sexta-feira, 18 de setembro de 2020

Pagarei o que for justo

Em que consiste o pagamento justo? Quem paga o que é justo? Qual é a justiça do pagamento do salário?

Estas indagações nos chegam a parir da proposta de Jesus (Mt 20,1-16a), neste vigésimo quinto domingo do tempo comum. Essa proposta nos apresenta um patrão que, ao longo do dia, contratou trabalhadores em diferentes horários e, ao final do expediente, a todos deu o mesmo pagamento.

Esse gesto do patrão, pagando a todos igualmente, independentemente do tempo trabalhado, gerou descontentamento entre os operários que trabalharam mais tempo ou o dia inteiro. Reclamaram porque os últimos só trabalharam uma hora e receberam o mesmo valor daqueles que haviam trabalhado a jornada inteira. “Ao receberem o pagamento, começaram a resmungar contra o patrão: ‘Estes últimos trabalharam uma hora só, e tu os igualaste a nós, que suportamos o cansaço e o calor o dia inteiro’” (Mt 20,11-12).

Relendo essa parábola podemos dizer que muitos de nós, com certeza, daríamos razão aos trabalhadores resmungões. Afinal de contas se quem trabalhou só uma hora recebeu uma diária, aquele que trabalhou o dia inteiro deveria receber muito mais. Entretanto, é bom nos lembrarmos que este é o pensamento capitalista. Economicista. Interesseiro. Egoísta… não é uma postura cristã!

Neste ponto é que se encaixam nossas indagações iniciais: em que consiste o pagamento justo? Quem paga o que é justo? Qual é a justiça do pagamento do salário?

Para entender isso e saber o porquê de Jesus ter contado essa parábola, temos que nos atentar às palavras de Isaías (55,6-9). Principalmente quando o profeta diz: “Meus pensamentos não são como os vossos pensamentos, e vossos caminhos não são como os meus caminhos, diz o Senhor. Estão meus caminhos tão acima dos vossos caminhos e meus pensamentos acima dos vossos pensamentos quanto está o céu acima da terra” (55,8-9). Ou seja, o ser humano tem dificuldade para entender o projeto de Deus.

O fato é que Jesus está se referindo à justiça do Reino, onde não há um que recebe uma graça maior do que a graça que o outro recebeu, pois todos recebem, plenamente, a graça de Deus. E se a graça é plena, não tem um que a receba mais do que o outro. E quem recebe a graça não a recebe por mérito próprio, mas porque Deus a deu. Por isso é graça, é dom de Deus. Por isso Paulo (Fl 1,20c-24.27a), faz esta afirmação precisa: “Só uma coisa importa: vivei à altura do Evangelho de Cristo.” (Fl 1,27). Essa é a base sobre a qual se realiza a justiça divina: viver em sintonia com o Evangelho.

Mas então reflitamos nossas indagações.

Quem paga está retribuindo algo que recebeu. Houve uma troca. E, para ocorrer a troca, as partes envolvidas estabelecem, antecipadamente, os valores. Trata-se de uma negociação, mais ou menos nestes termos: “eu te dou isto em troca daquilo. Você aceita a troca?” Se as partes entrarem num acordo e ambos aceitarem e concordarem que “isto” pode pode ser trocado por “aquilo” então a transação acontece de foma justa: os dois lados concordaram.

Mas pode acontecer que ocorra um “acordo” forçado por alguma circunstância, de modo que “isto”, de fato, tenha um valor menor do que “aquilo”. E o possuidor “daquilo” seja como que obrigado a aceitar “isto” como pagamento. Nesse caso não será um pagamento justo, pois uma das partes foi obrigada a aceitar o que de fato não aceitaria se as circunstâncias fossem outras.

O pagamento dos salários, por exemplo. Não são um pagamento justo, embora estejam protegidos pela lei. O salário, portanto, está dentro da legalidade, mas não se enquadra na justiça. E por que não é justo? Porque o assalariado não tem poder de negociação. Ele tem que aceitar o que lhe foi imposto. Pode até não aceitar esse salário e não trabalhar, mas, nesse caso, ficará em uma situação de maior penúria ainda. Então, forçado pela necessidade aceita. Por outro lado, todos sabemos que aquele que lhe paga o salário se beneficia muito mais com os resultados do trabalho do trabalhador do que o trabalhador com o salário recebido. E por isso o pagador de salário cria mecanismos para justificar (as leis) e convencer o recebedor de salário de que foi uma relação/troca justa. Para sabermos se houve justiça basta invertermos os papéis para ver se o pagador consegue e aceita sobreviver com aquilo que paga. Se não aceita lucrar somente o valor que paga como salário, é porque sabe que o que está pagando não é justo. Pode até criar mil e uma justificativas para dizer de suas responsabilidades… etc… mas se não aceita viver com o que paga a quem produz é porque sabe que não está praticando justiça. Seria feita justiça se todos os envolvidos no processo usufruíssem dos mesmos benefícios, sem que um fosse mais beneficiado que os outros.

