sábado, 13 de março de 2021

Quaresma 4 - A Luz veio ao mundo


(Reflexões baseadas em: 2Cr 36,14-16.19-23; Ef 2,4-10; Jo 3,14-21)





As celebrações do período quaresmal nos mostram a grandeza do amor divino. Mas, ao mesmo tempo, mostra que até a paciência de Deus tem limites.

É claro que o amor de Deus pela humanidade é infinitamente maior do que sua ira, mas isso não significa que, como um pai bondoso, ele não estabeleça algumas condições a serem seguidas pelas pessoas. Não como punição, mas como medida corretiva. Se é verdade que toda ação tem uma reação, todas as nossas atitudes têm consequências.

No segundo livro das crônicas (2Cr 36,14-16.19-23) podemos ver uma demonstração disso: a denúncia dos pecados, uma vez que “todos os chefes dos sacerdotes e o povo multiplicaram suas infidelidades” (2Cr 36,14). Devido a isso Deus chama a atenção dos infiéis, cobrando mudança nos comportamentos “o Senhor Deus de seus pais, dirigia-lhes frequentemente a palavra por meio de seus mensageiros, admoestando-os com solicitude todos os dias, porque tinha compaixão do seu povo” (2Cr 36,15). Como se vê, é a compaixão que move a ação divina.

Porém, como os infiéis não mudavam as atitudes concretizou-se a lição ensinada pelo Senhor: “O furor do Senhor se levantou contra o seu povo e não houve mais remédio. Os inimigos incendiaram a casa de Deus e deitaram abaixo os muros de Jerusalém” (2 Cr 36,18-19). E, após os anos de punição, acontece a restauração, pelas mão de Ciro, um rei estrangeiro (para mostrar que o amor de Deus não tem fronteiras, vai além de um povo). E o rei decreta: “O Senhor, Deus do céu, deu-me todos os reinos da terra, e encarregou-me de lhe construir um templo em Jerusalém, que está no país de Judá. Quem dentre vós todos, pertence ao seu povo? Que o Senhor, seu Deus, esteja com ele, e que se ponha a caminho” (2 Cr 36,23). E assim voltaram os exilados, redimidos, prontos para recomeçar uma nova sociedade que deveria ser gerida pela caridade!

Deus é amoroso. É supremo amor. É pleno em misericórdia… e isso quem nos ensina é Paulo, escrevendo aos Efésios (Ef 2,4-10). O apóstolo afirma expressamente: “Deus é rico em misericórdia. Por causa do grande amor com que nos amou, quando estávamos mortos por causa das nossas faltas, ele nos deu a vida com Cristo” (Ef 2,4-5). Deus é, também, justo, pois oferece oportunidade para que o pecador se converta… Deus quer a vida e quer que a defendamos acima de tudo, em favor de todos.

O fato é que por seu amor é justo e misericordioso. Da mesma forma que um pai, estabelece limites para o filho rebelde não se destrua e possa rever seus comportamentos. É necessário que as pessoas tomem consciência de que estão cometendo faltas contra a bondade divina, contra a vida humana e da natureza. Ocorrendo essa consciência de defesa, manutenção e restauração da vida, Deus concede a graça do perdão. O apóstolo é claro ao dizer que “é pela graça que sois salvos, mediante a fé. E isso não vem de vós; é dom de Deus!” (Ef 2,9).

O dom da graça, entretanto, é consequência do bem que realizamos. “Obras boas, que Deus preparou de antemão para que nós as praticássemos” (Ef 2,10). A graça é dom de Deus, mas exige o comprometimento humano! Sem o nosso comprometimento individual, pessoal e definitivo, não tem como a graça agir em nós.

Isso é o que ensina Jesus, na conversa com Nicodemos (Jo 3,14-21). Deus age esperando nossa resposta. Uma resposta que consiste num ato de fé; um ato de fé que conduz à vida eterna: “todos os que nele crerem tenham a vida eterna” (Jo 3,15). A vida terrena, portanto, é o passaporte para a vida eterna. As atitudes neste mundo passageiro abrem as portas para o Reino definitivo

E Jesus insiste na afirmação central dirigida a todos que desejam segui-lo. “Deus não enviou o seu Filho ao mundo para condenar o mundo, mas para que o mundo seja salvo por ele” (Jo 3,17). Feita essa afirmação, Jesus se apresenta como divisor de águas.

É a partir da fé em Jesus, da adesão ao seu projeto que se dá a divisão: “Quem nele crê, não é condenado, mas quem não crê, já está condenado” (Jo 3,18).

