sábado, 10 de abril de 2021

Páscoa 2 - Um só coração



(Reflexões baseadas em: 4,32-35; 1Jo 5,1-6; Jo 20,19-31)




Acabamos de celebrar a Páscoa. Por esse motivo a liturgia nos convida a continuar nesse mesmo clima de alegria e compromisso.

Mas esse convite da liturgia, também nos lança um desafio para nossa fé. E trata-se de um desafio porque não se baseia no que dizemos, mas no que fazemos. Não se expressa em palavras, mas em atitudes...afinal, viver em “um só coração e uma só alma”, não é fácil!

Os Atos dos Apóstolos (4,32-35) nos colocam diante de um desafio para a fé numa experiência comunitária. Aqui nos é apresentado um modelo de comunidade ideal na qual “ninguém passava necessidade” (At 4,34). A base dessa comunidade comunista eram os apóstolos que “davam testemunho da ressurreição do Senhor Jesus” (At 4,33). Um testemunho que tem a solidariedade como pressuposto.

Na primeira carta de são João (5,1-6) o desafio consiste em nos identificarmos com Jesus, o vencedor do mundo, vencedor da morte, promotor da vida e aquele que concede todas as vitórias, uma vez que todas as vitórias tem a fé, como ponto de partida. Nas palavras do apóstolo: “Esta é a vitória que venceu o mundo: a nossa fé” (1Jo 5,4). Vencer na vida não é impossível, desde que a vida e a vitória tenham a fé como fundamento. “Quem é o vencedor do mundo, senão aquele que crê que Jesus é o Filho de Deus?” (1 Jo 5,5).

O evangelho, João (20,19-31) nos apresenta a radicalidade do desafio da fé. A fé de quem viu o ressuscitado é uma proposta para acreditar sem ver. É o próprio Senhor que exige essa radicalidade: “Jesus lhe disse: 'Acreditaste, porque me viste? Bem-aventurados os que creram sem terem visto!'” (Jo 20,29).

E aqui está o desafio: nada mais do que o próprio ato de fé.

A maioria de nós está acostumada e aceitamos aquilo que pode ser facilmente comprovado. Vivemos numa sociedade em que a demonstração, a prova, a evidência...são exigidos como critério de relacionamento. Raramente alguém acredita no que o outro afirma, só porque essa pessoa afirmou. Mesmo que ela seja merecedora de credibilidade permanece o “será?”. Uma das expressões que já esteve na boca da maioria de nós: “sou igual São Tomé: só acredito vendo...”. Essa é uma das frases mais impróprias para quem se confessa cristão.

É verdade que estamos inseridos numa sociedade de aparências, num mundo de falsidades e envolvidos em relações parciais, tendenciosas… por tudo isso é quase natural que não acreditemos. E, aqui está a questão: se não damos crédito ao que nos dizem aqueles com os quais convivemos, como podemos dar crédito a personagens como Jesus e seus apóstolos? E o que é pior, corremos o risco de estarmos frequentando alguma comunidade não porque acreditamos, mas porque assim aprendemos com nossos pais, com os mais velhos; essa participação pode tratar-se de uma ação cultural e não de um ato de fé!

Neste ponto, alguém pode estar se perguntando e perguntando também a mim: mas então, em que consiste a fé, como podemos caracterizar a crença?

Não sou eu que respondo, mas a própria Palavra Santa: a fé é expressão de uma vida e se manifesta como gesto doador de vida. Não é possível alguém dizer que tem fé se ela não se traduz nem se manifesta em gestos concretos. A fé que dizemos ter, precisa ser confrontada com a postura da sociedade ideal, dos Atos. Tem que estar adequada à vida plena manifestada pela Palavra Santa, que foi escrita para gerar fé e vida. “Estes foram escritos para que acrediteis que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus, e para que, crendo, tenhais a vida em seu nome.” (Jo 20,31).

A proposta da comunidade apresentada aos primeiros cristãos e uma exigência feita também a nós: construir uma sociedade na qual tudo seja “distribuído conforme a necessidade de cada um” (At 4,35). Uma afirmação que tem por fundamento ou que se manifesta numa outra: tudo que sobra das minhas necessidades é o que está faltando àqueles que sentem necessidades…; tudo que está em meu poder e que ultrapassa minhas necessidades, não me pertence, mas pertence àqueles que necessitam…

É aqui o ponto em que se comprova a fé: na capacidade de partilhar! Dizia um sábio bispo: “A fé entra pelos ouvidos, chega ao coração. Se atravessar o bolso, é uma fé garantida e manifesta-se numa pessoa desapegada”. E não se trata de nenhum rótulo sócio-político. Trata-se de palavra de Deus. Trata-se de um modelo de sociedade em que a base das relações é ser capaz de ajudar a eliminar a necessidade do outro.

Como se pode ver, a radicalidade da fé é exigente e tem consequências. Ela é revolucionária. Quem, efetivamente, foi tocado por ela, será mais um dos poucos a ajudar na construção da sociedade da paz, pois a estes, constantemente Jesus oferece: “A paz esteja convosco” (Jo 20,19). Entretanto, no mundo da paz não pode haver necessitados. A ausência da paz é evidenciada pela presença de pessoas necessitadas. Enquanto existirem pessoas necessitadas não haverá paz.

Aqui está, portanto, o grande desafio: construir uma sociedade, uma comunidade em que a norma de vida seja “um só coração e uma só alma!”

Neri de Paula Carneiro

Mestre em educação, filósofo, teólogo, historiador.

Outros escritos do autor:

Filosofia, História, Religião: https://www.webartigos.com/index.php/autores/npcarneiro

Literatura: https://www.recantodasletras.com.br/autores/neripcarneiro

Um comentário:

CICLO DA PÁSCOA: A vitória da vida.

Disponível em: https://pensoerepasso.blogspot.com/2024/03/ciclo-da-pascoa-celebrar-vida.html; https://www.recantodasletras.com.br/artigos-de...