar em nós esse desejo e esse ânimo. Num tempo marcado pelo consumo, é preciso que afirmemos profeticamente a esperança.

No âmbito pessoal, intensificando o desejo do coração e retomando o sentido da vida. Mas as esperanças são também coletivas: é o sonho do povo por justiça e paz – “fundir suas espadas, para fazer bicos de arado, fundir suas lanças, para delas fazer foices” (Is 2,4). (DAHER, 2020).

Algo semelhante nos afirma o padre W. Paranhos (2021), mostrando que o advento aponta para o Natal, mas também aponta para algo ainda maior: o retorno glorioso.

O Advento é a chave para entender a celebração das festas da manifestação do Senhor em carne e osso: os fatos que imediatamente precederam o nascimento de Jesus Cristo, seu nascimento em Belém, a demonstração aos Magos, o batismo no Jordão…. Compreendidos em sua inteligência espiritual, os textos litúrgicos do Advento não expressam apenas a expectativa de um nascimento já ocorrido na história de uma vez por todas, mas sim a expectativa da vinda definitiva de Cristo em sua glória. (PARANHOS, 2021, grifo no original)

Porém, simultaneamente ao aspecto natalino o Advento tem uma dimensão escatológica. Além do Natal, o Advento aponta para a Escatologia uma vez que este evento da glória de Deus “ainda não” se concretizou. Embora Jesus tenha antecipado uma amostra dessa glória, na cena da transfiguração (Lc 9,28-36; Mt 17,1-9; Mc 9,2-8; 2Pd 1,16-18), seu retorno glorioso ainda está por vir.

Isso nos orientou o Papa Paulo VI, ao aprovar as novas Normas Universais do Ano Litúrgico e o Novo Calendário Romano Geral (NUALC), em 1969. Após as explicações sobre a necessidade de reorganização litúrgica, propostas pelo Concílio Vaticano II, o papa aprova as orientações para o Ano Litúrgico. Especificamente sobre o Advento, assim nos orienta:

O Tempo do Advento possui dupla característica: sendo um tempo de preparação para as solenidades do Natal, em que se comemora a primeira vinda do Filho de Deus entre os homens, é também um tempo em que, por meio desta lembrança, voltam-se os corações para a expectativa da segunda vinda do Cristo no fim dos tempos. Por este duplo motivo, o Tempo do Advento se apresenta como um tempo de piedosa e alegre expectativa. (NUALC, 39).

E isso ajuda a acentuar a esperança. Uma esperança que se fundamenta na certeza da fé: da mesma forma que nasceu para caminhar conosco, como Jesus de Nazaré, o Cristo ressuscitado virá na sua glória para nos acolher e conduzir ao Pai. Celebrar o Advento é uma das formas que a Igreja nos orienta a usar para celebrar a esperança. Para isso, entretanto, é necessário que cada cristão assuma a beleza e a alegria dessa expectativa.

Isso para que o Advento não fique escondido nem apagado por traz dos preparativos para o Natal. Preparativos estes que, por vezes, ofuscam o próprio nascimento do Senhor. E se isso ocorre em relação ao Natal, mais ainda com o Advento:

Hoje, devemos reconhecer, que há uma patologia no modo de viver o Advento. Na realidade, o Advento é o único e específico tempo cristão, isto porque um tempo de jejum e penitência como a Quaresma compartilhamos com o Islã, o tempo da Páscoa com o judaísmo, mas a expectativa da vinda do Kyrios é apenas cristã. Só nós cristãos aguardamos o retorno de Cristo prometido: “Sim, eu venho em breve. Amém!” (Ap 22,20). Por essa razão, privar o ano litúrgico de sua dimensão escatológica constitutiva significa subtrair da fé cristã a dimensão da esperança.

Assim compreendido e vivido, o Advento seria um momento muito mais eloquente no ano litúrgico para os fiéis de hoje. Homens e mulheres que lutam para ter esperança porque são privados de toda a esperança, às vezes até incapazes de esperar. Por essa razão, é necessário prestar atenção às liturgias que são muito festivas chegando ao limite do superficial, excessiva em tons e acentos, como se devemos sempre e a qualquer custo fazer festa. (PARANHOS, 2021)


A festa é necessária, com certeza. Mas ela só tem sentido se estiver voltada para o motivo da festa: Jesus de Nazaré, que veio no Natal e o Cristo Glorioso que virá no fim dos tempos. E o Advento é o momento litúrgico para, ao mesmo tempo celebrar essa esperança e comemorar o presente do Natal.

Sendo um tempo propício para celebrar a esperança, o Advento nos convida a celebrar em clima de vigília: aguardando o Natal e o retorno de Jesus, o Cristo glorioso. E isso nos arremete para outro aspecto deste rico tempo litúrgico: um tempo de reconciliação.

O advento tem muitas dimensões! Tem uma dimensão religiosa por ser um tempo de ressignificação da nossa relação com Deus que vem ao encontro da humanidade; tem uma dimensão litúrgica com suas orações próprias, cores, textos e celebrações específicas; tem uma dimensão socioafetiva e familiar por se tratar de um tempo de expectativa do nascimento do Salvador da humanidade dentro do contexto de uma família concreta. (ASSIS, 2021).

Uma das dimensões deste tempo é o convite à reconciliação, à purificação, à penitência. Não se trata de um tempo penitencial, como o da quaresma, mas de alegria pela acolhida. Se vamos receber alguém tão importante como o próprio Deus, então precisamos “arrumar a casa”. Pensando nisso dom Antônio de Assis nos orienta:

Quantas vezes tanto na família, quanto nas comunidades, há conflitos, antipatias, rixas, mágoas, relacionamentos rompidos, hostilidade, indiferença, frieza, fofoca… de problemas interpessoais não resolvidos! A celebração da reconciliação fraterna gera a oportunidade para o retorno da paz, do perdão, da amizade. O caminho para a celebração do Natal deve nos levar à restauração das relações fraternas, caso contrário, não haverá Natal. (ASSIS, 2021)

Nesse clima de acolhida, o Advento nos cobra uma vivência espiritual voltada para a o Deus que vem, mas também para o irmão/comunidade. Por esse motivo, a espiritualidade do Advento cobra de nós uma atitude de penitência e conversão:

A espiritualidade do Advento nos atualiza sobre a vinda hoje do Senhor em nossas vidas. Por isso, seria muito importante termos algumas atitudes neste tempo:

a) Atitude de ESPERA: Alegre chegada e amorosa acolhida. A chegada de uma pessoa importante é sempre bem preparada e desejada. Ora, o Senhor Jesus é a pessoa mais importante em nossa vida e na história. Por isso, a sua chegada merece uma boa e santa preparação.

b) Atitude de RENOVAÇÃO: O Advento é tempo de conversão e penitência. A cor roxa usada na liturgia lembra essa atitude. Jesus se encarna para fazer do homem uma nova criatura. A Igreja recomenda aos fiéis o sacramento da confissão, que é um grande instrumento de renovação espiritual e de preparação para o Natal. (TEMPESTA 2010)


Antes disso, as leituras propostas para o Advento também cobram essa atitude de conversão e reconciliação. Paulo exorta os Tessalonicenses a uma santidade sem defeitos: “confirme os vossos corações numa santidade sem defeito aos olhos de Deus” (1Ts 3,13). João Batista alerta seus ouvintes:

“Convertei-vos, porque o Reino dos Céus está próximo” João foi anunciado pelo profeta Isaías, que disse: “Esta é a voz daquele que grita no deserto: preparai o caminho do Senhor, endireitai suas veredas!”… Os moradores de Jerusalém, de toda a Judeia e de todos os lugares em volta do rio Jordão vinham ao encontro de João. Confessavam os seus pecados e João os batizava no rio Jordão. (Mt 3,2-3.5-6)

Por que a penitência? Para bem acolher o Cristo que vem! Para receber o o Filho de Deus com o coração limpo.

No Advento somos convidados a refletir sobre nossas vidas enquanto aguardamos chegada do Deus menino e, ao mesmo tempo, nos preparar para a vinda definitiva do Senhor. Somos convidados a celebrar a alegria, pois Deus vem ao nosso encontro; e também somos convidados a celebrar a nossa reconciliação com Deus, neste tempo penitencial. Sendo uma celebração de alegria pela expectativa da vinda do Senhor, o Advento, é também tempo de penitência no qual devemos nos purificar para receber o Deus que vem. Tudo isso celebramos no tempo do Advento, um tempo de esperança.



4- Advento: o Natal e a Escatologia


A Igreja é sábia. Quanto a isso, não há dúvidas.

Isso o demonstrou o apóstolo Paulo, em seu discurso aos cidadãos de Atenas, elogiando sua religiosidade ao ponto de erigir um altar ao “deus desconhecido”. O apóstolos aproveitou a crença dos atenienses para anunciar o Cristo Ressuscitado:

Percorrendo a vossa cidade e observando os vossos monumentos sagrados, encontrei até um altar com a inscrição: ‘Ao Deus desconhecido’. Ora bem, o que adorais sem conhecer, isto venho eu anunciar-vos. O Deus que fez o mundo e tudo o que nele existe, o Senhor do céu e da terra, não habita em templos feitos por mãos humanas. Também não é servido por mãos humanas, como se precisasse de alguma coisa, ele que a todos dá vida, respiração e tudo o mais. (At 17,23-25).