O critério de Deus, ou seja a sua justiça, coloca nas mão de cada um de nós a responsabilidade pelos atos praticados. São esses atos que iluminam o caminho humano ou o escurecem. As pessoas aderem à luz divina ou afastam-se dela, num ato de fé ou de incredulidade. E Jesus explica isso da forma muito transparente: “O julgamento é este: a luz veio ao mundo, mas os homens preferiram as trevas à luz, porque suas ações eram más. Quem pratica o mal odeia a luz e não se aproxima da luz, para que suas ações não sejam denunciadas. Mas quem age conforme a verdade aproxima-se da luz, para que se manifeste que suas ações são realizadas em Deus” (Jo 3, 18-21).

E isso nos leva de volta ao ponto inicial: o amor misericordioso de Deus é infinito, mas ele também é infinitamente justo. Concede o perdão e a vida àqueles que o procuram, mas quem não crê e pratica o mal, já está condenado! Não está condenado por Deus, que é amor e perdão, mas pelos seus próprios atos que o afastam de Deus.

Neri de Paula Carneiro

Outros textos do autor:

Filosofia, História, Religião: https://www.webartigos.com/index.php/autores/npcarneiro

Literatura: https://www.recantodasletras.com.br/autores/neripcarneiro

quinta-feira, 4 de março de 2021

Quaresma 3 – Loucura de Deus


(Reflexões baseadas em: Ex 20,1-17; 1Cor 1,22-25; Jo 2,13-25)






Nós já nos acostumamos a nos chamar de louco ou doido: “você é louco, por fazer isso!”. “Isso é coisa de doido! Só você mesmo!” E assim por diante, estamos acostumados a ouvir e usar essa expressão: às vezes elogiando a loucura de alguém que fez algo extraordinário; às vezes condenando a insensatez de alguém!

Loucura, insensatez… expressões que usamos para dizer que não concordamos com aquilo que o outro está pensando, dizendo, fazendo… “Isso é coisa de doido!”

Mas a respeito de Deus, somente usamos expressões edificantes: Santo, eterno, fonte da plena sabedoria, misericordioso, todo poderoso… E nunca ousaríamos dizer que um ato de Deus seja loucura ou insensatez. Se vem de Deus, aceitamos. Mesmo quando, às vezes, não entendemos. Dizemos apenas que isso é divino! só por Deus!

A questão é que, sempre que avaliamos alguma coisa: concordando ou discordando; dizendo que está certo ou errado… sempre usamos nossos valores. Usamos nossos critérios. Falamos a partir do que achamos que é certo ou errado. Mas o que é o certo e o errado? Será que já nos perguntamos o que é que Deus considera certo ou errado? E quando fazemos isso, será que não estamos querendo dizer a Deus o que Ele deveria fazer?

A liturgia do terceiro domingo da quaresma mostra uma dimensão dessa loucura/sabedoria dos homens e de Deus. No livro do Êxodo (20,1-17), podemos visualizar um desses aspectos de loucura, uma vez que estabelecer normas, sobre como deve ser o comportamento das pessoas, como é o caso deste trecho do Êxodo, não é algo agradável. Mas Deus faz isso. Loucura?

Paulo, na primeira carta aos coríntios, (1Cor 1,22-25), é mais específico em mencionar a loucura, pois cultuar um crucificado não é uma situação normal. Pelo contrário: é loucura, é escândalo!

Agora imagine a cena: Jesus, no templo! Ele, com um chicote nas mãos, derrubando tudo e expulsando os negociantes… Isso é mais do que uma doidura qualquer. Uma pessoa normal, diante de algo que desaprova, no máximo fala que aquilo não está certo. Mas Jesus não. Ele faz um tremendo “barraco”. Esse tem que ser internado, pois surtou, disseram!

Mas em tudo isso está a visão ou os critérios ou os valores ou a compreensão humana. Para tentarmos obter uma compreensão ou uma percepção mais exata, Paulo nos dá a dica: “Pois o que é dito loucura de Deus é mais sábio do que os homens, e o que é dito fraqueza de Deus é mais forte do que os homens.” (1Cor 1,25). Ou seja, somos convidados a olhar para os eventos não com os critérios e valores humanos, mas com os olhos de Deus. O que é que Deus está vendo que o motiva a estabelecer as normas expressas no trecho do Êxodo?

Está observando que existe idolatria (Ex 20,3-4); uso indevido do nome de Deus (Ex 20,7); as pessoas não estão dedicando um tempo para Deus (Ex 20,8-11); as pessoas não estão respeitando a família, pois estão adulterando e desonrando os pais (Ex 20,12.14.17); as pessoas estão matando, roubando e mentindo...(Ex 20,13,15,16). Então tem que se estabelecer um limite!