Qual foi a proposta de Jesus? Com aqueles que contratou de madrugada, combinou uma “uma moeda de prata” (Mt 20,2). Com aqueles das nove horas combinou pagar “o que for justo” (Mt 20,4). Ao meio dia e às três horas “fez a mesma coisa” (Mt 20,5), isto é, prometeu “o que for justo”. E na última hora, àqueles a quem “ninguém contratou” (Mt 20,7) nada prometeu. Mesmo sem promessa de pagamento, foram ao trabalho. E, no acerto das contas, foram os primeiros a receber “uma moeda de prata” (Mt 20,9).

Por que pagou a todos igualmente? Por que disse: “Eu quero dar a este que foi contratado por último o mesmo que dei a ti (Mt 20,14)? Certamente não foi pelo volume da produção. O que estava em jogo não era a produção, mas a sobrevivência. Tanto os primeiros como os últimos, tinham que sobreviver, por isso receberam o mesmo pagamento.

Esse é o gesto da graça divina. Não é dada pelo mérito do trabalho realizado, mas pela vontade de quem pediu para o trabalho ser feito. É o dom da graça que permite a afirmação: “Pagarei o que for justo” (Mt 20,4)

Neri de Paula Carneiro

sexta-feira, 11 de setembro de 2020

Quantas vezes?

Pedro, sem sombra de dúvidas, é um dos personagens mais importantes, na literatura dos evangelhos. E não estamos falando isso porque Jesus o colocou como chefe da Igreja ou por outra virtude apostólica. Sua importância é, realmente, como personagem literário. É dele que saem algumas das perguntas mais instigantes para e propulsoras de nos ensinamentos do Senhor.

Por vezes a pergunta de pedro pode parecer meio infantil ou de quem não entendeu a proposta do Mestre. Entretanto, do ponto de vista literário, representam a continuidade de um discurso, a proposta de um aprofundamento ou mesmo a proposição de uma nova temática.

Neste vigésimo quarto domingo do tempo comum temos mais um exemplo da importância desse personagem. Mais uma vez nos deparamos com uma pergunta a partir da qual Jesus reformula uma norma que era para ser maravilhosa, mas que ficou engessada no legalismo judaico.

Do evangelho segundo Mateus (18,21-35) é que nos vem a pergunta petrina que já vimos, lemos, repetimos e, muitos de nós, até já comentamos: “Senhor, quantas vezes devo perdoar, se meu irmão pecar contra mim? Até sete vezes?” (Mt 18,21).

Evidentemente, do ponto de vista literário, a pergunta tem a finalidade de promover um novo discurso; um novo ensinamento. Poderíamos até dizer que a pergunta de Pedro, aponta para uma teologia da reciprocidade.

E Jesus responde. Muito mais do que um discurso sobre o perdão, Jesus subverte os valores, apresentando a norma da reciprocidade positiva. Não mais o antiquado “olho por olho, dente por dente”, mas a proposição de uma nova postura. Jesus ensina que o perdão não é para ser dado sete vezes, mas setenta vezes sete, que também não é somente quatrocentas e noventa vezes. A intenção do mestre é dizer: “Perdoa sempre!”

Podemos imaginar que Jesus tenha dito mais. Possivelmente ele disse: “perdoa sempre, porque é melhor, é mais saudável; é mais divino, ter um coração amoroso do que um coração repleto de rancor”

“Deus perdoa sempre!”, possivelmente disse Jesus, ao complementar seu discurso. “Você deve perdoar sempre, porque é assim que faz o Pai. Por ser plenamente amoroso, o Pai perdoa sempre.” Jesus, com certeza, exemplificou seu discurso, retomando o livro do Eclesiástico (27,33–28,9). É bastante provável que tenha se reportado à afirmação do Eclesiástico, dizendo que “O rancor e a raiva são coisas detestáveis, até o pecador procura dominá-las.” (Eclo 27,33). E nós poderíamos dizer que qualquer pessoa sensata não realimenta o rancor e a raiva.

Esses sentimentos existam em nós. Nos os experimentamos diante das adversidades e contrariedades. Dá para dizer mais: esses sentimentos permanecem em nós somente se os alimentarmos; e desaparecem com o tempo, quando alimentamos o bem querer. Aliás, é o conselho do Eclesiástico (28,9) “Pensa na aliança do Altíssimo, e não leves em conta a falta alheia!”.

