sexta-feira, setembro 11, 2020

Quantas vezes?

Pedro, sem sombra de dúvidas, é um dos personagens mais importantes, na literatura dos evangelhos. E não estamos falando isso porque Jesus o colocou como chefe da Igreja ou por outra virtude apostólica. Sua importância é, realmente, como personagem literário. É dele que saem algumas das perguntas mais instigantes para e propulsoras de nos ensinamentos do Senhor.

Por vezes a pergunta de pedro pode parecer meio infantil ou de quem não entendeu a proposta do Mestre. Entretanto, do ponto de vista literário, representam a continuidade de um discurso, a proposta de um aprofundamento ou mesmo a proposição de uma nova temática.

Neste vigésimo quarto domingo do tempo comum temos mais um exemplo da importância desse personagem. Mais uma vez nos deparamos com uma pergunta a partir da qual Jesus reformula uma norma que era para ser maravilhosa, mas que ficou engessada no legalismo judaico.

Do evangelho segundo Mateus (18,21-35) é que nos vem a pergunta petrina que já vimos, lemos, repetimos e, muitos de nós, até já comentamos: “Senhor, quantas vezes devo perdoar, se meu irmão pecar contra mim? Até sete vezes?” (Mt 18,21).

Evidentemente, do ponto de vista literário, a pergunta tem a finalidade de promover um novo discurso; um novo ensinamento. Poderíamos até dizer que a pergunta de Pedro, aponta para uma teologia da reciprocidade.

E Jesus responde. Muito mais do que um discurso sobre o perdão, Jesus subverte os valores, apresentando a norma da reciprocidade positiva. Não mais o antiquado “olho por olho, dente por dente”, mas a proposição de uma nova postura. Jesus ensina que o perdão não é para ser dado sete vezes, mas setenta vezes sete, que também não é somente quatrocentas e noventa vezes. A intenção do mestre é dizer: “Perdoa sempre!”

Podemos imaginar que Jesus tenha dito mais. Possivelmente ele disse: “perdoa sempre, porque é melhor, é mais saudável; é mais divino, ter um coração amoroso do que um coração repleto de rancor”

“Deus perdoa sempre!”, possivelmente disse Jesus, ao complementar seu discurso. “Você deve perdoar sempre, porque é assim que faz o Pai. Por ser plenamente amoroso, o Pai perdoa sempre.” Jesus, com certeza, exemplificou seu discurso, retomando o livro do Eclesiástico (27,33–28,9). É bastante provável que tenha se reportado à afirmação do Eclesiástico, dizendo que “O rancor e a raiva são coisas detestáveis, até o pecador procura dominá-las.” (Eclo 27,33). E nós poderíamos dizer que qualquer pessoa sensata não realimenta o rancor e a raiva.

Esses sentimentos existam em nós. Nos os experimentamos diante das adversidades e contrariedades. Dá para dizer mais: esses sentimentos permanecem em nós somente se os alimentarmos; e desaparecem com o tempo, quando alimentamos o bem querer. Aliás, é o conselho do Eclesiástico (28,9) “Pensa na aliança do Altíssimo, e não leves em conta a falta alheia!”.

Isso implica dizer que as causas dos nossos descontentamentos, que produzem a ira, o ódio, o rancor, a raiva, a sede de vingança… existem e nós as experimentamos. Mas está em nosso poder alimentá-los ou dominá-los, como sugere o Eclesiástico.

Com Paulo (Rm 14,7-9) podemos dizer que nossa vida é para o Senhor e, portanto, devemos alimentar não os sentimentos de ira, de rancor, de raiva, de vingança…, mas, pelo contrário, o sentimento de “ser para o outro” uma vez que “ninguém dentre nós vive para si mesmo” (Rm 14,7). E se não vivemos para nós mesmos, como ensina o apóstolo, vivemos para outro: primeiro para o Senhor, mas nossa vida para Deus só se realiza no viver para as pessoas.

E aqui cabe a indagação fundamental: como queremos ser tratados quando cometemos um deslize ou magoamos alguém? Ou quando pecamos ou fizemos algo que não deveria ser feito? Será que gostaríamos de ser odiados, tratados com ira, com rancor e raiva? Então vale o sentimento recíproco, caso alguém nos ofenda ou faça algo indevido, cometa pecado, um deslize…

E não se trata de fazer aos outros o que queremos que nos façam porque queremos receber a recompensa. Caso assim fosse estaríamos apenas fazendo um negócio. Se faço o bem, querendo receber um bem em troca, não estou fazendo o bem para quem recebeu o bem que fiz, mas estou fazendo em meu próprio benefício. Então, nesse caso o bem feito ao outro não teve valor de bem, mas um valor comercial. O bem feito só tem valor, só é um bem, quando é feito para o outro. A reciprocidade positiva implica nisso: fazer o bem (perdoar; apagar o rancor; eliminar a raiva, o ódio e a sede de vingança…) significa fazer o que tem que ser feito.

É a lição de Jesus na parábola do devedor maldoso. Ele foi perdoado em suas dívidas, ou seja, em seus inúmeros pecados. E foi perdoado não porque pediu, mas por benevolência ou pela “compaixão” do patrão: “o patrão teve compaixão, soltou o empregado e perdoou-lhe a dívida. (Mt 18,27). Mas o devedor não agiu com a mesma compaixão com seu companheiro e por isso perdeu o privilégio do perdão. O ato do perdão, portanto, não envolve o que pode vir depois como recompensa, mas como retransmissão do bem recebido. E isso tem que ser feito com o coração (Mt 18,35).

Então, quantas vezes perdoar? Jesus ensina que não se trata de quantidade, mas de intensidade. Nossa medida é intensidade da misericórdia e da compaixão divina.



Neri de Paula Carneiro

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