Da mesma forma que fez Paulo, lá no início, ao longo dos séculos a Igreja foi assimilando os costumes dos povos para perceber em suas manifestações culturais os sinais das “sementes do verbo” (Ad Gentes 11). E vários elementos de outras culturas foram incorporados à nossa simbologia e liturgia católica. Isso foi feito não para copiar, simplesmente, mas porque a Igreja, em sua sapiência, percebeu nesses elementos manifestações de Deus, afinal o vento do Espírito sopra onde quer (Jo 3,8ss), independentemente das nossas vontades e preferências.

Algo semelhante ocorreu em relação ao Natal. A data exata do nascimento do Salvador perdeu-se nas sombras do tempo. Mas a sabedoria da Igreja percebeu numa celebração pagã, dedicada a outras divindades (deus da luz, deus sol, deus da vida), um sinal para significar a encarnação do Filho que se fez um de nós.

Por esse motivo assimilou dos pagãos a celebração da luz e a identificou com a celebração do nascimento de Jesus, o Sol que a todos ilumina. O culto à divindade pagã, cedeu lugar não só ao culto mas também e principalmente ao Filho de Deus que veio iluminar os povos, como iluminou aos pastores, na narrativa de Lucas:

O anjo do Senhor apareceu-lhes e a glória do Senhor envolveu-os de luz; e ficaram tomados de grande temor. O anjo, porém, lhes disse, ‘não temais! Eis que eu vos anuncio uma grande alegria, que será para todo o povo: nasceu-vos hoje um Salvador, que é o Cristo-Senhor (Lc 2,9-11).

Da mesma forma que iluminou aos magos orientais em sua busca pelo menino Deus, recém nascido: “Onde está o rei dos judeus recém-nascido? Com efeito, vimos a sua estrela no seu surgir e viemos homenageá-lo” (Mt 2,2). E assim nasce a celebração do Natal.

Assim celebramos o Natal, festa da luz, dos caminhos iluminados, do encontro para aqueles que desejam iluminar suas vidas com a luz do Filho que veio para trazer a todos a salvação. E é a luz do Cristo resplandecente que separa as obras de cada um evidenciando o que é bom e o que não é, pois o que é da luz encaminha-se para a luz:

Este é o julgamento: a luz veio ao mundo, mas os homens preferiram as trevas à luz, porque as suas obras eram más. Pois quem faz o mal odeia a luz e não vem para a luz, para que suas obras não sejam demonstradas como culpáveis. Mas quem pratica a verdade vem para a luz, para que se manifeste que suas obras são feitas em Deus (Jo, 3,19-21).

Enquanto celebração litúrgica, o Advento é celebrado nos quatro domingos que antecedem o Natal. Sendo assim, podemos dizer que este é um tempo que está conjugado à celebração do Natal e, portanto, é assim que se deve entender o Advento: como tempo de preparação!

Preparação para o Natal, assim nasceu o Advento: como um período em que a Igreja prepara-se para acolher o Senhor da luz, que vem para o povo que andava nas trevas, de acordo com o que anunciou Isaías: “O povo que andava nas trevas viu uma grande luz, uma luz raiou para os que habitavam uma terra sombria como a da morte” (Is 9,1).

Mas não é só isso.

Também somos convidados, no tempo litúrgico do Advento, a alimentar a esperança na segunda vinda do Cristo Glorioso. Evento previsto para o final dos tempos. É, portanto, assim que se celebra e se caracteriza a esperança do Advento Escatológico. Assim devemos nos preparar ao longo da celebração do Advento, celebrando a esperança, como diz o padre Washington Paranhos:

A liturgia do tempo do advento contém uma autêntica espiritualidade litúrgica, centrada na vinda do Senhor e sua espera; a vinda do Senhor na carne e no fim dos tempos, assim como sua constante presença na Igreja que é prefigurada de modo particular em Maria, virgem, mãe da esperança. (PARANHOS, 2021, grifo no original)

Não é demais insistir, portanto que o Advento deve ser entendido em relação ao Natal. A celebração em que acolhemos o Senhor que se encarnou para se fazer um de nós; da mesma forma que deve ser entendido em relação à Parusia, no final dos tempos, quando Cristo retornará para acolher os seus a fim de que entrem no reino definitivo.

Em razão disso, podemos dizer que há um resplendor próprio do Advento que consiste justamente no fato de ser uma celebração de preparação; uma celebração da esperança.

Mas de onde vem essa ideia de preparação?

Dos costumes de vários povos antigos em seus rituais de acolhida. Vários povos antigos, quando estavam para receber uma autoridade, durante vários dias organizavam a cidade para a festa da chegada. E então ocorria uma recepção festiva para dizer que essa autoridade, por exemplo, o rei, era uma pessoa querida, bem vista e esperada na cidade.

É, também um dado da nossa própria antropologia. Vivemos de expectativas. Basta ver como nos comportamos quando sabemos que vamos receber uma visita, um amigo, um parente…fazemos questão de nos prepararmos: limpamos a casa, preparamos os alimentos, as bebidas… é um clima de festa, pois sabemos que algo bom vai acontece nesse encontro!

Qualquer uma dessas preparações, tando dos povos antigos como nossa expectativa em receber, são atitudes de “ADVENTO”. Isso porque em sua origem, essa palavra significa exatamente isso: preparar o ambiente para receber alguém que está para chegar!

E na celebração dos quatro domingos do Advento o personagem anunciado é Jesus, o menino que vai crescer entre nós até se doar como o Cristo Ressuscitado e que virá, novamente, na sua Parusia.

Observando isso, a Igreja assimilou o modelo e instituiu um período de preparação para o Natal: vai chegar aquele que é o Rei dos reis (Dn 1,14); Sol que nasceu para todos os povos; luz para as nações (Lc 2,29); o Emanoel que não abandona seu povo, pois é um Deus conosco (Is 7,14; Mt 1,23)… E por ser um Deus companheiro, que se faz presente em nossa caminhada, é também o Deus que nos espera, e a toda a criação, para o feliz encontro no final dos tempos… em sua Parusia, em seu regresse para nos acolher em seu Reino de amor.

Em algum lugar, perdido na história, alguém teve a ideia de aproveitar esses costumes pagãos e essa característica antropológica para celebrar o Deus da vida. Foi para celebrar o nascimento de Jesus que nasceu o Advento. Foi para aguardar o retorno de Jesus que passou-se a celebrar o Advento.

Celebrar a preparação é coisa antiga, mas atual celebração do Advento desenvolveu-se a partir do século cinco. Ela tem suas raízes em celebrações que se faziam na região que hoje é a Espanha e a França.

A prática nasceu como um tempo de jejum e abstinência dos catecúmenos (adultos que estavam se preparando para receber os primeiros sacramentos). Essa preparação ocorria por um longo período e terminava próximo das celebrações natalinas. Era, inicialmente chamado de “Quaresma de São Martinho”.

Cerca de dois séculos depois o papa São Gregório Magno (sec VII), oficializou a celebração com uma liturgia específica. Mas somente a partir do século onze a liturgia do Advento ficou organizada em quatro domingos que antecedem o Natal, ou os quatro domingos do Advento, como celebramos atualmente.

E foi a Igreja de Roma incrementou o caráter escatológico. Ou seja, o Advento não só prepara para a vinda do Jesus menino, como é um convite para que o cristão faça sua revisão de vida, olhando para o encontro escatológico com Cristo, que virá no fim dos tempos. E, também aqui, é um tempo de preparação, de purificação, de expectativa… de esperança em relação a algo grandioso que está por acontecer. Por isso nos preparamos e esperamos, e assim fazemos nosso advento.

Alguns dados dessa história nos são apresentados pelo padre Mauro Sérgio da Silva Izabel

Os primeiros traços da existência de um período de preparação para o Natal aparecem no século V, quando São Perpétuo, Bispo de Tours, estabeleceu um jejum de três dias, antes do nascimento do Senhor. É também do final desse século a “Quaresma de São Martinho”, que consistia num jejum de 40 dias, começando no dia seguinte à festa de São Martinho.

São Gregório Magno (590- 604) foi o primeiro papa a redigir um ofício para o Advento, e o Sacramentário Gregoriano é o mais antigo em prover missas próprias para os domingos desse tempo litúrgico.

No século IX, a duração do Advento reduziu-se a quatro semanas, como se lê numa carta do Papa São Nicolau I (858-867) aos búlgaros. E no século XII o jejum havia sido já substituído por uma simples abstinência. (SILVA IZABEL, 2014).

Mais informações históricas podemos encontrar na página dos Missionários Xaverianos, disponível no link: https://xaverianos.org.br/noticias-e-artigos/teologia/674-a-historia-do-advento.

Portanto, ao celebrar o Advento, a Igreja nos apresenta duas perspectivas: a primeira é a um convite a nos prepararmos para a grande celebração do Natal, quando Deus vem ao nosso encontro. E faz isso para nos ensinar os caminhos da solidariedade, da fraternidade, expressos no mandamento do amor. A segunda perspectiva é um convite Escatológico pelo qual nos ensina como podemos nos preparar para o feliz dia do retorno glorioso do Senhor, no fim dos tempos. Ressaltando que para esse encontro levaremos apenas o que tivermos feito ao longo de nossa vida.