Isso implica dizer que as causas dos nossos descontentamentos, que produzem a ira, o ódio, o rancor, a raiva, a sede de vingança… existem e nós as experimentamos. Mas está em nosso poder alimentá-los ou dominá-los, como sugere o Eclesiástico.

Com Paulo (Rm 14,7-9) podemos dizer que nossa vida é para o Senhor e, portanto, devemos alimentar não os sentimentos de ira, de rancor, de raiva, de vingança…, mas, pelo contrário, o sentimento de “ser para o outro” uma vez que “ninguém dentre nós vive para si mesmo” (Rm 14,7). E se não vivemos para nós mesmos, como ensina o apóstolo, vivemos para outro: primeiro para o Senhor, mas nossa vida para Deus só se realiza no viver para as pessoas.

E aqui cabe a indagação fundamental: como queremos ser tratados quando cometemos um deslize ou magoamos alguém? Ou quando pecamos ou fizemos algo que não deveria ser feito? Será que gostaríamos de ser odiados, tratados com ira, com rancor e raiva? Então vale o sentimento recíproco, caso alguém nos ofenda ou faça algo indevido, cometa pecado, um deslize…

E não se trata de fazer aos outros o que queremos que nos façam porque queremos receber a recompensa. Caso assim fosse estaríamos apenas fazendo um negócio. Se faço o bem, querendo receber um bem em troca, não estou fazendo o bem para quem recebeu o bem que fiz, mas estou fazendo em meu próprio benefício. Então, nesse caso o bem feito ao outro não teve valor de bem, mas um valor comercial. O bem feito só tem valor, só é um bem, quando é feito para o outro. A reciprocidade positiva implica nisso: fazer o bem (perdoar; apagar o rancor; eliminar a raiva, o ódio e a sede de vingança…) significa fazer o que tem que ser feito.

É a lição de Jesus na parábola do devedor maldoso. Ele foi perdoado em suas dívidas, ou seja, em seus inúmeros pecados. E foi perdoado não porque pediu, mas por benevolência ou pela “compaixão” do patrão: “o patrão teve compaixão, soltou o empregado e perdoou-lhe a dívida. (Mt 18,27). Mas o devedor não agiu com a mesma compaixão com seu companheiro e por isso perdeu o privilégio do perdão. O ato do perdão, portanto, não envolve o que pode vir depois como recompensa, mas como retransmissão do bem recebido. E isso tem que ser feito com o coração (Mt 18,35).

Então, quantas vezes perdoar? Jesus ensina que não se trata de quantidade, mas de intensidade. Nossa medida é intensidade da misericórdia e da compaixão divina.



Neri de Paula Carneiro

sexta-feira, 4 de setembro de 2020

Se ele te ouvir

O trecho do evangelho, segundo Mateus (Mt 18,15-20), que a Igreja nos propõe à reflexão, neste vigésimo terceiro domingo do tempo comum, nos traz uma frase frequentemente repetida por muitos de nós: “onde dois ou três estiverem reuni, quedos em meu nome eu estou ali, no meio deles” (Mt 18,20).

Entretanto, seria interessante situá-la, não só na liturgia, mas principalmente no contexto em que Jesus a profere. Jesus e seus discípulos não estão em clima ou numa situação de oração, como normalmente a frase é invocada, mas num contexto de orientação e de missão.

Jesus está oferecendo orientações de procedimentos em relação aos irmãos. E essas orientações, evidentemente, são destinadas a todos os cristãos, mas de maneira muito especial elas são dirigidas àquelas pessoas que desempenham alguma função de condução da comunidade, como era o caso dos discípulos a quem coube a condução da Igreja recém nascida e que estava em gestação na caminhada de Jesus e seus seguidores.

É como se estivéssemos numa escola, e a atitude de Jesus, em todo esse capítulo 18 é a postura do professor que está fazendo uma revisão da matéria para preparar os alunos para a prova. Mostra a importância dos pequenos (Mt 18 1-11); mostra como é importante resgatar os que estão pedidos (Mt 18, 12-14) e a importância do perdão (Mt 18 21-35). E a perícope que a liturgia nos propõe hoje (Mt 18,15-20) trata da postura em relação àquela pessoa que, na comunidade está agindo de forma desarmoniosa.

A pessoa ou o grupo que está em desarmonia com a comunidade deve ser “chamado a atenção” ou “corrigido” (Mt 18,15). Por quê? Porque essa situação de desarmonia quebra o clima de Igreja. Quebra a ligação com o céu. Por isso primeiro uma pessoa, depois duas ou três, e depois a própria comunidade deve ser convocada para reconduzir não só o que está fora dos trilhos, mas para que todos se reconduzam à harmonia.

