segunda-feira, dezembro 23, 2024

Sagrada Família: para se cumprir!

Reflexões baseadas em:

Eclo 3,3-7.14-17a; Cl 3,12-21; Mt 2,13-15.19-23



Todos os que, de alguma forma, tiveram contato com os ensinamentos da Igreja, pelo menos uma vez ouviram os mandamentos. E um desses mandamentos usa estas palavras, dizendo que o filho deve “honrar pai e mãe”.

Com certeza, muitos de nós já ouvimos a afirmação de que a honra de um pai (e da mãe também!) é ver a honradez do filho.

Portanto, não vai soar estranha a afirmação de que a honra do pai, da mãe e dos filhos é um dom divino. E, se quisermos dizer de outra forma, podemos falar que a família é um dom divino para que todos cresçam diante de Deus e manifestem à sociedade esse crescimento, essa harmonia, essa capacidade de ser para o outro.

A isso nos convidam as leituras de hoje. Essas são as palavras de Mateus Mt 2,13-15.19-23, quando orienta José a cuidar e preservar o bem estar de sua família; é o que orienta Paulo falando à comunidade dos colossenses (Cl 3,12-21); é o antigo, mas atual ensinamento do Eclesiástico (Eclo 3,3-7.14-17a).

Notemos como são sábias as palavras do Eclesiástico: “Quem honra o seu pai, terá alegria com seus próprios filhos; e, no dia em que orar, será atendido” (Eclo 3,6). Trata-se de um processo de interação completo: o filho mantendo a sintonia amorosa com os pais terá, como consequência filhos que lhe trarão alegria. E, essa alegria nascendo do respeito, do amor, da alegria, da entrega… refletem o amor de Deus. Tanto isso é verdade que nosso povo criou a expressão popular: “todo que você faz a alguém, volta pra você”. Quando fazemos o bem, recebemos algo bom, como recompensa. E esse retorno, vem como dom de Deus.

Essa relação amorosa, harmoniosa, interativa e recíproca, reflete a afirmação de Paulo, mostrando como é que se manifesta o amor de Deus: “Vós sois amados por Deus, sois os seus santos eleitos. Por isso, revesti-vos de sincera misericórdia, bondade, humildade, mansidão e paciência, suportando-vos uns aos outros e perdoando-vos mutuamente” (Col 3,12-13). É como se o apóstolo estivesse dizendo: as pessoas transmitem aquilo que têm de mais importante: quem está repleto do amor de Deus transborda em amor, bondade, misericórdia, mansidão, … Porém, e infelizmente, aqueles que não se deixam preencher nem tocar pelo amor de Deus acabam sendo portadores da discórdia, desunião, inveja…

A presença do amor de Deus constrói a comunidade e o seu oposto a destrói. O amor de Deus ajuda a estreitar os laços da família e em sua ausência as famílias se desintegram. O amor de Deus, na vida das pessoas, faz com os indivíduos sejam altruístas e o fechamento ao amor evidencia pessoas egoístas, mesquinhas, vazias, melancólicas, promotoras de discórdias…

Pensando nisso, vale a pena cada um de nós analisarmos nossas atitudes. Perguntando-nos: como agimos em nossa relação com as outras pessoas?

E aqui podemos ter como exemplo a Sagrada Família. Na narrativa de Mateus, assistimos os transtornos e, com certeza, as dificuldades, enfrentadas por José, Maria e Jesus Menino. Mas em nenhum momento vemos uma reação irada de José. Ele não reclama por estar sendo perseguido. Ele apenas e fielmente segue as orientações do anjo. Fugiu para o Egito, para proteger o menino e a família; voltou do Egito para se reinstalar em sua terra; apressadamente mudou os planos para não correr o risco de ser ameaçado pelos herdeiros do perseguidor…

É claro que Mateus justifica toda essa trajetória da Família Sagrada: afirma que assim ocorreu “para se cumprir” (Mt 2,15.26). Entretanto, a trajetória humana dessa família poderia gerar reclamação e irritação, poderia gerar descontentamento pelo desconforto; poderia ocorrer que José dissesse a Maria algo como: “viu o que Deus está nos aprontando?”; ou então: “Tudo isso porque você aceitou a missão de ser mãe de Deus”; ou ainda “não vamos fugir, se o filho é mesmo de Deus, Deus vai cuidar dele!” Mas José não agiu assim! Ele era uma pessoa honrada!