Podemos acrescentar uma terceira perspectiva: o Advento nosso de cada dia, pois tem uma dimensão cotidiana e histórica. Algo que vai e que pretende nos levar para além do espaço litúrgico. O gesto que pretende iluminar nosso cotidiano.

Trata-se de realizar nosso Advento na perspectiva do Advento que nos mobiliza a realizar em nosso cotidiano, em nossos gestos, em nosso ambiente de trabalho, em nossas relações familiares, em nosso estudo, em nossas relações de amizade… não só o gesto de espera, mas o processo de realizar o que Jesus de Nazaré ensinou em sua vida: o gesto da solidariedade, da fraternidade, do amor ao próximo. Para que a nossa vida se converta em gestos concretos de altruísmo em defesa da justiça, dos direitos humanos, da paz… enfim, tudo que nos propõe a Igreja e sua Doutrina Social, aprendida com Jesus de Nazaré, pois é isso que levaremos para nosso encontro escatológico e definitivo; é assim que nos preparamos para o fim da história e o encontro com o Cristo glorioso.

O primeiro encontro já aconteceu com o Natal histórico e a encarnação do Senhor. A festa definitiva está por vir, quando o Senhor retornar para acolher os benditos e dispensar aqueles que o rejeitaram (Mt 25, 31-46). Nesse intervalo está nossa vida que não é só liturgia, mas que tem na liturgia o suporte e o elemento propulsor para viver o dom de Deus no dia a dia.




5-O Advento e nosso cotidiano


A sabedoria da Igreja inseriu o Advento na liturgia como uma das formas do diálogo de Deus com sua Igreja peregrina, ou seja no Advento Deus inicia um diálogo conosco. Por isso, o Tempo de Advento corresponde ao início do ano litúrgico.

Diferente do ano civil, o ano litúrgico começa com o primeiro domingo do Avento, o quarto, antes do Natal. E esse tempo encerra-se com a celebração do Natal do Senhor, já Ano Litúrgico, segue até a festa de Cristo Rei, na semana anterior ao inicio do Advento seguinte.

Além disso, o calendário litúrgico organiza o Tempo de Advento em quatro domingos que antecedem o Natal. E isso por um motivo simples: é no Advento que se inicia todo o mistério da salvação, o qual vai se revelando ao longo de todo o ano litúrgico.

Em cada um desses quatro domingos, a Igreja nos propõe diversos aspectos da esperança que celebramos: nos dois primeiros celebramos a esperança escatológica e nos outros dois a espera do Deus menino.

Dessa forma, o povo se prepara para receber o Deus supremo que se apresenta como um menino, na celebração do Natal e, simultaneamente, alimenta a esperança do reencontro na glória do retorno escatológico. É a proposta de Deus, aguardando nossa resposta.

Uma face da nossa resposta, apresentamos ao participar da liturgia nas celebrações pré-natalinas; a outra face ocorre em nosso cotidiano na medida em que realizando as obras de amor, solidariedade, partilha e pelo esforço comum na construção de uma sociedade mais justa e fraterna, seguindo o mandamento do amor, ensinado por Jesus (Jo 15,12-17).

Noutras palavras, ao celebrar a encarnação no Natal e enquanto esperamos a Parusia, celebramos o cotidiano da Igreja, o cotidiano da vida de Jesus, o cotidiano de cada pessoa que se entrega no esforço de construir um mundo melhor e acima de tudo, celebramos o ato salvador de Jesus e o ato solidário de cada amante do bem.

Porque então festejamos ainda o advento? Não é só um rito litúrgico e um tempo que prepara o Natal? Não. O advento é também o nosso tempo, depois da encarnação de Deus. É verdade que Deus veio de forma definitiva para dentro de nossa pequenez, mas, apesar disso, Ele é sempre aquele que ainda deve vir e continua chegando para cada um e para todo o mundo.

Cada um vive no Antigo Testamento de si mesmo porque vive na imperfeição e no pecado, no desejo da redenção e na ânsia do Libertador. Os tempos messiânicos foram inaugurados com o Messias Jesus, mas não se completaram ainda... (BOFF, 2024).


Está sob nosso encargo completar os tempos messiânicos, ou seja, cabe aos seguidores de Jesus de Nazaré a continuidade de sua obra. Não por ter sido uma obra inconclusa, mas porque a ação de Jesus, o Cristo, consistiu exatamente em fazer o que fez: convidar ao seguimento, ensinar a praticar suas obras em favor dos necessitados, mostrar a face do Pai, conceder o Espírito de Amor como guia, suporte e luz… e isso o Senhor não pode fazer por nós, pois essa é a nossa missão.

Por esse motivo, ao iniciar o ano litúrgico com o Advento, a Igreja mantém o convite: ao longo do ano, rememorar a presença do Deus humanizado que caminha lado a lado com seu povo. E o faz para anunciar sua proposta de salvação e para indicar o caminho do amor solidário, um dos critérios de salvação (Tg 2,17). E trata-se de uma caminhada que é, ao mesmo tempo, um roteiro de vida. Um roteiro que se expressa no convite a seguir os passos do Mestre fazendo o que ele fez: ao lado do irmão sofredor, na caminhada para a Páscoa cotidiana esperando a Páscoa definitiva. Mas isso construído em nosso dia a dia, em cada ação realizada: na casa de oração ou enfrentando as enfermidades nossas ou dos irmãos; no trabalho ou na relação com as pessoa; no lazer ou na relação familiar…

Dessa forma a liturgia nos ensina algo muito importante: a encarnação é o primeiro passo da ressurreição. Essa é a proposta da liturgia, e não deveria ser por nós negligenciada, como afirma o padre W. Paranhos:

Estou convencido de que o Advento hoje, é o tempo litúrgico menos compreendido em seu valor e significado. Foi reduzido apenas ao tempo de preparação para a festa de Natal. Que triste! Não se entende que o Advento é a chave de todo o ano litúrgico: a escatologia é a verdade esquecida de todo o ano litúrgico. (PARANHOS, 2021).

E, o que é pior, até o Natal, em muitos casos, deixou de ser a festa da acolhida do Deus menino para se converter em um desfile ostensivo de compras e presentes, ceias e festinhas para troca prendas de “amigo secreto”…

Porém, se levarmos a sério, durante as quatro semanas do Advento, a liturgia nos convida a uma revisão de vida a partir de alguns personagens.

No Antigo Testamento os apelos vêm a nós por meio de Isaías (como também Jeremias e Sofonias...) que chama nossa atenção para a necessidade de conversão e, ao mesmo tempo, para o conforto oferecido pelo Senhor. No Novo Testamento recebemos um convite para a revisão de vida na proposta de João Batista. Ele orienta-nos a preparar as veredas, os caminhos do Senhor, repetindo o havia dito Isaías e João passa a ser a voz que calma e convida a preparar os caminhos (Lc 3,4-6).

O terceiro personagem não podia ser outro: Maria. Com um carinho muito especial somos convidados a olhar o mistério da encarnação seguindo o exemplo de Maria que se apresenta como a serva do Senhor (Lc 1,38), aquela que guardava tudo em seu coração (Lc 2,19).

Não podemos nos esquecer da figura de José. Em sua postura somos convidados a olhar um personagem singelo e discreto. Mas essa discrição foi o aconchego necessário para que Maria pudesse ter melhores condições para gerar e cuidar do Filho de Deus.

O padre Paranhos (2021) assim nos apresenta os personagens do Advento:

Três figuras bíblicas nos são apresentadas e ganham destaque na celebração do Advento: todos os personagens do Antigo Testamento que expressam o anseio pela vinda do Messias, especialmente o livro de Isaías e os Salmos 79 e 84; João Batista, porque foi vocacionado a ser o precursor do Messias; Maria, porque foi escolhida por Deus para ser a mãe do Salvador. (PARANHOS, 2021)

A que nos levam estes personagens?

Os personagens do antigo testamento, notadamente Isaías, nos convidam a esperar a vinda do Messias para nos conduzir ao Natal; ao mesmo tempo nos lembram do encontro escatológico, na esperança da superação das dores cotidianas, pois o reino que se instalará, simbolizado pela promessa do Senhor afirmando que naqueles dias “farei cumprir a promessa de bens futuros” (Jr 33,14); dias em que a paz e a justiça reinarão, pois o Senhor “trará justiça para os humildes e uma ordem justa para os homens pacíficos” (Is 11,4); além disso, nesse dia, os adoradores do Senhor verão suas maravilhas, pois “jamais olhos viram que um Deus, exceto tu, tenha feito tanto pelos que nele esperam” (Is 64,3). Mas há nisso uma exigência de fé e entrega: que nos deixemos moldar pelo Senhor: “Assim mesmo, Senhor, tu és nosso pai, nós somos barro; tu, nosso oleiro, e nós todos, obra de tuas mãos” (Is 64,7).