Deve-se notar, também, que há uma espécie de paralelo entre a proposta dos versículos: a situação de desarmonia que está no versículo 15 tem seu paralelo no versículo 18 com a possibilidade de ligar ou desligar ao céu, restaurando a harmonia. O versículo 16, mencionando os dois desarmoniosos, deve ser lido em paralelo ao versículo 19 onde aparecem os dois em harmonia. E o versículo 17, com o julgamento da Igreja, deve ser lido em relação ao versículo 20 no qual aparece o resultado da harmonia que possibilita a presença de Deus. A harmonia entre as pessoa é um clima de Igreja e nesse ambiente eclesial Deus se faz presente. Havendo harmonia, entre dois ou três, manifesta-se a presença de Deus.

Essa mesma preocupação com a harmonia, ensinada por Jesus, já havia sido proposta por Ezequiel (33,7-9), ao dizer que o “filho do homem” (Ez 33,7) deve ser vigia e porta-voz de Deus. Afirma o profeta que o “filho do homem” recebe a função de alertar o ímpio a fim de que se converta e não morra.

Os alertas, o convite à harmonia, é a proposta dos mandamentos. Os mandamentos que deixam de ser inúmeros para serem apenas um: o amor, como ensina Paulo(Rm 13,8-10), retomando as palavras de Jesus. O amor, portanto, é a manifestação da harmonia; o amor é a advertência do profeta. Por amor é que Jesus ensina o valor daqueles que são capazes de convidar o interlocutor a retornar à harmonia: Consigo, com os outros e com o céu. E se esse interlocutor "te ouvir", diz o Senhor, (Mt 18,20) a harmonia será restituida onde há divisão.

Mas a proposta de Jesus vai além. Deseja que todos sejamos capazes não só de ouvir a proposta divina, mas principalmente que sejamos promotores da restauração dos elos partidos. E onde existem elos partidos esse é o clima e ambiente para a ação da boa palavra. E se alguém ouvir as boas palavras estará em condições de fazer com que os elos se reatem, pois, certamente, alguém "ouviu". E, então, restaura-se a harmonia;  e, então, poderemos dizer, sem sombra de dúvidas, que aí está Jesus.




Neri de Paula Carneiro

sábado, 29 de agosto de 2020

Em troca de sua vida

“Que poderá alguém dar em troca de sua vida?” (Mt 16,26) A pergunta de Jesus pode ser um norte para nossa vida. Afinal, o que vale a nossa vida? Qual o preço de uma vida?

A liturgia deste vigésimo segundo domingo do tempo comum está nos propondo refletir o sentido da vida. E uma resposta para essa indagação que fundamenta a vida não sai das palavras que podemos proferir, mas do rumo que empreendemos à nossa existência. De uma forma mais poética: o sentido da vida pode ser expresso nos passos que direcionam nosso caminhar.

Essa indagação é tão fundamental para a condução da vida que Paulo, dirigindo-se aos romanos (Rm 12, 1-2), os convida a redimensionar a vida: “eu vos exorto” (Rm 12,1), dia o apóstolo.

Exorta a quê?, poderíamos perguntar. A se oferecer a Deus, nos responde o apóstolo: “a vos oferecerdes em sacrifício vivo”. Só lembrando que sacrifício não é um ato ou situação de sofrimento, mas de entrega a Deus. O sacrifício vivo é, portanto, a entrega total a Deus,

Por que o apóstolo faz essa exortação? O raciocínio é simples: o apóstolo orienta a comunidade porque a comunidade de Roma não está se comportando em consonância com o plano de Deus, como seria de se esperar dos seguidores do Cristo, como ensinam os livros sagrados e os evangelhos. Por isso a exortação, ou seja, a orientação do apóstolo à comunidade dos romanos – e a nossa também: “Não vos conformeis com o mundo” (Rm 12,2). E aqui vale o mesmo princípio. Se a orientação é para não se conformar com o mundo é porque a comunidade está conformada. Então, em quê consiste esse “conformar”.

Inicialmente pode-se entender como aceitação. Uma pessoa que está triste por ter perdido algo, ao se conformar, aceita essa perda. Mas, parece que a intenção do apóstolo vai um pouco além: conformar, pode ser entendido, também, como entrar na forma, no jeito de ser. Assim, “não se conformar com o mundo” significa não deixar que o mundo direcione nossa vida. Conformar-se nada mais é do que viver não mais com os valores cristãos, mas com os valores do mundo. E isso não é para acontecer, diz o apóstolo. O cristão, portanto, não se deve deixar dominar pelo mundo, mas ser sinal para o mundo.