Como sabemos que estão fazendo isso? Porque esses são os preceitos ensinados. E o argumento é simples. As normas surgem para regulamentar as condutas vigentes. Somente afirmamos a necessidade de respeito aos pais, quando percebemos que estão sendo desrespeitados pelos filhos. Deus viu que alguns estavam enriquecendo às custas dos mais pobres… por isso instituiu: não roubar! Numa palavra, Deus viu a bandidagem tomando conta e causando o sofrimento dos mais fracos, por isso estabeleceu as normas, os mandamentos.

Jesus não fez diferente (Jo 2,13-25). Diante do que estava (e ainda está!!!) acontecendo no templo, expula os infratores. E toma essa atitude ao ver a infração ocorrendo….A casa de oração transformada num centro comercial (Jo 2,14)!

Quem de nós já ficou indignado com lideranças das Igrejas (não só no mundo católico) fazendo uma pregação que privilegia mais os tijolos que a instalação do Reino. Com tantos pregadores anunciando curas milagrosas, seria interessante lançarmos um desafio: por que os tantos pregadores de tantas curas milagrosas não deram fim à pandemia do Corona Virus? Sabe por quê? Porque são charlatães da fé. Mas para eles Jesus tem preparado o chicote (Jo 2,15)?

O fato é que, do ponto de vista humano, a proposta do reino é um absurdo, pois exige a prática da justiça e da verdade. Exige solidariedade e não egoísmo; exige fraternidade e não a concentração de rendas e bens e riquezas....

Seguir a proposta de Deus é loucura, pois exige renuncias e opções em favor do outro. Aderir a Jesus Cristo, neste mundo que valoriza as coisas, os bens, a riqueza… não é prova de sensatez. Seguir a Jesus Cristo, neste mundo que não vê e despreza os valores do Reino, é prova de loucura. Seguir a Jesus Cristo implica andar pelos caminhos da partilha, da solidariedade, da cruz. Seguir a Jesus Cristo implica ser derrotado pelo mundo, mas também implica na maior prova de loucura: a certeza da ressurreição!





Neri de Paula Carneiro

Filósofo, teólogo, historiador, mestre e educação.

Outros textos do autor:

Filosofia, História, Religião: https://www.webartigos.com/index.php/autores/npcarneiro

Literatura: https://www.recantodasletras.com.br/autores/neripcarneiro


sexta-feira, 26 de fevereiro de 2021

Quaresma 2 – É bom estar aqui



(Reflexões baseadas em: Gn 22,1-2.9a.10-13.15-18; Rm 8,31b-34; Mc 9,2-10)




Se alguém te pedisse uma lista com as coisas mais preciosas que você tem em tua vida. O que encabeçaria a tua lista? O que entraria em primeiro lugar?

Claro que muitos colocariam o dinheiro, a saúde, a família, os pais… os filhos. Certamente dependeria de quem estivesse fazendo o pedido, a circunstância… Mas acredito que na lista de quase todos nós, que temos filhos, eles estariam entre os primeiros itens da lista.

Para Abraão (Gn 22,1-2.9a.10-13.15-18) não foi diferente. Só que Deus não lhe pediu uma lista. O senhor foi mais radical: Pediu que sacrificasse o filho amado. “Oferece-o ali em holocausto sobre um monte que eu te indicar” (Gn 22,2). E não deu mais explicações...

Sabe o que isso significa?

Pegar o filho amado, colocá-lo sobre uma pedra. Dar-lhe uma facada no coração… e depois do filho morto, estendê-lo sobre um monte de lenhas e colocar fogo. Isso é o holocausto: oferecer um sacrifício no qual a vítima é queimada. Isso porque na mentalidade da época, a fumaça daquilo que estava sendo sacrificado chegaria aos deuses…. E, neste caso, Abraão aceitou a proposta de Deus, e estava para sacrificar o filho. Por quê? Porque, para ele, cumprir a vontade de Deus era a coisa mais importante…

Agora, imagine a dor desse pai! Mas também, imagine o tamanho da fé desse homem!

E Abraão estava disposto a fazer. Estava disposto a entregar seu filho a Deus.

Em razão disso Deus lhe fez uma promessa (Notemos que muitos de nós vivemos fazendo promessas a Deus… nós as cumprimos?). O senhor lhe prometeu: a bênção, a descendência e a terra (Gn 22,17). E foi além: o gesto de Abraão, rendeu a benção, não só para seus descendentes, mas também para toda a humanidade: “Por tua descendência serão abençoadas todas as nações da terra, porque me obedeceste”. (Gn 22,18).