A expectativa desse “dia” escatológico pode nos ajudar a redesenhar o mundo. Um modelo para isso está na proposta de Isaías, naquela linda utopia dos inimigos e adversários passando a conviver (Is 11,6-8). Essa é a proposta, é a esperança, é para onde nossos olhos se voltam: a vinda do Messias vai inaugurar um tempo de paz, pois será um tempo de Justiça. O Messias:

Ele não julgará segundo a aparência. Ele não dará sentença apenas por ouvir dizer. Antes, julgará os fracos com justiça, com equidade pronunciará uma sentença em favor dos pobres da terra. Ele ferirá a terra com o bastão da sua boca, e com o sopro dos seus lábios matará o ímpio. A justiça será o cinto dos seus lombos e a fidelidade, o cinto dos seus rins. (Is 11,3-5)

Na liturgia do Advento alimentamos essa esperança: sonhando com o dia em que seremos capazes de remodelar o mundo, ao ponto dos opostos adversários e inimigos eliminarem as diferenças e desigualdades para sentar-se juntos, como na utopia de Isaías:

O lobo e o cordeiro viverão juntos e o leopardo deitar-se-á ao lado do cabrito; o bezerro e o leão comerão juntos e até mesmo uma criança poderá tangê-los. A vaca e o urso pastarão lado a lado, enquanto suas crias descansam juntas; o leão comerá palha como o boi; a criança de peito vai brincar em cima do buraco da cobra venenosa; e o menino desmamado não temerá pôr a mão na toca da serpente. (Is 11,6-8).

Essa utopia faz parte do nosso Advento cotidiano. Sabemos como será o Reino, pois a Palavra no-lo apresenta; sabemos que nos cabe ajudar a construí-lo, pois Deus nos oferece e o descreve, mas depende de nossa ação para sua implantação. Sabemos que Ele nos espera, mas também sabemos que temos nossa responsabilidade em plantar suas sementes… por isso vivemos em nosso Advento.

A reconciliação do homem com o outro homem e com a natureza é ainda um suspiro dolorido. Cremos que fomos libertados por Jesus Cristo, entretanto, nos sentimos tão pecadores como o homem pré-cristão. Não se realizou a profecia de Jeremias para o nosso tempo, de que Deus colocaria no nosso interior a sua lei santa e Ele mesmo a escreveria em nossos corações (Jr 31,33).

Toda esta situação nos convence: hoje é ainda advento. Temos que esperar a vinda de Deus que modificará o estado calamitoso deste mundo realizando os sonhos dos antigos profetas e as nossas próprias esperanças. Cada ser humano carrega dentro de si uma riqueza que não alcança ser mostrada durante nosso percurso terrestre. Não nos realizamos totalmente, por mais que nos esforcemos. Estamos sempre no advento de nós próprios. (BOFF 2024)

Em síntese, no Advento somos convidados a refletir sobre nossas vidas enquanto aguardamos chegada do Deus menino e, ao mesmo tempo, nos preparar para a vinda definitiva do Senhor. Somos convidados a celebrar a alegria, pois Deus vem ao nosso encontro; e também somos convidados a celebrar a nossa reconciliação com Deus, neste tempo de esperança. Sendo uma celebração de alegria pela expectativa da vinda do Senhor, o Advento, é também tempo de penitência no qual devemos nos purificar para encontrar o Deus que vem. Enquanto nos preparamos e ajudamos a preparar o mundo para o feliz retorno do Senhor no Advento da criação, que também espera sua redenção.


Referências


ADAM, Adolf. O Ano Litúrgico: Sua história e seu significado segundo a renovação litúrgica. São Paulo: Loyola, 2019, pp. 93-100.

ASSIS, Dom Antônio de. Pistas para a vivência do Tempo do Advento. 2021. Disponível em: <https://www.cnbb.org.br/pistas-para-a-vivencia-do-tempo-do-advento/>

AUGÉ, Matias. Ano Litúrgico: É o próprio Cristo presente na sua Igreja. São Paulo: Paulinas, 2019, pp. 233-246. 

CARNEIRO, Neri de Paula. Advento: a vinda e o retorno. www.recatodasletras.com.br. 2023. Disponível em: <https://www.recantodasletras.com.br/artigos-de-religiao-e-teologia/7944277> Acesso em 10/10/2024.

BERGAMINI, Augusto. Cristo, festa da Igreja: O Ano Litúrgico. São Paulo: Paulinas, 2004, pp. 177-194.

BOFF, Leonardo. Hoje ainda é Advento. https://franciscanos.org.br. S/D. Disponível em: <https://franciscanos.org.br/vidacrista/especiais/tempo-do-advento-ano-a/#gsc.tab=0> Acesso em 05/11/2024.

DAHER, Frei Régis G. Ribeiro. Tempo do Advento: Viver o tempo da espera. (SI) 2020. Disponível em <https://cffb.org.br/tempo-do-advento-viver-o-tempo-da-espera/>. Acesso em 10/11/2024

PARANHOS, Washington. O verdadeiro significado do Advento. In www.ihu.unisinos.br. 2021. Disponível em: <https://www.ihu.unisinos.br/categorias/614803-o-verdadeiro-significado-do-advento> Acesso em 16/11/2024.

SILVA IZABEL, Padre Mauro Sérgio. Advento: significado e origem. Arquidiocese de Campo Grande. 2014. Disponível em: <https://arquidiocesedecampogrande.org.br/advento-significado-e-origem> Acesso em 05/11/2024

TEMPESTA, Cardeal Orani João. Tempo Comum. CNBB. 2023. Disponível em: <https://www.cnbb.org.br/tempo-comum/>. Acesso em 05/11/2024.

__________________. Tempo Comum. CNBB. 2024 Disponível em: <https://www.cnbb.org.br/tempo-comum-2/>. Acesso em 05/11/2024.

__________________. Espiritualidade do Advento. CNBB. 2010 Disponível em: <https://www.cnbb.org.br/espiritualidade-do-advento/> Acesso em 05/11/2024.

quinta-feira, novembro 14, 2024

Tempo de angústia, tempo de esperança


Reflexões baseadas em: Dn 12,1-3; Hb 10,11-14.18; Mc 13,24-32




Iniciemos nossa reflexão com um trecho do “apocalipse de Marcos” (Mc 13,24-32).

O evangelista nos fala sobre dificuldades: "Naqueles dias, depois da grande tribulação, o sol vai se escurecer, e a lua não brilhará mais (Mc 13,24). Porém, olhemos para isso sem susto e sem medo. Vamos contemplar nisso apenas a força da Palavra de Salvação. E isso por um motivo simples: a Palavra divina não nos é dirigida para assustar, mas para repor os ânimos. Indicar caminhos de esperança e de superação! É uma Palavra de Salvação!

Ao lado do texto de Marcos vamos olhar para outro trecho apocalíptico, agora de Daniel (Dn 12,1-3). Também o profeta fala de um tempo de angústia e sofrimento.

Entretanto, e isso vale para toda a Palavra do Senhor, a dor, o sofrimento, a angústia, a maldade humana que provoca sofrimento… nada disso é definitivo: chegará um tempo no qual aquele que cumpriu com o plano divino vai “brilhar como estrela”.

Sendo trechos com palavras, aparentemente assustadoras, como é possível ver nisso sinais de esperança? Tudo isso é possível por causa de Jesus de Nazaré. Ele, Filho de Deus, veio e cumpriu seu propósito: indicou o caminho para o Pai. E isso entendemos quando lemos hebreus 10,11-14. aqui podemos acompanhar a ação sacerdotal do Cristo Jesus!

Hebreus nos ensina que essa ação é muito diferente dos demais sacerdotes. Não se iguala aos sacerdócios do passado nem aos de hoje, porque a ação sacerdotal, tem poder de nos guiar de forma profética. Jesus se deu uma única vez e de forma definitiva, pois é o sacerdote perfeito; seu gesto nos conduz de forma exemplar, pois é o perfeito rei; suas palavras denunciam os erros e maldade das pessoas ao mesmo tempo que anuncia as trilhas da justiça, do amor, da solidariedade, do perdão e convida ao compromisso com o irmão, pois é o profeta perfeito. E faz tudo isso de forma perfeita e definitiva porque é o sacerdote perfeito. Só ele pode nos conduzir ao Pai: sua única oferta na cruz foi uma oferta definitiva. “De fato, com esta única oferenda, levou à perfeição definitiva os que ele santifica” (Hb 10,14).

Para deixar tudo bem claro, Hebreus indica a diferença no ato sacerdotal: “Todo sacerdote se apresenta diariamente para celebrar o culto, oferecendo muitas vezes os mesmos sacrifícios, incapazes de apagar os pecados. Cristo, ao contrário, depois de ter oferecido um sacrifício único pelos pecados, sentou-se para sempre à direita de Deus.” (Hb 10,11-12).

Como se pode ver, só com isso já temos motivo suficiente para alimentar não só a fé cotidiana, mas principalmente a esperança definitiva. Pois esse é o nosso destino: a eternidade. É esse o alerta de Daniel. A isso nos convida Marcos.

Partindo de “um tempo de angústia, como nunca houve até então, desde que começaram a existir nações” (Dn 12,1), somos convidados a rever nossas expectativas. Por quê? Por que esse tempo de angústia não é definitivo. Os nossos dramas, nossas dores, nosso mundo de sofrimento, a exploração dos empobrecidos, a degradação ambiental, a sede desenfreada pelo lucro… tudo isso manifesta as faces do mundo em que vivemos neste tempo de angústia.

Mas isso não é definitivo.