Dessa forma, também, não se conformar, ou seja, não se deixar levar pelos valores do mundo, significa, segundo Paulo, transformar-se e renovar-se. “Transformai-vos, renovando vossa maneira de pensar e de julgar” (Rm 12,2). Mas isso com que finalidade? Com a finalidade de “distinguir o que é da vontade de Deus, isto é, o que é bom” (Rm 12,2). Isso significa que o apóstolo sabe que a comunidade sediada em Roma – e hoje também a nossa comunidade – não está seguindo a vontade de Deus; não está fazendo o que é bom; não está fazendo o que lhe agrada e é perfeito… por não estarem fazendo nada disso é que o apóstolo os exorta – e também a nós – a fazer essas coisas. Se já estivessem fazendo isso, não haveria necessidade dessas orientações. Eis, portanto, um sentido para a vida: encontrar a “vontade de Deus”, realizar “o que é bom”.

A busca pelo sentido da vida e do viver, pode ser notada na curva da vida, em Jeremias (20,7-9). O que vemos acontecer com o profeta, seguidamente ocorre conosco, frente as dificuldades. A tendência, para quase todos nós, é nos abatermos; fraquejarmos diante das adversidades. É a postura de Jeremias (20,7-9). Num primeiro momento a euforia: “Tu me seduziste, Senhor, e eu me deixei seduzir! Foste mais forte” (Jr 20,7). Mas, em seguida, vem a recaída diante das dificuldades: “A palavra de Deus tornou-se para mim vergonha e gozação” (Jr 20;8) e por esse motivo, diz o profeta, “nunca mais hei de lembrá-lo, não falo mais em seu nome!” (Jr 20,9).

Mas essa postura de afastamento, de descompromisso, não dura muito, pois o fogo da Palavra mobiliza e o profeta reconsidera sua atitude. “Parecia haver um fogo a queimar-me por dentro, fechado nos meus ossos. Tentei aguentar, não fui capaz.” (Jr 20,9). Ele sabe que só no Senhor está a paz e o bem. No Senhor está o sentido da vida.

Por fim, ninguém melhor do que Jesus para, não só dizer, mas mostrar o sentido da vida. Jesus demonstra que para entender o sentido da vida, é necessário entender o sentido da dor. Por isso ele deve “ir à Jerusalém e sofrer muito” (Mt 16,21). Mas Pedro não entende isso, e se contrapõe ao plano do Mestre. “Deus não permita tal coisa” (Mt 16,22).

Pedro ainda não havia entendido que o sentido da vida é a entrega. Por estranho ou paradoxal que possa parecer, Jesus afirma – e demonstra com sua entrega – que as coisas dos homens não são coisas de Deus (Mt 16,23); que a renúncia de si é condição para o seguimento (Mt 16,24). Mostra que para ocorrer a salvação da vida é necessário entregá-la (Mt 16,25). Mostra que o mundo vale menos que a vida (Mt 16,26) e, finalmente, assegura que a entrada no Reino depende da conduta de cada um, e em seu retorno glorioso “retribuirá a cada um de acordo com a sua conduta.” (Mt 16,27).

Aqui está o sentido da pergunta: Que é necessário para ganhar a vida gloriosa? O que “dar em troca de sua vida?” (Mt 16,26). É necessário dar a vida! A vida gloriosa é o sentido desta vida.




Neri de Paula Carneiro

sexta-feira, 21 de agosto de 2020

E vós?

O Senhor cobra um posicionamento daqueles que o cercam, que dizem ter fé, que são seus anunciadores, que são seus emissários. Daqueles que se dizem cristãos, que frequentam os templos e recitam orações. A esses, a nós todos, o Senhor faz a pergunta decisiva: “quem Sou Eu, para você?”

Refletindo sobre as leituras que a liturgia deste vigésimo primeiro domingo do tempo comum nos propõe, somos apresentados a este questionamento. E se o questionamento nos é feito, de nosso lado somos convidados a dar uma resposta. Da mesma forma que o Senhor nos questiona, cabe também a nós colocarmo-nos diante da pergunta: “quem é Deus, para mim?”

Fazendo uma leitura atenta da profecia de Isaías (22,19-23), notaremos que o Senhor está descontente com o ministro Sobna, administrador do palácio real. Mas por qual motivo o Senhor está irritado com essa pessoa? Porque a ele coube dirigir uma parcela do povo de Deus, mas não estava cumprindo com essa missão. E por isso foi substituído por alguém mais dedicado às necessidades do povo. Um novo líder que “será um pai para os habitantes de Jerusalém e para a casa de Judá.” (Is 22,21). Essa missão em favor do bem do povo é atribuída a todos, mas de modo especial e com mais intensidade, essa é a missão de todos aqueles que são revestidos de alguma autoridade.