E aqui tem um detalhe muito importante: em Abraão passaram a ser abençoadas TODAS as nações da terra e não somente um povo ou um grupo de pessoas!

Mas Deus não parou por aí.

Ele é muito mais audacioso. Mais radical. Afinal, ele é Deus!

Mas antes, diga uma coisa: você seria capaz de fazer o que Abraão fez? Seria capaz de cravar uma faca no coração de seu filho, por amor a Deus?

Pois fique sabendo que Deus é, para a mentalidade moderna, meio doido. Por quê? Porque Ele fez isso com seu Filho! Não cravou uma faca no peito do Filho, mas cravou o Filho numa cruz!

Nós teríamos dificuldade em sacrificar nosso filho por amor a Deus, mas Deus sacrificou seu Filho por amor a nós!!!

Isso nós o sabemos e vamos recordar na liturgia da semana Santa. Mas hoje e aqui é Paulo, escrevendo aos romanos (Rm 8,31-34) que nos fornece esta informação: “Deus que não poupou seu próprio filho, mas o entregou por todos nós” (Rm 8,32). Por que Deus faz isso? É, ainda, Paulo quem explica: Ele o fez porque nos ama e entregar o filho para à morte de cruz foi uma forma de mostrar esse amor, sem deixar dúvidas. “Se Deus é por nós, quem será contra nós?” (Rm 8,31).

Com isso talvez Paulo esteja nos dizendo: as dificuldades podem ser grandes. As adversidades podem ser muitas. Os sofrimentos podem parecer insuportáveis… Mas Deus é nosso amparo… e não nos abandona, como não abandonou Abraão!

Para alimentar essa certeza Jesus se mostra (Mc 9,2-10) em sua totalidade, em seu maior esplendor, em sua essência: Jesus transfigura-se diante dos apóstolos (Mc 9,2). Mostra aquilo que realmente é: plena luz para nos guiar!

A sensação deve ter sido tão intensa que, somente isso explica, os apóstolos não saberem o que fazer ou o que dizer (Mc 8,6). A postura dos apóstolos foi de usufruir ao máximo da experiência (“vamos fazer três tendas”) e de querer agradar a Jesus não só com a tenda, mas externando a sensação de agrado: “é bom estarmos aqui”, diz Pedro (Mc 9,5).

Como os apóstolos não estavam entendendo o que estava se passando, o Pai o explica para não deixar nenhuma dúvida: “Este é o meu Filho amado. Escutai o que ele diz!” (Mc 9,7). Algo semelhante ao que disse a mãe, na festa do casamento: “fazei tudo que ele voz disser!”

Neste tempo quaresmal temos algo importante a aprender. Não só olhando para a figura de Abraão, demonstrando plenitude de fé; não só de Paulo indicando onde encontrar e conseguir amparo para enfrentar as adversidade. Mas principalmente olhando para Jesus que se mostra em sua essência. E fazendo isso nos indica o caminho. E este caminho evidencia uma exigência, anunciada pela Campanha da Fraternidade: o diálogo.

O diálogo pode ser a ponte para nos conduzir no percurso a ser feito. O diálogo nos mostra que o diferente é apenas uma amostra da grandeza de opções que Deus permite como exemplos para chegarmos a ele.

E, se temos tantos caminhos e oportunidades, podemos mais facilmente chegar ao Senhor, para podermos dizer como Pedro: é bom estar aqui!!!



Neri de Paula Carneiro

Outros textos do autor:

Filosofia, História, Religião: https://www.webartigos.com/index.php/autores/npcarneiro

Literatura: https://www.recantodasletras.com.br/autores/neripcarneiro

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2021

PRA FAZER FILOSOFIA

Acredito que devido ao fato de eu ser professor, muitos me fazem muitas perguntas. E entre as muitas coisas que me perguntam, muitas perguntas são sobre o que é filosofia. Perguntam se filosofia é isto ou aquilo?

Claro que tenho que responder. Afinal, pra que servem as perguntas se não para provocar respostas? Mas em resposta, respondo que não sei a resposta! Ou melhor, não sei dar a resposta que eles querem sobre a filosofia ser isto ou aquilo.

Dependendo da inspiração, acrescento, e não é exagero o que digo, que filosofia não é isto nem aquilo; mas dá pra dizer que filosofia é tudo isso. Mas tudo isso sem ser isto ou aquilo!!!

E o interlocutor não deixa passar: Mas tudo isso o quê? E como não é nem isto nem aquilo? E como pode ser isso e aquilo?