Tudo isso não é o fim nem é para isso que existe a criação. Não foi para isto que chegamos aqui. Esse mundo de angústia e sofrimento, produzido pelo “inimigo”, esse, sim, vai chegar ao fim; ele é mantido pelos colaboradores do anticristo, que estão entre nós. Mas tudo isso dirige-se para o ocaso. É por isso que o profeta lança seu brado de consolo anunciando novos tempos de paz e alegria. E, então, nesse novo tempo, diz o profeta, haverá salvação destinada a quem permanecer fiel. O povo, que é de Deus, será salvo. “Todos os que se acharem inscritos no Livro.” (Dn 12,1).

A cena descrita por Marcos pode parecer um cenário de horrores: “Naqueles dias, depois da grande tribulação, o sol vai se escurecer e a lua não brilhará mais, as estrelas começarão a cair do céu e as forças do céu serão abaladas” (Mc 13,24-25).

Mas não se desespere: o que está se desmoronando é o mundo da maldade. O mundo construído contra os filhos da luz, contra o amor solidário, contra os pequeninos do Reino, contra os anunciadores da paz… o mundo do mal que se ergueu contra toda a criação… esse vai desmoronar!

E quando o império do mal estiver sendo demolido, então se verá o príncipe da paz chegando com o fruto do bem, plantado por cada um dos que acreditaram no poder do amor sobre o mal: “Então vereis o Filho do Homem vindo nas nuvens com grande poder e glória.” (Mc 13,26).

Este é o sinal da esperança. Este é o sinal da vitória do amor. Este é o tempo que esperamos: quando as pessoas estiverem sentindo o peso do desespero; quando os gritos de dor e sofrimento estiverem sufocando a esperança… quando o mal estiver se alastrando, serpente com cabeça de anjo, chegando às nossas portas, então é o momento de fazer valer a esperança: assim, “quando virdes acontecer essas coisas, ficai sabendo que o Filho do Homem está próximo, às portas” (Mc 13,29).

Os sinais estão postos. O alerta foi lançado. A promessa foi feita. O convite está aberto. A festa vai acontecer. Sabemos que a festa vai acontece e que fomos convidados. Porém não sabemos a data. Só temos o ingresso em nossas mãos, um ingresso que tem o selo da esperança.




Neri de Paula Carneiro

Mestre em Educação, filósofo, teólogo, historiador

Outros escritos do autor:

Filosofia, História, Religião: https://www.webartigos.com/index.php/autores/npcarneiro;

Literatura: https://www.recantodasletras.com.br/autores/neripcarneiro.

quinta-feira, novembro 07, 2024

Um pedaço de pão e duas moedas


Reflexões baseadas em: 1Rs 17,10-16; Hb 9,24-28; Mc 12,38-44




Uma viúva preparando-se para morrer de fome, juntamente com seu filho. Essa é a cena em que vemos Elias atuando, pedindo um pouco de comida. ( 1Rs 17,10-16)

Numa outra cena estamos com Jesus, diante da cesta das ofertas, dentro do templo. Várias pessoas fazem suas ofertas, mas Jesus chama nossa atenção para aquela velhinha…(Mc 12,38-44)

A resposta não parece complicada: uma velhinha, pobre, ofertando sua pobreza. E, certamente, ambas sofrendo por que lhes falta o necessário para sobreviver!

A primeira oferece seu resto de pão a um estranho. Certamente imaginando que assim morreria mais rapidamente, pois o que tinha para dividir com o filho, agora vai dividir com o estranho. Como os três vão comer de sua pobreza, a fome se intensificará, imagina ela!

A segunda velhinha, não está em casa, como a primeira, mas no templo. Pelo fato de ter oferecido duas moedinhas de pouco valor, sabemos que também é pobre e, como a primeira, está partilhando o que tem… e neste caso a partilha está sendo feita com uma instituição que não precisava de sua oferta, pois os ricos já haviam feito vultosas ofertas…

Mas a lição que estas leituras nos querem fazer refletir, não é sobre o valor econômico. Se fosse isso Jesus teria elogiado os ricos; se fosse assim, Elias teria procurado outra pessoa, pois numa cidade (como Serepta) existem muitas pessoas… e nem todas passando fome… E ele não precisaria parar na frente de um casebre, teria procurado alguém com mais posses.

Mas se não é sobre dinheiro, por que nas duas cenas duas pessoas pobres são colocadas em destaque? Por que não se destacou os figurões da cidade, visitados por Elias? Por que não se elogiou as ofertas dos ricos?

Essa é fácil! O motivo é que os valores de Deus não são os mesmos das pessoas. As pessoas gostam da ostentação. Gostam do destaque. Gostam de aparecer. Gostam dos primeiros lugares. Gostam de serem elogiadas. Gostam de serem vistas como grandes contribuintes para com as obras da igreja. Oferecem altos valores, mas quase sempre, sem valor!

Não entendeu? É Jesus quem dá a explicação: eles oferecem daquilo que lhes sobra! Ofertaram o excedente. Podem até oferecer de boa vontade, mas não lhes fará falta o que estão oferecendo. (E, o que é pior, se estão oferecendo o que lhes sobra, significa que para alguém está faltando! E se está comigo aquilo que é do outro, pois lhe está faltando, o que tenho em excesso não me pertence! E se estou ofertando o que não me pertence, minha oferta é desonesta: primeiro para com aquele que sente falta do que tenho de sobra; em segundo lugar porque se ofereço o que não é meu, a oferta não é minha, mas daqueles que não têm aquilo que me sobra!).

Não sabemos o que aconteceu com a velhinha da oferta no templo. Embora ela seja a personagem principal dessa cena, não aparece no final do ato. Por isso, não sabemos o que aconteceu no depois de sua oferta. Porém podemos imaginar!

Sabemos o que ocorreu com a velhinha que partilhou seu pão, à espera da morte: em sua despensa não mais faltou o que comer. “A farinha da vasilha não acabou nem diminuiu o óleo da jarra, conforme o que o Senhor tinha dito por intermédio de Elias” (1Rs 17,16). E isso está colocado como a nos dizer que o fruto da partilha não é o acúmulo, mas a vida; não é o excesso, mas sustento; não é o esbanjamento, mas a manutenção da solidariedade. Pois onde há solidariedade não há necessidade. Pode não haver grandes fortunas, mas existe mais vida!

E a velhinha das duas moedas?

Como Jesus a tira de cena, podemos imaginar o que lhe sucedeu. Basta atentarmos para o que lemos em hebreus (Hb 9,24-28). E podemos imaginar isso porque é Jesus o diretor das cenas. É ele quem dá o destino final para cada personagem, no enredo do teatro da vida.

O texto de hebreus nos afirma: Jesus é o sacerdote completo. Mas não um sacerdote para os templos humanos e mundanos, onde proliferam as maldades e malandragens e os jogos de interesse… Jesus é o sacerdote do templo da vida plena. E, como tal, não faz oferendas pela metade. Não age como os fariseus e os doutores e os ricos e os que buscam gloria… não! Como sacerdote do templo definitivo ele também faz uma única oferta definitiva. E a faz em favor daqueles que mereceram sua atenção no teatro da vida cotidiana e não dos personagens periféricos que aparecem apenas para realçar a importância do personagem central: as duas velhinhas.

Os sacerdotes dos templos mundanos dependem e se deliciam com as ofertas dos ricos e cobram cada vez mais ofertas ricas. E assim se multiplicam as ofertas e se distanciam do verdadeiro e definitivo sacerdote. Este não está interessado nas riquezas dos homens. Ele está interessado no valor de suas atitudes. Os sacerdotes mundanos fazem atos externos com a oferenda alheia. Jesus faz uma única oferenda de si mesmo.

E foi assim, “na plenitude dos tempos que, e de uma vez por todas” Jesus assumiu a oferta das dores da velhinha que compartilhou o pão e da outra que compartilhou duas moedas. Ocorre que, para Deus, um pedaço de pão e duas moedas valem mais que toda riqueza do mundo.




Neri de Paula Carneiro

Mestre em Educação, filósofo, teólogo, historiador

Outros escritos do autor:

Filosofia, História, Religião: https://www.webartigos.com/index.php/autores/npcarneiro;

Literatura: https://www.recantodasletras.com.br/autores/neripcarneiro.

quarta-feira, outubro 30, 2024

Finados: Deus, tudo em todos

Reflexões baseadas em: Jó 19,1.23-27a; 1Cor 15, 20-24a.25-28; Jo 11, 17-27




O dia de finados se presta a algumas indagações.

Quantos de nós já nos demos conta da volatilidade da vida humana e, em razão disso, tivemos a atitude de Jó (Jó 19,1.23-27a)? Quantos de nós temos a convicção do apóstolo Paulo, para afirmar, não tanto a transitoriedade da vida humana, mas a certeza de que até a morte será submetida a Deus (1Cor 15, 20-24a.25-28)? Por que, diante da morte de uma pessoa querida, muitos de nós entramos em desespero, lamentamos e, em alguns casos, até esbravejamos e inquerimos a Deus, pedindo explicações; recusamo-nos a aceitar o fato natural e inexorável da natureza humana. E, nesse caso deixamos pouco espaço para ouvir o consolo do próprio Senhor Jesus (Jo 11, 17-27)?