Todos os que detêm um poder ou uma autoridade, tem a obrigação, moral e religiosa, de converter esse poder em bem estar para o povo. Caso a autoridade não o faça isso, deve ser destituída do poder. Esse foi o exemplo ensinado pelo Senhor

Paulo, na carta aos Romanos (11,33-36), acrescenta um novo motivo pelo qual cada um de nós e, principalmente aqueles que são revestidos de alguma autoridade, devemos nos colocar a serviço de todos. O apóstolo nos informa: “tudo é dele, por ele, e para ele” (11,36). isso significa que, se tudo pertence ao Senhor, não temos direito de profanarmos a obra de Deus: sua criação e as pessoas (a natureza a nós doada, não por nossos méritos, mas pela grandeza da graça do Pai, deve ser reverenciada; as pessoas, nossos semelhantes, merecem de nós aquilo que nós gostaríamos de receber deles!). Portanto, se tudo pertence ao Senhor, quem somos nós para agredirmos essa obra? Com que direito concentramos poderes e riquezas enquanto milhares de pessoa passam dificuldades?

Não é diferente aquilo que Jesus afirma. Nas palavras de Jesus, segundo o evangelho de Mateus (16,13-20) a orientação sobre a postura de todos nós nasce de duas indagações: “Quem dizem os homens ser o Filho do Homem?” (Mt 16,13). E os discípulos informam: “Alguns dizem que é João Batista; outros que é Elias; Outros ainda, que é Jeremias ou algum dos profetas.” (Mt 16,14). Ou seja, as pessoas, mesmo aqueles que estão próximas dos ensinamentos, ainda não conhecem o Senhor.

Deus sabe quem é, o que se propõe e qual sua proposta para as pessoas. Mas também deseja que lhe apresentemos uma resposta decisiva. Por isso Jesus é incisivo na outra indagação: “E vós, quem dizeis que eu sou?” (Mt 16,15).

E assim voltamos à indagação inicial: “quem é Deus, para mim?”

É evidente que todos nós responderemos: “É meu salvador!”; “É a razão de meu existir!”; “É a luz da minha vida!”; “Deus é tudo para mim!”… Mas, muito além daquilo que podemos dizer: “quem é Deus, para mim, não em meu discurso, mas em minha vida?”

E a verdadeira resposta não nascerá nem se apresentará em palavras por meio de um belo discurso… Tudo que se possa dizer, pode ser apenas para cumprir com as convenções, para manter as aparências, para satisfazer as ambiguidades de cada um.

A verdadeira resposta, não está nas palavras, mas nos comportamentos. Eu, e você também, externaremos nossa resposta com nossas atitudes.

Talvez por isso, quando Pedro disse que Jesus é “o Messias, o Filho do Deus vivo” (Mt 16,16), tenha recebido o poder das chaves (Mt 16,19, da mesma forma que fora prometido a Eliacim, na profecia de Isaías 22,22). Ou seja, aquele que reconhece Jesus, recebe, também uma autoridade… e uma missão: ser ponte!

Resta, talvez, uma última indagação: por que Jesus pede segredo em relação àquilo que Pedro revelou? “Jesus, então, ordenou aos discípulos que não dissessem a ninguém que ele era o Messias.” (Mt 1620).

Uma possível resposta, que também depende de nossa postura, é que Jesus continua fazendo a pergunta a cada pessoa. E espera de cada um a sua resposta pessoal e existencial. Uma resposta que vai além das palavras para se manifestar nas atitudes.

A cada instante Jesus nos dirige a pergunta: “E vós, quem dizeis que eu sou?”

Qual vai ser a tua resposta?

Neri de Paula Carneiro

sexta-feira, 14 de agosto de 2020

Realizou-se a salvação

Celebramos hoje a Assunção de Nossa Senhora. Dessa forma, o centro da liturgia que, neste domingo, correspondente ao vigésimo do tempo comum, converte-se numa solenidade com tonalidade de esperança.

Isso é o que nos mostra o livro do Apocalipse (11,19a; 12,1-6a.10ab). O conjunto das dificuldades, simbolizados no perigo do dragão diante da mulher que está para dar a luz (Ap 12,1) é superado justamente com o nascimento da criança. A vida nova, o Filho de Deus, não só representa uma promessa, como também uma esperança. Por isso, Deus arrebata a criança para junto de si. É a esperança de superação das dores do dia a dia.

O poder destrutivo do dragão da maldade, (Ap 12,4) torna-se impotente diante do poder salvífico de Deus. E assim, o Filho que veio para guiar os seres humanos; o “filho homem, que veio para governar todas as nações com cetro de ferro” (Ap 12,5) nasceu em segurança. E isso se torna uma promessa e um sinal de esperança.