Ai me vejo obrigado a explicar: Primeiramente, e pra dizer a verdade, filosofia não é! Ela está menos para presente do indicativo e muito mais para gerúndio: ela vai se construindo...

Não se concebe a filosofia como algo pronto: estátua, feito banheiro de passarinho, numa praça deserta. Cabe mais a afirmação de que ela se parece com a chuva fina que lenta, progressiva e continuamente umidece a terra… aquela chuvinha que, sem que se perceba, ajuda na fertilização da terra estimulando seu potencial de vida, estimulando a vida nova da semente plantada. E nesse processo de umidade e fertilidade vão germinando as sementes das ideias...

A filosofia não é fruto do corre-corre tresloucado deslocando a capacidade de pensar para a obrigação do fazer… e nessa loucura se faz de tudo, menos pensar! E o processo do pensar é a dinâmica da filosofia. Por isso a filosofia tem a ver com dinamicidade do pensamento.

A filosofia não É, como coisa pronta. Ela se explica na dinâmica porque exige uma postura de movimento. Pedra bruta sendo polida ao longo do tempo pela torrente do fundo do rio. Com a filosofia ocorre aquilo que é típico dos cães farejadores, cheira aqui e ali quase sempre consegue encontrar coisas novas a serem relacionadas com as antigas; com ela se podem relacionar coisas tradicionais fazendo germinar novidades. Com ela os saberes tradicionais, vão se tornando coletivos e viram ciência/sapiência, envolvendo a tudo e a todos, propondo, depois das soluções, novas interrogações!

O processo filosófico é dinâmico, mas não tem a ver com a ideia do movimento pensado pela física, calculando tempo e espaço, embora possa estar na indagação sobre o tempo e o espaço e a energia... Tem a ver com transição constante como foi anunciada e inaugurada por Heráclito (e outros antes dele), dizendo que no mesmo rio não se entra duas vezes… pois tudo flui… “Nada do que foi será, de novo, do jeito que já foi um dia”, disse o poeta.

Por isso não existe filosofia na estagnação da água parada, fétida, nefasta à vida e a saúde; de forma oposta, ela tem o dinamismo de um profundo poço de águas límpidas e refrescantes… como a se oferecer, mas sem se exibir; disponível, sem ser assanhado!

Fazer filosofia exige o parar, mas o parar, para a filosofia, não é estacionar, como a pedra à beira da estrada cujo fim é terminar coberta pela vegetação rasteira; fosse assim ela já teria desaparecido, encoberta pela poeira do tempo, cortina ocultando nas dobras do esquecimento tudo aquilo que não desenvolve uma constante dinâmica para a renovação ou pela sua inovação.

O parar, aqui, como se pode notar, refere-se aos momentos facilitadores da dinamicidade do pensamento inovador. O parar, da filosofia, não é o estacionar do trem, para descarregar no ponto final, mas do metrô, em cada ponto se reabastecendo de novos passageiros. Para-se, não como quem morre, mas como quem renasce a cada dia em novas ideias, com a finalidade de aprender com o que já existe e, ao mesmo tempo, para projetar, propor e incrementar novos conhecimentos que fundamentam novos saberes.

Por isso a filosofia não é, mas está sempre se fazendo e recompondo e refazendo. Não se assemelha ao ponto final do texto, mas aos dois pontos que sugerem proposição de novas perspectivas. E isso pode ser uma das explicações de tantas filosofias, tantas correntes de pensamento. Talvez por isso, antes de se constituir num corpo sistemático, como aprendemos com os gregos, ela caminhava com o ser humano desde as primeiras indagações com as primeiras respostas gerando novos questionamentos. Afinal de contas, será que alguém já tem uma resposta definitiva para algumas das grandes questões da humanidade: de onde vim? Para onde vou? Quem sou eu? O que sou eu?

O fato é que se faz filosofia, mas ela nunca está pronta. E ela se faz sempre no processo de destilação do conhecimento acumulado; no processo da sedimentação dos saberes adquiridos, de forma que todas as informações atuais são lapidadas e se convertem no inebriante diamante da sabedoria que se curva, na reflexão cotidiana, e se faz semente querendo renascer.

Neri de Paula Carneiro

Mestre em Educação, Filósofo, Teólogo, Historiador

Rolim de Moura – RO

domingo, 21 de fevereiro de 2021

FILOSOFIA: OS PRIMEIROS PASSOS

Pra que filosofia? Ou pra que serve filosofia no meu curso?

É a primeira ou uma das primeiras perguntas que faz o estudante quando vê que tem essa disciplina em sua grade de curso.