Três perguntas que nos colocam diante da companheira mais fiel da vida, a morte. A morte que mostra quão fluída é a vida; quão efêmera é a vida; quão importante esse curto espeço de tempo que chamamos de vida. Talvez foi pensando nisso que o poeta cantou “Nuit”, na voz de Raul Seixas, dizendo: “E quão longa é a noite. A noite eterna do tempo se comparado ao curto sonho da vida”. O sonho da vida, a vida nossa de cada dia que se esvai, segundo a segundo, como que buscando seu outro lado…: a morte é o outro lado da vida.

Morte, a companheira da vida, o outro lado da vida, o complemento da vida… a morte não é o fim, mas a porta de entrada para a plenitude.

A vida humana é a semente que germina na morte para crescer na eternidade. Essa constatação levou Jó a afirmar: “Depois que tiverem destruído esta minha pele, na minha carne, verei a Deus. Eu mesmo o verei, meus olhos o contemplarão, e não os olhos de outros” (Jó 19,26-27). Ele já sabia aquilo que Jesus veio mostrar: A morte não é uma prisão nem um ponto final. É, sim, um convite à fé, como Jesus sugere em seu diálogo com Marta, inconsolável com a morte do irmão: “Senhor, se tivesses estado aqui, meu irmão não teria morrido.” (Jo 11,21).

Diante do pranto de Marta, Jesus cobra um ato de fé: “Diz Jesus: ‘Teu irmão ressuscitará’. Disse Marta: ‘Eu sei que ele ressuscitará na ressurreição, no último dia”. Então Jesus disse: ‘Eu sou a ressurreição e a vida. Quem crê em mim, mesmo que morra, viverá’” (Jo 11,23-25).

Mais uma vez, o dia de finados, ou a Celebração dos fiéis Defuntos, nos ajuda a reler as palavras de Paulo. Seu discurso à comunidade de Corinto também é dirigido a cada um de nós. É um convite a voltarmos nossas atenções para aquele que deu pleno sentido à vida, pois nos mostrou o sentido da morte. É a demonstração definitiva do sentido da morte: Nossa vida é um caminho para a morte e nossa morte nos encaminha para o Cristo Ressuscitado.

Como assim? alguém pode perguntar. O apóstolo responde: “Cristo ressuscitou dos mortos como primícias dos que morreram” (1 Cor 15,20). Ele foi o primeiro a ressuscitar porque queria nos mostrar o caminho completo: a vida pelos necessitados e a morte para resgatar a todos.

Mas a morte não é uma punição pelo pecado de Adão?

De fato, novamente é Paulo quem vem nos esclarecer. E as palavras do apóstolo nos fazem refletir em profundidade esse momento de despedida, apontando para o que vem em seguida. Diz ele: “Com efeito, por um homem veio a morte e é também por um homem que vem a ressurreição dos mortos” (1 Vor 15,21).

Com isso, nos diz que a natureza humana e todos os demais elementos da criação vão chegar ao seu ocaso. Tudo está em transição. Tudo caminha e se encaminha para o seu sentido e o objetivo do Criador. Ou seja, a morte tem uma explicação, tem um sentido maior: a ressurreição. Só existe ressurreição porque existe a passagem pela morte.

Aliás, é isso que cantamos na celebração da Páscoa, quando a liturgia nos convida a exultar de alegria, pois da morte vem a vida. E nisso está o sentido da transgressão do casal original. Na liturgia da noite da Páscoa cantamos não a transgressão de Adão, mas a graça do amor redentor. Um amor tão intenso e absoluto que dissolve a transgressão. Por isso a Igreja nos convida a cantar: “Ó pecado de Adão indispensável,/Pois Cristo o dissolve em seu amor;/ Ó culpa tão feliz que há merecido/ A graça de um tão grande Redentor!”

O grande catequista, o apóstolo Paulo, nos ajuda a entender o momento da separação. As pessoas queridas despedem-se, no momento da morte. Mas é uma despedida como a de quem vai para uma viagem. É uma despedida como a de alguém que fez uma mudança de endereço. É uma despedida como a do filhos que deixam a casa paterna para unirem-se em casamento formando nova família… quem viaja, quem muda de endereço, quem se casa, não faz uma mudança querendo excluir, esquecer ou abandonar aquele que ficou. Na despedida sempre dizemos: até breve!

Assim é a morte. Isso é o que celebramos ao celebrarmos o dia de finados, o dia daqueles que finalizaram sua jornada entre nós. Celebramos o até breve!

Tudo isso, portanto, é necessário para que na morte de cada um, até que se completem os tempos, o Filho de Deus complete sua missão de submeter tudo à vontade do Pai. E, quando tudo estiver consumado, “o próprio Filho se submeterá àquele que lhe submeteu todas as coisas, para que Deus seja tudo em todos” (1Cor 15,28).




Neri de Paula Carneiro

Mestre em Educação, filósofo, teólogo, historiador

Outros escritos do autor:

Filosofia, História, Religião: https://www.webartigos.com/index.php/autores/npcarneiro;

Literatura: https://www.recantodasletras.com.br/autores/neripcarneiro.

terça-feira, outubro 29, 2024

O grito da voz ausente

Por que alguém se desloca de sua casa, num domingo, para votar?

O que leva uma pessoa a querer eleger este ou aquele candidato sendo que, muitas vezes, nem conhece o candidato em quem vai votar?

Alguém vai dizer que isso ocorre porque vivemos numa democracia.

Vai dizer que essa pessoa está exercendo seu direito político… Mas o que é isso que as pessoas chamam “Democracia”? Que direito é esse? De que política está se falando?

Em tese e de modo muito simplificado, democracia é um modelo político pelo qual o povo escolhe, pelo voto direto, aqueles que vão exercer atividades de gerar leis ou executá-las com a finalidade de assegurar melhores condições de vida para todos que fazem parte desse povo.

E a escolha da pessoa que vai fazer isso se dá pelo voto.

E isso implica dizer que o voto é uma delegação de poderes.

O eleitor é detentor de direitos e um deles é o direito de delegar seu direito de querer melhores condições de vida a outra pessoa que deverá desenvolver atividades para atender aos interesse do eleitor que lhe delegou poderes.

Evidentemente, essa pessoa que recebe a delegação (esse delegado) também tem seus direitos e também defende interesses. É necessário destacar, entretanto, que nem sempre os interesses do delegado correspondem aos interesses do eleitor… daquele eleitor, que num domingo saiu de casa para votar e que, muitas vezes, nem conhece o candidato…!

E essa divergência ou pluralidade de interesses ocorre porque o delegado tem os próprios interesses (que não são, necessariamente, iguais aos do eleitor); porque já se comprometeu com outros interesses (e não os confessa ao eleitor); porque recebe muitas delegações (são muitos os eleitores, com interesses diversos…); porque o delegado, antes de candidatar-se a esse cargo, já havia pactuado outros interesses, com um grupo específico de eleitores cujos interesses, na maioria dos casos, se contrapõem aos interesses daquele eleitor do domingo…

O fato é que esse delegado recebe muitas delegações (poderíamos também dizer que o voto é uma procuração) de muitas pessoas, com interesses diversos. Daí a pergunta: como vai atender às expectativas de cada um de seus eleitores?

Não vai!

De fato e sem rodeios, o candidato que se apresenta para receber as procurações, não está interessado em seus outorgantes! Ao se lançar candidato tem os próprios interesses e apenas está em busca de legitimidade (o voto dos outorgantes, os eleitores) para satisfazer seus interesses. Mas ele já sabe que esses interesses não são os dos eleitores. Repetindo, estes servem, apenas, para lhe conferir legitimidade! Afinal, estamos numa democracia!

Além disso, e esta é outra face do mesmo problema: quem determina o que é "bom para todos", se nem todos participam das decisões?

Além disso, o que é bom para o trabalhador não é o mesmo “bom” para o patrão. O que é bom para o produtor da agricultura familiar (que labuta junto com a família) não é o mesmo “bom” para o latifundiário que sobrevive de financiamentos para sua monocultura. O que é bom para o professor que se dedica ao ensino, não é o mesmo “bom” para o atual sistema escolar que promove aprovação em massa gerando essa multidão de analfabeto com diploma na mão. O que é bom para o estudante aprender (embora ele nem sempre se dê conta) não é o mesmo “bom” para os empresários do sistema de escola teleguiada, uniforme e sem capacidade crítica…

É assim que vamos nos deparar com a pessoa eleita. É esse individuo, junto com os outros que também foram eleitos (receberam delegação/procuração), que vai decidir o que é bom. Ele é quem decide o que é bom e para quem isso vai ser bom. E vai decidir isso de acordo com os seus interesses, pois para isso se fez candidato e buscou a eleição. E suas decisões serão pautadas por esses interesses e, quando isso não for possível imediatamente, o delegado alia-se a outros delegados para selecionaram os interesses que são comuns e que serão atendidos.

E os interesses daquele eleitor, que saiu de casa para votar, num domingo?

Ele, como também o restante da grande massa, vai continuar sendo apenas mais um na massa.

Talvez isso explique o porquê de tanta gente anulando o voto, votando em branco… ou nem comparecendo para votar. Talvez a massa esteja se dando conta de que é só isso: massa manobrável!