Até mesmo sua mãe recebeu a proteção divina pois, “a mulher fugiu para o deserto, onde Deus lhe tinha preparado um lugar” (Ap 12,6). O lugar preparado para ela, é o seio de Deus, na festa da Assunção.

Vendo que a mãe e o filho estão protegidos, o anjo protetor pode anunciar: "Agora realizou-se a salvação, a força e a realeza do nosso Deus, e o poder do seu Cristo" (Ap 12,10).

A mãe e a criança, arrebatados, protegidos pelo poder de Deus indicam o caminho para nós preparado: o caminho para o convívio com Deus.

A mulher protegida por Deus tem uma dupla representação: primeiro representa a Igreja, o povo de Deus a caminho que se ampara e protege sob a sombra do poder divino; e também representa a mãe, Nossa Senhora, que hoje celebramos porque a acreditamos junto de Deus. E nisso consiste nossa esperança: da mesma forma que Jesus voltou para junto do Pai, na sua vitoriosa ressurreição, assim também, convidou e levou para junto de si aquela que mereceu carregá-lo no ventre, após cumprir sua jornada terrena. Ela nos antecedeu por seus méritos e pelos méritos da graça divina.

E a esperança consiste justamente nisso: a morte não é o fim, mas, podemos dizer, um momento de transição desta vida para a vida definitiva junto ao Pai.

Isso nos ensina Paulo, na primeira carta aos coríntios (15,20-26.28). Diz o apóstolo que “Cristo ressuscitou dos mortos como primícias dos que morreram” (1 Cor, 15,20). Ele é o primeiro, porque nos está indicando o caminho. O caminho que Ele percorreu e por onde levou a mãe.

E o apóstolo diz isso como a dizer que a vida no mundo é importante, sem dúvida, mas a morte não é menos importante, pois é por ela que se chega ao Pai. O próprio Cristo, para retornar ao Pai, passou pela morte. Como ensina o apóstolo: “Em primeiro lugar, Cristo, como primícias; depois, os que pertencem a Cristo, por ocasião da sua vinda” (1 Cor, 15,23).

Mais um sinal da esperança, anunciada na liturgia de hoje é a vitória sobre a morte “O último inimigo a ser destruído é a morte” (1 Cor 15,26). com a morte da morte haverá plenitude de vida.

Nossa Senhora é o modelo da vitória da vida sobre a morte. E a solenidade da Assunção de Nossa Senhora, nos indica esse caminho. Ao passar pelo portal da morte, da mesma forma que a mãe do Senhor, seremos assumidos pela Trindade Santa no reino definitivo. Assim, podemos dizer que Nossa Senhora é a precursora, foi chamada ao céu para nos dizer e indicar o caminho que devemos seguir.

E qual é o caminho indicado pela Senhora Assunta ao Céu? Pode ser lido no programa de vida apresentado por Maria, ao visitar Isabel, como nos indica a perícope de Lucas 1,39-56. Maria, uma adolescente prestes a dar a luz, enfrentando suas dificuldades, não exitou em pegar a estrada para ajudar Isabel. A vida em favor do outro: esse é o sentido da vida.

Maria sabia disso de forma plena. Essa plenitude está expressa em sua exclamação: “O Poderoso fez por mim maravilhas e Santo é o seu nome!” (Lc 1,49). As maravilhas não são somente em favor da Mãe. Estão, também, à nossa disposição.

Além disso, a esperança se manifesta numa prática de justiça e equidade. O senhor que faz maravilhas, em favor dos que o temem – e praticam suas obras – porque “derruba os orgulhosos”; “exalta os humildes”; “sacia os famintos” (Lc 1,51-53).

Maria como modelo, por suas virtudes; Maria como precursora, por suas ações; Maria como sinal de esperança, porque não só carregou Jesus no ventre e nos braços, mas porque intercedeu em favor dos menos favorecidos. E, nossa esperança nos diz, continua atuando como nossa intercessora, como “advogada nossa”. Também por meio de Maria, Deus realizou e continua oferecendo a salvação.




Neri de Paula Carneiro

quarta-feira, 5 de agosto de 2020

Por que duvidaste?

Um convite à confiança. Podemos dizer que essa é uma das propostas que Deus nos faz, neste 18º domingo do tempo comum.

Comecemos analisando o panorama que as leituras nos apresentam: Elias (1 Rs 19,9a.11-13a) está escondido numa gruta. Paulo (Rm 9,1-5) confessa uma tristeza e Pedro, o fundamento da Igreja (Mt 14,22-33), assusta-se com o vento e as águas.