Não temos nem pretendemos dar essa resposta! Também não sabemos se existe resposta. Mas tem gente que responde assim: porque ela nos ajuda a pensar; porque quem elaborou a grade do curso entendeu que essa é uma disciplina importante; porque delas derivam quase todas as ciências da atualidade; porque sem a ajuda da filosofia podemos perder algumas particularidades, alguns detalhes da realidade; para desenvolver um raciocínio crítico... e assim por diante!

Todas as respostas têm o seu fundamento. Mas não dá para dizer que elas nos satisfazem. Ou que uma delas seja definitiva. Será que tudo tem que ter alguma utilidade?

Tem que servir para alguma coisa? E se a coisa servir apenas para deixar a gente com dúvidas?

O fato é que, já o dissemos: não temos a resposta. Outro fato é que existem muitas e diversas forma de se falar, de se explicar e de se fazer filosofia. Importa, portanto, encontrar uma forma de falar, estudar e entender filosofia. Não importa se essa é a melhor, mas é uma maneira de desenvolver o processo. Parece que um bom caminho é percorrer a senda do diálogo (dia-logo): ouvir, buscar e dialogar pois o monólogo pode ser contraproducente. E, mais, entender que não se trata de dominar uma forma de se ensinar Filosofia, mas desenvolver um mecanismo que ajude a filosofar.

E, cá entre nós, o que realmente interessa, não são as respostas, mas os processos para o filosofar. Importa buscar caminhos, criar caminhos, testar caminhos e alternativas para o filosofar. Isso significa: estimular a capacidade reflexiva a partir de uma postura de admiração a todas as realidades; posicionar-se deixando de ser indiferente ao mundo capacitando-nos a emitir opiniões; ir além do simples comentário a respeito dos grandes pensadores. Trata-se de partir de nossa realidade temática para encontrar os pensadores.

E essa é a nossa perspectiva para o estudo da filosofia: não só história, nem só de temas (ou problemas), mas tudo isso a partir do cotidiano procurando fazer do estudo da filosofia algo cativante, desafiador e envolvente provocando para a criticidade radical fugindo das aparências enganosas! E isso de forma séria sem ser carrancudo.

Notando apenas de um pequeno detalhe: O filosofar ajuda a impulsionar o mundo, pois o seu ponto de partida é a pergunta que instala a dúvida. A dúvida desinstala a certeza e prepara o intelecto para avançar. Sendo assim, se são as perguntas que movem o mundo, que mundo é esse que gera as perguntas? Afinal, o quê move as perguntas?

Neri de Paula Carneiro

Mestre em educação, Filósofo, teólogo, historiador

Rolim de Moura - RO



sexta-feira, 19 de fevereiro de 2021

Quaresma 1: Jesus, a nova aliança



(Reflexões baseadas em: Gn 9,8-15; 1Pd 3,18-22; Mc 1,12-15)







Estamos acostumados a afirmação de que a quaresma corresponde aos quarenta dias de preparação para a Páscoa. E não há erro nenhum, nisso. Mas, em que consiste essa preparação? De que outra forma podemos compreender o significado da quaresma? A Igreja nos propõe, no primeiro domingo da quaresma, algumas pistas para refletirmos… e entendermos outros alcances do significado da quaresma.

No livro do Gênesis (Gn 9,8-15), o Senhor estabelece uma aliança para a preservação da vida a qual foi purificada nas águas do dilúvio. Os que sobreviveram ao dilúvio foram aqueles que não tinham se contaminado com a maldade humana. As águas do dilúvio, para eles, foi um processo de purificação. Saíram da arca renovados, com a missão de edificar um mundo melhor.

Na primeira carta de Pedro (1Pd 3,18-22), o apóstolo afirma que as águas do dilúvio se assemelham às do batismo. E este não se destina à limpeza do corpo, mas é um meio de participar da purificação produzida pela Ressurreição de Cristo. E a Ressurreição é um anuncio daquilo que está destinado a todos os que se comprometem com a causa da edificação de um mundo melhor, no qual floresce a Justiça e a Equidade; a Fraternidade e a Solidariedade...

Por sua vez, Marcos (Mc 1,12-15), mostra Jesus vencendo o tentador e anunciando a proximidade do Reino. Mas, para que o Reino se instale, como expressão de um mundo melhor, é necessário conversão ao Evangelho.

Com isso já temos pistas para entender o significado da quaresma, para o cristão. A água do dilúvio e o batismo expressam a sua finalidade: purificar e limpar. O que é, então a quaresma? Um tempo de purificação! Um tempo em que se faz um exame de vida, tendo como critério para o exame, a proposta de Jesus Cristo, estabelecida na Boa Nova do Reino.