Talvez esse eleitor do domingo, tenha percebido o engodo da democracia. Talvez tenha percebido que essa democracia que lhe apresentaram não representa as aspirações do “demo” (o povo), mas é só uma forma pela qual o “cratos” (poder) do capital deseja sugar o sangue do eleitor, do filho do eleitor, dos netos do eleitor…

Quem sabe, um dia, aquele eleitor, que num domingo, sai de casa pra votar, acorde e perceba que passou a vida sendo ludibriado… quem sabe, um dia, ele aprenda a dizer: não!





Neri de Paula Carneiro

Mestre em educação, filósofo, teólogo, historiador

Rolim de Moura - RO

quinta-feira, outubro 17, 2024

Direita ou esquerda?

(Reflexões a partir de: Is 53,10-11; Hb 4,14-16; Mc 10,35-45)




Em tempos de rivalidade política, onde se deve assentar ou por onde deve andar o discípulo de Jesus: pela direita ou pela esquerda?

Algo parecido foi o que pediram os filhos de Zebedeu (Mc 10,35-45). Ocupados apenas com seus interesses pediram para se assentar, um à direita e outro à esquerda de Jesus. Foram, os dois reprovados! Essa decisão cabe ao Pai e está destinada não a quem pede, mas a quem merece!

Nesse ponto, recordando-se de Isaías (Is 53,10-11), Jesus ensina o verdadeiro lugar do servo de Deus. O profeta mostra isso com a imagem do Servo Sofredor.

Esse servo, por saber cumprir a vontade do Pai “terá descendência duradoura, e fará cumprir com êxito a vontade do Senhor” (Is 53,10). Ele não pediu privilégios, pelo contrário: ao se deparar com dificuldades encarou-as sem vacilar e, apesar das dores, foi em frente. Essa sua coragem de assumir as dores e riscos da vida foi-lhe imputada como condição para a vitória, para a superação das dificuldades, para a glória final, como ensina o profeta: “Por esta vida de sofrimento, alcançará luz e uma ciência perfeita”(Is 53,11).

O mérito desse “servo sofredor” não foi ter pedido isto ou aquilo, este ou aquele privilégio, esta ou aquela regalia… seu mérito foi ter aceitado as dores e pedras do caminho e, por esse motivo o Senhor o reconheceu como “justo”. E sua justiça é o caminho para o resgate das culpas de outros: “Meu Servo, o justo, fará justos inúmeros homens, carregando sobre si suas culpas” (Is 53,11).

Mas, alguém pode perguntar: o que isso tem a ver com a direita ou a esquerda?

Quase nada. A não ser o fato de que ao ser indagado sobre a direita ou a esquerda, Jesus indica outra direção. E essa direção é reafirmada em Hebreus (4,14-16). Uma direção que é a própria pessoa de Jesus, o “sumo sacerdote capaz de se compadecer das nossas fraquezas” (Hb 4,15).

E quais são essas nossas fraquezas, das quais Jesus se compadece? (Lembrando que aquele que se “compadece” é aquele que sofre junto, padece com o que sofre…) E Jesus se compadece porque ao se fazer um de nós assumiu nossas dores.

E isso quem o afirma é ainda carta aos hebreus: Jesus, o cordeiro santo, o “sumo sacerdote”, o Filho de Deus, “capaz de se compadecer de nossas fraquezas, pois ele mesmo foi provado em tudo como nós, com exceção do pecado” (Hb 4,15). Por esse motivo foi capaz de nos resgatar: dos nossos pecados e das nossas fraquezas. Das nossas ambições pessoais (querer isto ou aquilo, em benefício próprio); das nossas mesquinharias (distanciar-se dos companheiros de jornada para solicitar regalias); do nosso desprezo em relação ao desejo e direito dos demais, pois querer privilégios às escondidas é uma afronta à decência e evidencia a incompetência.

Isso foi o que fizeram os “filhos de Zebedeu” e como o fazem inúmeras pessoas (principalmente no serviço público) agarrando-se aos cabides dos empregos conseguidos não pela qualificação nem pela competência, mas ao aceitar ser capacho, aceitar o cargo de “baba ovo”… com a missão de ajudar a encobrir malandragens e para ajudar a elogiar quem não tem mérito próprio. Quando um chefe de setor, um político, um administrador de qualquer órgão ou empresa, precisa de bajuladores é porque não está cumprindo com sua função ou papel e usa do bajulador para ser exaltado na qualidade que não tem.

Diante dessa atitude de tentativa de bajulação, foi que Jesus reagiu. Mostrou como agem os “chefes das nações” e “os grandes” que oprimem e tiranizam o povo. E afirma categoricamente: “entre vós não deve ser assim!”. Por isso, Jesus reuniu os discípulos para uma lição definitiva. “Jesus os chamou e disse: ‘Vós sabeis que os chefes das nações as oprimem e os grandes as tiranizam. Mas, entre vós, não deve ser assim: quem quiser ser grande, seja vosso servo; e quem quiser ser o primeiro, seja o escravo de todos’” (Mc 10,42-44).

Então, o que conta para ser discípulo de Jesus?

A capacidade de ser diferente dos “chefes das nações” e dos “grandes”. Por que ser diferente? Por que estes oprimem e tiranizam ao povo. E fazem isso porque não se deixam guiar pelos valores ensinados pelo Mestre. guiam-se pelas suas ambições.

Além disso, o discípulo é aquele que se faz servo, pois só quem é capaz de servir é capaz de se compadecer, de ter compaixão, de se comprometer, de compartilhar. E essas atitudes do servo do Senhor lhe permitem aproximar-se do trono do cordeiro, pois foi isso que ele ensinou, não com palavras bonitas, mas com a própria vida.

Por fim, quando alguém desejar o privilégio de sentar-se à direita ou à esquerda, deve lembrar-se da lição do Mestre: para “ser o primeiro”, antes disso tem que se fazer escravo de todos, tem que servir a todos, tem que desejar o privilégio de servir, pois “quem quiser ser o primeiro, seja o escravo de todos. Porque o Filho do Homem não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida como resgate para muitos” (Mc 10-44-45).

Queremos nos aproximar do trono do Senhor? Então cumpramos com os requisitos apresentados por Jesus. Tendo cumprido essas condições, “Aproximemo-nos, então, com toda a confiança, do trono da graça, para conseguirmos misericórdia e alcançarmos a graça de um auxílio no momento oportuno” (Hb 4,16).

Então, em tempos de disputas pela direita ou pela esquerda, pelo centro, por ser situação ou oposição… nestes tempos conturbados é imprescindível ouvir de Jesus: “Vós não sabeis o que pedis”. E Jesus complementa, para nós: não importa o lugar social. Importa a capacidade de servir!




Neri de Paula Carneiro

Mestre em educação. Filósofo, teólogo, historiador

Outros escritos do autor:

Filosofia, História, Religião: https://www.webartigos.com/index.php/autores/npcarneiro;

Literatura: https://www.recantodasletras.com.br/autores/neripcarneiro.

sexta-feira, julho 05, 2024

Um bando de rebeldes

(Reflexões baseadas em: Ez 2,2-5; 2Cor 12,7-10; Mc 6,1-6)




A Palavra de Jesus, não só parece, mas é verdadeiramente dirigida a cada um de nós. Entre outros motivos para nos questionar a respeito de como tratamos as pessoas que estão próximas de nós e como tratamos os estranhos. É o próprio Senhor quem faz a constatação (Mc 6,1-6). E a palavra de Jesus está em sintonia com a profecia de Ezequiel (Ez 2,2-5). A explicação para essa nossa atitude vem das palavras de Paulo (2Cor 12,7-10).

Vejamos como isso acontece.

Tudo começa quando Ezequiel recebe a missão do Senhor. O profeta deve dirigir-se aos israelitas, uma “nação de rebeldes”; sua missão que consiste em dirigir-se àqueles “que se afastaram de mim”. Esses rebeldes formam um grupo de “cabeça dura e coração de pedra”.

O Senhor já sabe que seu profeta não será levado em conta, por isso alerta a Ezequiel que deve transmitir a mensagem do Senhor, “quer te escutem ou não”. Esse “bando de rebeldes” ficará sabendo que as consequências nefastas que se manifestarão em suas vidas poderiam ser evitadas se tivessem levado em canta que “houve um profeta entre eles”.

Consequências negativas que ocorrem não por “castigo de Deus”, mas porque esse “bando de rebeldes” não foi capaz de ouvir os alertas. Qualquer pessoa de bom senso, ao ser alertada sobre um perigo, o mínimo que faz é analisar os fatos e verificar a pertinência do alerta.

Mas, neste caso, o “bando de rebeldes”, os “filhos de cabeça dura e coração de pedra” não quis saber de, ao menos, considerar os alertas do profeta. E não o fez exatamente por ser alguém próximo a eles. Ezequiel não era um figurão. Não era uma pessoa famosa. Não era um ídolo da grande mídia. Não era um estranho… pelo contrário, era alguém que convivia com seus ouvintes; era o “sacerdote Ezequiel, filho de Buzi” (Ez 1,3).

Esse é o nosso retrato! Assim agimos nós! Valorizamos o estanho, o estrangeiro, o famoso… mas não damos valor a quem conosco vive e convive em nosso cotidiano. Consumimos a marca famosa e não o produto do nosso vizinho.