José assumiu a missão e a levou a cabo do começo ao fim; Maria assumiu uma tarefa e a cumpriu plenamente. O casal sagrado aceitou o desafio, sofreu as consequências, mas quem disse que a vida é fácil?

Por essas e outras tantas é que celebramos a Sagrada Família: poderia ter sido feito diferente, mas essa família cumpriu com seu papel de nos dar o Salvador.

Neri de Paula Carneiro

Mestre em educação, filósofo, teólogo, historiador

Outros escritos do autor:

Filosofia, História, Religião: https://www.webartigos.com/index.php/autores/npcarneiro;

Literatura: https://www.recantodasletras.com.br/autor.php?id=220242

quinta-feira, dezembro 05, 2024

Imaculada Conceição: A mulher que tu me deste

Reflexões baseadas em: Gn 3,9-15.20; Ef 1,3-6.11-12; Lc 1,26-38





Na celebração da Imaculada Conceição, a Igreja nos propõe algumas leituras intrigantes e instigantes, como esta de Gênesis (Gn 3,9-15.20), sobre a conduta de Adão, Eva e a Serpente enquanto viviam no paraíso.

Outro texto que também nos interpela é o discurso de Paulo, escrevendo à comunidade de Éfeso (Ef 1,3-6.11-12). Um trecho no qual o apóstolo mostra a intensidade do amor de Deus.

Por quê essas passagens chamam nossa atenção?

Por que, se na narrativa de Gênesis contemplamos a ação humana transgredindo a norma divina, por seu lado Paulo mostra a gratuidade da ação divina vindo ao encontro da humanidade. Contraposta à transgressão humana, nas origens, vemos a gratuidade do amor divino chamando-nos à santidade, como afirma Paulo: Deus “nos escolheu, antes da fundação do mundo, para que sejamos santos e irrepreensíveis sob o seu olhar, no amor” (Ef 1,4).

Assim temos, de um lado, a conduta dos três personagens do Gênesis e de outro a proposta de Paulo; de um lado a rebeldia/desobediência para com Deus e seus preceitos e do outro o apóstolo mostrando que o Deus trindade nos ama, pois o Pai “nos abençoou com toda a bênção do seu Espírito em virtude de nossa união com Cristo, no céu” (Ef 1,3).

Outro detalhe se evidencia na narrativa do mito da criação. O homem, a mulher e a serpente transgridem a ordem divina, mas nenhum deles assume a responsabilidade de seu ato: o homem não nega seu ato, mas afirma que o praticou, primeiro por causa de Deus e depois por influência da mulher. Atribui a Deus a causa do seu ato, como quem diz: “Deus, você é o responsável pelo meu erro. Comi a fruta por causa da “mulher que TU me deste” (Gn 3,12). Em sua defesa, o homem argumenta nestes termos: “Uma vez que eu comi o fruto proibido por causa da mulher e quem colocou a mulher do meu lado foste tu, então tu és o culpado pelo meu erro”. E vai adiante, dizendo: “ela que me ofereceu, não fui eu quem pediu”.

Ou seja, o infrator não nega o ato, mas foge da responsabilidade culpabilizando a outros. O mesmo fez a mulher: confessa que se deixou levar pelo ardil da serpente: “A serpente enganou-me e eu comi” (Gn 3,13). Ambos se esquecem de que são livres para dizer não! Da mesma forma que foram livres para dizer si!