Mas podemos dar um passo a mais.

Quem é da roça, deve se lembrar que nossas mães e avós não tinham máquina para lavar roupa. O rio era o local para a lavagem das roupas. Então que faziam? Expunham ao sol as roupas ensaboadas, para que o calor ajudasse a “soltar a sujeira”, como dizia minha mãe. Essa era a técnica para “quarar” as roupas. Ou seja, o calor do sol provocava o “quaramento”, a limpeza. Aí, então, ao voltar para as águas, as roupas aquecidas quaravam, isto é, limpavam facilmente: água e calor do sol produzia a limpeza, daquelas roupas grosseiras do serviço da roça.

Esse é o sentido da quaresma: ajudar no processo de “quaramento” de nossas vidas. Nossas mães deixavam as roupas tomando sol por algumas horas. Nossa Igreja nos propõe deixarmos nossas vidas “quarando” durante quarenta dias. Quarenta dias, portanto, é um tempo suficiente para fazermos uma revisão de vida e, aquecidos pelo fogo do Espírito e iluminados pelo Luz do Evangelho de Cristo, nos convertermos desfazendo-nos das atitudes que sujam nossa vida.

Após ter purificado a humanidade, com o dilúvio, o Senhor firmou uma aliança com aqueles que haviam se purificado: “Deus disse: ‘Este é o sinal da aliança que coloco entre mim e vós, e todos os seres vivos que estão convosco, por todas as gerações futuras. Ponho meu arco nas nuvens como sinal de aliança entre mim e a terra’” (Gn 9,12-13).

Mas o verdadeiro sinal da aliança divina foi a ressurreição de Cristo, a quem nos associamos mediante as águas do Batismo que “é um pedido a Deus para obter uma boa consciência, em virtude da ressurreição de Jesus Cristo” (1 Pd 3, 21). E Jesus Cristo é o Sol que aquece nossa vida e sua Ressurreição nos conduz na direção da purificação.

A pergunta que se impõe, agora, é: de quê precisamos nos purificar? Quais as situações que nos contaminaram e que exigem que façamos, no processo quaresmal, uma limpeza em nossas vidas? Quais atitudes precisamos mudar, para efetivarmos nossa adesão à Nova Aliança, que é a própria pessoa de Jesus?

Com certeza a lista não é pequena: nossas omissões diante de um mundo em crise, no qual o ser humano está, cada vez mais, perdendo o valor. Nossas adesões a propostas sociais, políticas e/ou econômicas que não tomam o ser humano como centro, mas o lucro como bandeira. Nossa língua ferindo a integridade dos nossos conhecidos, vizinhos, parentes, colegas de trabalho… enfim, cada vez que nos posicionamos de forma a minimizar o ser humano, estamos nos afastando de Deus, estamos poluindo as relações entre as pessoas, estamos sujando o caminho da vida… disso e muito mais precisamos nos quarar, quaresmar, purificar...

A quaresma é o tempo da purificação. É o período litúrgico em que somos convidados a quararmos nossas vidas. E se todos nós fizermos isso, certamente o mundo vai se tornar um lugar melhor para se viver. Deus está nos propondo essa oportunidade. E Jesus, com sua proposta de nova vida, é a parta para a nova aliança.




Neri de Paula Carneiro

Outros textos do autor:

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segunda-feira, 15 de fevereiro de 2021

Quarta feira de cinzas



(Reflexões a partir de : Jl 2,12-18; 2Cor 5,20-6,2; Mt 6,1-6.16-18)







Cinzas...

Tudo vira cinza, pó! Nada escapa desse processo de transformação. Inclusive nossas vidas e atitudes e comportamentos e sonhos e esperanças… Tudo vira cinza… e das cinzas podem nascer outros projetos! Como, também, nas cinzas podem estar enterrados os fracassos!

Cinzas… símbolo de vida ou confissão de fracasso? Com que olhos a vemos?

Seja o que for, não há como negar que, em todos os casos, a cinza representa a consumação de um processo de transformação… o que era não é mais e, em seu lugar, no lugar daquilo que era, agora estão as cinzas do que foi… restos doloridos… sementes de esperança!

Essa é a ideia litúrgica envolvida na quarta feira de cinzas.