Por que essas cenas nos são apresentadas? Para nos lembrar da necessidade de confiança depositada no Senhor.

E nós, como nos posicionamos diante de Deus e de seu convite? Nos escondemos? Lamentamos as dores? Temos medo de submergir nas tempestades da vida? Ou confessamos, com nossa vida e nossos atos, diante de Jesus: “Verdadeiramente, tu és o Filho de Deus!” (Mt 14,33)?

Não é demais nos perguntarmos o porquê de Elias estar se escondendo; de Paulo estar angustiado e de Pedro estar afundando.

No primeiro livro dos Reis Elias é um dos personagens mais importantes. Tanto que é perseguido pelo rei, após ter eliminado os falsos profetas. Venceu-os em nome de Deus, mas temeu perder a vida pela ira do rei. Por isso o encontramos escondido numa gruta onde é localizado pelo Senhor. Só que o Senhor não se manifestou em nenhum dos terríveis fenômenos da natureza. Passaram o vento forte (tempestade), o terremoto e o fogo. Mas nada disso foi capaz de manifestar a presença de Deus (1 Rs 19,12-13)

O Senhor não se deu a conhecer no medo nem na insegurança. Somente no “murmúrio” da “brisa leve” Elias reconheceu a presença de Deus e, por isso, “cobriu o rosto” (1 Rs 19,13). Somente ao reconhecer o Senhor teve coragem de sair da gruta. Fugiu ao sentir medo, mas foi capaz de sair porque confiou.

E nós, em que situação reconhecemos o Senhor, para sairmos de nossos esconderijos? Ou, antes disso, o que nos assusta ao ponto de fazer com que entremos no esconderijo?

Podemos até ter feito grandes coisas em nome de Deus, como Elias, mas se não tivermos confiança absoluta no Senhor, Ele não se manifestará a nós na mansidão. Se não confiarmos absolutamente em sua graça, nós o confundiremos com os fogo, o vento ou o terremoto.

Com Paulo não é diferente. Está angustiado, pois seus irmãos israelitas não aderiram a Cristo. Reconhece que “a eles pertencem a filiação adotiva, a glória, as alianças, as leis, o culto, as promessas” (Rm 9,4). Entretanto, também para o apóstolo, é a confiança que lhe permite reconhecer em Jesus aquele que havia sido prometido aos antigos. Mas que só pode ser reconhecido mediante um ato de fé. Numa profissão de confiança o apóstolo reconhece que Cristo “está acima de todos”. Ele é o “Deus bendito para sempre” (Rm 9,5).

E nós, reconhecemos o Cristo, o prometido, na pessoa de Jesus de Nazaré? E se reconhecemos, porque ainda não mudamos nossos comportamentos?

Que dizer, então de Pedro?

Um homem que conviveu com Jesus; viu o milagre da partilha; ouviu de Jesus a afirmação: “Coragem! Sou eu. Não tenhais medo!” (Mt 14,27) e tendo recebido o convite para ir ao encontro de Jesus (Mt 14, 29)… teve medo!

A falta de confiança, de Pedro, o estava fazendo afundar. Num rompente de coragem ele havia descido da barca. Mas isso parece ter sido muito mais um gesto ditado pela empolgação do que pela confiança. A empolgação não é um ato de fé.

Em Pedro o ato de fé se expressou no auge do desespero. Somente expressou sua confiança quando sentiu que estava afundando (nas águas e na vida), por isso o desespero. Somente quando “sentiu o vento, ficou com medo e começando a afundar, gritou: 'Senhor, salva-me!'” (Mt 14,30) ...somente nesse momento pode ser salvo. Não sem antes ter ouvido de Jesus a recriminação: “Homem fraco na fé, por que duvidaste?” (Mt 14,31).

Como estão navegando as barcas de nossas vidas? Quais são os ventos que estão nos levando para o fundo das águas do mar da vida? Estamos vendo Jesus sobre as águas, ou apenas um fantasma? (Mt 14, 26).

É possível superar as dificuldades. É possível vencer os medos. É possível enfrentar os dissabores e as dúvida e as incertezas… mas isso só será possível quando houver entrega absoluta, para não mais ouvirmos: “por que duvidaste?” Isso é possível se mantivermos a mesma atitude daqueles que estavam no barco e formos capazes de dizer, não só com palavras, mas com o gesto de nossa vida: “Verdadeiramente, tu és o Filho de Deus!”

Neri de Paula Carneiro

CICLO DA PÁSCOA: A vitória da vida.

Disponível em: https://pensoerepasso.blogspot.com/2024/03/ciclo-da-pascoa-celebrar-vida.html; https://www.recantodasletras.com.br/artigos-de...