Em razão de seu ato a serpente foi punida: tornou-se um ser maldito, rastejante e inimigo. Vai ferir e ser ferida, na relação com o ser humano (Gn 3, 14-15). Porém e apesar de toda essa rede de transgressão Paulo chama nossa atenção para um detalhe: o amor de Deus não tem limites e mesmo considerando a transgressão humana; mesmo diante da ingratidão humana, permanece o amor divino. Pode ter se iniciado um processo de perda da graça, devido à fraqueza humana, mas permanece o convite para alimentar a esperança: “fomos predestinados a sermos, para o louvor de sua glória, os que de antemão colocaram a sua esperança em Cristo” (Ef 1,11-12).

Porém, a singularidade da Palavra de Deus nos mostra o passo seguinte. No primeiro ato, a ação do primeiro casal foi causa da decadência; o homem acusa Deus e a mulher pela sua queda; a mulher acusa a serpente, por tê-la enganado; e a serpente recebe a maldição… Mas a ação de Deus não se limita às fraquezas humanas. Por isso resgata o ser humano integral resgatando o protagonismo da mulher. E assim, Maria a mãe de Jesus entra em cena.

E entra em cena para mostrar o que a mulher do Gênesis não conseguiu mostrar. Ou mostrou só uma parte daquilo que é a proposta divina para a mulher.

Deve-se notar, entretanto, que apesar de ter se deixado levar pela trama da serpente, ela não perdeu a sintonia com o Senhor e por isso mereceu o título de “mãe de todos os viventes” (Gn 3,20). Porém Maria está num outro patamar: ela surge em cena sob a sombra do Espírito (Lc 1,35), numa proposta para ser a mãe de Deus (Lc 1,31-32).

O fato é que Maria entra em cena para corrigir o “tropeço” de Eva. Enquanto Eva oferece o fruto proibido, Maria oferece o Filho de Deus. Enquanto Eva perde o paraíso Maria é a “cheia de graça” (Lc 1,28)que vai dar à luz o “filho do Altíssimo”. Enquanto Eva reconhece que foi enganada pela serpente, Maria pondera: “como será isso?” e se coloca à disposição: “eis a serva do Senhor”. Assim temos Eva que se deixou enganar e com sua transgressão disse não a Deus para sim à serpente; por seu lado Maria diz não a possíveis projetos pessoais de uma donzela para dizer sim a Deus: faça-se em mim segundo tua palavra” (Lc 1,38).

É assim que a Igreja olha para a mãe de Jesus. Como aquela que encontrou “graça diante de Deus”; como aquela que é “cheia de graça” ao ponto de conceber e dar à luz; como aquela que tem consciência de sua situação para argumentar “não conheço homem algum”; e, principalmente, como aquela que, consciente das dificuldades a serem superadas, aceita do desafio: “faça-se em mim…!”

No dia em que a Igreja celebra a Imaculada Conceição da Mãe de Jesus, também nos propõe a reflexão sobre esse contraste: os personagens do paraíso o perderam porque preferiram aceitar a proposta da serpente; por seu lado, Maria de fora do Paraíso fez-se mãe daquele que pode nos conduzir de volta a ele. Adão tenta se esquivar de sua responsabilidade, falando que seu erro se deve à “mulher que tu me deste”, culpando ao próprio Criador, que o fez livre; por seu lado, Maria sem maiores pretensões aceita o desafio.

E nós, ao contrário de Adão, podemos dizer que essa “mulher que tu nos deste” é, para nós, o grande modelo para dizer sim a Deus…





Neri de Paula Carneiro

Mestre em Educação, filósofo, teólogo, historiador

Outros escritos do autor:

Filosofia, História, Religião: https://www.webartigos.com/index.php/autores/npcarneiro;

Literatura: https://www.recantodasletras.com.br/autores/neripcarneiro.

Sagrada Família: para se cumprir!

Reflexões baseadas em: Eclo 3,3-7.14-17a; Cl 3,12-21; Mt 2,13-15.19-23 Todos os que, de alguma forma, tiveram contato com os ensinamentos d...