Podemos visualizar essa perspectiva nas leituras que nos são propostas. Primeiro o profeta Joel (Jl 2, 12-18) falando de um processo de arrependimento e retorno para Deus. Por sua vez Paulo (2Cor 5,20-6,2), escrevendo aos coríntios os alerta, dizendo que chegou o dia da salvação. Jesus também, de acordo com Mateus (Mt 6,1-6.16-18), insiste na importância de uma nova postura, pela qual se valoriza não o exterior, nem as atitudes ostensivas, mas aquilo que é feito na simplicidade, na humildade… no escondido do coração!

Quando lemos os ensinamentos de Joel percebemos que algo diferente paira no ar. Há um certo ar de comportamentos desagradáveis ao Senhor. Tanto que o profeta conclama o povo a suplicar: “Perdoa, Senhor, a teu povo...” (Jl 2,17). E o profeta também informa o que o Senhor deseja: “voltai para mim com todo o vosso coração” (Jl 2,12). O coração simboliza o centro das emoções e afetos. Sendo assim, voltar-se de todo coração significa mudar os comportamentos. E o profeta reforça o apelo do Senhor: “rasgai o coração, e não as vestes” (Jl 2,13). Ou seja, atitudes exteriores, “rasgar” a roupa para demonstrar arrependimento, pode não expressar o verdadeiro arrependimento, que se torna verdadeiro quando se “rasga” o coração.

E nós poderíamos dizer: é necessário queimar as velhas atitudes para que das suas cinzas cresçam comportamentos edificantes, os quais podem conduzir à “justiça de Deus” (2Cor 5,21), de acordo com Paulo.

Essa transformação esperada de cada um e de todos é o caminho para “não receberdes em vão a graça de Deus” (2 Cor 6.1), como diz o apóstolo. Importa, pois valorizar a graça recebida uma vez que “é agora o momento favorável, é agora o dia da salvação” (2 Cor 6,2). Não existe essa de que “amanhã” eu mundo, no “no próximo ano” eu faço isso… O depois pode ser tarde demais!

Como isso é possível? alguém pode perguntar. Como transformar a vida, mudando as atitudes? Jesus dá a resposta: fazer o que é agradável a Deus e não às aparências. É necessário tomar cuidado para “não praticar a vossa justiça na frente dos homens, só para serdes vistos por eles” escreve Mateus (Mt, 6,1).

Quem deseja as coisas do alto, não pode estar preso às coisas de baixo. E aqui cada um de nós pode se interrogar: o que faço é para agradar a Deus ou para que as pessoas vejam? Faço caridade porque aquela pessoa que ajudei está precisando ou para que os amigos, a comunidade, a sociedade… para que as pessoas vejam que sou caridoso?

Não é a ostentação, mas a humildade. Quem faz para ser visto, já recebeu a recompensa; quem faz na simplicidade humilde, será notado por Deus, afirma Jesus: “quando deres esmola, que a tua mão esquerda não saiba o que faz a tua mão direita, (Mt 6,3); “quando tu orares, entra no teu quarto, fecha a porta, e reza ao teu Pai que está oculto” (Mt6 6,6); “quando jejuares, perfuma a cabeça e lava o rosto, para que os homens não vejam que tu estás jejuando, mas somente teu Pai, que está oculto” (6,17-18). Assim procedendo, receberemos a recompensa de Deus: “o teu Pai, que vê o que está escondido, te dará a recompensa” (Mt 6,4.16.18).

Como estamos celebrando a quarta feira de cinzas, a Igreja também nos propõe a restauração do diálogo, como meio de estabelecer a fraternidade e, dessa forma, ampliar entre as pessoas as portas do Reino.

Ocorre que devido à intolerância, de todos os níveis e em todos os níveis, cresce a divisão, a exclusão, a marginalidade. Frutos, todos, da intolerância podem ser vencidos no processo da conversão para a vida comum e pela comunhão de vidas uma vez que havendo comunhão ocorre diálogo, e este, por sua vez facilita para o crescimento do respeito, que faz crescer a fraternidade, que faz germinar a semente da nova vida e nova sociedade.

Das cinzas brota o mundo novo. Por isso a Igreja celebra o sinal de impor cinzas sobre as cabeças, pois a cinza é sinal de transformação. Isso porque nas cinzas, sinal de penitência, conversão e transformação, está a semente do reino. Pois o que agora é cinza, passou pelo fogo purificador. E assim temos todo o período da quaresma para exercitar esse processo de conversão. Para fazer germinar a semente do reino, fertilizada pela conversão, representada pelas cinzas.




Neri de Paula Carneiro

Filósofo, teólogo, historiador, mestre e educação.

Outros textos do autor:

Filosofia, História, Religião: https://www.webartigos.com/index.php/autores/npcarneiro

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TEMPO COMUM e o Tempo de Deus

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