(Eclesiástico 27,33–28,9; Romanos 14,7-9; Mateus 18,21-35)
Pedro, sem dúvidas, é um dos personagens mais importantes na literatura dos evangelhos. E não estamos falando isso porque Jesus o colocou como chefe da Igreja ou por outra virtude apostólica. Sua importância é, realmente, como personagem literário. É dele que saem algumas das perguntas mais instigantes e propulsoras para os ensinamentos do Senhor.
Por vezes a pergunta de Pedro pode parecer meio infantil ou de quem não entendeu a proposta do Mestre. Entretanto, do ponto de vista literário, representam a continuidade de um discurso, a proposta de um aprofundamento ou mesmo a proposição de uma nova temática. Muitas vezes nos deparamos com uma pergunta a partir da qual Jesus reformula uma norma que era para ser maravilhosa, mas que ficou engessada no legalismo judaico.
No evangelho segundo Mateus (18,21-35) é que nos vem esta preciosidade: a pergunta que já vimos, lemos, repetimos e, talvez ainda não tenhamos entendido: “Senhor, quantas vezes devo perdoar, se meu irmão pecar contra mim? Até sete vezes?” (Mt 18,21).
Evidentemente, do ponto de vista literário, a pergunta tem a finalidade de promover um novo discurso; um novo ensinamento. Poderíamos até dizer que a pergunta de Pedro, aponta para uma teologia da reciprocidade.
E Jesus responde. Muito mais do que um discurso sobre o perdão, Jesus subverte os valores, apresentando a norma da reciprocidade positiva. Não mais o antiquado “olho por olho, dente por dente”, mas a proposição de uma nova postura. Jesus ensina que o perdão não é para ser dado sete vezes, mas setenta vezes sete, que também não é somente quatrocentas e noventa vezes. A intenção do mestre é dizer: “Perdoa sempre!” Quantas vezes? Sempre!
Dá pra imaginar que Jesus disse mais. Talvez tenha dito também: “perdoa sempre, porque é melhor, é mais saudável!; é mais divino, ter um coração amoroso do que rancoroso!” “Perdoa sempre porque você ficará no lucro, ficará mais leve sem o peso do rancor!”
“Deus perdoa sempre!”, possivelmente disse Jesus, ao complementar seu discurso. “Você deve perdoar sempre, porque é assim que faz o Pai. Por ser plenamente amoroso, o Pai perdoa sempre.” Jesus, com certeza, exemplificou seu discurso, retomando o livro do Eclesiástico (27,33–28,9). É bastante provável que tenha se reportado à afirmação: “O rancor e a raiva são coisas detestáveis, até o pecador procura dominá-las” (Eclo 27,33). E hoje poderíamos acrescentar: uma pessoa sensata não realimenta o rancor e a raiva.
Esses sentimentos existam em nós. Nos os experimentamos diante das adversidades e contrariedades. Porém dá para dizer mais: esses sentimentos permanecem em nós somente se os alimentarmos; eles desaparecem, quando alimentamos o bem querer. É esse o conselho do Eclesiástico (28,9) “Pensa na aliança do Altíssimo, e não leves em conta a falta alheia!”.
Isso implica dizer que as causas dos nossos descontentamentos, que produzem a ira, o ódio, o rancor, a raiva, a sede de vingança… existem e nós as experimentamos. Mas está em nosso poder alimentá-los ou dominá-los, como sugere o Eclesiástico.
Com Paulo (Rm 14,7-9) podemos dizer que nossa vida é para o Senhor e, portanto, devemos alimentar não os sentimentos de ira, de rancor, de raiva, de vingança…, mas o contrário: o sentimento de “ser para o outro” uma vez que “ninguém dentre nós vive para si mesmo” (Rm 14,7). E se não vivemos para nós, como ensina o apóstolo, vivemos para outro: primeiro para o Senhor, mas nossa vida para Deus só se realiza no viver para os outros.
E aqui cabe a indagação fundamental: não estamos livres de errar. Sendo assim, como queremos ser tratados quando cometemos um deslize ou magoamos alguém? Ou quando pecamos ou fizemos algo que não deveria ser feito? Será que gostaríamos de ser odiados, tratados com ira, com rancor e raiva? Será que gostaríamos de ser agredidos e xingados? Então vale o sentimento recíproco, caso alguém nos ofenda ou faça algo indevido, cometa um pecado, um deslize…
E não se trata de fazer aos outros o que queremos que nos façam porque queremos receber a recompensa. Se assim fosse estaríamos apenas fazendo um negócio. Se faço o bem, querendo receber um bem em troca, não estou fazendo o bem para quem o recebeu, mas em meu próprio benefício. E, nesse caso, o bem feito ao outro não teve valor de bem, mas um valor comercial. O bem feito só tem valor, só é um bem, quando feito para o outro. A reciprocidade positiva implica nisso: fazer o bem (perdoar; apagar o rancor; eliminar a raiva, o ódio e a sede de vingança…) significa fazer o que tem que ser feito.
É a lição de Jesus na parábola do devedor maldoso. Ele foi perdoado em suas dívidas, seus inúmeros pecados. E foi perdoado não porque pediu, mas por benevolência, pela “compaixão”: “o patrão teve compaixão, soltou o empregado e perdoou-lhe a dívida. (Mt 18,27). Mas o devedor não agiu com a mesma compaixão, por isso perdeu o privilégio do perdão. O ato do perdão, portanto, não envolve o que pode vir depois como recompensa, mas como retransmissão do bem recebido. E isso tem que ser feito com o coração (Mt 18,35).
Então, quantas vezes perdoar? Jesus ensina que não se trata de quantidade, mas de intensidade. A intensidade da misericórdia divina deve ser nosso parâmetro para a nosso perdão e compaixão
Neri de Paula Carneiro
Mestre em educação, filósofo, teólogo, historiador
Outros escritos do autor:
Filosofia, História, Religião: https://www.webartigos.com/index.php/autores/npcarneiro;
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