Essa foi a “bronca de Jesus” ao visitar Nazaré, sua terra, juntamente com seus discípulos. Depois de uns tempos perambulando e pregando e curando e anunciando o Reino, voltou para sua terra e foi visitar os parentes. E no dia destinado às orações comunitárias, juntamente com os discípulos e, certamente, com Maria sua mãe, foi à sinagoga.

Aos seus parentes e amigos e conhecidos, da cidadezinha de Nazaré, foi que “começou a ensinar na sinagoga”. E justamente esses foram os que estranharam sua pregação: “De onde recebeu ele tudo isto? Como conseguiu tanta sabedoria?”. Diziam isso como a dizer: “alguém aqui da nossa cidade não pode ser sábio”. Falaram isso como quem diz: “Alguém que vimos crescer não pode ser, assim, tão sábio”. E por isso desdenharam: “Esse não é o carpinteiro, filho de Maria?”

Não só desdenharam, “ficaram escandalizados por causa dele”!

Mas, por que isso ocorreu? Porque, para eles, até aquele momento, Jesus era uma pessoa comum. E, da mesma forma que ocorre conosco, queriam saber coisas de gente famosa. Queriam, como também ocorre conosco, discursos bem elaborados, com palavras difíceis, com frases rebuscadas e incompreensíveis… para, só assim, darem valor.

Por isso foi que Jesus disse a eles, e o repete cotidianamente a cada um de nós: “Um profeta só não é estimado em sua pátria, entre seus parentes e familiares”.

Façamos um exame de vida. Analisemos nossos comportamentos: Como temos tratado aqueles que convivem conosco? Com que valor olhamos ou ouvimos os estranhos? Como estamos tratando nossos pais, nossos maridos, nossas esposas, nossos filhos? Como temos tratado aqueles que convivem conosco? Será que Jesus também está admirado com a nossa falta de fé naqueles que vivem ao nosso redor?

Essas indagações são necessárias pois a resposta que a elas damos é o que vai explicar o porquê de não vermos milagres entre nós. Ali onde não foi reconhecido, em Nazaré, Jesus “não pode fazer milagre algum”. Ali Jesus ficou admirado com a tamanha falta de fé. E o mesmo vale para nós: se não aprendemos a valorizar quem convive conosco; se não acreditamos no potencial de quem está entre nós… também não temos fé no Senhor a quem não vemos. E não o vemos porque não somos capazes de enxergá-lo na pessoa que está ao nosso lado. Não somos capazes de reconhecer o Senhor nas pessoas que realizam maravilhas ao nosso redor e por isso também não temos fé no Senhor que, neste caso, não passa de um personagem de uma história comovente que conhecemos só por tradição…

Por isso a importância do convite do apóstolo Paulo. Diz ele ser necessário prestar atenção não na grandeza das coisas e das pessoas, mas na singeleza da graça. Diz ele que a “extraordinária grandeza das revelações não me ensoberbecesse”. Diz ele o que aprendeu do Senhor: “Basta-te a minha graça. Pois é na fraqueza que a força se manifesta”.

Então, o que somos: um bando de rebeldes? Como disse o profeta. Um grupo que se escandaliza pela graça de Deus estar atuando em nossos vizinhos? Como fizeram os parentes de Jesus. Ou agimos como o apóstolo Paulo, aprendendo a valorizar nossas fraquezas e a força daqueles que estão ao nosso redor?




Neri de Paula Carneiro

Mestre em educação, filósofo, teólogo, historiador

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sábado, junho 01, 2024

Foste escravo no Egito

Reflexões baseadas em: Deuteronômio 5,12-15; 2 Coríntios 4,6-11; Marcos 2,23-3,6




Qual a importância de guardar o dia do Senhor?

Quando devemos trabalhar e quando devemos prestar culto ao Senhor?

O que é mais importante: guardar o dia do Senhor ou ser solidário e ajudar quem precisa?

Em que momento se deve ajudar quem precisa: antes ou depois de ter cultuado ao Senhor?

E se meu ato solidário, altruísta; se meu gesto de socorro ao necessitado; se meu gesto de amor ao irmão… me impedir de prestar culto ao Senhor?

E se minhas preces forem interrompidas pelos gritos de socorro: continuo minha prece ou respondo ao pedido de socorro?

É claro que estas interrogações são só indagações… mas elas se encaixam e cobram uma postura quando ouvimos o trecho do discurso no livro do Deuteronômio (Dt 5,12-15).

Mais ainda, esse trecho chega a nós pedindo esclarecimentos diante de afirmações este preceito a respeito do sábado: “O sétimo dia é o do sábado, o dia do descanso dedicado ao Senhor teu Deus. Não farás trabalho algum, nem tu, nem teu filho, nem tua filha, nem teu escravo, nem tua escrava, nem teu boi, nem teu jumento, nem algum de teus animais, nem o estrangeiro que vive em tuas cidades, para que assim teu escravo e tua escrava repousem da mesma forma que tu” (Dt 5,14). Ou seja, a Palavra do Senhor é taxativa: o dia do Senhor tem que ser respeitado! E o crente é aquele que respeita as leis do Senhor!

Mas aqui está a grande questão. Ela pede uma resposta. Os fariseus, no tempo de Jesus, pedira essa resposta. E, em nossos dias, a mesma indagação, pede uma resposta.

E de onde ela vem? Quem pode nos tirar da dúvida?

A resposta vem do próprio Senhor (Mc 2,23-3,6). E vem, justamento a partir de um questionamento dos concidadãos de Jesus. Os fariseus questionaram o comportamento de Jesus e seus discípulos. E Jesus responde.

Como reage o Senhor?

Reage com outro questionamento. Devolve o questionamento àqueles que o interrogam: Jesus “perguntou-lhes: ‘É permitido no sábado fazer o bem ou fazer o mal? Salvar uma vida ou deixá-la morrer?’ Mas eles nada disseram.” (Mc 3,4). Quem não se deixa guiar pelo amor, não tem resposta que exige atitude amorosa.

Por esse motivo o Senhor, diante do silêncio dos adversários, afirma ser Senhor de tudo, inclusive do sábado: “Portanto, o Filho do Homem é senhor também do sábado” (Mc 2,28).

E vai além! O Senhor Jesus recoloca o sentido do sábado e do culto a Deus: o sábado está colocado não para gerar peso, mas libertação. Não para produzir medo, mas coragem. Não pelo seguimento cego á letra da lei, mas para afirmar a importância do ser humano. Por isso a afirma: “O sábado foi feito para o homem, e não o homem para o sábado” (Mc 2,27).

O que está em questão não é a norma que afirma a necessidade de um dia destinado ao culto e ao descanso. A afirmação diz respeito à necessidade de fazer o que tem que ser feito para que o ser humano seja preservado e Deus reverenciado.

O Senhor merece o culto e a ele devemos entregar nossas orações, dedicar nossas preces, entregar nossos louvores, destinar nossa gratidão… mas isso não é impedimento de levar ao outro aquilo que o outro precisa. Por isso, o Deuteronômio afirma a importância do sábado. Para destinar tempo ao Senhor e assegurar o descanso: “não farás trabalho algum” porque este é o momento de cultuar ao Senhor; mas também aqueles que te ajudam merecem o descanso: tanto os “escravos” como os animais. O respeito ao outro também passa pela defesa do direito do outro. E o argumento é simples: “lembra que foste escravo” (Dt 5,15). Lembrar do tempo da escravidão implica lembrar que o outro também não pode ser escravizado; implica lembrar que é o Senhor quem liberta. E se o Senhor liberta, como podemos nós gerar opressão?

Tanto a ação de Jesus, curando em dia de sábado, como o discurso do Deuteronômio são afirmações em defesa do outro e em favor da vida. É quando colocamos o outro no centro que vamos entender o discurso de Paulo (2Cor 4,6-11).

A preciosidade do ser humano transparece no discurso de Paulo: o dom de Deus é um tesouro. O ser humano é um dom de Deus. Portanto o ser humano é um tesouro. Isso leva o apóstolo a afirmar: “trazemos esse tesouro em vasos de barro, para que todos reconheçam que este poder extraordinário vem de Deus e não de nós” (2Cor 4,7).

Então, o que fazer no tempo destinado ao culto a Deus? Cultuar a Deus.

E se alguém precisar de nós, no momento do culto? O culto maior é a mão estendida!

Essa libertação é necessária porque o “Egito” continua em nós. Continua nos escravizando.

“Foste escravo”, e se não te libertas do legalismo, do egoísmo, das ambições e de todos os gestos de maldade, continuas “escravo”. Por isso, para superar as amarras de todas as escravidões, temos que nos lembrar: O sábado (ou seja, os preceitos) foi feito para o homem e não o contrário. Valorizar o que não valoriza a vida, é morrer na escravidão. Lembremo-nos de que Jesus é nosso libertador. É ele que, nos dias atuais, nos diz: “foste escravo… mas eu te libertei. Aceitas minha liberdade?”




Neri de Paula Carneiro

Mestre em Educação, filósofo, teólogo, historiador

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Sagrada Família: para se cumprir!

Reflexões baseadas em: Eclo 3,3-7.14-17a; Cl 3,12-21; Mt 2,13-15.19-23 Todos os que, de alguma forma, tiveram contato com os ensinamentos d...